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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.1 Florianópolis jan./abr 2022  Epub 01-Jan-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n175514 

Artigos

O queer e a aids na exposição Queermuseu

Queer and AIDS at the Queermuseu exhibition

Queer y SIDA en la exposición Queermuseu

Ricardo Henrique Ayres Alves1 
http://orcid.org/0000-0002-4021-9168

1Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS. Brasil. 96010-770


Resumo:

Este artigo aborda a manifestação do queer e da aids na exposição Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira. Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, a mostra, inaugurada e censurada no ano de 2017, é contextualizada a partir de seu encerramento prematuro e também das críticas que recebeu por sua abordagem frágil da diferença. A partir das considerações de autores como David Getsy (2016), Douglas Crimp (2004), Guacira Louro (2001) e Larissa Pelúcio (2014), a relação entre o queer e a enfermidade foi investigada nos textos do catálogo da Mostra, utilizando como método a análise de conteúdo. Tal estudo permitiu perceber que a abordagem do tema na exposição foi superficial, sem apresentar um debate teórico satisfatório ou mesmo um conceito sólido sobre o queer, sendo um dos principais indícios dessa fragilidade a ignorância sobre a sua relação com a crise da aids.

Palavras-chave: queer; aids; exposição; Queermuseu

Abstract:

This article covers the manifestation of queer and AIDS in the exhibition Queermuseu: Cartographies of difference in Brazilian art. Curated by Gaudêncio Fidelis, the exhibition opened and censored in 2017. It is contextualized from its premature closure and from the criticisms it received for its fragile approach to difference. Based on the considerations of authors such as David Getsy (2016), Douglas Crimp (2004), Guacira Louro (2001), and Larissa Pelúcio (2014), the relationship between queer and disease was investigated in the texts of the exhibition catalog, using as a method the content analysis. This study allowed us to realize that the approach to the theme in the exhibition was superficial, without presenting a satisfactory theoretical debate or even a solid concept about queer, being one of the main signs of this fragility, the ignorance about its relationship with the AIDS crisis.

Keywords: Queer; AIDS; Exhibition; Queermuseu

Resumen:

Este artículo trata la manifestación queer y el SIDA en la exposición Queermuseu: Cartografías de la diferencia en el arte brasileño, bajo la curación de Gaudêncio Fidelis la exposición inaugurada y censurada en 2017 se contextualiza desde su prematura clausura y también desde las críticas que recibió por su frágil aproximación a la diferencia. A partir de las consideraciones de autores como David Getsy (2016), Douglas Crimp (2004), Guacira Louro (2001) y Larissa Pelúcio (2014) se investigó la relación entre el queer y la enfermedad en los textos del catálogo de la muestra, utilizando como método el análisis de contenido. Dicho estudio nos permitió darnos cuenta de que el abordaje del tema en la exposición fue superficial, sin presentar un debate teórico satisfactorio o incluso un concepto sólido sobre lo queer, siendo uno de los principales indicios de esta fragilidad el desconocimiento sobre su relación con la crisis del SIDA.

Palabras clave: queer; SIDA; exposición; Queermuseu

Na história recente do Brasil, o ano de 2017 se destacou por iniciativas de repressão direcionadas a propostas artísticas que abordaram os corpos, gêneros e sexualidades, promovidas por setores conservadores da sociedade, os quais procuraram censurar tais realizações, obtendo êxito em alguns casos. Ainda que este tipo de reação, desencadeada principalmente por projetos e obras que indagam ou desafiam o sistema de sexo/gênero (Gayle RUBIN, 2017), não seja uma novidade - e nesse sentido é importante lembrar da censura sofrida pela exposição Erotica, curada por Tadeu Chiarelli (2005), cuja repressão fora motivada pela presença do trabalho Desenhando em terços, de Márcia X (2002) -, o grande número de ocorrências nessa data parece caracterizar um período no qual a arte que aborda a diferença parece ser perigosa o bastante para ser silenciada de forma sistemática.

Em 2017, o artista Maikon K foi interrompido durante a realização de sua performance DNA de Dan no dia 15 de julho, em Brasília. Na ação, realizada desde 2013, o performer tem uma substância colocada sobre seu corpo. Após sua secagem, ele começa a se movimentar, descolando aos poucos essa segunda pele. Logo no início de mais uma apresentação do trabalho, K foi acusado de atentado ao pudor, sendo levado pela polícia. O fato de o trabalho integrar a programação do Palco Giratório do SESC, um importante festival de artes cênicas, não evitou sua interrupção abrupta.

No dia 27 de setembro de 2017, na abertura do 35º Panorama da Arte Brasileira, ocorrido no Museu de Arte Moderna de São Paulo, a performance La Bête foi apresentada por Wagner Schwartz. A proposta era que seu corpo nu pudesse ser manipulado, assim como os bichos de Lygia Clark que inspiraram a ação. No entanto, um vídeo com a imagem de uma criança - a filha da coreógrafa Elisabete Finger - tocando o pé do artista desencadeou a divulgação de notícias falsas, as quais denunciavam a realização de atos de pedofilia no espaço expositivo.

Além desses casos, é possível ainda mencionar o episódio que envolveu a atriz travesti Renata Carvalho, censurada por interpretar o papel de Jesus Cristo na peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do céu, texto original da britânica Jo Clifford, em versão apresentada nos palcos brasileiros. Nas cidades de Jundiaí e Salvador, onde o espetáculo aconteceria, respectivamente, nos dias 15 de setembro e 27 de outubro de 2017, a justiça impediu a realização da peça. Uma tentativa de censura malsucedida ocorreu na cidade de Porto Alegre, onde o texto foi apresentado nos dias 21 e 22 de setembro do mesmo ano. No início do mês de junho de 2018, uma nova tentativa de repressão ocorreu no Rio de Janeiro, tendo como mandante o prefeito da cidade, Marcelo Crivella.

