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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.1 Florianópolis ene./apr 2022  Epub 01-Ene-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n171866 

Artigos

Revista íntima de mulheres visitantes em presídios: vidas normativamente não humanas

Revisión íntima de las mujeres visitantes en las cárceles: vidas normativamente no humanas

Samia Moda Cirino1  2  3 
http://orcid.org/0000-0003-4209-0350

Bruna Azevedo de Castro1  2  4 
http://orcid.org/0000-0001-5926-2281

1Faculdades Londrina, Londrina, PR, Brasil. 86071-280 - direito@faculdadeslondrina.com.br

2Instituto de Direito Constitucional e Cidadania, Londrina, PR, Brasil. 86010-450 - idcclondrina@hotmail.com

3Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil. 24210-580 - ederfm@id.uff.br

4Centro Universitário Integrado Brasil, Campo Mourão, PR, Brasil. 87301-010 - cep@grupointegrado.br


Resumo:

No presente artigo, objetivamos desvelar a lógica das normas sociais de inteligibilidade e reconhecimento que permite a continuidade da violência de gênero contra mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais no Brasil ao estipular quem conta como vida humana reconhecível e vivível. No aspecto jurídico, o discurso justificador da revista íntima vexatória é desconstruído por meio da análise da penalização corporal dessas mulheres e da violação do princípio da pessoalidade da pena. Após, o problema é analisado a partir da aplicação das categorias teóricas de performatividade, enquadramento e precariedade, desenvolvidas por Judith Butler. As análises permitem concluir que a violência institucionalizada a que são submetidas decorre do fato de a vida dessas mulheres não ser reconhecida como normativamente humana, diante do esvaziamento da própria condição de existência e luto.

Palavras-chave: precariedade; vida vivível; luto; enquadramento; revista vexatória

Resumen:

El trabajo tiene como objetivo develar la lógica de las normas sociales de inteligibilidad y reconocimiento que permiten la continuidad de la violencia de género contra las mujeres visitantes en las prisiones de Brasil, al estipular quién cuenta como vida humana reconocible y viable. En el aspecto legal, el discurso justificativo de la búsqueda íntima vejatoria se deconstruye a través del análisis del castigo corporal de estas mujeres y la violación del principio de la personalidad de la pena. Posteriormente se analiza el problema a partir de la aplicación de categorías teóricas de performatividad, encuadre y precariedad desarrolladas por Judith Butler. Los análisis permiten concluir que la violencia institucionalizada a la que son sometidas resulta del hecho de que la vida de estas mujeres no es reconocida como normativamente humana, dado el agotamiento de su propia condición de existencia y luto.

Palabras clave: precariedad; vida vivible; luto; encuadre; búsquedas corporales vejatorias

Abstract:

The objective of this article is to reveal the logic of social norms of intelligibility and recognition that allows gender violence against women visitors to prisons to continue in Brazil by stipulating who counts as a recognizable and livable human life. In legal terms, the discourse that justifies the vexatious intimate body searches is deconstructed through the analysis of the corporal punishment of these women and the violation of the principal of the individual character of a sentence. The problem is then analyzed by applying theoretical categories of performativity, framing and precarity developed by Judith Butler. The analyses allow concluding that the institutionalized violence to which these women are subjected results from the fact that their lives are not recognized as normatively human and livable, considering the depletion of the very condition of existence and grief.

Keywords: Precarity; Livable life; grieving; Framing; Vexatious body searches

Introdução

Se as humanidades têm um futuro como crítica cultural, e a crítica cultural tem um trabalho a ser feito na situação atual, esse futuro é sem dúvida nos devolver ao humano onde não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e nos limites de sua capacidade de fazer sentido.

(Judith BUTLER, 2019)

A revista íntima vexatória de mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais, embora no aspecto meramente normativo constitua exceção, é praticada regularmente por policiais penais, referendada por dirigentes das unidades prisionais, sob o argumento de cumprir exigências necessárias para a segurança nesses locais. Ainda que essa prática seja realizada em visitantes de ambos os sexos, a revista íntima vexatória atinge de forma mais significativa as mulheres, considerando que são elas as principais visitantes dos estabelecimentos prisionais. A forma como essas revistas são realizadas submete as mulheres à situação vexatória, uma vez que, na maioria dos casos, faz com que exponham seu corpo nu, inclusive na frente de seus filhos e filhas, obrigando-as a realizar movimentos incômodos e humilhantes, como agachamentos em cima de um espelho, para exposição da genitália a policiais penais.

As autoridades públicas justificam as revistas vexatórias como forma de impedir a entrada de objetos proibidos nos estabelecimentos prisionais. Contudo, a título de exemplo, uma pesquisa realizada pela Rede de Justiça Criminal, com base em documentos fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, demonstrou que apenas 0,03% dos visitantes carregavam itens considerados proibidos, ou seja, três visitantes a cada dez mil,1 sendo que, em nenhum dos casos, registrou-se a tentativa de entrada com armas.

A prática de revista íntima vexatória torna-se ainda mais desarrazoada diante da possibilidade de ser realizada por meios eletrônicos. Esse tema é objeto do Projeto de Lei 7.764/2014 (BRASIL, 2014), que visa a alterar a Lei de Execução Penal para determinar como regra que a revista pessoal seja realizada mediante uso de equipamentos eletrônicos. Embora a proposta de lei em comento não seja propriamente inovadora, considerando que alguns Estados no Brasil já contemplam normas que coíbem a revista íntima vexatória, a prática ainda é realizada em estabelecimentos prisionais com o argumento de indisponibilidade de verbas para aquisição de aparelhos eletrônicos, além do discurso reiterado de necessidade de preservar a segurança nesses locais.

Esse posicionamento na esfera pública requer a análise dos motivos que permitem a perpetuação dessa prática degradante contra mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais. Comumente, as pesquisas no campo do Direito que abordam essa prática fundamentam-se na violação de direitos humanos e fundamentais, entre eles, a dignidade da pessoa humana, a proteção ao direito à intimidade, à honra e à imagem. Podemos verificar essa perspectiva na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a Repercussão Geral (Tema 998) (BRASIL, 2018), ressaltando a necessidade de se analisar a “ilicitude da revista íntima realizada no âmbito do sistema prisional” por considerar que envolve questão constitucional relevante “a fim de trazer à luz a existência de práticas e regras vexatórias, desumanas e degradantes”.

Não negamos a relevância da abordagem realizada pelo STF, contudo, ousamos ir além dessa análise do tema a partir do lugar comum da dignidade humana, para indagar se as pessoas que visitam os estabelecimentos prisionais e que são submetidas à revista íntima vexatória, em especial as mulheres, são consideradas pelas normas de reconhecimento social como humanas, pois, se não forem consideradas, sequer, vidas humanas reconhecíveis, consequentemente, não subsiste qualquer discurso de dignidade. Esse intuito é realizado neste trabalho, inicialmente, por meio da análise do problema à luz da criminologia crítica e, posteriormente, na perspectiva dos estudos de gênero e da teoria do reconhecimento no pensamento de Judith Butler.

Desde a perspectiva da criminologia crítica, a revista vexatória de mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais é analisada, neste trabalho, dentro de um contexto maior de exclusão e negação da condição humana não só a ingressantes do sistema prisional, mas também a pessoas que mantêm com elas vínculo familiar ou de afetividade - a extensão da figura do inimigo no sistema penal. Além disso, o artigo analisa a violação ao princípio constitucional da pessoalidade da pena (art. 5º, XLV, Constituição Federal de 1988) (BRASIL, 1988), pois as mulheres visitantes do cárcere, que mantêm vínculo afetivo com pessoas presas, sofrem em seus corpos a extensão da punição estatal.

