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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.1 Florianópolis jan./abr 2022  Epub 20-Jan-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n185047 

Seção Temática María Lugones

Lugones e o escurecer do ensino de história

Lugones and the Darkening of History Teaching

Lugones y el oscurecimiento de la enseñanza de historia

Janaina Guimarães da Fonseca e Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-1518-5784

1Universidade de Pernambuco, Nazaré da Mata, PE, Brasil. 55800-000 - matanortehistoria.coord@upe.br


Resumo:

Neste artigo, apresento discussões teóricas sobre o ensino de história realizado por e sobre mulheres negras para as quais o conceito de colonialidade de gênero, elaborado por María Lugones, é imprescindível. E em seguida, analiso algumas atividades do ensino de história numa perspectiva decolonial, com o uso de audiovisuais protagonizados por mulheres negras, aplicadas na Escola Dom Mota, na Cidade de Nazaré da Mata, em Pernambuco.

Palavras-chave: mulheres negras; decolonialidade; resistências; María Lugones

Abstract:

In this article I present theoretical discussions about history teaching performed by and about black women, for which the concept of gender coloniality, elaborated by María Lugones is essential. And then I analyze some activities of history teaching in a decolonial perspective, with the use of audiovisuals protagonized by black women, applied in the Dom Mota School, in the city of Nazaré da Mata, Pernambuco.

Keywords: Black Women; Decolonialitie; Resistances; María Lugones

Resumen:

En este artículo, presento las discusiones teóricas sobre la enseñanza de la historia realizada por y sobre las mujeres negras, para las cuales el concepto de colonialidad de género elaborado por María Lugones, es esencial. Luego, analizo algunas actividades de enseñanza de la historia en una perspectiva decolonial, con el uso de audiovisuales interpretados por mujeres negras, aplicados en la Escuela Dom Mota, en la ciudad de Nazaré da Mata, Pernambuco.

Palabras clave: mujeres negras; decolonialidad; resistencias; María Lugones

Introduzindo o debate

A menina Joana queria ser paquita. Seus pais, diferentemente da maioria dos pais de meninas negras do país, na década de 1980, tinham dinheiro para financiar seus sonhos infantis. As botas brancas, símbolo da trupe loira que acompanhava a apresentadora Xuxa Meneghel nas manhãs da televisão brasileira, marcam o vestuário de Joana. Contudo, todo o investimento e produção não se sobrepõem ao fato de que ela é uma menina negra. E meninas negras não eram aceitas como paquitas. A diretora do curta-metragem Cores e Botas (2010), Juliana Vicente, uma mulher negra brasileira, traz a personagem Joana para narrar parte de sua história pessoal. Esta também foi a minha, outra entre tantas meninas negras que sonharam em ser paquitas.

O filme foi apresentado como atividade do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) de História, da Universidade de Pernambuco, no Colégio Municipal Dom Mota, em Nazaré da Mata. Três gerações foram tocadas por Joana: a de discentes da escola, a de bolsistas do PIBID e a da professora universitária negra que narra, neste artigo, esta e outras experiências sobre o ensino de história em uma perspectiva decolonial, com uso de materiais audiovisuais protagonizados por mulheres negras.

Esse trabalho foi impulsionado pela ausência continuamente sentida como aluna negra, nas décadas de 80 e 90 do século passado e, agora, como professora, de narrativas sobre mulheres negras no ensino de história. Minha experiência em salas de aula remonta a esses silenciamentos e no quanto foram (e são) prejudiciais à construção das subjetividades de tantas crianças e jovens negras; eles me estimularam a buscar aquelas e aqueles que construíram teorias para compreender as relações entre colonização, exploração capitalista e a manutenção de desigualdades estruturais, mesmo findo o período colonial e o sistema escravocrata.

Trazer o lugar da experiência é reivindicar saberes historicamente construídos em vivências coletivas e individuais. A norte-americana bell hooks (2017) desenvolve essa noção de experiência na obra Ensinando a transgredir, tanto para abordar, em seu quinto capítulo, os saberes desenvolvidos no cotidiano das mulheres negras, não teorizados nas universidades, quanto no capítulo seguinte ao abordar as vozes silenciadas de estudantes nos espaços escolares. Nessa busca teórica opto/invoco, também, o conceito de colonialidade do saber, a partir do qual é possível caracterizar o controle sobre a produção dos saberes e das subjetividades. Tal conceito está intimamente ligado ao lado oculto da modernidade e a aniquilação e/ou apropriação de múltiplos saberes, incluindo os saberes de povos originários e afro-diaspóricos, como afirma o argentino Walter Mignolo (2017).

