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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.1 Florianópolis jan./abr 2022  Epub 01-Jan-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n175122 

Artigos

Primavera secundarista: uma convivência feminista

Student Spring: A Feminist Coexistence

Primavera secundaria: una convivencia feminista

Marcielly Cristina Moresco1 
http://orcid.org/0000-0003-1768-1917

1Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil. 80230-085 - ppge.ufpr@gmail.com


Resumo:

A partir de entrevistas, observação e análise de narrativas (auto)biográficas de estudantes que ocuparam as escolas em Curitiba/Paraná e em sua região metropolitana no ano de 2016, neste artigo, temos o objetivo de analisar os deslocamentos e as bases para a convivência entre estudantes durante as ocupações escolares. Outrossim, comenta-se sobre uma possível quarta onda do feminismo, marcada pela participação de jovens meninas e mulheres tanto em espaços virtuais quanto nos ambientes educacionais. A partir da pesquisa, constatamos que as ocupações escolares foram um movimento alinhado a uma convivência cujo conjunto de ações foi convergente com práticas feministas. Tal acontecimento representou um modo de resistência, evidenciando o poder político e coletivo de meninas/mulheres, e pessoas LGBTI+, durante o período em que ocuparam suas escolas.

Palavras-chave: educação; feminismo; gênero; ocupação escolar

Abstract:

Based on interviews, observation, and analysis of (auto)biographical narratives of students who occupied schools in Curitiba/Paraná and in its metropolitan area in 2016, this article aims to analyze displacements and the bases for coexistence among students during school occupations. It focuses also on a possible fourth wave of feminism, marked by the participation of young girls and women both in virtual spaces and in educational environments. The results show that school occupations were a movement aligned with a coexistence whose set of actions intersects with feminist practices. This event represented a form of resistance, showing the political and collective power of girls/women, and LGBTI+ people, during the period they occupied their schools.

Keywords: education; feminism; gender; school occupation

Resumen:

A partir de entrevistas, observación y análisis de narrativas (auto)biográficas de estudiantes que ocuparon escuelas en Curitiba/Paraná y en su región metropolitana en 2016, este artículo tiene como objetivo analizar los desplazamientos y las bases de la convivencia entre los estudiantes durante las ocupaciones escolares. Además, se comenta sobre una posible cuarta ola de feminismo, marcada por la participación de jóvenes y mujeres tanto en espacios virtuales como en entornos educativos. A partir de la investigación, se encontró que las ocupaciones escolares eran un movimiento alineado con una convivencia cuyo conjunto de acciones converge con las prácticas feministas. Este evento representó una forma de resistencia, mostrando el poder político y colectivo de niñas/mujeres, y personas LGBTI+, durante el período que ocuparon sus escuelas.

Palabras clave: educación; feminismo; género; ocupación escolar

Introdução

Neste artigo, o cenário é composto por narrativas de estudantes adolescentes agrupadas/os nas ocupações de escolas públicas durante a primavera dos meses de outubro e novembro de 2016, em Curitiba/PR e em São José dos Pinhais/PR, região metropolitana da capital. No Paraná, das 2.111 escolas estaduais, aproximadamente 850 foram ocupadas, além de 16 universidades (estaduais e federais), cinco Institutos Federais e mais dois Núcleos Regionais da Educação. Foi o número mais expressivo de todo o país na Terceira Onda de ocupações escolares e o segundo maior movimento de ocupações de escolas do mundo (Jonas MEDEIROS; Adriano JANUÁRIO; Rúrion MELO, 2019).

Chamo de Terceira Onda o movimento de ocupações estudantis brasileiras que ocorreram no Brasil no segundo semestre de 2016. Os outros dois acontecimentos de ocupações foram: a Primeira Onda, no segundo semestre de 2015, responsável por difundir as ocupações estudantis como forma de protesto. Inspirada na Revolta dos Pinguins, protestos estudantis ocorridos em 2006 e 2011 no Chile, essa mobilização teve uma pauta localizada e concentrada nas escolas do Estado de São Paulo; e a Segunda Onda de ocupações espalhou-se pelo país no primeiro semestre de 2016 com pautas locais de cada escola, que partiam de denúncias sobre o novo modelo de gestão escolar proposto pelos governos estaduais, corrupção na merenda e cortes de gastos na infraestrutura, até o apoio à greve de professoras/professores que acontecia naquele momento (Marcielly C. MORESCO, 2020).

As principais pautas de luta da Terceira Onda concentravam: a) o repúdio ao conteúdo da Medida Provisória n.º 746/2016 (doravante Lei n.º 13.415/2017 (BRASIL, 2017)), conhecida também como Reforma do Ensino Médio, que trazia transformações preocupantes, sobretudo em relação ao currículo do Ensino Médio; b) o repúdio à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 55/2016, aprovada como Emenda Constitucional n.º 95/2016 (BRASIL, 2016), que limita os gastos públicos por 20 anos, afetando, principalmente, os investimentos nos setores da Educação e Saúde; e c) a rejeição ao Projeto de Lei “Escola sem Partido” (BRASIL, 2015a), conhecido também como “Lei da Mordaça”, cuja finalidade é controlar educadoras/es que expressem ideias supostamente por meio de uma doutrinação ideológica, envolvendo temas “de esquerda”, “marxistas” ou de “ideologia de gênero” (MORESCO, 2017; 2020). Às pautas inaugurais do movimento, as/os estudantes acrescentaram questões entrelaçadas às subjetividades das/dos que estão na escola, como: as questões de gênero, a diversidade sexual, as práticas e expressões feministas, o combate ao machismo e ao racismo etc.

Refletimos, neste artigo, sobre como esse movimento das ocupações escolares foi organizado e alinhado a uma ética da convivência cujo conjunto de práticas é convergente com as lutas feministas. E, como consequência dessa convivência baseada em expressões feministas, foi possível um modo de resistência também feminista, evidenciando o poder político, pedagógico e coletivo de meninas/mulheres e pessoas LGBTI+1 durante esse acontecimento conhecido como “Primavera Secundarista Feminista”.2

A pesquisa apresenta narrativas das/dos estudantes, resultantes de entrevistas realizadas por mim, relatos e escritas (auto)biográficas já publicadas em livros e vídeos. A pesquisa também contou com a observação de campo e, consequentemente, o diário de campo das minhas visitas às ocupações, como apoiadora e pesquisadora.3 Trago, neste artigo, três das oito entrevistas efetuadas, todas gravadas nas ocupações, em bairros centrais e periféricos de Curitiba/PR e São José dos Pinhais (região metropolitana da capital paranaense, onde as primeiras escolas foram ocupadas na Terceira Onda). Para tanto, para proteger a identidade das/os estudantes, os nomes das escolas foram suprimidos e quem participou das entrevistas recebeu aleatoriamente codinomes de personagens e artistas marcadas/os pelo reconhecimento dos movimentos feministas e LGBTI+, não havendo necessariamente relação entre as narrativas e os pensamentos das pessoas entrevistadas com o codinome.

A investigação do movimento de ocupação em Curitiba/PR e região metropolitana apontou que estudantes que se identificavam como meninas (cisgêneras, transexuais e/ou pessoas não binárias com expressão de gênero feminina), algumas delas com práticas eróticas e afetivas lésbicas, bissexuais e pansexuais, estiveram à frente da organização, manutenção e representação das ocupações. As meninas ocuparam o protagonismo do movimento, nas decisões de ocupar a escola, nas comissões criadas para estabelecer a ordem e subsistência no local e para falar com a mídia ou com o Estado no púlpito da “Casa de Leis”, como o discurso sobre o movimento de ocupação secundarista feito pela estudante Ana Júlia às/aos deputadas/os estaduais na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP), no dia 26 de outubro de 2016.