Em meio a todos estes casos, talvez o mais emblemático e divulgado tenha sido o fechamento da exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na arte brasileira, curada por Gaudêncio Fidelis (2017). Inaugurada no dia 15 de agosto de 2017, a mostra permaneceria aberta ao público no Santander Cultural, em Porto Alegre, até o dia 08 de outubro do mesmo ano. No entanto, no dia 10 de setembro, os gestores do espaço pertencente ao banco espanhol decidiram encerrar a exposição em decorrência das críticas de setores conservadores, nos quais se destacava a organização fascista Movimento Brasil Livre (MBL), um dos principais articuladores da divulgação de notícias falsas sobre a mostra, entre as quais se destacavam os comentários sobre atos de pedofilia e zoofilia que teriam sido realizados e incentivados no espaço expositivo.

Após o encerramento de Queermuseu, muito se falou sobre a perseguição sofrida pela mostra e sobre as motivações preconceituosas por trás de tais notícias falsas, que colocaram parte da opinião pública contra uma exposição que versava sobre a diferença a partir de uma perspectiva queer. Diante da atitude arbitrária executada pelos gestores do Santander, que finalizaram a mostra diante de tais ataques, a classe artística e outros setores da sociedade civil manifestaram seu descontentamento, inclusive por meio de protestos em frente à instituição. No entanto, a discussão sobre o encerramento intransigente e prematuro de Queermuseu criou uma espécie de cortina de fumaça que ocultou outros debates que envolviam a proposta, considerada bastante problemática desde antes de sua inauguração.

Um dos fatos que comprova tal insatisfação foi a ação que ocorreu na abertura de Queermuseu, na qual o coletivo Rasgo realizou uma performance jogando vários papéis do segundo andar do Santander Cultural, em uma literal chuva de críticas que caiu sobre os visitantes que estavam no piso em que ocorria o vernissage. Os textos presentes em tais impressos questionavam a legitimidade da mostra, acusando-a de se apropriar de uma posição político-teórica para transformá-la em uma mercadoria para o circuito artístico.

Nas críticas do grupo, a exposição também era questionada sobre seu descolamento da realidade diante de questões como as recentes dificuldades de repasses dos medicamentos para o tratamento do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e o despejo do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids no Rio Grande do Sul, o GAPA-RS, uma das mais antigas ONGs brasileiras atuante na resposta ao HIV/aids.1 A instituição havia perdido sua sede no dia 11 de agosto de 2017, em razão do não pagamento do aluguel, que se encontrava sob a responsabilidade do governo estadual, segundo reportagem de Gregório Mascarenhas (2017).

Os debates levantados pela intervenção atestam que, desde o seu início, a exposição recebeu uma série de críticas emitidas por setores e indivíduos que não se sentiam representados pelo projeto. Algumas pessoas apontavam um uso equivocado e ou oportunista do queer, destacando a falta de politização e discussão aprofundada do tema, como Tiago Sant’Ana (2017), que pontua o fato de a exposição ter apresentado um queer docilizado, que não manifesta a estranheza e a insubordinação que lhe seriam característicos. O pesquisador também critica a curadoria pela falta de representatividade de grupos importantes no debate sobre a diferença de gênero e sexualidade, debatendo a escolha por grandes nomes da arte no Brasil que não têm relação alguma com o queer, mas que, ainda assim, foram elencados para o projeto, tais como Alfredo Volpi, Cândido Portinari, Alberto da Veiga Guignard, Lygia Clark e Pedro Américo.

Outras críticas abordavam ainda a expografia, comentando o espaço, considerado pequeno para as numerosas obras, e a justaposição das obras com pouco intervalo entre as peças. No entanto, com a investida conservadora que encerrou o projeto, a maioria dessas críticas deu lugar à defesa da reabertura e ao questionamento sobre as motivações reacionárias envolvidas em tal episódio.

Com a intenção de retomar estes debates, o presente texto procura debater Queermuseu a partir de um ponto específico, levantado, inclusive, na ação do grupo Rasgo: a relação entre o queer e a epidemia de HIV/aids e, consequentemente, a manifestação desse atravessamento na proposta expositiva. Essa abordagem se justifica pela estreita relação entre o tema da mostra e a enfermidade, pois o ativismo queer surge na década de 1980 também como uma resposta à repressão normativa decorrente da crise da aids, como comenta o historiador da arte David J. Getsy (2016).

Por meio dessa análise, pretende-se criar um espaço de discussão para além do fechamento da mostra e de suas consequências, por meio de uma análise voltada para algumas implicações teóricas e conceituais que atravessam sua realização. De forma alguma se pretende diminuir o impacto e o absurdo do encerramento forçado e prematuro de Queermuseu, mas, sim, analisar os argumentos e discursos da curadoria para além desse triste episódio, procurando reativar os debates que foram colocados em segundo plano, que estavam, porém, sendo amplamente discutidos quando da sua abertura.

Com o fim de promover tais discussões, a exposição será analisada a partir dos textos do seu catálogo. Tal escolha se justifica porque, a partir desses escritos, o curador apresenta sua proposta e suas ideias sobre o que seria o queer, bem como a materialização desses conceitos nas escolhas implicadas pela iniciativa, tais como as obras de arte que compunham a sua montagem. Além disso, a edição foi elaborada e publicada antes da repercussão da mostra, de forma que seu conteúdo não sofreu nenhuma influência referente às críticas que o projeto sofreu. No caso da segunda realização da mostra, os textos presentes em seu respectivo catálogo já incorporam tais discussões.