Para além dessa perspectiva jurídica, em um segundo momento, a análise do tema é conduzida conforme perspectiva teórica sobre o reconhecimento social desenvolvida por Judith Butler (2015b; 2019), especialmente nas obras Quadros de Guerra (2015b) e Vida Precária (2019), a fim de verificar de que modo ocorre o enquadramento de uma vida humana vivível na nossa sociedade. Intentamos demonstrar que o enquadramento como humano é realizado por meio da reiteração de normas que constituem os sujeitos e determinam o que e quem é uma vida humana e, ainda, qual vida é vivível e passível de ser lamentada.

A despeito de outras teorias que também viabilizam a análise do tema em debate, adotamos a perspectiva teórica butleriana, eis que é capaz de demonstrar de que modo ocorre a constituição das pessoas e se formam as relações sociais de acordo com normas que estabelecem previamente quais vidas serão humanas e reconhecíveis como vidas vivíveis. Em outras palavras, mais do que uma abordagem apenas subjetiva de constituição dos sujeitos - em uma perspectiva psicanalítica e das teorias do reconhecimento - Butler consegue alinhar essas perspectivas à realidade objetiva das relações de poder constitutivas dos sujeitos e das normas que estabelecem os quadros de quem será um humano reconhecível.

Assim, a partir da análise da situação concreta da revista íntima vexatória de mulheres visitantes em cárceres no Brasil, a teoria butleriana permite desvelar os aspectos subjetivos (subjetivação) e objetivos (performatividade) da violência de gênero perpetrada nessa prática e, ainda, identificar possibilidades subversivas das normas que estabelecem o enquadramento de vidas tão precarizadas que desmerecem o status de vida vivível e passível de luto.

A penalização corporal de mulheres visitantes em cárceres

As penitenciárias e presídios brasileiros são os estabelecimentos prisionais destinados ao cumprimento de pena privativa de liberdade em regime fechado,2 bem como à custódia de presos provisórios (artigo 87, caput, e parágrafo único, da Lei 7.210/1984 - Lei de Execução Penal) (BRASIL, 1984). Trata-se da representação mais significativa do sistema penal punitivo, fundamentalmente assentado na resposta expiatória dada ao cometimento da infração penal, pois o conjunto arquitetônico e o modelo disciplinar de tais espaços, espécies de instituições totais, inserem o indivíduo em uma realidade completamente diversa daquela experimentada fora da prisão. São chamadas de instituições totais porque a parte mais importante das atividades cotidianas de um indivíduo é realizada em local fechado (Eugenio Raúl ZAFFARONI, 2002).

Não obstante o esforço teórico em se atribuir a pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado finalidades preventivas positivas, especialmente a ressocialização, é a expiação que está na origem e na essência da privação de liberdade - penitência, purificação, compensação da falta praticada por meio do sofrimento. Para além da mera retribuição à gravidade do injusto praticado, isto é, do castigo e da expiação, pode-se dizer que a pena de prisão executada na maior parte dos estabelecimentos prisionais brasileiros atende a uma demanda socioeconômica perversa, na qual o Estado retroalimenta a criminalidade (Alessandro BARATTA, 2019, p. 183-184).

Com isso, o Estado, ao impor a pena de prisão, não cumpre a mítica tarefa de ressocialização e, mais do que isso, ressalta Augusto Alvino de Sá (2007, p. 112), “explicita, formaliza e consagra uma relação de antagonismo entre o condenado e a sociedade”, iniciada com a prática da conduta criminosa:

Ao delinquir, o indivíduo concretiza um confronto com a sociedade. Ao penalizá-lo com prisão, o Estado concretiza o antagonismo entre ele e a sociedade. Sua ‘recuperação’ será uma recuperação para a sociedade, ou seja, será uma reintegração social, e só será possível mediante a resolução desse antagonismo e a superação desse confronto. Por um lado, portanto, a pena de prisão traz, como consequência, o recrudescimento do confronto e do antagonismo entre preso e sociedade, por meio dos efeitos da prisionização. Por outro lado, a reintegração social do preso só será viável mediante a participação eletiva, tecnicamente planejada e assistida, da sociedade, da comunidade.

Mas, os efeitos negativos da prisionização, tanto os que dizem respeito a uma má gestão da coisa pública, que decorre da falta de interesse político para humanização3 do cárcere, quanto os efeitos inerentes à própria privação de liberdade (SÁ, 2007), não se restringem ao indivíduo sobre o qual recai diretamente a execução da pena. A prisionização atinge toda a comunidade na qual o indivíduo está inserido, especialmente as pessoas que mantêm com ele vínculos mais próximos.

Nesse contexto, o presente trabalho destaca as mulheres que mantêm vínculo pessoal com pessoas presas, principalmente mães, esposas, companheiras, namoradas, filhas, que frequentam o estabelecimento prisional em visitas regulares legalmente asseguradas, uma vez que, como já apontado, representam a maioria de visitantes (Helena Salgueiro LERMEN; Martinho Braga Batista e SILVA, 2018) e, nessa condição, são vítimas de uma violência específica de gênero, consistente nas revistas íntimas vexatórias.

No sistema prisional brasileiro, as pessoas visitantes devem ser submetidas a um procedimento de revista, inspeção pessoal, a fim de evitar a entrada de objetos não permitidos nesses espaços e que possam colocar em risco a segurança do local, nos termos do artigo 3º da Lei 10.792/2003 (BRASIL, 2003). O referido dispositivo, de forma insipiente, prevê a necessidade de aquisição e funcionamento de aparelhos detectores de metais nos estabelecimentos penitenciários, mas não dispõe detalhadamente acerca do procedimento de revista pessoal, o que abre margem para abusos, como a prática de revistas íntimas vexatórias. A título de exemplo, apontamos o procedimento de revista em visitantes de estabelecimentos prisionais no Estado do Paraná, disciplinado no caderno de práticas de segurança nas unidades penais do Paraná.4 Para visitantes de pessoas presas, que interessa para análise deste artigo, a revista íntima vexatória, denominada “revista para verificação visual”, é feita da seguinte forma (José Roberto Rodrigues SANTOS, 2011, p. 89-90 ):

6.3.6.1 Procedimentos de revista para verificação visual

O Agente Penitenciário deve solicitar à visita que:

a) poste-se de frente para o Agente Penitenciário e retire roupas e calçados, ficando apenas com a roupa íntima (se não apontar irregularidade, seguir para o próximo item);

b) sente na banqueta detectora de metais, e, se a mesma acusar alguma irregularidade, informar à chefia imediata para providências;

c) passe e/ou apalpe as mãos pelo cabelo, percorrendo toda a cabeça, sendo que se não for possível uma visualização satisfatória (por exemplo, a nuca), solicitar que abaixe a cabeça jogando os cabelos para frente e então, novamente, passe e/ou apalpe as mãos pelo cabelo, percorrendo toda a cabeça;

d) abra bem a boca e levante a língua, inspecionando-as;

e) posicione-se de lado para verificar os orifícios do ouvido e atrás das orelhas;

f) incline a cabeça para trás para verificar os orifícios das narinas;

g) levante os braços para verificar as axilas;

h) abra as mãos e separe os dedos, verificando-os ambos os lados;

i) se for o caso, levantar dobras do corpo, e se mulher, ainda, os seios;

j) se não apontar irregularidade, solicitar que retire a roupa íntima;

k) se homem, levante a bolsa escrotal para verificação, assim como o pênis (se necessário, inclusive, mostrando toda a glande);

l) abaixe o espelho;

m) coloque uma perna de cada lado do espelho;

n) agache-se, lentamente, três vezes de frente, se homem, e três vezes de frente e de costas, se mulher, devendo, em ambos os casos, parar agachado por cerca de 10 segundos;

o) retire o espelho;

p) vista a roupa íntima;

q) poste-se de costas para o Agente Penitenciário e, dobrando os joelhos, mostre a sola dos pés para que se possa observá-la, assim como os vãos dos dedos;

r) desloque-se para o lado para verificar se não está ocultando nada que possa ter sido jogado no chão antes ou durante a revista;

s) vista as demais roupas e calçados.