Ressalto que o feminismo é compreendido aqui como constituído por práticas sociais, culturais, políticas e linguísticas, com o intuito de libertar as mulheres das culturas machistas, misóginas (Margareth RAGO, 2013) e superar a imposição de um modelo universal de “ser mulher”, construído a partir do regime político do gênero e pela cis-heterossexualidade compulsória4 (Judith BUTLER, 2016; Débora DINIZ, 2014; RAGO, 2013).

Trato aqui do movimento feminista, mas não apenas dos grupos institucionalizados, uma vez que o movimento adquire sentido à medida em que se articula com todos os conjuntos de microrrevoluções feministas que permeiam toda a sociedade (Félix GUATTARI; Suely ROLNIK, 1996). Isto é, o feminismo constitui linguagens não restritas a movimentos organizados e necessariamente autodenominados feministas (RAGO, 2013), tal como veremos a seguir, com as práticas nas escolas ocupadas.

O feminismo na efemeridade das ocupações secundaristas

A convivência da qual escrevo aqui é sob a lente arendtiana. Reflito mais sobre as potencialidades de um “viver juntas/os” do que sua conceituação. Assim, recorro à convivência para pensar a Primavera Secundarista Feminista, observando nesse fenômeno a busca e o reconhecimento por uma política da preocupação, do cuidado de si e da/o outra/o, por transformações de si e da/o outra/o, do viver juntas/os com o que possuem em comum. Nesse sentido, para Hannah Arendt (2010):

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que o possuem em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo espaço-entre (in-between), o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si (ARENDT, 2010, p. 64).

O conviver num mundo de coisas em comum, interposto entre os sujeitos, não equivale à homogeneização ou ao abandono das diferenças. Pelo contrário, Arendt afirmava que a política é sobre a convivência entre diferentes, assim, a convivência diz respeito à pluralidade e às diferenças das quais se origina a vida política (ARENDT, 2002).

A convivência nas ocupações foi sobre a preocupação e a importância das/os estudantes com o agir político discursivo e incorporado a partir de suas diferenças. Elas/Eles exerciam uma ética do “viver juntas/os”, partilhando comumente o diálogo, a escuta, o cuidado, as ações orquestradas, as deliberações e a organização coletiva.

Percebo que a convivência ou o “viver juntas/os” nas ocupações é sobre habitar um (novo) espaço-tempo que é comum a todas/os que estão ali ocupando, com seus corpos, e (re)configurando a escola e a si mesmas/os. A ética da convivência foi estabelecida sob (novos) modos de vida baseados na amizade, no convívio político-afetivo, nas diferenças e sustentada no feminismo.

A partir de Butler (2016), me perguntei: o que acontece aos sujeitos, às instituições e à estabilidade das categorias de gênero e sexualidade quando um regime epistemológico, cultural e social da presunção de uma cis-heterossexualidade é desmascarado e explicitado como produtor e reificador dessas categorias, especialmente relacionado à educação?

Como um dos efeitos do questionamento de um regime cis-heteronormativo, podemos olhar para as últimas décadas, nas quais ações performativas que levantam bandeiras feministas e de diversidade sexual e de gênero misturam-se com os espaços educacionais, formando corpos políticos com relações múltiplas do ponto de vista discursivo (MORESCO; Carolina LISBOA, 2017). Esse movimento múltiplo expressa uma performatividade política que se dá através da relação entre o corpo e o espaço (BUTLER, 2018). Isto é, a teoria da performatividade política incorporada explica que a ação política passa necessariamente pelo corpo, adquire um caráter corporal e de expressão social sobre a demanda daquele corpo geralmente “não permitido” ou abjeto (BUTLER, 2018).

Alguns exemplos de ações político-performativas e feministas com protagonismo de estudantes universitárias e secundaristas são: movimentos de apelo global e transnacional - como a Marcha das Vadias, que é criada por mulheres feministas não institucionalizadas em 2011, a partir de discussões no contexto de violências sexuais dentro de uma universidade; as manifestações de rua unificadas pelo “Fora, Cunha”, mais especificamente contra o Projeto de Lei n.º 5069/2013, em 2015 (BRASIL, 2015b); também, em 2015, o início do movimento Ni Una Menos, inicialmente na Argentina, depois espalhando-se pela América Latina, com pautas de luta contra a violência de gênero e contra o feminicídio, igualmente com participação expressiva de estudantes; as agitações sobre questões tradicionalmente não problematizadas nas escolas, como o abaixo-assinado online “Vai ter shortinho, sim”, criado por estudantes do Colégio Anchieta, de Porto Alegre/RS, no início de 2016; ainda em 2016, as diversas manifestações pelo país em defesa dos direitos das mulheres após o estupro coletivo praticado por 30 homens contra uma jovem de 16 anos ocorrido no Rio de Janeiro; até chegarmos em 2015 e 2016, com o protagonismo das meninas à frente das ocupações escolares no Brasil todo.

Em Curitiba/PR, o cartaz colado no muro frontal da escola já sinalizava que as estudantes da ocupação estavam na luta sem medo - e a luta era feminista, como sinalizava o desenho. A frase no cartaz foi uma paródia irônica de uma reportagem veiculada na época pela Revista Veja, intitulada “Marcela Temer: bela, recatada e ‘do lar’” (Juliana LINHARES, 2016) (Figura 1).

Fonte: Acervo pessoal (2016).

#PraTodoMundoVer Fotografia colorida da fachada de uma escola pública ocupada por estudantes em Curitiba/PR. No muro frontal da escola há um cartaz em papel pardo com a frase escrita em tinta preta e vermelha “belas, destemidas e da luta!”. Ao lado da frase, há o símbolo do feminismo na cor preta (o símbolo de vênus com um punho no meio)

Figura 1 Cartaz feminista em frente à escola ocupada (Curitiba/PR) 

Sob a perspectiva epistemológica feminista, analisei a Primavera Secundarista como um movimento marcado e permeado por práticas feministas que podiam ser observadas em:

  1. a) Cartazes com frases e símbolos colados nos muros e paredes da escola;

  2. b) Discursos e narrativas das minhas entrevistas e de textos (auto)biográficos já publicados em diversas mídias e formatos (redes sociais, documentários, pesquisas acadêmicas, livros etc.);

  3. c) Paródia de música, como é o caso das estudantes da ocupação no Colégio Estadual Pe. Arnaldo Jansen (São José dos Pinhais/PR), que criaram uma paródia da música de funk Bang, da Anitta, sobre a então MP da Reforma do Ensino Médio (UBES);

  4. d) Aulas e debates sobre feminismo, gênero, diversidade sexual, violência contra a mulher, LGBTIfobia etc.;

  5. e) Atividades organizativas lideradas por meninas, tal como a divisão nas comissões, especialmente de alimentação/cozinha, limpeza e segurança;

  6. f) Atividades administrativas com protagonismo feminino, como as tomadas de decisões diante de conflitos;

  7. g) Transformação de si e no próprio front do movimento de ocupação, assim como narra uma estudante em um documentário sobre as ocupações de Curitiba/PR e Região Metropolitana:

Assim, a ocupação, na verdade, começou com mulheres. Tudo, desde o início. Tanto desde o organizar o debate na praça onde foi decidido ocupar uma escola até ocupar a escola, organizar as coisas dentro da escola, a organização geral, assim, foi tudo feito por mulheres. Quem mandava nas ocupações, na verdade, eram as mulheres. A maioria das pessoas que tinham dentro das ocupações eram mulheres. A ocupação funcionou, na verdade, por causa das mulheres, né?! [...] Porque hoje em dia você vê que a gente tá conseguindo combater o machismo e mostrar que a mulher também tá na luta. Lugar de mulher é na luta, lutando pelos seus direitos, pra chegar no mesmo nível que os homens, né?! E que muita gente não sabe que esse é o feminismo; lhes apresento o feminismo [risos] (Narrativa de uma estudante no documentário REPÚBLICA DO CAOS, 2017, 17’35”).