A pesquisadora Anna Maria Guasch (2000) reafirma a importância dos textos provenientes de exposições na contemporaneidade. Para ela, tais escritos são equivalentes aos manifestos produzidos no período moderno pelos integrantes das vanguardas. Nesse sentido, o estudo da arte mais recente deve levar em conta a produção de tais escritos não somente como complementos das mostras, mas sim como documentos que apresentam o contexto, os discursos e as intenções presentes nas exposições. Assim, esses materiais constituem uma fonte importante para entender as mostras e os aspectos que elas procuram discutir e apresentar. No caso desta investigação, as informações presentes nesses textos serão confrontadas com a teoria pertinente ao recorte escolhido, assim como serão estabelecidas considerações sobre as obras e sua montagem.

O catálogo possui vários textos, a maioria deles escritos por Fidelis (2017), o curador da mostra. Ignorando sessões menos importantes, constituem-se como o corpo de análise dessa investigação duas partes da publicação: a primeira, composta pelo conjunto de quatro artigos explicativos da exposição, dos quais três tem a autoria de Fidelis (2017) e um de Márcio Tavares (2017); e a segunda, um grande texto, no qual todas as obras da mostra são apresentadas e discutidas em relação à sua disposição no espaço, também de autoria do curador.

Como método, optou-se pela análise de conteúdo (Laurence BARDIN, 2011), metodologia que permite elencar fragmentos do texto, as unidades de conteúdo, e organizá-las por temas, as unidades de análise. A partir das informações nos textos que apresentam a mostra, foram compilados os trechos que correspondessem às duas unidades de análise, as categorias queer e HIV/aids. A partir do estudo do material coletado, pareceu pertinente também incluir uma passagem sobre as restrições à doação de sangue no Brasil, tema a partir do qual a enfermidade poderia ter sido comentada. A seleção de tais fragmentos textuais foi discutida e contextualizada a partir de sua relação com as críticas recebidas pela exposição, representadas pela intervenção do coletivo Rasgo, e com a bibliografia que debate a relação entre a aids e o queer, procurando problematizar as escolhas conceituais da curadoria.

Para discutir a relação entre estes dois temas, é necessário fazer um breve histórico do impacto da epidemia e das suas consequências. Após os avanços comportamentais e sexuais das décadas de 1960 e 1970, os anos 1980 foram marcados pela disseminação do vírus HIV, que se espalhou atingindo primeiramente alguns grupos específicos, entre eles os homens homossexuais. O historiador da arte e ativista Douglas Crimp (2004) define que pensar o impacto da aids como uma crise é uma escolha política, e que os gays foram associados à epidemia não só pelas mortes que atingiram essa população, mas porque foi este grupo que tomou para si a responsabilidade social sobre a doença. Mesmo quando se comprovou que a enfermidade podia atingir as mais diversas pessoas, boa parte das iniciativas na resposta à aids continuou relacionada aos movimentos implicados na diferença sexual.

A fala de Crimp (2004) é atravessada pela situação estadunidense, pois, mesmo com o grande número de casos no país, o governo demorou muito tempo para reagir à epidemia. Essa situação é distinta da realidade brasileira, onde se desenvolveu uma política de aids bem-sucedida, a ponto de o Brasil se tornar uma referência entre os países em desenvolvimento. Lindinalva Laurindo-Teodorescu e Paulo Roberto Teixeira (2015) relatam com detalhes essa trajetória, destacando a importância do surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir do estabelecimento da Constituição de 1988 para que a resposta à crise da aids se desenvolvesse com sucesso.

No entanto, tal situação favorável foi atravessada por uma série de dificuldades. João Silvério Trevisan (2018) discute como a desinformação diante da doença favoreceu sua disseminação, assim como o preconceito. Diante de uma enfermidade que levava à morte após um grande sofrimento e degradação corporal, não é surpreendente que aqueles associados a ela sofressem as mais diversas discriminações. E é justamente a partir do medo provocado pela aids e da repulsa pelas sexualidades não heteronormativas que se reforça um processo de normatização da diferença que já estava em curso.

Guacira Lopes Louro (2001) afirma que o processo de engessamento identitário se estabelece como uma consequência da criação do par heterossexualidade/homossexualidade, conceitos inventados no século XIX. Nesse sentido, a mudança na visão da sociedade sobre os homossexuais no século XX reforça essa dicotomia, pois “o discurso político e teórico que produz a representação ‘positiva’ da homossexualidade também exerce, é claro, um efeito regulador e disciplinador” (LOURO, 2001, p. 544). Com a maior organização e visibilidade das então chamadas minorias sexuais, existe um discurso assimilacionista que organiza e regula tais indivíduos dentro de determinados padrões. Para a autora, a chegada da aids adiciona novos elementos a esse horizonte, pois indica a fragilidade das identidades em detrimento das práticas sexuais na discussão da prevenção, assim como reforça o preconceito e revela a heterogeneidade das redes de apoio criadas na resposta à enfermidade, que não eram compostas apenas por homossexuais, ultrapassando limites identitários.

Além disso, como atesta Crimp (2004), a promiscuidade era um tema importante no cruzamento entre a sexualidade gay e a enfermidade, pois o alto contágio pelo HIV entre os homossexuais era visto como uma consequência de sua vida sexual intensa, que fugiria de um hipotético padrão monogâmico heterossexual. Assim, disfarçando a heteronormatividade como cuidado à saúde, a monogamia, e, por conseguinte, a reprodução do padrão heterossexual, foi preconizada como uma saída para os gays se eles quisessem sobreviver à moléstia. Ao problematizar essa questão, Néstor Perlongher (1987) adverte sobre a domesticação e o controle da homossexualidade durante a epidemia, apontando, inclusive, como o próprio conceito de homossexualidade surge a partir da medicina.