Ainda:

a) em visitantes femininas, quando a mesma estiver usando absorvente, solicitar a troca por outro, cedido pela unidade;

b) revistar as roupas retiradas, conforme item 6.7.3, letra “i”;

c) revistar os calçados retirados, conforme item 6.7.3, letra “j”;

d) verificar se o visitante usa próteses para que sejam revistadas, conforme item 6.7.3, letra “k”;

e) usar detector de metais no revistado, e/ou raios X em roupas, calçados ou objetos que o mesmo esteja vestindo, conforme a necessidade (sem grifo no original).

A descrição do procedimento de revista íntima ou de verificação visual acima transcrito demonstra de forma inequívoca o seu caráter vexatório e invasivo da intimidade das pessoas visitantes em estabelecimentos prisionais. Tal forma de inspeção, além de não ser eficaz para impedir a entrada de objetos proibidos, propicia condutas abusivas por parte de polícias penais (Pedro Austin ALVES; Aline ALBULQUERQUE, 2015).

Constatado esse problema, é necessário averiguar, inicialmente no aspecto jurídico, as violações normativas inerentes a essa prática a fim de que sejam coibidas definitivamente. Essa análise, alinhada às questões de gênero, é aqui orientada pela perspectiva da criminologia crítica, eis que, no aspecto jurídico, é capaz de desvelar que o procedimento de revista íntima vexatória constitui ilegítima e inadmissível extensão da sanção penal às mulheres que mantêm vínculo afetivo com pessoas encarceradas, violando o princípio constitucional da pessoalidade da pena, consagrado no art. 5º, XLV, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).

Segundo esse princípio, as sanções de caráter penal não podem ultrapassar a pessoa do condenado, o autor ou partícipe da infração penal, alcançando, por exemplo, sua família ou quaisquer terceiros, pois a pena se impõe em função da culpabilidade individual, ao indivíduo considerado um ser responsável pelas próprias ações (José Eduardo GOULART, 1994; Luiz Regis PRADO, 2019; René Ariel DOTTI, 2018). Afirmando-se a pessoalidade da pena, afasta-se a possibilidade de punir um indivíduo por fatos alheios (Eugenio CUELLO CALLÓN, 1953). Convém destacar que o princípio da pessoalidade ou responsabilidade penal pessoal possui mais duas dimensões, além da proibição de imposição de pena a terceiros alheios ao delito. Há, ainda: “restrição da responsabilidade criminal ao autor da ação ou omissão típica; negação de qualquer modalidade de responsabilidade penal objetiva (sine culpa) ou solidária” (Salo de CARVALHO, 2018, p. 263).

Assim, o princípio da pessoalidade da pena visa a coibir o prolongamento do caráter aflitivo da sanção penal privativa de liberdade a terceiros, que não respondem pelo fato delitivo. Nesse aspecto, a revista íntima vexatória pode ser entendida como consequência da pena privativa de liberdade aplicada a outrem, em violação ao princípio em comento, visto que é uma inserção corporal, isto é, uma ação estatal que recai sobre o corpo das visitantes das pessoas presas.

Pode-se argumentar no sentido de que a revista íntima vexatória não é efetivamente uma sanção penal e sim um mecanismo de controle ou de segurança dos estabelecimentos penais e dos próprios custodiados. No entanto, o que de fato subjaz esse execrável procedimento é a penalização corporal daqueles que mantêm laços de afetividade com pessoas presas, principalmente, dirigida as suas mães e companheiras, cumprindo dupla função: a) penalizar secundariamente as mães e companheiras de pessoas encarceradas, pois, em uma sociedade falocêntrica, considera-se que teriam falhado em sua tradicional missão feminina de sustento moral de seus filhos, filhas e companheiros; b) desencorajar a visitação e a manutenção de vínculo afetivo e contato da pessoa privada de sua liberdade com o meio externo, uma vez que a prisão deve eliminar o máximo de coeficiente humano do sujeito marginalizado e selecionado para não viver.

A seletividade do sistema penal sempre foi objeto de estudo da criminologia, especialmente a criminologia crítica. De acordo com Zaffaroni, reconhecer a um indivíduo a condição de inimigo, que reflete a seletividade do sistema penal, implica negar-lhe a própria condição de pessoa (ZAFFARONI, 2019). Nesse sentido, a pena privativa de liberdade é um dos instrumentos de poder criado e utilizado para eliminar (destruição ou morte) a exceção (o inimigo) constituída pelo próprio poder, como expõe Achille Mbembe (2018, p. 17): “[...] o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere e apela à exceção, à emergência e à noção ficcional do inimigo. Ele também trabalha para produzir a mesma exceção, emergência e inimigo ficcional”. Portanto, não se trata apenas de selecionar aqueles que são ou não titulares das garantias individuais positivadas (como o princípio da pessoalidade da pena, o direito à intimidade e honra). Na realidade, “não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia” (ZAFFARONI, 2019, p. 18). No caso do indivíduo preso, a quem se dirige a seletividade do sistema punitivo - o inimigo -, sua condição humana lhe é negada a partir de sua consideração enquanto ente perigoso.

As mulheres visitantes em presídios e penitenciárias brasileiras, consideradas cúmplices do delito praticado por seus companheiros ou filhos, ou pelo menos coniventes, são, por extensão, consideradas inimigas da sociedade ou estranhas. Trata-se de um projeto de aniquilamento pessoal fundamentado na discriminação de raça e classe (Juliana BORGES, 2019) que, por meio do recorte de gênero, revela também uma forma de violência de gênero institucionalizada.

Diante da relevância dos problemas enfrentados por mulheres visitantes de pessoas presas, é importante ressaltar que a discussão acerca da inconstitucionalidade das revistas íntimas vexatórias foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a Repercussão Geral do tema nos seguintes termos:

CONSTITUCIONAL. PENAL. REVISTA ÍNTIMA PARA INGRESSO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. PRÁTICAS E REGRAS VEXATÓRIAS. PRÍNCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRINCÍPIO DA INTIMIDADE, DA HONRA E DA IMAGEM DAS PESSOAS. OFENSA. ILICITUDE DA PROVA. QUESTÃO RELEVANTE DO PONTO DE VISTA SOCIAL E JURÍDICO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. A adoção de práticas e regras vexatórias com a revista íntima para o ingresso em estabelecimento prisional é tema constitucional digno de submissão à sistemática da repercussão geral (BRASIL, 2018).5

Trata-se de Agravo em Recurso Extraordinário, apresentado em razão de decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que não admitiu Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério Público contra acórdão absolutório daquele Tribunal. No referido acórdão, o Tribunal absolveu uma mulher acusada pela prática de tráfico de drogas por considerar ilícita a prova obtida por meio de revista íntima vexatória, violando os princípios da dignidade e da intimidade.