Fundamental à minha análise e permeando toda escrita deste artigo, está o conceito de colonialidade de gênero, elaborado pela socióloga feminista argentina María Lugones (2008), tensionando os limites da noção de colonialidade do poder proposta pelo peruano Aníbal Quijano (2005). Para Lugones (2008), o autor, ao mesmo tempo em que pontua a inseparável relação entre racialização e exploração capitalista na modernidade, não problematiza suficientemente a racialização do gênero no processo de desumanização dos sujeitos. Colonialidade de gênero seria a inseparabilidade das opressões de gênero e raça, construídas pela modernidade e perpetuadas pela colonialidade.

Compreender o ensino de história na colonialidade, ou seja, dentro desse “conjunto de relações intersubjetivas de dominação sob hegemonia eurocentrada” (QUIJANO, 2005, p. 74), é imprescindível para que possamos analisar as ausências acerca das mulheres negras nas narrativas predominantes, partindo de outras epistemologias. Entendendo que “a epistemologia atenta para a maneira com que as relações de poder estabelecem quem é considerado confiável e por que o é”, segundo Patricia Hill Collins (2018, p. 140), teceremos, ademais, uma crítica à epistemologia cartesiana eurocentrada - que ainda se sobrepõe na produção e no ensino de história - apontando, por fim, para experiências pedagógicas decoloniais. Trata-se de entender a descolonização neste espaço, como ferramenta de emancipação das subjetividades e para a produção de saberes geolocalizados em relação aos postulados eurocêntricos hegemônicos (MIGNOLO, 2017).

Algumas perguntas foram “suleadoras”, nos termos freireanos (Paulo FREIRE, 1992, p.15), para a elaboração das experiências aqui narradas. A quem interessa uma narrativa histórica que não retrata as mulheres negras, ou seja, grande parte de sua população? Como experiências históricas de mulheres negras são recepcionadas por alunas, alunos e alunes da educação fundamental? Qual o impacto dessas narrativas na expressão das subjetividades das alunas/os/es negras e não brancas? E, sobretudo, como podemos construir práticas pedagógicas partindo de perspectivas decoloniais?

O município de Nazaré da Mata (Pernambuco), que é onde estou e sobre o qual falarei a seguir, já teve suas escolas como alvo de um importante trabalho sobre educação e os impactos de não se trabalhar adequadamente as leis 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e 11.645/2008 (BRASIL, 2008), indicando a necessidade de adequação à Proposta Pedagógica Curricular da Educação Infantil (PPCEI) (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO, 2015). A pesquisa desenvolvida por Diane Silva e Adlene Arantes nos traz alguns apontamentos:

Percebemos que o ensino da História e Cultura afro-brasileira e africana nas instituições de educação infantil do município ainda se restringe a datas comemorativas e pudemos detectar na entrevista que ainda existem práticas racistas nas escolas. Quantas crianças precisam passar por esse processo doloroso chamado preconceito racial para que os profissionais envolvidos na educação comecem a trabalhar a temática de maneira eficaz? Seria mais pertinente a prática diária, uma construção que evitaria muitas situações que marcam as crianças negativamente por toda a sua vida, pois quando nos conhecemos enquanto sujeitos sociais e somos valorizados fortalecemos a nossa autoestima. (SILVA, ARANTES, 2020, p. 164).

As fragilidades observadas pelas pesquisadoras na educação infantil corroboram diversas narrativas sobre ausências de discussões sobre a população negra em sala de aula, sob o amparo de leis federais. Durante os anos de 2018 e 2019, na coordenação de área do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) do curso de licenciatura em História da Universidade de Pernambuco (UPE) - campus Mata Norte, tive a oportunidade de conviver não só com meus/minhas 24 bolsistas-colegas, mas também de conhecer melhor o cotidiano de Nazaré da Mata e, em especial, do Colégio Municipal Dom Mota.

A própria localização deste espaço nos proporcionou (como grupo) levantar questões sobre a invisibilidade das mulheres dessa região; nordestinas, mas nem do litoral, nem do sertão, elas ocupam a Zona da Mata Norte, composta por 19 municípios historicamente ligados à produção canavieira, ainda pouco narrada ou conhecida pela historiografia. Hoje, economicamente, essa área comporta grandes indústrias farmoquímicas, automobilísticas e de plástico, tendo destaque dentro dela, o município de Goiana. Nazaré da Mata distingue-se pela indústria alimentícia, a oferta de escolas e hospitais, assim como pela produção cultural - é a terra do Maracatu de Baque Solto e de outras expressões culturais como o cavalo-marinho, os reisados, caboclinhos, rabequeiros, mamulengos, pastoris, coco, forró, ciranda. A cidade possui 30.647 habitantes distribuídos em 141,3 km, como informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021).

O período de desenvolvimento do projeto nos pareceu de desafios gigantes. Eleito e com significativa aprovação, Jair Bolsonaro seguia com seu discurso de “bandido bom é bandido morto” - uma posição pública desde 2016. Paralelamente, graças à sua ascensão e posse, tivemos a nomeação da Pastora Damares Alves ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que bradava sobre meninas usarem a cor rosa e os meninos azul, enquanto agressões a pessoas LGBTQIA+ e os casos de feminicídio no país aumentavam vertiginosamente. Os números da violência policial contra a população negra também cresciam - crianças, adolescentes, pais e mães de família assassinados apenas por serem negros, sob a justificativa de terem sido confundidos com suspeitos.