O fato de existirem formas seguras de fazer sexo bastaria para desqualificar esse argumento. No entanto, no início da epidemia, essas informações não eram tão claras e, em meio às numerosas mortes, o padrão heteronormativo continuou a se estabelecer entre os homossexuais. É justamente como uma resposta à necessidade de dizer não a essa incorporação da diferença que o queer, termo pejorativo e de escárnio, torna-se uma bandeira. A partir da reflexão sobre este movimento, surge a teoria queer, um campo do pensamento que procura discutir as questões advindas de uma posição que propõe a superação das identidades.

Segundo Larissa Pelúcio (2014), é por meio do debate sobre a teoria queer nas universidades que o termo entra no Brasil. A pesquisadora problematiza então a incorporação do conceito, discutindo a necessidade de pensarmos uma especificidade nacional dessa teoria, já que seu contexto de surgimento é muito diferente de nossa realidade. Héctor Domínguez-Ruvalcaba (2019) propõe uma discussão semelhante ao afirmar que, apesar de muitas coisas na América Latina poderem ser consideradas queer, elas não dependem ou se relacionam com este conceito estadunidense, possuindo suas próprias historicidades e contextos de superação da normatividade advinda do modelo heterossexista.

Como discute Louro (2001), o queer, ao pressupor a superação do binarismo entre heterossexualidade e homossexualidade, assim como do par masculino e feminino, apresentando a limitação de tais conceitos, propõe uma superação do termo identidade, que seria muito rígido e pouco flexível diante da variabilidade de existências e experiências nos aspectos de gênero e sexualidade.

Nesse sentido, nos diferiríamos tanto de um padrão de gênero e sexualidade considerado ideal, como a nossa própria diferença individual impediria a organização de identidades estanques e fixas. Por estes motivos, o queer evocaria a diferença e a superação da identidade como suas características. Nesse sentido, Pelúcio (2014) destaca a dificuldade em definir a expressão, apesar de ser possível entender seu caráter antiassimilacionista e sua oposição aos padrões do sistema de sexo/gênero. Indo na contramão de uma afirmação de que seríamos todos iguais, o queer defende e institui justamente a diferença.

Entretanto, se no subtítulo de Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira existe a evocação dessa perspectiva, é necessário analisar com um pouco mais de profundidade o discurso de seu curador para que seja possível confirmar se a mostra contempla realmente tal posição. “Queermuseu: táticas queer em direção a uma curadoria não heteronormativa” é o primeiro texto do catálogo, no qual o curador apresenta seu entendimento sobre o que seria elaborar uma exposição queer, inscrevendo-a em uma tendência mundial ao pontuar mostras com abordagem semelhante. Nesse sentido, a primeira definição do conceito aparece logo no início do texto:

Queer (aqui também pensado como estranho, desviante, fora da norma canônica, e assim por diante) representa essa porta de entrada para anunciar um conjunto de problemas que, em minha perspectiva, deve ser do interesse de projetos curatoriais problematizar […] (FIDELIS, 2017, p. 12).

Existe também menção ao queer como algo relacionado a expressões de gênero, sexualidade, diversidade de gênero e formas. Fidelis (2017) também afirma que o conceito estaria contra a normatividade, mesmo dentro da comunidade LGBT, uma concepção antiassimilacionista que rejeitaria tentativas de reforçar ou valorizar a normalidade, citando Getsy (2016) ao discutir esse aspecto. No entanto, é no último parágrafo do texto que o autor discorre sobre o conceito de forma mais aprofundada, porém, ignorando a relação entre a aids e o surgimento do queer ainda na década de 1980, como discutido por Getsy (2016), assim como a especificidade da relação entre movimento social e academia no país, como apontado por Pelúcio (2014).

O uso do termo queer data do século 19, embora tenha surgido inicialmente com conotações depreciativas. Foi reapropriado pela comunidade LGBT em meados dos anos de 1990 a partir de uma disposição afirmativa, podendo ser considerado inclusivo e não específico. O termo possibilita a inclusão de comportamentos e referências queer/heterossexuais e queer/homossexuais, assim como outras categorias localizadas entre eles. Subsequentemente, com sua entrada na academia, os estudos queer trouxeram uma abertura sociocultural capaz de investigar as instâncias políticas que refletem a normatividade institucional que no campo compreendemos como canônica, daqueles desvios que podem ser considerados fora da norma e, portanto, alijados ou excluídos da institucionalidade (FIDELIS, 2017, p. 14).

No segundo texto, “O olho despenca para fora: canibalismo queer e a especificidade das inflexões políticas do desejo”, Fidelis (2017) passa pela antropofagia, chegando até o canibalismo, e se aproximando da história do olho de Georges Bataille (2003). Nesse ponto, novamente o autor apresenta a sua concepção de queer no interior da exposição de maneira bastante ampla, repetindo o que já havia afirmado no primeiro texto, destacando o queer como uma experiência não normativa, e apresentando a justaposição de obras como uma estratégia de montagem.

Em “Epistemologia LGBT: museologia queer e o desvio como estratégia curatorial para exposições não heteronormativas”, Fidelis aponta o desvio como estratégia diante dos principais usos dos aparatos museológicos que operam na manutenção do status quo, destacando, na sequência, que sua definição de queer é ampliada, pois nem tudo na exposição pode ser classificado como queer, o que parece bastante confuso. Segundo ele,

a intenção é construir uma plataforma com um universo de obras que possibilite uma melhor compreensão das prerrogativas do cânone artístico, utilizando como estratégia a investigação de inclinações queer no universo da arte e da cultura (FIDELIS, 2017, p. 24).