Convém mencionar que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmou de forma tímida a ilegalidade da revista íntima vexatória, quando questionado acerca da licitude da prova obtida por meio desse procedimento, afastando o inconvincente e falacioso discurso que faz prevalecer o direito à segurança:

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. REVISTA ÍNTIMA. ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A acusada foi submetida à realização de revista íntima com base, tão somente, em uma denúncia anônima feita ao presídio no dia dos fatos informando que ela tentaria entrar no presídio com drogas, sem a realização, ao que tudo indica, de outras diligências prévias para apurar a veracidade e a plausibilidade dessa informação. 2. No caso, houve apenas “denúncia anônima” acerca de eventual traficância praticada pela ré, incapaz, portanto, de configurar, por si só, fundadas suspeitas a autorizar a realização de revista íntima. 3. Se não havia fundadas suspeitas para a realização de revista na acusada, não há como se admitir que a mera constatação de situação de flagrância - localização, no interior da vagina, de substância entorpecente (45,2 gramas de maconha) -, posterior à revista, justifique a medida, sob pena de esvaziar-se o direito constitucional à intimidade, à honra e à imagem do indivíduo. 4. Em que pese eventual boa-fé dos agentes penitenciários, não havia elementos objetivos e racionais que justificassem a realização de revista íntima. Eis a razão pela qual são ilícitas as provas obtidas por meio da medida invasiva, bem como todas as que delas decorreram (por força da Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada), o que impõe a absolvição dos acusados, por ausência de provas acerca da materialidade do delito. 5. Recurso especial não provido (BRASIL, 2019).6

Em que pese a relevância da mencionada decisão, é imprescindível levar ao debate as questões que subjazem a própria existência desse procedimento de caráter vexatório e invasivo. No caso acima mencionado, a discussão jurídica no STJ limitou-se à apreciação da prova obtida a partir da revista e sua realização ilegal porque fundamentada em denúncia anônima. Mas, ao afirmar que “não havia elementos objetivos e racionais que justificassem a realização de revista íntima”, o julgador acabou por emitir um juízo de valor: seria possível justificar a realização de revista íntima vexatória em outras circunstâncias. Consideramos, no entanto, que não se vislumbra a existência de quaisquer “elementos objetivos e racionais” capazes de legitimar tal procedimento.

Embora o julgamento no STF não tenha sido concluído, verifica-se uma tendência daquela Corte em admitir, em algumas situações, a revista íntima, conforme tese firmada em voto divergente do Ministro Alexandre de Moraes:

A revista íntima para ingresso em estabelecimentos prisionais será excepcional, devidamente motivada para cada caso específico e dependerá da concordância do visitante, somente podendo ser realizada de acordo com protocolos preestabelecidos e por pessoas do mesmo gênero, obrigatoriamente médicos na hipótese de exames invasivos. O excesso ou abuso da realização da revista íntima acarretarão responsabilidade do agente público ou médico e ilicitude de eventual prova obtida. Caso não haja concordância do visitante, a autoridade administrativa poderá impedir a realização da visita.

Diante do caso concreto acima exposto, é nítido que a questão da revista íntima vexatória não pode estar restrita a uma análise jurídica meramente formal sobre ilicitude da prova, como fez o STJ. É necessário reconhecer expressamente que o procedimento é invasivo, degradante e humilhante, além de desnecessário, pois há outras formas para se identificar a entrada de qualquer objeto ilícito dentro dos estabelecimentos prisionais, a exemplo do uso de meios eletrônicos, questão tratada na próxima seção. A insistência na realização de revista íntima vexatória, ainda que de forma excetiva, nos termos gerais propostos na tese em votação no STF, constitui uma extensão da pena de prisão aplicada ao condenado ou condenada às mulheres de sua convivência pessoal, companheiras e familiares, em clara violação ao princípio da pessoalidade da pena. Seus corpos e sua intimidade passam a pertencer ao Estado tanto quanto os corpos de seus parceiros ou parceiras reclusas.

O Projeto de Lei 7.764/2014: a exceção ainda subjaz a regra

Como temos afirmado, a revista íntima vexatória de mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais é prática injustificável diante da possibilidade de realização por meios eletrônicos. Isso nos remete à necessidade de uma análise sucinta, tendo em vista o objetivo do presente trabalho, do Projeto de Lei 7.764/2014 (BRASIL, 2014), que versa sobre esse tema, a fim de compreender os termos da normatização proposta e se esta é capaz de pôr termo à violência de gênero a que essas mulheres são submetidas, ou, se, ao contrário, reifica essa violência.

O referido projeto visa a alterar a Lei de Execução Penal para regulamentar, como regra geral, a revista pessoal por equipamentos eletrônicos, mediante a inserção dos artigos 83-A a 83-D. O artigo 83-A do referido projeto de lei traz o conteúdo normativo principal, direcionador das regras que constituem os demais dispositivos, porque é dele que se extrai a prevalência da utilização de mecanismos eletrônicos de revista pessoal. Ademais, veda expressamente qualquer forma de tratamento desumano ou degradante, o que inviabiliza taxativamente qualquer hipótese de revista íntima vexatória, nos seguintes termos:

Art. 83-A. A revista pessoal, à qual devem se submeter todos que queiram ter acesso ao estabelecimento penal para manter contato direto ou indireto com pessoa presa ou para prestar serviços, ainda que exerçam qualquer cargo ou função pública necessária à segurança de estabelecimentos penais, será realizada com respeito à dignidade humana, sendo vedada qualquer forma de desnudamento ou tratamento desumano ou degradante.

Parágrafo único. A revista pessoal deverá ocorrer mediante uso de equipamentos eletrônicos detectores de metais, aparelhos de raio-x ou aparelhos similares, ou ainda manualmente, preservando-se a integridade física, psicológica e moral da pessoa revistada e desde que não haja desnudamento, total ou parcial.

No que tange à possibilidade de revista manual, o artigo 83-B elabora uma definição restritiva, impedindo que seja realizada mediante o desnudamento, a utilização de espelhos, a realização de esforços repetitivos e a introdução de quaisquer objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada.7 Contudo, é demasiadamente impreciso quanto à forma de contato físico manual do agente sobre a roupa da pessoa revistada. Lembramos que, para a prática do ilícito de violência sexual, não se exige o desnudamento ou a introdução de objetos nas cavidades corporais, por isso, é imprescindível proibir também o contato manual direto com as partes íntimas (genitália e cavidade anal) da pessoa visitante, mesmo que devidamente vestida.

A necessidade de garantir o tratamento humano digno da pessoa visitante durante a revista manual é reforçada nos parágrafos do artigo 83-B, ao dispor que esta “será realizada por servidor habilitado e sempre do mesmo sexo da pessoa revistada, garantindo-se o respeito à dignidade humana” (§2º). Caso a pessoa revistada assim o queira, o procedimento manual deverá ser feito individualmente, em sala apropriada e distinta do local de revista eletrônica, sem a presença de terceiros (§3º). Este último dispositivo tem a finalidade de afastar o caráter vexatório da revista manual que pode, embora sem contato físico com as partes íntimas, causar constrangimento. Trata-se de uma medida importante, mas, é necessário, na prática, garantir efetivamente a disponibilização desses locais, além do que, se policiais penais não receberem um treinamento especializado e humanizado para lidar com esse tipo de situação, a revista manual individualizada pode deixar de ser uma garantia da dignidade humana para se tornar um instrumento voltado à reiteração das violências que o Projeto pretende evitar.

A interpretação do artigo 83-C do Projeto de Lei 7.764/2014 (BRASIL, 2014) permite inferir que a proposta de normatização confere à revista manual um caráter excepcional:

Art.83-C. Admitir-se-á a realização de revista manual nas hipóteses em que: I - o estado de saúde ou a integridade física impeça que a pessoa a ser revistada se submeta a determinados equipamentos de revista eletrônica;

II - após confirmação da revista eletrônica, subsistir fundada suspeita de porte ou posse de objetos, produtos ou substâncias cuja entrada seja proibida.

O inciso I do dispositivo referenciado demonstra claramente que a revista pessoal por meio eletrônico é preferencial, deve ser a regra, excetuando-se na hipótese de impedimento devido a condições de saúde da pessoa revistada, já que esses equipamentos funcionam com utilização de raio-x. Todavia, no inciso II, o dispositivo prevê que a revista manual pode ser feita depois de realizada a revista eletrônica, desde que subsista “fundada suspeita” da existência de objetos ou substância ilícita. A utilização da expressão “fundada suspeita” amplia demasiadamente a discricionariedade de policiais penais. A suspeita da existência de objetos ou substâncias proibidas deve ser decorrente de circunstância concreta, como a impossibilidade de identificar algo presente no corpo da pessoa revistada, mesmo após repetição de revista eletrônica.