A partir da noção feminista de combater a desigualdade entre mulheres e homens, a estudante conta, na narrativa, como as meninas tomaram a frente da organização do movimento de ocupação, das reuniões, assembleias e da administração interna das ocupações, espaços marcados historicamente pela dominante presença masculina.

Suspeito que o recurso às estratégias políticas e performativas do marcador “mulheres” na narrativa da estudante pode ter sido motivado, sobretudo, pela vontade de rompimento com uma hegemonia masculina na política e na militância/ativismo. Essa suspeita apareceu ao lermos a seguinte narrativa de uma estudante ocupando uma escola em São Paulo, em 2016:

Eles não sabem fazer nada. Não sabem falar direito, não entendem de política. Como a gente tá nisso há um tempo porque a gente já se preocupava antes, a gente foi ocupando esses espaços, deixando o resto das coisas com eles (Narrativa de uma estudante publicada em Paula Alegria BENTO, 2017).

Paradoxalmente, ao mesmo tempo que o espaço político, sindical e militante/ativista é marcado histórica e majoritariamente pela presença (cis-hétero) masculina, a estudante narra que eles “não entendem de política” e, no contexto de um possível desmonte da educação pública, as meninas preocuparam-se antes e resolveram agir.

Esse discurso conecta-se às décadas de 1970/1980, quando as ativistas feministas inauguraram outras práticas de ativismo político e cultural, abrindo condições para a criação de espaços coletivos autônomos para mulheres como alternativa aos espaços institucionalizados “masculinos”, tal como os partidos políticos, inclusive os identificados como de esquerda (RAGO, 2013).

O cenário do período do regime ditatorial no Brasil (1964-1984), mas comum a outros países da América Latina, encontra-se com o das ocupações escolares de 2016. Mas, para analisá-lo, é preciso conhecer uma outra historiografia, não aquela contada exclusivamente pelos homens. O que a historiografia convencional nos mostra, na ditadura, é um sujeito da militância “masculino”, branco, com cabelo e barba, viril e cis-heterossexual. Sob esse mesmo olhar, as mulheres da militância eram consideradas ora liberais demais, ora histéricas, e continuavam subalternas aos homens e, concomitantemente, consideradas uma ameaça à posição de poder que eles ocupavam (RAGO, 2013).

Na história contada por eles, as mulheres confeccionavam os cartazes do movimento militante e eram as responsáveis pela cozinha (Michelle PERROT, 2001; 2016). Já a outra historiografia, combinada com as autobiografias de mulheres, que começam a ser publicadas décadas depois do fim das ditaduras, nos possibilita aprender como as mulheres tinham que provar que eram corajosas, pegavam em armas e faziam a segurança, eram ativistas e faziam a revolução tanto quanto os homens. Se muitas foram guerrilheiras, outras presas políticas e algumas exiladas, afirma Rago (2013), certamente não foram por servirem cafezinho e confeccionarem cartazes, mas porque também lutaram no fronte dos protestos.

Em relação às ocupações escolares, a historiografia contará a história de meninas protagonistas desse movimento; história que estamos trazendo neste trabalho e que muitas/os pesquisadoras/es e apoiadoras/es já publicaram ou publicarão. A tecnologia comunicacional, as redes sociais, o midiativismo e a velocidade na difusão das informações possibilitaram construir uma historiografia das ocupações que legitimasse esse protagonismo e quase (em alguns momentos totalmente) fidedigna à realidade. E, além disso, as meninas foram produtoras e porta-vozes de informação. Elas também estavam por trás desses canais de comunicação produzindo os conteúdos, o que influencia em ‘o que’ e em ‘como’ as informações são comunicadas e repercutidas.

Antonia M. Campos, Medeiros e Márcio M. Ribeiro (2016, p. 138), ao discutirem sobre a organização das ocupações no Estado de São Paulo em atividades formativas, revelam que a “formação em termos de igualdade de gênero e questões LGBT aconteceu pelo contato com conhecimentos trazidos de fora”. Nas observações que fiz em ocupações e com as narrativas que ouvi/li, são prévios os conhecimentos das/os estudantes sobre esses temas; são delas/es as iniciativas de debater esses temas, refutando a necessidade de uma formação externa para dentro da escola, tal como no depoimento a seguir.

Na verdade, eu comecei a me perguntar “por que eu sou feminista” porque me fizeram essa pergunta: “Como? Você acordou um dia e foi feminista?”. Não. Eu descobri que eu era feminista assim como eu descobri que eu gostava de filosofia. Foi, tipo, questões que foram acontecendo no dia a dia que eu me perguntava: “eu concordo com isso?”, “eu concordo de estarem fazendo piadinhas com mulheres sobre estupro dentro da sala de aula?”. Não, eu não concordo. “E por que eu não concordo?”. Porque eu fui vendo que eu não concordava com as coisas que eles falavam. E daí eu fui me encaixando nessa coisa de feminista, entendeu?! E eu fui procurando saber por que que a gente vive nessa sociedade patriarcal. Por que que existe machismo e tal. E eu acho que essas questões, eu sempre fui me perguntando... e foi desse jeito que eu descobri que não era legal ser homofóbico, que não era legal ser racista, que eu gostava de filosofia. E eu sempre procuro trazer isso pra sala porque não tem nenhuma aula que o professor chegue e fale: “Vamos discutir gênero hoje”. A questão de gênero hoje, de gênero, de identidade, de sexualidade, surge dentro da sala a partir do momento que vem alguém ser machista, ser preconceituoso. E daí eu me vejo no papel de barrar, de não deixar isso passar (Entrevistada Marielle Franco, 14 de outubro de 2016).

Contudo, muitos movimentos sociais feministas participaram de atividades formativas nas ocupações - a pedido das/os estudantes. É possível que sentiram ser imperativo um aprofundamento dos saberes em relação a essas questões e, por isso, solicitavam “aulas” e debates sobre feminismo, gênero, diversidade sexual, entre outros. Mas elas/es sabiam, já produziam os saberes em torno desses temas, embora ainda na configuração do sistema intelectual/adulto versus educando/jovem.

Em outra escola no centro de Curitiba/PR, numa entrevista a respeito das questões LGBTI+ e feministas, questionei estudantes que ocupavam a escola sobre como e onde acessavam informações sobre a temática:

Eu vejo muitos canais no YouTube, tem um canal muito bom, o Canal das Bee5 (Entrevistado João Nery, 02 de novembro de 2016).

Ah, eu já assisti esse canal... eu comecei a conhecer mais sobre essas coisas através do Facebook mesmo, de páginas, de ver alguns amigos compartilhando. Daí fui procurando mais e mais sobre o assunto e até conhecer mais (Entrevistada Emma Goldman, 02 de novembro de 2016).

É possível perceber, com as narrativas, que, ao contrário de discursos frequentemente encontrados na sociedade sobre a falta de conhecimento e formação das/os jovens, que, inclusive, é o mesmo discurso que habita o imaginário de quem apoia as propostas do projeto Escola Sem Partido (ESP), as/os estudantes não precisam que lhes tragam o conhecimento sobre os debates de gênero, feminismo e diversidade sexual. Elas/es já possuem a “formação” nessas questões, porém vivem sob um sistema que funciona pela lógica intelectual adultocêntrica, segundo a qual ainda são considerados sujeitos educandos, e não educadas/os e/ou possíveis educadoras/es. Sistema semelhante ao descrito por Paulo Freire (1996) na concepção de educação bancária e da cultura do silêncio, em que o saber e os conhecimentos são transmitidos por um educador ou educadora às/aos estudantes sem o compartilhamento de ideias e o estímulo à contradição.