Fidelis (2017) reafirma a intenção de ir além dos estereótipos do binarismo de gênero e mesmo dos estereótipos relacionados ao existencialismo LGBT, defendendo a construção do que chama de ‘espaços queer sensíveis’ em vez de ‘queer estereótipos’. Afirmando a precariedade de um pensamento existencialista sobre a sexualidade, o curador sugere que obras produzidas sem vinculação com a arte de caráter queer podem contribuir para a discussão do tema. Essa posição é problemática, pois Fidelis (2017) parece afirmar que, em sua exposição, são mais importantes trabalhos não queer inseridos em sua narrativa do que obras que abordam o assunto, mas que estariam ligadas ao que ele entende como perspectivas existencialistas e estereotipadas.

Essa questão parece ainda mais problemática se for levado em conta que o desejo do curador parece ser justamente o de assimilação, pois a própria ideia de criar um museu queer em uma instituição de arte pertencente a um banco já representaria essa vontade. Além disso, apesar de propor a postura pós-identitária como um norte, sua definição ampla - a ponto de afirmar que em Queermuseu existem obras que não são queer - não contribui para que seja possível entender seus critérios para a seleção dos trabalhos que compõem o projeto, aspecto bastante criticado pela falta de representatividade nos artistas escolhidos.

Por fim, Fidelis (2017) também comenta em seu texto o termo outro e menciona a teoria pós-colonial, recorrendo também ao conceito de minoria, sem se aprofundar muito em nenhuma dessas perspectivas. É importante pontuar o comentário sobre Jean Baudrillard (1993), que envolve considerações relativas ao pensamento sobre as obras enquanto objetos dispersos no espaço e nas implicações dessa materialidade, já que chama atenção o fato de a exposição ter sido montada com pouco distanciamento entre as peças, em configurações pouco usuais em exposições contemporâneas.

“O impacto da diferença em exposições museológicas e seu efeito sobre as organizações”, outro escrito com autoria de Fidelis (2017), define o queer como oposição a uma política de identidade essencialista e que a identidade seria uma barreira normativa que se tornou conservadora, o que faz sentido porque o queer é visto como uma política pós-identitária. No entanto, talvez seja interessante pensar que as construções identitárias ligadas à dissidência do sistema de sexo/gênero estão bastante relacionadas ao debate sobre o queer, de forma que ignorá-las pode comprometer uma visão mais ampla de como se desenvolve a pós-identidade.

Por sua vez, “Cultura brasileira, cultura de massas, cultura queer”, único texto do catálogo não escrito pelo curador da mostra, também apresenta inconsistências. Seu autor, Márcio Tavares (2017), que colaborou com Fidelis na 10ª Bienal do Mercosul (2015), afirma, em nota, que utiliza o termo queer tanto em sua dimensão identitária quanto na sua dimensão política, o que supõe a possibilidade de separar tais aspectos. Na sequência, apresenta a importante relação do queer com outras condições subalternas, como a comunidade negra, as mulheres e os povos originários, além de propor, à luz desses grupos, revisões das narrativas históricas e do cânone artístico.

No entanto, ao inscrever o queer na história brasileira, Tavares (2017, p. 33) comenta que há um contexto de transformação, sobretudo na última década. Em um esforço para construir uma história do conceito, o autor menciona um encontro entre Caetano Veloso e Ney Matogrosso no final dos 1960. Destacando o impacto que a figura do cantor baiano havia causado em Matogrosso por questionar padrões de performatividade de gênero, afirma:

Tudo levava a crer que daquele momento em diante, aparentemente o país viveria um processo acelerado de libertação em que outras possibilidades de manifestação do universo cultural queer pudessem emergir para uma audiência nacional, atingindo sucesso e influenciando grandes camadas da juventude à adoção de posições mais libertárias. No entanto, com o surgimento da AIDS e de toda a carga de preconceito que a doença ocasionou sobre a comunidade LGBT em um primeiro momento, pudemos acompanhar nas décadas seguintes uma estagnação regressiva nesse movimento que havia explodido no final dos anos 1960 e 1970. Essa situação somente vem a se transformar na aurora do novo milênio, quando se dissipam os preconceitos sobre a doença e quando então a comunidade LGBT começa a avançar na garantia de seus direitos de cidadania. Nos últimos cinco anos, mormente, tem havido uma aceleração dos debates sobre essa questão, que é ombreada pelo aparecimento cada vez mais numeroso de produções artísticas de matriz queer.

Se Fidelis (2017) afirma que o queer surge na década de noventa, mesmo sem mencionar a aids, propondo um olhar retrospectivo ao usar o termo em outros tempos, as ponderações de Tavares (2017) se apresentam com problemas de outra ordem. Sua escrita confunde a ordem dos fatos, indicando que o queer seria uma ideia vigente nos anos 1960 no Brasil, assim como sua referência à aids só contribui para o aumento dessa confusão, pois coloca a enfermidade como uma barreira ao queer quando, na verdade, ela faz parte do que motiva seu surgimento. Além disso, ao afirmar que a virada do milênio é o momento em que o estigma da aids se dissipa e que então existe o avanço dos direitos da população LGBT, o autor parece ignorar que o impacto da aids nessa comunidade está diretamente ligado a tais avanços, como afirma Trevisan (2018), ao debater a simultaneidade entre o aumento do preconceito em virtude da enfermidade e a tomada de espaços a partir da organização decorrente da resposta à aids. Nesse sentido, falta ao autor o mínimo conhecimento sobre os temas que propõe discutir.