No Projeto, há ainda o artigo 83-D, que indica como alternativa à revista manual a visita realizada em parlatório ou local semelhante, que impeça o contato físico entre a pessoa presa e as visitantes. Tal solução deve ser utilizada caso persista a suspeita da posse de objetos ilícitos depois da revista eletrônica e manual, ou quando a pessoa visitante se recusar a passar por revista manual.8 O referido artigo esclarece, portanto, que a pessoa visitante pode desautorizar a revista manual na hipótese de “fundada suspeita”.

A interpretação sistemática dos dispositivos projetados (artigo 83-A ao artigo 83-D) revela que o intento do Projeto 7.764/2014 (BRASIL, 2014) é regulamentar a utilização de equipamentos eletrônicos em estabelecimentos prisionais como meio principal para revista pessoal de visitantes de pessoas presas e todos que precisem ter acesso físico àqueles locais. Todavia, ao autorizar excepcionalmente a realização de revista manual, sem vedar expressamente o toque em partes íntimas da pessoa vestida, o projeto deixa de coibir a prática de um procedimento também invasivo e vexatório, que pode atingir principalmente mulheres visitantes de pessoas presas. Com isso, abre-se margem para que a exceção, isto é, a revista manual e vexatória, continue sendo, na prática, regra.

Portanto, a regulamentação da revista pessoal em estabelecimentos prisionais deve estabelecer a obrigatoriedade da utilização de meios eletrônicos em todos os estabelecimentos prisionais. A revista manual é medida excepcional, nos termos do projeto de lei em comento, a ser realizada nas seguintes situações: 1) se a pessoa visitante não puder ter contato físico com o mecanismo de revista eletrônica, por razões de saúde; 2) se o equipamento de revista eletrônica por escaneamento de imagem não for capaz de identificar algum objeto ou substância suspeita, mesmo após a repetição do procedimento; neste caso, a pessoa visitante pode se recusar a passar pela revista manual, ocasião em que deve ser realizada a visita em parlatório. No tocante ao procedimento de revista manual, além de vedar o desnudamento, a legislação deve coibir expressamente o toque íntimo sobre as vestes da pessoa visitante.

Passados mais de sete anos da tramitação do referido projeto, a morosidade em sua aprovação é um forte indicativo da ausência de interesse político quanto à questão da revista íntima vexatória de mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais. A revista íntima, de caráter vexatório e invasivo, é apenas um dos instrumentos utilizados pelo Estado para destruir o humano e constituir como não humano essas mulheres. Portanto, o problema em debate requer a análise além do aspecto jurídico normativo, orientada pela perspectiva das relações de gênero e das teorias de reconhecimento, a fim de desvelar a lógica por trás das relações de poder que perpetuam essa violência de gênero.

Vidas humanas não reconhecíveis

A análise até aqui empreendida evidencia que a prática de revista íntima vexatória de mulheres em estabelecimentos prisionais está fundamentada em um discurso falacioso de necessidade de segurança nesses locais. Se, como visto, o número de casos de apreensão de objetos ilícitos nas revistas íntimas vexatórias é deveras ínfimo, a exposição da nudez do corpo e de partes íntimas, em grande maioria de mulheres, bem como a realização de movimentos vexatórios, na realidade, visa a mascarar o fato de que tanto as pessoas encarceradas, quanto as pessoas com as quais se mantém alguma relação social - como mães, companheiras e filhas -, não são consideradas humanas pelas normas de reconhecimento social, nos termos da teoria butleriana desenvolvida nesta seção. Segundo essa perspectiva de análise, também não são consideradas detentoras de direitos e, de acordo com essa lógica perversa das normas sociais de enquadramento, podem ser submetidas a toda sorte de situações constrangedoras e degradantes, pois, se não há vida humana reconhecível, não há dignidade a ser defendida.

Exatamente por isso, o presente trabalho não realiza a análise da situação vivenciada por essas mulheres a partir da dignidade da pessoa humana, categoria já dada e positivada no ordenamento jurídico pátrio. Ora, se as mulheres que são submetidas a essa prática vexatória não são enquadradas na sociedade sequer como humanas, é incoerente buscar romper esse sistema opressor pela defesa de um conceito juridicamente já dado de dignidade humana. Se essas pessoas sequer existem no nosso sistema de acordo com as regras de enquadramento, a norma jurídica em questão não as alcança e não permite que se oponham à violência a que são submetidas. Portanto, se a análise crítica não estiver fundamentada em uma perspectiva que ultrapasse conceitos já determinados, ou que não seja capaz de ressignificar o próprio conceito de dignidade da pessoa humana, o debate torna-se a troca de opiniões entre os afins, inviabilizando que a crítica se insira na esfera pública do debate para efetiva transformação da situação de violência de gênero.

Assim, primeiramente, é necessário expor a condição precária dessas mulheres, que inviabiliza uma vida vivível (liveble life), termo utilizado por Judith Butler (2015b; 2019) - em especial, em duas obras que envolvem o tema: Quadros de Guerra (2015b) e Vida Precária (2019). Essa condição precária decorre de normas sociais de enquadramento que estabelecem previamente as vidas que existem como humanas e, consequentemente, quais vidas são passíveis de ser reconhecidas e lamentadas.

Nas referidas obras, a autora analisa as guerras na contemporaneidade, principalmente as guerras travadas pelos Estados Unidos contra o proclamado terrorismo dos povos árabes e dos mulçumanos, aplicando às lutas sociais seus conceitos de performatividade e subversão, desenvolvidos anteriormente em outras obras - de forma mais notória no livro Problemas de Gênero (BUTLER, 2015a) -, os quais serão retomados neste trabalho para análise da violência de gênero na revista íntima vexatória de mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais. A essas categorias Butler agrega os conceitos de vida precária (precarious life) e condição precária (precarity), bem como de enquadramento, vida vivível (liveble life) e luto (grievable life). Não obstante o contexto específico de análise abordado pela autora, isto é, as guerras na contemporaneidade, os conceitos referidos são aplicáveis ao tema objeto deste trabalho, uma vez que também envolve a análise e compreensão da situação de mulheres vulnerabilizadas, enquadradas como não humanas e como vidas não passíveis de luto.

Para desenvolver essas categorias, Butler (2019, p. 80) trabalha com a seguinte hipótese, que também orienta a presente pesquisa: até que ponto existe um enquadramento por meio do qual algumas vidas são vistas e julgadas de tal forma que são consideradas menos que humanas ou não fazendo parte da comunidade humana reconhecível? Assim, se trabalharmos com a hipótese de que existe um enquadramento de vidas reconhecíveis, vivíveis e passíveis de luto, devemos verificar quais as condições que fazem com que algumas vidas humanas deixem de ser elegíveis aos direitos humanos.

A descoberta dessas condições requer retomarmos o conceito de performatividade desenvolvido por Judith Butler (2015c, p. 29), segundo o qual somos “constituídos a partir de normas culturais que nos precedem e ultrapassam, entregues a um conjunto de normas culturais e a um campo de poder que nos condicionam fundamentalmente” (BUTLER, 2019, p. 67). Nesses termos, a performatividade refere-se ao processo complexo de constituição de sujeitos por meio da reiteração de normas impositivas, representativas das relações de poder, que estabelecem os limites do que será considerada uma formação inteligível de sujeito dentro de determinado contexto histórico. O termo inteligibilidade é entendido como “o esquema (ou esquemas) histórico geral que estabelece os domínios do cognoscível” (BUTLER, 2019, p. 21). Portanto, longe de ser a expressão única da vontade, os sujeitos são performativamente formados, ou seja, são compulsoriamente constituídos a partir de um processo complexo de reiteração de normas que mascaram o conteúdo opressor das relações de poder. Vale lembrar que a ideia de relações de poder utilizada nos estudos de Judith Butler segue a linha foucaultiana (Michel FOUCAULT, 2015, p. 150) da genealogia do poder, ou seja, do caráter produtivo das relações de poder para estabelecer a vida e seus processos (biopoder).