Isso, contudo, não significa que todas/os as/os estudantes compreendam a pluralidade, a diversidade e a complexidade que permeiam esses debates ou a desconstrução em relação às opressões e aos ideais regulatórios, identitários e normativos. Conhecimentos são adquiridos com o tempo, com leituras e amadurecimento intelectual; não necessariamente têm a ver com faixa etária ou o papel que desempenham na escola, e a prova disso são as recentes práticas feministas e organizações políticas protagonizadas por essas/es jovens.

É preciso ressaltar que, quando os coletivos feministas, movimentos sociais ou sujeitos autônomos realizaram as rodas de conversa, “aulas” e outras atividades relacionadas com as discussões de gênero, em grande parte eram estudantes universitárias/os que apoiavam as ocupações e foram recebidas/os nas escolas, pelos seguintes motivos:

a) foram convidadas/os (ou aprovadas/os pelas/os estudantes quando o convite e sugestão eram de professoras/es) para entrar na ocupação e realizar a atividade;

b) muitas/os já possuíam conhecimento prévio sobre o tema e várias estudantes já reconheciam-se como feministas e/ou lésbicas, bissexuais, pansexuais, travestis/transexuais, não binárias e outras denominações possíveis, o que despertava a curiosidade de mais informações sobre esses temas.

Porém, há ressonâncias sobre a observação ( nota-se que há maior engajamento e articulação sobre as discussões com as/os estudantes de escolas não periféricas, cujo privilégio de acesso socioeconômico e cultural permite mais contato com palestras e manifestações políticas em áreas públicas e centrais. O acesso à Internet na escola e em seus domicílios, entre outros aspectos, tal como aparece na narrativa de um estudante transexual que compara a realidade da sua escola com a do Colégio Estadual do Paraná (CEP), este localizado no centro da capital paranaense e também o maior colégio do estado:

E isso que falaram que aqui tem bastante galera LGBT, mas era muito fechado. Eu também estudo no CEP, faço francês lá, e o CEP é muito aberto, você vê isso. Agora com a ocupação, acho que a gente poderia abrir mais também como o CEP (Entrevistado João Nery, 02 de novembro de 2016).

Ademais, durante as ocupações, foi possível observar que as meninas construíram relações consigo mesmas e com as outras, e promoveram reflexões sobre as próprias experiências. Especialmente quando registravam desconforto e inadaptação diante dos modelos tradicionais de feminilidade que as/os adultas/os esperavam que elas performassem. Uma estudante narra, em um documentário sobre as ocupações de Curitiba/PR e Região Metropolitana, como as pessoas adultas produziram um discurso que despolitizava, infantilizava e inferiorizava as jovens que ocupavam as escolas, como se fossem imaturas e incapazes de decidirem sobre o que acontecia no interior da escola, a partir do discurso de “doutrinação feminista” trazido por movimentos externos - expressão equivalente à “doutrinação marxista” do movimento ESP:

“É porque eles estão ensinando a doutrinação feminista pras crianças nas ocupações...” (imitando a fala de alguém). E não sei o quê. Como se fosse pecado você aprender a se amar! (Narrativa de uma estudante no documentário República do Caos, 2017, 16’51”).

Em cada geração de feministas, constatamos as diferenças de olhares, as dispersões e os fragmentos de luta, principalmente quando voltamos para a história e memória das Ondas do feminismo (RAGO, 2013). Assim, também as secundaristas iniciam uma outra geração de ativistas, com singularidades da chamada “Quarta Onda” do feminismo, marcada por uma geração jovem e com particularidades de repetições e performatividade de gênero transgressoras do habitual.

Ressalto que a reflexão em termos das ondas do feminismo está articulada à perspectiva de reconhecimento de um processo histórico, político e cultural de definição do movimento feminista; menos do aspecto de “progresso” ou desenvolvimento e mais pelo viés de uma provocação constante de lutas das mulheres (Fernando A. POCAHY, 2011). Assim, divide-se o movimento em: Primeira Onda, final do século XVIII, com foco na demanda pela educação, direito ao voto, igualdade no casamento e na posse de propriedades, marcada pelo movimento das Sufragistas e pelo movimento das mulheres operárias de posicionamento anarquista, reivindicando melhores condições de trabalho nas fábricas. Bertha Lutz torna-se o ícone do engajamento pelo sufragismo brasileiro e Maria Lacerda de Moura na luta anarquista dos movimentos operários no Brasil; Segunda Onda, início da década de 1940, com reflexões e lutas sobre questões do âmbito doméstico e social, esfera pública e privada, opressões de gênero, sexualidade e corpo, marcada pelas obras de Simone de Beauvoir (1967; 1970), O Segundo Sexo, e de Betty Friedan (1971), A Mística Feminina; Terceira Onda, a partir da década de 1990, com autocríticas ao movimento e reconhecimento da pluralidade de feminismos. As lutas abrangem as diferenças de raça/etnia, classe, capacidades, sexualidades, gênero e violência contra a mulher - marcadas pelo forte posicionamento das vertentes de feminismo socialista, negro, lésbico, transfeminismo etc.; Quarta Onda, que se concretiza nos anos 2000, com uma maior horizontalização do movimento, e uma perspectiva mais multidimensional e pluralizada, que valoriza as diferenças - fortemente marcada pela luta a favor da descriminalização do aborto, pela Lei Maria da Penha, pela Lei do Feminicídio no Brasil e pelo ciberfeminismo, bem como pela sua adesão por mulheres cada vez mais jovens e adolescentes (Heloísa Buarque de HOLLANDA, 2018; Luis Felipe MIGUEL; Flávia BIROLI, 2014; Céli Regina Jardim PINTO, 2010).

Como uma onda do mar que se mistura e é sobreposta, não há como determinar exatamente quando finaliza cada uma dessas “Ondas”, nem mesmo essa classificação não é unânime entre o movimento feminista. Especificamente sobre a Quarta Onda, é certo que o feminismo potencializou-se com o advento da Internet, podendo ser um dos efeitos do chamado ciberfeminismo, ou seja, práticas feministas presentes na cibercultura, que começam ainda no período da Terceira Onda, início dos anos 1990.

O termo ciberfeminismo tem origem em 1991, com o grupo artístico australiano de mulheres denominado VNS Matrix, produzindo instalações artísticas e materiais visuais disseminados na Internet, em que analisava o feminismo a partir das culturas gamer grrrl, tecnológica, eletrônica e, sobretudo, a digital. Dentre esses materiais visuais e digitais, o mais emblemático é o Cyberfeminist Manifesto for the 21st Century (Manifesto Ciberfeminista para o Século XXI) (VNS MATRIX, 1991), no qual as ativistas denominavam-se “vadias modernas” e “futuro-vadias”. O material foi inspirado no Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway (2009), a qual já pensava olhar para o feminismo sob a perspectiva das tecnologias, dos meios de comunicação e arriscava sugerir um ativismo político com apropriação desses meios.

No cenário brasileiro, o ciberfeminismo passou a ter destaque a partir de meados dos anos 2000, com maior avanço após 2010, muito marcado pelo crescimento acelerado de blogs que começavam a discutir questões feministas através da Internet. Só para citar alguns: o Escreva Lola Escreva (criado em 2008), o Blogueiras Feministas (em 2010), o Transfeminismo (em 2011), o Blogueiras Negras (em 2012) e o Não Me Kahlo (em 2013).