No sexto texto do catálogo, “Cartografias da experiência museológica: uma visão transversal das obras na exposição Queermuseu”, Fidelis (2017) recupera a narrativa e apresenta todas as obras que compuseram a mostra, encadeando breves análises sobre cada uma delas a partir da sua montagem no espaço. Ele começa o texto reforçando o ineditismo da exposição: “Tanto assim é que até agora em 2017, em pleno século 21, nenhum curador brasileiro ousou acionar a questão da diferença sob uma perspectiva queer em uma exposição (intitulada) queer” (FIDELIS, 2017, p. 38), explicando, na sequência, seu método de montagem da exposição, no qual as obras estariam integradas, construindo sentidos a partir das justaposições com outras. Tal proposta parece adequada diante da forma de ocupação do espaço que o curador propõe, com obras próximas, preenchendo grande parte das paredes, o que desafia as normativas mais canônicas do cubo branco, que geralmente indicam o distanciamento entre as obras por meio de generosos intervalos.

Fidelis (2017) apresenta uma narrativa descritiva e conceitual das obras, reproduzindo um recorrido pelo espaço da sala expositiva, comentando as relações entre uma obra e as outras que a cercam, tal como se ciceroneasse um visitante pelo espaço da mostra. O curador parece buscar reproduzir em texto a experiência presencial, narrando a sucessão de obras a partir da entrada do prédio em uma sequência que acompanha a disposição dos trabalhos no espaço. Nesse sentido, são apresentados sucessivamente todos os aspectos conceituais que ligam os objetos, quase como um manual que explicita o porquê de tal obra estar ao lado de outra, ao mesmo tempo que são explicitadas as ideias gerais do curador. Portanto, por meio da análise das menções ao HIV/aids nesses comentários, é possível perceber se a discussão sobre a enfermidade ganha fôlego ou se é inferiorizada nessa proposta de um museu queer.

Quando comenta sobre o trabalho Uma flor, de André Petry (2013), descrita como uma flor preta sobre um quadrado preto, o autor evoca tanto o construtivismo de Malevich quanto a questão da aids.

O aspecto um tanto quanto fúnebre dessa flor de Petry, desconstrói a vocação otimista do modernismo construtivista (Malevich, por exemplo, com seu Quadrado Negro, 1915), considerado uma obra “seminal” da história da arte, e a transforma em um protótipo da consciência da morte diante de diversos incidentes trágicos de percurso históricos que são tema desta exposição, como a AIDS, por exemplo, ou mesmo outros, como a flagelação pela tortura bárbara da crucificação mostrada na iconografia cristã, a escravatura e a dizimação dos povos originários (FIDELIS, 2017, p. 41).

Como tal obra se localiza logo na entrada do espaço expositivo, a descrição e o anúncio de que a aids é um tema importante parecem prenunciar um papel de destaque para o assunto na curadoria, apesar de o mesmo ser pensado como um incidente trágico e não como um elemento que integra o surgimento do queer. No entanto, essa relação parece esvaziada na montagem, pois nenhuma das obras que a cerca comenta a epidemia. Antes do trabalho de Petry, Fidelis (2017) comenta as colagens de Odires Mlászho, pequenas quimeras do corpo humano, e justapõe Sem título, de Leandro Machado (2004), um retrato pintado com henê.

A segunda menção à aids também é um tanto quanto indireta. Ela ocorre diante do trabalho de Fernando Baril (1989), Halterofilista. Após sugerir um caráter queer na obra de Cândido Portinari (1928), Retrato de Rodolfo Jozetti, Fidelis (2017, p. 52) apresenta esta obra da seguinte maneira:

A pintura de Fernando Baril, por outro lado, realizada em Nova York na década de 1980, no auge da cultura do corpo pelo fisiculturismo e, simultaneamente, no ápice da epidemia HIV/AIDS com seu ingresso na comunidade gay, determina um longo período de estigmatização do corpo masculino como lugar da doença.

Ainda que o contexto seja interessante, novamente a presença do tema se apresenta de forma sugestionada. O corpo musculoso, que na verdade é uma espécie de pele revestindo outro corpo, parece uma iconografia frequente para discutir questões identitárias e homoeróticas e não necessariamente a questão da enfermidade. Fidelis (2017), inclusive, deixa de comentar detalhes iconográficos relacionados à experiência de um corpo estigmatizado em martírio: as pequenas flechas no peito dos pés e na mão direita da figura, além da aljava e do arco posicionados atrás do corpo, que compõem com o alvo comentado pelo autor. Tais elementos parecem se referir simultaneamente às chagas de Cristo e ao sofrimento de São Sebastião, santo católico cuja iconografia fora apropriada pela cultura gay. Sendo o sofrimento e suas simbologias um tema recorrente na iconografia da aids, os elementos poderiam sugerir tal relação, mas não chegam a ser comentados.

Assim, se a imagem evoca um protótipo do fetichismo e da cultura homoerótica, como Fidelis (2017) afirma, parece que ele está estabelecendo relações muito mais com a iconografia gay em geral do que necessariamente com o tema da aids. Novamente, as obras comentadas antes e depois dela não têm nenhuma referência à moléstia: o retrato de Portinari articula relações de performatividade de gênero, em especial a masculina, enquanto a obra sem título de Luiz Henrique Schwanke, apresentando seus fálicos linguarudos, relaciona-se mais com a dimensão da representação do falo, e logo, de símbolos da masculinidade, identificáveis também na obra de Baril.