Tal constatação demonstra a dimensão constitutiva e compulsória dessas normas para a formação cognoscível de sujeitos. Todavia, Butler (2002, p. 93) ressalta que esses critérios normativos não devem ser entendidos meramente como imposições epistemológicas, mas como os ideais regulatórios sociais específicos mediante os quais se formam os sujeitos, estabelecendo os limites do que será considerada uma formação inteligível de sujeito. A norma, conforme esclarece Judith Butler (2006, p. 69), “rege a inteligibilidade, permite que certos tipos de práticas e ações sejam reconhecíveis como tal, impondo uma rede de legibilidade sobre o social e definindo os parâmetros do que aparecerá ou não aparecerá dentro da esfera do social”.

Contudo, uma vez que os sujeitos nunca acatam inteiramente as normas que impõem sua materialização e identificação, a afirmação de Butler, de que o sujeito é constituído em uma matriz de regras das relações de poder, não significa que ele seja determinado e que a identidade seja totalmente artificial e arbitrária (BUTLER, 2015a, p. 250). A norma não produz o sujeito como seu efeito necessário, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade, explica Butler (2015c, p. 31).

Assim, o sujeito estabelece uma relação com essas normas que reiteradamente incidem sobre ele no processo de subjetivação. Em uma perspectiva butleriana, define-se subjetivação como “o processo pelo qual o sujeito produz a si mesmo na lenta e inacabável tarefa de estabelecer sua relação com o conjunto de prescrições e valores vigentes em sua cultura” (Hermán García ROMANUTTI, 2015, p. 300). Nesse processo contínuo e instável, o sujeito assimila, questiona e ressignifica essas mesmas normas, o que, na teoria butleriana, abre brecha para os processos de subversão da lógica opressora das relações de poder. Em outras palavras, por se tratar de um processo performativo, ou seja, de constituição do sujeito, que nunca é determinado, completo e estável, abrem-se brechas que representam a instabilidade constitutiva das construções.

O desvelamento dessa instabilidade e a possibilidade desconstitutiva inerente ao processo de repetição de normas constitutivas do sujeito representam a proposta subversiva de Butler (2015a, p. 63) para transformação da realidade social, ao expandir as fronteiras do que é, de fato, culturalmente inteligível. As possibilidades de rematerialização abertas por esses processos, ressalta Butler (2002, p. 18), marcam um espaço no qual a força da lei reguladora pode voltar-se contra si mesma e produzir rearticulações que questionem a força hegemônica dessas normas reguladoras, indicando uma possibilidade subversiva.

Com essa proposta subversiva, inicialmente, Butler visou a desenvolver uma teoria capaz de articular os termos políticos da agência dos sujeitos, ou seja, quando o próprio sujeito se volta contra as normas que o constituem, expondo o caráter fictício desses processos de constituição, ressignificando essas normas e abrindo um novo horizonte de inteligibilidade social. Entretanto, principalmente diante da crise dos processos democráticos na contemporaneidade, a autora tem desenvolvido uma teoria de poder e reconhecimento na qual esses conceitos de performatividade e subversão são aplicados além da esfera individual, de modo a articular os termos políticos de uma agência social.

Desse modo, no aspecto social, Butler (2019, p. 13) esclarece que as relações de poder operam por meio de normas de enquadramento para “produzir e manter certas concepções excludentes de quem é normativamente humano”. Em outras palavras, essas normas de enquadramento determinam, a priori, quem conta como uma vida humana e qual vida será vivível e passível de ser lamentada ou enlutada, o que denota o caráter performativo do humano na nossa realidade social.

Por essa razão, Butler (2015c, p. 43) considera que o reconhecimento de alguém como uma vida humana vivível e passível de luto pressupõe o enquadramento, ou seja, um quadro prévio de referências para, por exemplo, responder, eticamente, qual vida é viável de reconhecimento. Diante disso, ser reconhecido e oferecer reconhecimento de uma vida humana vivível, explica Butler (2015c, p. 39), somente é possível por meio de um conjunto de normas que governam a reconhecibilidade, também denominado pela autora de condições de reconhecimento. Essas condições gerais com base nas quais o reconhecimento poderia acontecer requerem outro campo prévio dinâmico, entendido como esquemas de inteligibilidade, ou seja, as concepções que estabelecem, a priori, os domínios do cognoscível, do que e quem será considerado como uma vida humana.

Nesse campo da realidade perceptível (esquemas de inteligibilidade), a noção de humano reconhecível forma-se e reitera-se “em oposição àquilo que não pode ser nomeado ou encarado como humano, uma representação do não humano que determina negativamente e perturba potencialmente o que é reconhecidamente humano” (BUTLER, 2015b, p. 100). Desse modo, Butler (2015b, p. 100) esclarece que a resposta à dor do Outro (luto) e a maneira como são formuladas as críticas morais e articuladas as análises políticas dependem de certo campo de realidade perceptível já ter sido estabelecido.

Ao desenvolver a crítica sobre esses quadros de reconhecibilidade e esquemas de inteligibilidade, Butler (2019, p. 51) denuncia que a imbricada necessidade de relação com o Outro, que me constitui, deve-se à precariedade da própria vida, ou seja, da condição de vulnerabilidade humana comum que surge com a própria vida. Em outras palavras, Butler (2019, p. 51) trabalha com a ideia de vida precária para demonstrar que, desde o início da vida, somos entregues ao Outro, portanto, vulneráveis à violência daqueles de quem dependemos.

Exatamente porque somos vulneráveis dependemos da relação com os outros para que sejam garantidas as condições sociais, políticas e econômicas mínimas viabilizadoras da nossa existência. A ausência dessas condições implica o que Butler (2015b, p. 16) denomina de condição precária. Nesse ponto, a autora afirma que todas as vidas são precárias, mas nem todas as vidas são colocadas em condição precária. Isto é, a vida é precária porque todos somos vulneráveis, contudo, alguns serão reconhecidos como vidas vivíveis e terão acesso às condições que assegurem sua existência; outros não serão reconhecidos e terão essas condições negadas, tornando-se vidas não passíveis de luto. Nas palavras da autora (2015b, p. 40):

Afirmar que a vida é precária é afirmar que a possibilidade de sua manutenção depende, fundamentalmente, das condições sociais e políticas, e não somente de um impulso interno para viver. Com efeito, todo impulso tem de ser sustentado, apoiado pelo que está fora de si mesmo, e é por essa razão que não pode haver nenhuma persistência na vida sem pelo menos algumas condições que tornam a vida vivível. [...] De fato, aquele que decide ou assegura direitos à proteção o faz no contexto de normas sociais e políticas que enquadram o processo de tomada de decisão, em contextos presumidos nos quais a afirmação de direitos possa ser reconhecida.

Diante disso, constatamos que, na nossa realidade social, os esquemas de inteligibilidade decidem, previamente, quem será considerado humano e, posteriormente, os quadros de reconhecibilidade estabelecem quais vidas terão acesso às condições de uma vida vivível e quais vidas serão negadas e perdidas sem luto. Isso reflete um processo de desrealização do Outro, o que significa que “ele não está vivo nem morto, mas interminavelmente espectral” (BUTLER, 2019, p. 54).

Nesse contexto, se a violência - aqui entendida não apenas como a violência física, mas, principalmente, a negação de condições mínimas para existência de algumas vidas - é praticada contra pessoas consideradas normativamente irreais, não haveria violação, uma vez que essas vidas já foram negadas pelos esquemas de inteligibilidade. Essas vidas também não podem ser passíveis de luto nos moldes dos quadros de reconhecibilidade “porque sempre estiveram perdidas, ou, melhor, nunca foram, e elas devem ser assassinadas, já que aparentemente continuam a viver, teimosamente, nesse estado de morte” (BUTLER, 2019, p. 54). Mas, se uma vida não é passível de luto, Butler (2019, p. 55) afirma que “ela não se qualifica como uma vida e não é digna de nota”. Isso demonstra o lado perverso desses esquemas de enquadramento, pois se trata de um processo de desumanização que estabelece os limites da inteligibilidade humana e do reconhecimento de vidas humanas.