Além dos blogs, também surgem revistas digitais e independentes especializadas nessas questões, como a Capitolina (em 2013), a Think Olga (em 2013) e a AzMina (em 2015). Alguns desses blogs e algumas revistas foram responsáveis por criar campanhas com hashtags utilizadas no Twitter, Facebook e Instagram com o objetivo de compartilhamento de questões referentes ao universo feminista, como, por exemplo: #ChegadeFiuFiu, #MeuAmigoSecreto, #PrimeiroAssédio, #NãoMereçoSerEstuprada, #MeuQueridoProfessor etc.

Tomo o exemplo da Marcha das Vadias (SlutWalk/Marcha de las Putas) como um movimento social que nasce fora da Internet, constrói-se por meio do ciberfeminismo e volta para as ruas, espalhando-se mundialmente em 2011, com as redes sociais digitais, em especial o Facebook. Esse movimento tornou-se um dos fenômenos que simboliza um (novo) feminismo das diferenças, como denomina Buarque de Hollanda (2018), e demarca esse momento do feminismo como a Quarta Onda.

Nos anos subsequentes, nas Jornadas de Junho de 2013, nos protestos feministas pelo “Fora, Cunha”, de 2015, também conhecido como Primavera das Mulheres (Carla RODRIGUES, 2015), nos “8M” no Dia Internacional da Mulher, no ato brasileiro “Ele Não”, anterior à eleição de 2018, e nos demais atos de rua ou de rede (denomino assim os protestos que permanecem na Internet e não se deslocam corporalmente para outros territórios, como, por exemplo, o uso das hashtags feministas), o público continua sendo majoritariamente de jovens e, cada vez mais, secundaristas/adolescentes. Inicia-se uma geração de feministas que despreza uma mediação representativa e afirma-se sem lideranças, de caráter horizontal e “autonomista”; e ainda se baseia em “narrativas de si, em experiências pessoais que ecoam coletivas, valorizando mais a ética do que a ideologia, mais a insurgência do que a revolução” (HOLLANDA, 2018, p. 12).

Esse “novo” feminismo de adolescentes é muito recente. Suponho que sua popularização entre as meninas aconteceu principalmente pelo avanço da tecnologia comunicacional, do ciberfeminismo e das intensas manifestações feministas a partir de 2010 nas ruas. Ademais, temos grupos e laboratórios de pesquisa das universidades e movimentos sociais adentrando os espaços educacionais, tal como foi com a Marcha das Vadias de Curitiba/PR, que tinha forte participação nas escolas de Curitiba/PR e Região Metropolitana até o final de 2016, quando o pânico moral oriundo dos discursos em relação à “doutrinação ideológica”, à “ideologia de gênero” e ao projeto Escola Sem Partido, com ameaças às/aos professoras/es que ousassem discutir temas como o feminismo, gênero, sexualidade ou conteúdos “esquerdistas” em sala de aula, reduziu o acesso de grupos político-sociais às escolas.

A constituição de uma comunicação feminista e seu rápido alcance por meio da Internet, articulada com referências sociais e culturais do universo infantojuvenil, traz a possibilidade de compreender como as ideias e pautas do movimento feminista chegaram até as jovens, cada vez mais novas quando comparadas às gerações anteriores de feministas (Keli de Oliveira RODRIGUES, 2017).

O mesmo acontece com as revistas digitais especializadas em conteúdos feministas e dirigidas para o público adolescente, como, por exemplo, a revista Capitolina. Além da transformação editorial de revistas tradicionais do público jovem, como a Capricho e a Atrevida, cujos conteúdos foram alterados para o contexto de leitoras cada vez mais novas e politizadas, engajadas e exigentes em relação ao que acessam nos meios de comunicação. Afora essas plataformas, outros meios servem para informação das/os jovens sobre feminismo, gênero e sexualidade, como canais no YouTube e páginas/grupos no Facebook, perfis no Instagram e discussões no Twitter.

E acrescento também a extensa produção literária de livros infantis e infantojuvenis com temáticas étnico-raciais, acessibilidades, gênero, corporalidades, sexualidades etc., e em diversos gêneros (histórias em quadrinhos, fábulas, novelas, contos, apólogos etc.), capazes de despertar nas/os jovens leitoras/es questionamentos, curiosidades e até mesmo instigá-las/os a procurar mais informações sobre o que leram.

As/Os adolescentes têm assumido o protagonismo ativista em diversas áreas há anos e não só no feminismo, mas na luta pela educação gratuita e de qualidade, em casos de violências cometidas contra LGBTI+, no luto pelas mortes de jovens negras/os, contra a posse de armas ou contra o aquecimento global.

Na maioria dessas lutas, o fronte é liderado por mulheres muito jovens, que questionam a infantilização das/os adultas/os em contrapartida à adultização histórica das crianças e jovens, conforme relata o discurso da ativista sueca Greta Thunberg, que tinha 15 anos quando esteve na Cúpula do Clima, em 2018: “Como nossos líderes comportam-se como crianças, nós teremos que assumir a responsabilidade que eles deveriam ter assumido há muito tempo atrás” (Eliane BRUM, 2019). Aqui, lembro o artigo “A Crise na Educação”, de Hannah Arendt, que já no final da década de 1950 refletia sobre como as fronteiras entre adultas/os e crianças tornavam-se tênues, destacando a falta de responsabilidade das/os adultas/os no ingresso das crianças ao mundo (Maria Rita de Assis CÉSAR; André de Macedo DUARTE, 2010).

Investigando as ocupações secundaristas de São Paulo, em 2016, a professora Miriam Soares Leite (2017) deparou-se com a ambiguidade das/os adolescentes que ocupavam a escola. Nos discursos das/os adolescentes, apareceram aspectos negativistas em relação à própria maturidade e idade, e Leite (2017) percebeu a influência das abordagens adultocentristas da sociedade e, principalmente, da escola, que enfatizavam a inferiorização, a subalternização, bem como a cobrança pela adultização precoce.

De forma semelhante, durante a minha observação participante nas ocupações de 2016 no Paraná, percebo uma ambiguidade nas narrativas e ações em relação ao “empoderamento”, ao resgate identitário do sujeito “mulher” e, consequentemente, à repetição de “papéis” generificados no feminino adulto, práticas performativas que podem estar sob o modelo adultocentrado, que assujeitam os indivíduos desde sua infância6 (Cf. Miriam Pillar GROSSI, 1998). Dessa forma, além de abordagens adultocêntricas que sugerem a inferioridade, a imaturidade e a incapacidade do sujeito criança/adolescente/jovem, há ainda um acréscimo: a imposição de valores e condutas adultas generificadas - no feminino e masculino.

Ambivalência e estratégia político-performativa nas ocupações

Especificamente sobre as mulheres adolescentes durante as ocupações, há, de um lado, o protagonismo das meninas na manifestação; de outro, uma reivindicação identitária e a reprodução de “papéis de gênero”. Em outras palavras, elas assumiram a decisão de ocupar e organizar as ocupações, mas permaneceram algumas reproduções históricas de expectativas, identidades e comportamentos das mulheres considerados padrões em uma escola generificada como “feminina” ( as meninas sendo responsáveis pelo cuidado, zelo, vigilância, autoridade, distribuição das tarefas, mediação de conflitos, controle e regulação das/os demais estudantes, entre outras. Estavam praticando aquilo que as/os adultas/os esperavam: já que estavam adentrando o mundo público e político, então que agissem como mulheres adultas.