A presença de Leonilson, um dos artistas de maior expressão no Brasil quando se fala da relação entre arte e aids - como comprovam os estudos de Trevisan (2018), Wilton Garcia (2004) e Paulo Reis (2016) -, se manifesta na exposição por meio de dois trabalhos de 1991: Leo não consegue mudar o mundo e Agora e as oportunidades. Sua justaposição ao lado de Ente #3, de Paloma Bosquê (2015), reafirma as questões formais que os trabalhos compartilham, relacionadas à sua condição têxtil e à sua composição semelhante: uma grande zona de tons claros com a presença de elementos diminutos na composição. Na parede ao lado, localizam-se as obras de Nino Cais, dois retratos nos quais o artista apresenta sua imagem com o rosto coberto e cercado de elementos kitsch, ou seja, uma obra que estabelece pouca relação com a delicadeza formal dos trabalhos de Leonilson. Curioso, no entanto, é perceber que, no texto, o autor não comenta a questão formal de Leonilson que parece ter sugestionado sua montagem.

O artista, que faleceu muito jovem em decorrência das complicações da AIDS, deixou uma produção artística que hoje é reconhecida mundialmente. Uma parte significativa da produção artística da década de 1980 no Brasil, ainda que pequena, foi tomada pelas questões de gênero, identidade e sexualidade. Especialmente aquelas de caráter biográfico, de artistas que foram consumidos pelo advento da AIDS, que atingiu fortemente, em termos físicos e psicológicos, a comunidade que hoje conhecemos como LGBT. A obra de Leonilson, agora reconhecida internacionalmente, é um desses mais relevantes exemplos, visto que transformou drasticamente nossa percepção de gênero e sexualidade. O forte caráter autobiográfico de sua produção assinala as mudanças por que passou a produção artística ao longo do tempo, dos retratos acadêmicos e convencionais para testemunhos gráficos e literários de dimensão fragmentária do corpo atingido por toda sorte de mazelas, inclusive doenças (FIDELIS, 2017, p. 63).

Este é o trecho que melhor comenta a aids e sua influência na arte brasileira, relacionando-a com diversos aspectos, como a biografia e a autobiografia, as mudanças na história da arte e sua relação com as questões de gênero e sexualidade. No entanto, tal narrativa aparece descolada da análise das obras, pois elas não são nem ao menos comentadas. O que estes trabalhos teriam a ver com esses debates? Bastaria a presença de qualquer objeto produzido por Leonilson para ser estabelecida sua relação com a enfermidade? Diante dessas questões, é possível aferir que a discussão proposta no catálogo não se manifesta na materialidade da mostra, assim como a materialidade da obra é ignorada no texto.

A última menção à moléstia acontece na análise da obra de Maurício Bentes (1988), Sem título, uma pintura de encáustica e ferro vazada com uma lâmpada em seu interior, remetendo aos cortes na tela de Lucio Fontana. Após o comentário sobre essa obra, Fidelis (2017, p. 93) afirma que

O artista, que morreu jovem em decorrência da AIDS, chegou a dizer em determinado momento que: “A própria descoberta do HIV motivou uma nova discussão e aceitação de novas formas de sexualidade. Isso acabou sendo positivo”.

Ou seja, a discussão sobre a aids não está relacionada à obra do artista, e sim à sua biografia, tal como no caso de Leonilson, e nem mesmo as obras que antecedem e sucedem o objeto de Bentes reforçam essa questão: o trabalho de António Obá se relaciona com o corte e os objetos de Daniel Lie aparecem sem nenhuma associação com a obra anteriormente citada.

Por fim, uma situação deve ser pontuada não pela presença da aids, mais sim pela sua ausência. Ao comentar os trabalhos de Christus Nóbrega (2013), Sudário e Sudário - Espada de São Jorge I, II, II e IV, o autor discorre sobre o mote dessa série, composta por quatro impressões a jato de tinta feitas com o sangue do artista. Além das impressões com imagens de espadas de São Jorge, um vídeo as acompanhava, discutindo a proposta. Sobre o trabalho, o curador comenta:

De absoluta precisão e rara beleza, essas obras escondem uma dimensão política de extrema relevância para esta exposição: a de que, pela lei brasileira, homossexuais não podem doar sangue, por serem considerados grupo de risco, supostamente por manterem relações anais, como se tal prática sexual fosse uma indicação de promiscuidade e como se heterossexuais não vivessem frequentemente imersos no mundo dela. A determinação está expressa na Portaria nº 2.712 de 12/11/2013, do Ministério da Saúde, considerada por muitos como inconstitucional e mesmo que insistentemente questionada pelo movimento LGBT, ela ainda persiste (FIDELIS, 2017, p. 88).

Chama atenção que a motivação para essa proibição, uma decorrência da crise da aids e do grande número de homens gays atingidos no início da epidemia, não esteja expressamente comentada, manifestando-se de forma indireta. A existência dessa portaria, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) apenas em 2020, foi mais uma decorrência do preconceito e do medo causados pela moléstia.

Além disso, o comentário sobre a obra de Nóbrega é interessante, pois parte de uma flexibilização da metodologia: se a proposta era analisar e contextualizar a presença da aids no texto, no trecho comentado, é a sua ausência que chama atenção. A partir dessa situação, é possível pensar na ausência de diversas discussões que poderiam relacionar as questões do HIV/aids e as políticas queer se fossem escolhidas outras obras, artistas, ou mesmo outros arranjos expográficos.

No entanto, para além do campo das possibilidades hipotéticas, é necessário observar como essa relação foi discutida conceitualmente na exposição. Por meio da análise das definições sobre o queer e das menções à enfermidade, foi revelada uma grande ausência: a discussão sobre a ligação direta entre tais temas. Fidelis (2017) pontua o surgimento do queer em algum lugar dos anos 90 sem contextualizá-lo no interior das consequências da epidemia de aids, e quando menciona a moléstia, não realiza essa aproximação. Apesar de citar o texto de Getsy (2016), o curador ignora a associação entre os assuntos, debatida pelo autor de forma bastante clara.