Esse processo de enquadramento aplica-se perfeitamente às mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais, pois a prática de revista íntima vexatória a que são submetidas é uma violência e, frise-se, uma violência institucionalizada. Uma violência não apenas física e moral, mas uma violência que reduz essas mulheres a menos que humano; um esvaziamento completo da própria condição de existência e vida lamentável. E por qual motivo se admite essa espécie de violência contra essas mulheres? Por um discurso falso de segurança, o que enseja outra indagação: Por qual razão a suposta segurança pública sobrepõe-se à intimidade e dignidade dessas mulheres?

Se pensarmos na aplicabilidade da teoria até aqui desenvolvida, na perspectiva butleriana, a resposta seria porque a vida dessas mulheres não é inteligível, não são consideradas vidas humanas, de acordo com as regras de enquadramento, pois, de algum modo, estão envolvidas com vidas perdidas, isto é, a das pessoas encarceradas. Consequentemente, todas essas vidas, dessas mulheres e das pessoas encarceradas, não merecem, de acordo com os quadros de reconhecibilidade, terem acesso às condições mínimas de uma vida vivível. São pessoas que não estão exatamente vivas, ou seja, estão vivendo em um estado de suspensão entre a vida e a morte (estado espectral), eis que não se enquadram nos esquemas de inteligibilidade. São tratadas como menos do que humanas ou, na verdade, não são vistas de forma alguma (BUTLER, 2019, p. 171). Se não são humanas, não são vidas reconhecíveis as quais devam ser garantidas as condições de sua existência. Se não são reconhecíveis como vidas vivíveis, não são detentoras de dignidade e de direitos humanos. Se não são detentoras de direitos, não há violação de qualquer espécie na violência que lhes incutem segundo essas regras perversas de enquadramento.

Assim, os esquemas normativos de inteligibilidade estabelecem o que será e não será humano. Esses esquemas normativos operam “não apenas com a produção de ideais do humano que diferenciam aqueles que são mais ou menos humanos”; eles também produzem enquadramentos “do menos que humano disfarçado de humano para mostrar como o menos que o humano se disfarça e ameaça enganar aqueles que poderiam pensar que reconhecem um humano ali” (BUTLER, 2019, p. 178). Ainda, esses esquemas normativos podem atuar em sentido contrário, ou seja, “não fornecerem uma imagem, um nome, uma narrativa, de modo que nunca houve vida e nunca houve morte” (BUTLER, 2019, p. 178).

Dessa forma, é nítido que é utilizado um enquadramento cultural limitado e limitante para entender o que é ser humano. Por isso, Butler (2019, p. 116) propõe ressignificar o termo humano capaz de superar uma concepção universal de direitos humanos, uma vez que sua suposta universalidade não tem o pretendido alcance:

Cometeremos um erro, portanto, se tomarmos uma definição única do humano, ou um modelo único de racionalidade, como a característica definidora do humano, e então extrapolarmos essa compreensão estabelecida do humano para todas as suas várias formas culturais. [...] Confrontar o que funciona, para alguns, como um limite do humano é um desafio de repensar o humano. E o trabalho de repensar o humano é parte da trajetória democrática de uma jurisprudência evolutiva dos direitos humanos.

Esse repensar requer contestar os enquadramentos fundamentados em concepções restritivas do humano, implicitamente de cunho racial, religioso, étnico, de classe e de gênero. Isso, segundo Butler (2019, p. 116), não significa ter uma ideia comum do que é humano, haja vista a heterogeneidade dos valores humanos. Trata-se de uma concepção “concreta e expansiva do humano”, nos termos de uma comunidade global, capaz de gerar coalizões a partir da compreensão da condição comum de precariedade da vida e de distorções que geram a condição precária da vida (BUTLER, 2019, p. 116). Se quisermos ampliar as reivindicações sociais e políticas sobre os direitos humanos, temos, antes, que nos apoiar em uma nova ontologia capaz de “repensar a precariedade, a vulnerabilidade, a dor, a interdependência, a exposição, a subsistência corporal, o desejo, o trabalho e as reivindicações sobre a linguagem e o pertencimento social” (BUTLER, 2015b, p. 15).

Se os esquemas de inteligibilidade estabelecem o que é humano e os quadros de reconhecibilidade estabelecem quais vidas serão vivíveis e passíveis de luto, o caráter performativo dessas construções abre espaço para a subversão desses quadros. Tais quadros são apenas uma referência para que o reconhecimento aconteça ou para que as normas que governam o reconhecimento sejam contestadas e transformadas. É preciso questionar “as normas, as organizações sociais e políticas que se desenvolveram historicamente a fim de maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros” (BUTLER, 2015b, p. 16). Portanto, a crítica acerca da condição precária da vida “constitui o ponto de partida tanto para repensar a ontologia corporal quanto para políticas progressistas ou de esquerda” (BUTLER, 2015b, p. 16).

Assim, a proposta butleriana não se trata de substituir um conjunto de normas idealizadas para compreender o humano por outra cultura hegemônica, mas de desvelar a norma desumanizadora que restringe o perceptível, por meio de uma crítica da violência que lhe é inerente, ao negar as condições para uma vida vivível. Unida essa teoria desveladora do humano na nossa sociedade à prática, Butler (2015b, p. 210) considera que as lutas sociais por transformação desses quadros opressores ocorrem tanto no âmbito individual, pela agência do próprio sujeito vulnerabilizado, ao contestar e ressignificar essas normas na constituição de si. Já no âmbito social, ocorre pela agência em coalizões (assembleias) de grupos subjugados (BUTLER, 2018, p. 17) - como mulheres e pessoas encarceradas -, para formar uma oposição a políticas estatais e outras políticas regulatórias que promovam exclusões, rejeições, suspensão parcial ou plena da cidadania, subordinação e a degradação de vidas.

Conclusão

Diante da análise realizada no presente trabalho, é possível concluir que a revista íntima vexatória de mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais não se trata de um mecanismo de controle ou de segurança desses locais. O que de fato subjaz dos procedimentos vexatórios adotados é a penalização corporal daquelas que mantêm laços de afetividade com pessoas condenadas ou acusadas da prática de infrações penais, principalmente dirigida às mães e às companheiras. Disso decorre que a revista íntima vexatória a que são submetidas constitui ilegítima e inadmissível extensão da sanção penal às mulheres que mantêm vínculo afetivo com pessoas encarceradas, violando o princípio constitucional da pessoalidade da pena.

Ante a violência institucionalizada vivenciada por essas mulheres, buscamos no presente trabalho estabelecer uma crítica capaz de superar as análises mais comuns do tema nas pesquisas jurídicas, ou seja, sob o viés da dignidade da pessoa humana. Indo além desse senso comum nos debates jurídicos que envolvem o problema de revista íntima vexatória de mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais, aplicamos as categorias desenvolvidas por Judith Butler em sua crítica social e teoria de reconhecimento para desvelar a lógica no processo de subjetivação e das normas sociais de reconhecimento que conferem amparo à penalização corporal dessas mulheres. Essa outra abordagem proposta no presente trabalho deve-se ao fato de essas mulheres estarem excluídas de qualquer possibilidade de suas vidas serem reconhecidas como dignas, ou, em uma perspectiva mais além, sequer são reconhecidas como humanas na sociedade brasileira.

Fundamentamos essa proposta de análise em algumas categorias teóricas desenvolvidas por Judith Butler, eis que permitem verificar como as relações de poder, constitutivas dos sujeitos, estabelecem os limites da inteligibilidade e do reconhecimento sobre o que é considerado normativamente humano e de quais vidas são vivíveis e passíveis de luto.