Bento (2017) também observa uma configuração dos “papéis de gênero” na convivência e na divisão de tarefas em algumas ocupações em que a mãe e/ou a avó estavam presentes nas ocupações, exercendo a responsabilidade sobre a cozinha, na comida e no apoio psicológico e moral às/aos estudantes durante os protestos nas escolas, ou seja, no “cuidado” com as “crianças”, como costumavam chamá-las/os.

Comportamentos e expectativas padronizadas, e culturalmente engendradas no “feminino”, acabavam sendo reproduzidas especialmente quanto à preocupação em manter o bem-estar na ocupação, no zelo com a estrutura predial, na afeição, no bom senso e na bondade na mediação de conflitos, na firmeza delicada para lidar com as condições adversas da ocupação, a ordem no local e nas relações para que quem visitasse o local (mídia, representantes do Estado [como o Conselho Tutelar] e a sociedade) percebesse um espaço organizado, limpo, protegido, seguro etc. Tais práticas aproximavam-se de um processo de formação com a ação da mulher e esposa do lar, da família tradicional, e, posteriormente, como a educadora de crianças e adolescentes durante o processo histórico da feminização do magistério (Guacira Lopes LOURO, 2000; 2014).

Tal ambivalência não é exclusiva das ocupações de 2016. Na Primeira Onda, em São Paulo, em 2015, ela já existia, como verificado nas análises de discursos publicados. Há a ideia de naturalização do fato de que mulheres podem minimizar possíveis conflitos entre homens e que dialogam com mais esmero e diligência, como apresentado na narrativa de uma estudante que fez parte da comissão de segurança da sua ocupação na Primeira Onda. Segundo ela:

[...] toda noite a gente tinha visita de policial, gente! Toda noite tinha policial lá batendo na porta. E rapazes pra conversar com policial, não dá certo. Porque um bicudo com outro, os dois vão se bicar. Isso é literário, isso é normal. Então, as meninas saíam lá fora pra conversar, até para que as coisas não fugissem do controle (Narrativa de uma estudante publicada em CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016, p. 137, grifos meus).

A recusa da divisão de gênero das atividades não resulta, por sua vez, na anulação da reprodução normativa de “papéis de gênero” e identidades fixas. Por exemplo, a comissão de comunicação de muitas ocupações era composta predominantemente por meninas, talvez por essa ideia naturalizada de que elas articulam e falam melhor, inclusive nas reuniões de negociação com Ministério Público, Conselho Tutelar, diretoras/es, mães/pais, mídias, Secretaria de Educação, Assembleias Legislativas e Senado.

Louro (2000) relembra como a educação das meninas de grupos sociais privilegiados, entre meados do século XIX e início do XX, era voltada para o ensino da leitura, da escrita, das noções básicas de matemática, e, sobretudo, das habilidades de domínio da casa, afinal, esse era o seu destino como esposas e mães, tais como o domínio da culinária, do bordado e da costura (LOURO, 2000, p. 446). Assim, as meninas e mulheres deveriam ser “diligentes, honestas, ordeiras, asseadas”, sendo sua função controlar seus homens e serem responsáveis pela “manutenção de um lar afastado de distúrbios e perturbações do mundo exterior” (LOURO, 2000, p. 447).

Além disso, as narrativas nas entrevistas e declarações publicadas sobre as ocupações demonstram o aparecimento de uma noção não problematizada de “mulheres” que, mesmo usando-a no plural, pode invocar um desejo de construir uma identidade singular e estável de sujeito, chegando muito próximo da polaridade linear de relações de poder.

Invocar um sujeito por meio do marcador identitário e da ideia de “representação” impede e exclui sujeitos, que não se conformam às exigências normativas do gênero, de serem representados politicamente. Por exemplo, as experiências de variação subversiva do gênero, como a não binariedade presente nas ocupações.

A não binariedade aparece em uma entrevista realizada durante minha observação em um colégio central de Curitiba/PR, em 02 de novembro de 2016, na qual uma pessoa estudante com expressão de gênero feminina, que protagonizava o protesto nessa escola, quebrou com a exigência normativa binária:

Eu já revistei mulher, mas eu já falei que, tecnicamente, eu não me identifico nem como homem, nem como mulher. Então, não me levem a mal, eu não tenho essa distinção pra mim. Eu sou não binária, mas eu tava pesquisando um pouco sobre gênero fluído ou bigênero, eu não consegui classificar muito bem. Têm dias que me sinto mais feminina, têm dias que sou mais masculina. Quem me conhece no dia a dia consegue distinguir. Mas, então, isso é algo que consegui descobrir em mim há pouco tempo. Porque eu sempre tive essas características, mas sempre tentei ficar me prendendo a uma coisa só, então há pouco tempo eu consegui libertar isso... (Entrevistada Emma Goldman, 02 de novembro de 2016, grifos meus).

A estudante entrevistada (que se identifica como pessoa não binária, mas os pronomes adotados por ela são no feminino, o que usualmente faz parte da expressão de gênero, não necessariamente ligada à sua identidade de gênero) conta que, durante a tarefa de revistar as pessoas que entravam na escola ocupada, revistou mulheres (em alusão ao procedimento comum de abordagem ou revista de mulheres em mulheres e homens em homens), porém ela mesma não se identifica nem como mulher, nem como homem.

Desse modo, supor que o termo “mulheres” denote uma identidade comum dentro das ocupações passa a ser considerado um problema político, pois conjectura uma noção de desigualdades universais ou uma base universal para o feminismo, encontrada em uma única identidade definida que, supostamente, exista em diversas culturas (BUTLER, 2016). A suposição política de que há uma base/identidade universal para o feminismo (em uma identidade também supostamente existente, pois há a possibilidade de muitas pessoas não se identificarem como mulheres, mesmo com expressão feminina) acompanha a ideia de que a opressão das mulheres é singular, homogênea, única, estável, fruto de uma estrutura falogocentrada.

Esse formato de teorização feminista pode conter formas colonizadoras e apropria-se de determinadas culturas e/ou nega outras, ocasionando uma universalidade fictícia (BUTLER, 2016). A identidade do sujeito no feminismo não deve ser a base fundamental dessa política, uma vez que se torna uma oposição paradoxal aos seus próprios objetivos (BUTLER, 2016). Butler não abandona ou rejeita o universal, mesmo ele sendo produtor de exclusões, mas reconhece e questiona sobre ‘quem’ e ‘o que’ é esse universal. Com essa crítica, não se trata de recusar a necessidade de uma política representativa, mas de questionar as estruturas jurídicas, educacionais, médicas, psi, religiosas, que engendram e normatizam os sujeitos (BUTLER, 2016).

Por outro lado, nas ocupações secundaristas, a reivindicação identitária do sujeito “mulheres”, do sujeito LGBTI+ e a reprodução de comportamentos generificados em um “feminino”, pode ser compreendida como um mecanismo legítimo de preservação ao acesso a garantias políticas e jurídicas (DUARTE; CÉSAR, 2014). E ressalto o acesso à garantia midiática para, justamente, através dos meios de comunicação, demonstrar à sociedade a potência de resistência das estudantes, desses corpos marginalizados, sexualizados e docilizados na escola. Tal prática, nas ocupações, pode ser interpretada como uma estratégia política e performativa dentro do contexto efêmero de discursos e de atos de resistência na escola em luta.

Assim, compreendo que, ao recorrerem à estratégia política e performativa da identidade do sujeito “mulheres”, além da reprodução de “papéis sociais femininos”, em um momento de transitoriedade, o fazem menos para um reconhecimento individual e pessoal, e mais para obter alguma conquista no âmbito da educação micropolítica, e para a “multiplicação de novas formas de amizade e de relação, novas formas de viver politicamente” (DUARTE; CÉSAR, 2014, p. 402).