No texto de Tavares (2017), a ausência dessa informação é ainda mais incômoda, pois o autor argumenta e discute a aids e o queer sem entender a estreita relação entre eles. Isso fica expresso no desejo de comentar o queer no contexto brasileiro, fazendo o movimento de olhar para o passado sem mencionar quando o termo passa a ser utilizado pelo movimento social no exterior e no país. Tavares (2017) fala de um queer nos anos 1960, sendo que o uso do termo em uma perspectiva política é muito mais recente. A própria tentativa de falar do queer no Brasil sem contextualizar sua especificidade no país, tema discutido por Pelúcio (2014), demonstra certo desconhecimento sobre o assunto.

Também chama atenção nesses textos a ausência de referências da teoria queer como Judith Butler (2013; 2012a; 2012b) e Paul Preciado (2014), importantes no contexto internacional e de forte penetração no cenário brasileiro, contando com diversas traduções no país. Nem mesmo referências nacionais, como Louro (2001), Pelúcio (2014) e Richard Miskolci (2012) são mencionadas. Essa falta de aprofundamento teórico se associa ao tratamento superficial da enfermidade no projeto, de forma que tal postura invisibilizou não só a aids, mas a própria noção de queer, que parece apartada de sua conjuntura histórica e conceitual.

Nesse sentido, a análise dos textos revela a fragilidade da mostra como um todo, sendo a abordagem da epidemia um sintoma de sua condição débil. Segundo Sant’Ana (2017):

[...] Queermuseu parece nem mesmo se referir a “queer”. Há uma apropriação do termo, mas não é acompanhada de uma reflexão crítica e histórica sobre o que ele significava articuladamente. [...] Queermuseu traz em seu contexto obras que possuem temáticas relacionadas ao gênero e à sexualidade, mas a representatividade da exposição é embaraçosa - já que a maioria das pessoas artistas sequer são LGBT ou, se são, muitas estão emaranhadas nos próprios sistemas da arte e do capital.

Dessa maneira, a crise da aids, importante episódio na história recente que está diretamente relacionado à emergência do queer, é negligenciada na construção de uma narrativa que se propõe pós-identitária, mas que permanece superficial e, por isso, não consegue abarcar a radicalidade que seria inerente a tal perspectiva. Além disso, apesar de existirem comentários no catálogo sobre a aids, a maioria relacionada à vida dos artistas, poucos elementos nas obras indicam a presença do tema, e o fato de tais trabalhos estarem dispersos no espaço impede a justaposição de suas sutis relações com a moléstia, o que poderia gerar maior visibilidade para o assunto.

Assim, se o curador afirma que as obras foram reunidas por aspectos em comum, é possível pensar que a dispersão de tais trabalhos indica a pouca importância da epidemia no projeto curatorial, visto que não existe a justaposição de nem ao menos dois trabalhos que se aproximem de alguma forma com o HIV/aids. Sem comunicação entre si, tais obras são ilhas de significação latente, pulverizadas no grande labirinto pretensamente queer produzido por Fidelis.

É possível então afirmar que Queermuseu se equivoca em termos conceituais por não discutir a aids e seu papel fundamental no surgimento do queer, e em termos de seleção de obras e de expografia por não propiciar à epidemia um papel de destaque, ou melhor, por mal a comentar, o que contrasta com algumas das passagens do último texto do catálogo, que reafirmam sua importância para a arte e a cultura. De alguma forma, é como se, apesar de a enfermidade ser apresentada como um elemento relevante, a materialidade das obras, bem como a sua montagem, se desviasse do assunto, justamente reforçando a falta de compreensão da relação entre a moléstia e o queer. Nesse sentido, as críticas ao projeto encontram na fragilidade de tal debate um indício do caráter superficial e oportunista de uma iniciativa que, segundo seu próprio curador, teria sido a primeira exposição queer intitulada queer realizada no país.

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1Atualmente, utiliza-se o termo aids em caixa baixa, pois a palavra já foi incorporada à língua portuguesa, deixando de ser apenas uma sigla para a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Essa grafia, proveniente da língua inglesa, foi adotada no país, apesar de a maioria dos países de língua latina utilizar o termo SIDA. No entanto, antes mesmo de se tornar uma palavra, setores ativistas já propunham sua grafia em caixa baixa, considerada menos alarmista. Todavia, o nome vírus, causador da enfermidade, continua sendo uma sigla, HIV. O uso da combinação HIV/aids para se referir à epidemia incorpora a mudança do paradigma da enfermidade, já que nem sempre quem possui o HIV desenvolve aids, uma decorrência do tratamento bem-sucedido que vem sendo aprimorado ao longo dos anos. Dessa forma, o uso do termo HIV/aids é mais adequado para se referir ao período mais recente, enquanto o uso do termo aids costuma se referir a épocas anteriores, sendo bastante presente nos textos que abordam a relação da doença com a arte e a cultura, principalmente quando se comenta o impacto desencadeado pela enfermidade a partir dos anos 1980 e 1990. Neste texto, as duas grafias são utilizadas a partir de suas especificidades. Nas citações, foram preservadas as grafias originais dos termos.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: ALVES, Ricardo Henrique Ayres. “O queer e a aids na exposição Queermuseu”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e75514, 2022

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 07 de Julho de 2020; Revisado: 18 de Março de 2021; Aceito: 06 de Abril de 2021

alves.ricardo@ufpel.edu.br

ricardohaa@gmail.com

Ricardo Henrique Ayres Alves (alves.ricardo@ufpel.edu.br; ricardohaa@gmail.com) é doutor e mestre em Artes Visuais pelo PPGAV/UFRGS. Bacharel em Artes Visuais pela FURG. Professor do Centro de Artes da UFPel. Artista visual. Seus interesses de pesquisa orbitam a arte contemporânea e suas interseções com o corpo, a aids, a sexualidade e o cotidiano.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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