Assim, a partir do conceito de performatividade apresentado por Butler, elucidamos o processo complexo de constituição de sujeitos por meio da reiteração de normas impositivas, representativas das relações de poder, que estabelecem os limites do que será considerada uma formação inteligível de sujeito dentro de determinado contexto histórico. Nesse processo, as relações de poder operam por meio do que se denomina de normas de enquadramento para determinar, previamente, quem conta como uma vida humana e qual vida será vivível e passível de ser lamentada ou enlutada, o que denota o caráter performativo do humano na nossa realidade social.

Essas normas de enquadramento servem-se, por um lado, de esquemas de inteligibilidade para decidir, antecipadamente, quem será considerado humano e, por outro lado, de quadros de reconhecibilidade para estabelecer quais vidas terão acesso às condições de uma vida vivível e quais vidas serão negadas e perdidas sem luto.

Por sua vez, esses quadros de reconhecibilidade e esquemas de inteligibilidade sustentam-se em outros dois conceitos: o de precariedade e condição precária. O primeiro conceito, precariedade, representa a vulnerabilidade humana comum que surge com a própria vida, isto é, desde o início da vida as pessoas necessitam de inter-relações para a sobrevivência, o que significa que estão vulneráveis à violência daqueles de quem dependem. Desse modo, toda a vida é precária, mas nem toda a vida será considerada humana e reconhecida como vivível e lamentável. Isso decorre do fato de que a vulnerabilidade da vida cria a dependência do sujeito em relação aos outros para que sejam garantidas as condições sociais, políticas e econômicas mínimas viabilizadoras da sua existência. A ausência dessas condições implica o que Butler denomina de condição precária.

Portanto, podemos afirmar que a vida é precária porque todos são vulneráveis, contudo, alguns serão reconhecidos como vidas vivíveis e terão acesso às condições que assegurem sua existência; outros não serão reconhecidos e terão essas condições negadas, tornando-se vidas não passíveis de luto; outros, de forma brutal, sequer serão considerados humanos. Esse processo de enquadramento aplica-se perfeitamente às mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais, pois a violência institucionalizada a que são submetidas as reduz a menos que humano; há um esvaziamento completo da própria condição de existência e vida lamentável.

Diante disso, a resposta ao problema que ensejou a análise deste trabalho é que a vida dessas mulheres não é inteligível, não são consideradas vidas humanas, de acordo com as regras de enquadramento, pois, de algum modo, estão envolvidas com vidas perdidas, isto é, a das pessoas encarceradas. Consequentemente, todas essas vidas consideradas não humanas, dessas mulheres e das pessoas encarceradas, não merecem, de acordo com os quadros de reconhecibilidade, ter acesso às condições mínimas de uma vida vivível. São tratadas como menos do que humanos, ou, na verdade, não são vistas de forma alguma.

Essa é a importância de dar publicidade, de expor, de desvelar essa barbárie que classifica as vidas como humanas ou não humanas e, ainda, como vivíveis e não vivíveis. É preciso questionar essas normas de enquadramento, haja vista que podem ser alteradas, nos termos da proposta subversiva de Judith Butler. De acordo com essa perspectiva, por se tratar de um processo performativo, ou seja, de constituição de sujeitos, que nunca é determinado, completo e estável, abrem-se brechas que representam a instabilidade constitutiva das construções. Uma vez que, nesse processo contínuo e instável, o sujeito assimila, questiona e ressignifica essas mesmas normas, abre-se brecha para os processos de subversão da lógica opressora das relações de poder. Como teoria e prática estão imbrincadas, essa desconstrução, no campo teórico, também pode contribuir para cessação da prática de revistas íntimas vexatórias de mulheres visitantes nos estabelecimentos prisionais ao apontar as possibilidades subversivas das normas de enquadramento e permitir a mobilização, individualmente e coletivamente, no campo prático, da agência de pessoas excluídas da condição de humanas na nossa sociedade.

Assim, na proposta butleriana, não se trata de substituir um conjunto de normas idealizadas para compreender o humano, mas de retomar um sentimento de indignação ética, de desvelar a norma desumanizadora que restringe o perceptível por meio de uma crítica da violência que lhe é inerente, ao negar as condições para uma vida vivível.

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1Disponíveis em https://www.conectas.org/noticias/governo-fora-da-lei. Acesso em 29/12/2019.

2Conquanto os estabelecimentos voltados ao cumprimento de pena em regime semiaberto possam integrar um Complexo Penitenciário, como anexos da Penitenciária principal, a privação de liberdade e a estrutura desses locais não têm as mesmas características do regime fechado.

3 A palavra humanização está grafada entre aspas por considerarmos que o espaço do cárcere não é passível de verdadeira humanização. No entanto, essa é a expressão utilizada para categorizar as propostas que visam melhorar a qualidade de vida dentro das prisões.

4Disponível em http://www.espen.pr.gov.br/arquivos/File/caderno_seguranca.pdf. Acesso em 20/01/2020.

5BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Agravo em Recurso Extraordinário n. 959.620. Agravante: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Edson Fachin. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Brasília-DF. Diário de Justiça eletrônico em 15 de junho de 2018.

6BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (Sexta Turma). Recurso Especial n. 1.695.349. Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Brasília-DF. Diário de Justiça Eletrônico em 14 de outubro de 2019.

7Art. 83-B. Considera-se revista manual toda inspeção realizada mediante contato físico da mão do agente público competente sobre a roupa da pessoa revistada, sendo vedados o desnudamento total ou parcial, o uso de espelhos e os esforços físicos repetitivos, bem como a introdução de quaisquer objetos nas cavidades corporais da pessoa revistada.

8Art. 83-D. Caso a suspeita de porte ou posse de objetos, produtos ou substâncias cuja entrada seja proibida persista após o uso de equipamento eletrônico ou a realização de revista manual, ou ainda o visitante não queira se submeter a esta, a visita poderá ser realizada no parlatório ou em local assemelhado, desde que não haja contato físico entre o visitante e a pessoa presa.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: CIRINO, Samia Moda; CASTRO, Bruna Azevedo de. “Revista íntima de mulheres visitantes em presídios: vidas normativamente não humanas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e71866, 2022.

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 28 de Fevereiro de 2020; Revisado: 30 de Julho de 2021; Aceito: 14 de Outubro de 2021

samiamoda@hotmail.com

brunaazcastro@gmail.com

Samia Moda Cirino (samiamoda@hotmail.com) é doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestra em Direito e Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professora no Programa de Mestrado Profissional em Direito e no Curso de Graduação em Direito das Faculdades Londrina. Professora na Pós-Graduação em Direito do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC). Professora Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia (SDD) da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Bruna Azevedo de Castro (brunaazcastro@gmail.com) é doutora em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Mestra em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professora no Programa de Mestrado Profissional em Direito e no Curso de Graduação em Direito das Faculdades Londrina. Professora no Curso de Direito do Centro Universitário Integrado Brasil e da Pós-Graduação em Direito do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC)

Contribuição de autoria: Samia Moda Cirino: Levantamento bibliográfico da teoria de Judith Butler que embasa o enquadramento normativo de vidas humanas vivíveis. Análise das principais categorias do pensamento butleriano: vidas precárias, precarização, vidas vivíveis, vidas enlutáveis, enquadramento, quadros de reconhecimento e esquemas de inteligibilidade. Verificação da aplicabilidade dessas categorias na realidade vivenciada por mulheres visitantes em estabelecimentos prisionais no Brasil. Bruna Azevedo de Castro: Análise das normas jurídicas que versam sobre a revista íntima de mulheres visitantes de estabelecimentos prisionais no Brasil sob a perspectiva da Criminologia Crítica. A versão original deste artigo foi traduzida para o inglês por Jeffrey Hoff (jeffhoff@floripa.com.br)

Conflito de interesses: Não se aplica

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