Portanto, essas ações políticas, coletivas e performáticas parecem destinar-se mais a negociar novas possibilidades e embaralhar as atuais configurações culturais de sexo, gênero, desejos, práticas sexuais, de relações de poder lineares. Além do desejo de (re)apropriar as possibilidades e os atos performativos já existentes no contexto escolar, mas que existem sob um domínio que os aponta como culturalmente ininteligíveis e impossíveis de “aparecerem” (BUTLER, 2016). Contudo, Butler (2016) afirma que, mesmo sendo um processo estratégico, as estratégias podem extrapolar os propósitos. Nesse caso, mesmo sendo uma estratégia performativa, há consequências e elas podem ocasionar a descontextualização e a separação política de outros marcadores sociais/intersecções, continuando a gerar exclusão.

Um exemplo de provável exclusão é o apagamento da opressão que a estudante identificada como mulher transexual recebe ao usar o banheiro das mulheres durante o cotidiano tradicional da escola. Ao universalizar o sujeito “mulher” das ocupações, permanece oculta a condição cis-heterorreguladora do banheiro, pois essa prática não chega até as instâncias políticas, educacionais, jurídicas e midiáticas. Além disso, dentro da ocupação, a universalização da identidade “mulher” pode eliminar o reconhecimento de identidades transexuais, diante da resistência de outras estudantes de inclinação TERF7.

Michel Foucault (2003) afirma que o emprego da identidade pode ser útil quando o propósito é marcar as diferenças, produzindo novas relações extrajurídicas, no sentido de favorecer relações sociais e/ou as de prazer sexual que criem novas amizades. Nesse contexto, reconhecer e marcar a diferença adquire importância, sendo que, se há a busca pela igualdade, supõe-se que há diferença (Joan SCOTT, 1999).

Dentro das ocupações, a busca pela afirmação de identidades (mulher, LGBTI+ etc.) produzia um movimento de performatividade que, por sua vez, criava um efeito político de apropriações, de transformações, de (novas) subjetividades que lampejavam em meio ao contexto de discursos normatizantes, opressivos e repressivos.

A performatividade pode ser compreendida como atos de repetição que reiteram o discurso de produção de uma regulação sexual, transformando este discurso em “verdade”, como acontece com os “papéis de gênero”, com o desejo e as práticas sexuais que são discursivamente colocadas em ação a partir de algum modelo regulado, entre outros (MORESCO, 2017).

Para Butler (2018), nem sempre o ideal de gênero é uma armadilha; também pode funcionar como um modo desejável de vida, de ter reconhecimento e, portanto, viver uma vida vivível.

Ser um sujeito requer primeiro encontrar o caminho dentro de certas normas que governam o reconhecimento, normas que nunca escolhemos e que encontraram o seu caminho até nós e nos envolveram com seu poder cultural estruturador e incentivador (BUTLER, 2018, p. 47).

Contudo, caso não encontremos o caminho dentro das normas vigentes que regulam e controlam o reconhecimento, sejam elas de gênero, sexuais ou sociais designadas para cada sujeito, ficamos expostas/os aos limites da condição de reconhecimento e, dependendo da circunstância, pode ser algo terrível ou emocionante (BUTLER, 2018). Para uma vida possível de ser vivida, pode existir a reivindicação por ideal de gênero, seja no sentido incorporado, seja na reprodução de mecanismos que constroem esse ideal. Isso permite o reconhecimento e a possibilidade de existir e persistir (BUTLER, 2018).

Teresa de Lauretis (1994, p. 209) afirma que “a construção do gênero também se faz por meio de sua desconstrução” em qualquer discurso, feminista ou não, e nos previsíveis tradicionais espaços ideológicos: escola pública e privada, mídia, tribunais, família (nos diversos tipos estruturantes), universidade, práticas artísticas, teorias radicais, feminismo etc. Por meio da desconstrução das estudantes, ao tomarem a iniciativa da organização das ocupações, elas repetem estereótipos e normas de gênero, mas esse movimento também resulta na subversão de um adultocentrismo heterossexual, cisgênero, masculino e branco.

As iterações, para Jacques Derrida (1991), ou seja, as repetições constantes, incluem deslocamentos, já que é impossível a repetição completa e integral, dada a contingência da sua realização. Assim, a repetição e a reprodução de comportamentos destinados ao gênero “mulher” pelas estudantes não se concretizam integralmente por efeito da alteridade sempre manifestada. Alteridade que, por sua vez, ocorre em virtude das distintas contingências das experiências de mulheres e, principalmente no caso das ocupações, pela transformação espaço-temporal dessas repetições.

Essa alteridade das repetições de normas generificadas manifesta-se sob alguns aspectos:

a) a tomada de decisão de ocupar a escola por meninas em uma sociedade que produz e constrói valores que inferiorizam e negam algumas habilidades nas jovens;

b) a administração e organização do espaço é realizada pelas meninas ( uma ocupação de espaço político de poder historicamente configurado como adulto masculino e, posteriormente, adulto feminino, com a feminização do magistério.

Esses deslocamentos, como efeitos da repetição de enunciados biologizantes ou naturalizantes e de práticas generificadas, podem servir como potência para a ruptura e contestação de outros contextos sedimentados ou com seus usos comuns. As repetições e reproduções de gênero que ocorrem nas ocupações são decorrentes de circunstâncias sexistas, nas quais a escola e a sociedade estão inseridas e referendam como rotineiras. Contudo, os atos de repetição-deslocamento-subversão tornam-se importantes para que haja a ação de atos de performatividade política incorporada na ocupação, significando, portanto, estratégias político-performativas.

As práticas feministas dentro das ocupações foram vias pelas quais se percorreu a ética da convivência. Casos de machismo eram resolvidos por elas/es mesmas/os dentro da ocupação, com diálogo ou expulsão do sujeito (quando ele reincidia no comportamento machista). Afinal, estavam em uma escola “diferente”, portanto, queriam também um espaço livre da opressão cotidiana, como relata a estudante:

Eu já falei para todas as meninas do coletivo: “se acontecer alguma coisa, por menor que seja, corre falar pra mim. Corre que a gente vai dar um jeito. A gente vai tirar essa pessoa daqui”. Porque aqui não é lugar pra gente se preocupar com esse tipo de coisa. A escola tem que ser um lugar livre disso daqui. O mundo já é muito perigoso, a gente vai sofrer machismo fora daqui. Então, aqui não pode acontecer isso. Então, qualquer mínima coisa, se algum piá pediu pra ficar com você e você disse não, e ele insistiu, corre falar pra mim que a gente vai dar um jeito de tirar esse cara daqui. Não vai deixar esse tipo de opressor violento passar (Entrevistada Marielle Franco, 14 de outubro de 2016).

Como efeito dessa ética feminista da convivência, as estudantes conectaram-se umas às outras diante das precariedades em comum e no que elas/es chamaram de “família”. Uma estudante de uma ocupação em Curitiba/PR narra como as “aulas” e debates sobre feminismo possibilitaram-lhe descobrir que não era a única vítima de assédio cometido por um professor:

Foi a partir dessas conversas, acontecidas muitas vezes tarde da noite, quando a insônia se fazia presente, que descobri não ter sido só eu a sofrer assédio de tal professor, ou então, que não era só eu que me incomodava com certas piadas e, ufa, não era só eu que não achava certo ter de esconder o absorvente para ir ao banheiro (Narrativa de Ana Gabriela Lyko, publicada em Giorgia PRATES et al., 2017, p. 55).

A maioria das/os estudantes se conheceu e criou laços familiares de confiança e amizade durante as ocupações. Nessa ética feminista da convivência, tais vínculos permitiram o compartilhamento, entre elas/es, de experiências machistas e discriminatórias vividas durante o cotidiano da tradicional escola.

Mais do que reafirmar nossos discursos entre as já autodeclaradas feministas, houve a oportunidade de empoderar outras meninas, mostrando-as que elas têm voz e não precisam se submeter a certas situações tanto no meio escolar quanto fora dele. E o melhor de tudo isso, além da oportunidade de crescer dentro da minha militância pelos direitos das mulheres, foram as amizades construídas. Hoje, além de sermos amigas, formamos uma rede de apoio que visa proteger as meninas de situações de opressão dentro do meio escolar, e isso dificilmente teria acontecido sem o espaço para questões sociais que a ocupação nos abriu (Narrativa de Ana Gabriela Lyko, publicada em PRATES et al., 2017, p. 55).

Portanto, descontinuidades, rupturas, ambiguidades e descobrimentos em relação às práticas feministas, de diversidade sexual e de gênero foram, embora não inaugurais desse movimento, constituintes das ocupações. Do mesmo modo a similaridade de certos incômodos e desejos que as/os estimularam a (re)construírem novos territórios subjetivos, de gênero, sexuais, sociais...

Girls to the front

Como observamos nas narrativas dessa pesquisa, durante as ocupações, o feminismo foi, ao mesmo tempo e para a maioria das/os estudantes, o ponto de início e o caminho desses deslocamentos, dos questionamentos e das transformações, especialmente para a criação de subjetividades, modos de existência e de vidas vivíveis.8

A ocupação e o fechamento da escola, a quebra da rotina tradicional escolar (horários, planejamentos, planos de aula, currículo, uso de uniforme), a permanência na escola durante 24h, a entrada e participação da comunidade externa, os movimentos sociais e outras alianças, a autogestão do espaço e das atividades, as/os estudantes dormindo juntas/os nas salas de aula, o rompimento da divisão de gênero de áreas como banheiros, dormitórios e demais espaços social e historicamente marcados pelos “papéis de gênero” constituem-se em evidências desse processo (MORESCO, 2020).

De acordo com Louro (2014, p. 93), “a escola é atravessada pelos gêneros” como qualquer instituição. Os discursos e as práticas não apenas “fabricam” sujeitos, mas também são constituídas, produzidas e engendradas por representações de gênero. Por isso, a necessidade de uma escola com práticas feministas. O agir político das estudantes corresponde às formulações pedagógicas propostas sob o olhar de feministas, segundo o que Louro (2014) denomina de Pedagogia Feminista.

As estudantes reconheceram as desigualdades vividas na escola e procuraram, a partir disso, transformar o paradigma educacional tradicional, subvertendo a disparidade entre meninas/mulheres e meninos/homens, bem como a subordinação delas. Para tanto, propuseram estratégias, procedimentos e ações que romperam com hierarquias, com a divisão de gênero das atividades, produzindo efeitos como o diálogo, o direito de aparecerem e (novos) modos subjetivos.

Louro (2000) problematiza que não podemos pensar as mulheres na sala de aula, ou na escola, apenas como submissas ou subjugadas, pois isso empobreceria sua história e apagaria aquelas que construíram resistências e subverteram comportamentos. Contudo, também não se pode apoiar-se somente nas histórias das revolucionárias, correndo o risco de reduzir e idealizar demais tais fatos, especialmente nas instituições ainda normativas e constituídas por regimes biopolíticos, como é o caso da escola.

Portanto, ao pensar as ambiguidades, é possível provocar reflexões que não homogeneízam as meninas e mulheres, pois os diferentes discursos e práticas produziram/produzem efeitos discursivos sobre as estudantes ideais, desviantes, ajustadas, inadaptadas, subversivas, corajosas, ativistas, feministas, dentre outras denominações.

Assim, acrescento à “Primavera Secundarista” a expressão “Feminista” por constatar e visibilizar a existência do feminismo permeando os espaços das manifestações (escola, rua, mídia), os corpos ocupantes e destacando o protagonismo de estudantes meninas e LGBTI+ no fronte ou organização do movimento de ocupação. Além disso, a observação do fenômeno demonstra que, a partir da relação estabelecida com o feminismo, as/os estudantes subverteram as normas regulatórias e encontraram vias pelas quais realizaram ações políticas criadoras de novas configurações do espaço-tempo e das subjetividades.

Referências

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1Sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Travestis, Intersexuais e o sinal de + aponta para denominações e identificações outras, tais como para relações não monogâmicas ou identidades não binárias, entre outras possibilidades que não nomino; afinal, “há formas de sexualidade para as quais não existe um vocabulário adequado” justamente porque as normas de gênero não permitem que elas se tornem “legíveis” ou pensadas fora da conformidade de gênero (Judith BUTLER, 2018, p. 45; 2016, p. 35).

2A expressão “secundarista” está relacionada às/aos estudantes que cursavam o antigo Ensino Secundário, que vigorou no Brasil com esse nome do período do Império até o início da República, e equivale ao Ensino Médio. As/Os estudantes secundaristas, no Brasil, ainda utilizam essa nomenclatura em função da construção e do valor histórico e simbólico do movimento estudantil secundarista que existe desde 1948 (UBES).

3Pesquisa realizada pessoalmente nas ocupações escolares, entre outubro e novembro de 2016, resultando em uma tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (ver MORESCO, 2020).

4O termo “heterossexualidade compulsória” foi utilizado pela poeta lésbica e feminista Adrienne Rich para definir o arranjamento dominante pelo qual as mulheres e os homens veem-se requisitados e/ou forçados a serem heterossexuais e, por pressuposto, também viver a cisgeneridade compulsória, por isso acrescentei o prefixo -cis. Butler (2016) elabora o conceito declarando que uma cultura heterossexual produz um efeito regulador cuja normatividade cis-heterossexual (ou cis-heteronormatividade) será o modelo de inteligibilidade social.

5O Canal das Bee é um canal audiovisual para a web, hospedado no YouTube, com vídeos que tratam de preconceitos, como transfobia, bifobia, lesbofobia, homofobia, racismo e machismo. Foi criado em 2012 pela comunicadora lésbica Jessica Tauane e conta com mais de 370 mil inscrições.

6Conforme Grossi (1998), sabendo que os “papéis de gênero” são mutáveis e podem mudar de uma cultura para outra, e até mesmo no interior da mesma cultura, neste trabalho, localizo os papéis (representações) masculinos e femininos, esperados por homens e mulheres, na sociedade moderna e na sociedade política ocidental.

7O termo é uma abreviação da expressão em inglês Trans-Exclusionary Radical Feminist, podendo ser traduzida para o português como “Feminista Radical Trans-Excludente”, ou seja, um conceito conferido às feministas que se identificam como radicais e que apoiam suas discussões sobre a transexualidade na defesa de uma categoria de “mulher” estável, fixa e biológica.

8Do inglês, “Girls to the front” significa em português “Garotas à frente”. Trata-se de uma frase de Kathleen Hanna, vocalista da banda punk-riot grrrl estadunidense Bikini Kill, pronunciada durante os shows, quando Kathleen pedia para os homens irem para trás e as mulheres avançarem, assim as fãs ficavam em frente ao palco.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MORESCO, Marcielly Cristina. “Primavera secundarista: uma convivência feminista”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e75122, 2022.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 26 de Junho de 2020; Revisado: 11 de Setembro de 2021; Aceito: 14 de Outubro de 2021

marciellymoresco@gmail.com

Marcielly Cristina Moresco (marciellymoresco@gmail.com) é graduada em Comunicação Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e em Pedagogia pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pesquisadora do Laboratório de Investigação em Gênero, Corpo e Subjetividade na Educação na Universidade Federal do Paraná (LABIN/UFPR).

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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