Essa realidade se somou ao pânico e à vigilância dos espaços escolares no país observados com o Projeto Escola Sem Partido (já engavetado), e as tentativas crescentes de silenciamento das e dos docentes. Tais processos foram responsáveis por me impulsionar a construir um projeto PIBID que abarcasse três temáticas centrais: Direitos Humanos, a construção sexista do livro didático de História e a ausência das mulheres negras no ensino de História. Digo agora nós, pois esse projeto foi construído também com as duas mãos de outra docente coordenadora do PIBID em História, dessa vez no campus Garanhuns, a Profa. Dra. Rosa Tenório. Ainda que nossos projetos tenham sido desenvolvidos de forma independente, a escrita para submissão ao edital se deu nessa fértil parceria. Cada um desses temas teve seis meses, ou seja, um semestre para ser trabalhado pelas ‘pibidianas’ e ‘pibidianos’ nas escolas.

Minha rotina como coordenadora do PIBID era composta de reuniões semanais com discussão de textos sobre as temáticas propostas e elaboração conjunta de atividades na universidade, incentivando o diálogo, buscando conhecimentos prévios e cosmovisões. As intervenções seguiam com os repasses das situações nas escolas. Eu também ia às escolas e acompanhava, por vezes, junto à professora supervisora ou ao professor supervisor, as atividades que tínhamos construído coletivamente. Assim, podia observar, ter minhas impressões para além dos relatórios apresentados após cada atividade realizada. Neste artigo, foco na descrição e observação de algumas das atividades que versaram sobre a ausência das mulheres negras no ensino de História, tendo o conceito de colonialidade de gênero e as críticas elaboradas por María Lugones ao eurocentrismo, em sua obra, como base para análise e reflexão.

A ausência das mulheres negras na história ensinada

O ensino de História enquanto palco de disputas segue sendo regido por uma epistemologia eurocêntrica que constrói narrativas de submissão e apagamentos acerca da história dos povos negros e originários do Brasil, ou melhor, populações não-brancas. Vários são os estudos que versam sobre a descolonização do saber, necessária à construção de novos currículos a partir de matrizes distintas, que deem visibilidade e rompam com os processos de inferiorização dessas populações (Nilma GOMES, 2019; Kabengele MUNANGA, 2013; Catherine WALSH, 2009).

O processo de produção de saberes históricos tem sido longamente questionado, com mais força depois da reorganização do MNU (Movimento Negro Unificado), em 1978, e as diversas conquistas, como a Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), que torna obrigatório o estudo da história africana e afro-brasileira e a Lei 11.645/08 (BRASIL, 2008), que obriga a inclusão da história de negros e indígenas nos currículos escolares. Contudo, esse processo encontra diversos impedimentos e exige uma reformulação nas leis e concepções da educação brasileira, na produção de materiais didáticos e nas práticas docentes. Concomitante a essas demandas, o que vemos é uma contínua diminuição da carga horária da disciplina História na educação básica e uma generalização do enfrentamento às desigualdades sem, de fato, nomeá-las ou traçar estratégias para combatê-las, como é possível verificar na leitura da BNCC - Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017).

Historicamente, os saberes negros foram subalternizados, como os próprios sujeitos e sujeitas negros e negras no Brasil. Segundo Nelson Maldonado-Torres o processo de racialização durante a colonização, os constituiu bárbaros, incompetentes e desprovidos de inteligência, em contraposição aos brancos, inteligentes, competentes e civilizados. Perseguidos em suas práticas religiosas e culturais por quase todo século XX (Nelson MALDONADO-TORRES, 2016). Ainda no século XXI, observamos os efeitos dessa colonialidade no processo contínuo de inferiorização desses sujeitos. Para compreender tais processos de exclusão, se faz necessário o entendimento da produção das narrativas históricas e do ensino de História.

A história é uma narrativa composta por procedimentos particulares, expressos para além do texto; são estes: o lugar em que é construída e a validade conferida por seus pares, seus recursos metodológicos e seus padrões de escrita (Michel de CERTEAU, 1982). A essa análise somamos ainda a produção dos esquecimentos. “Assim a História como um ofício de tecer narrativas, investe fortemente sobre o esquecimento”, nos diz o pedagogo das encruzilhadas, Luiz Rufino (2017). Esses esquecimentos apontados por Rufino também foram problematizados por Nilma Lino Gomes em seu texto O movimento negro educador (2017) ao trazer para o debate uma pedagogia das ausências e das emergências, inspirada em Boaventura de Sousa Santos (2010), como necessárias à abertura de novas possibilidades epistemológicas e práticas educacionais.

Seguindo nessas reflexões, recorro às/os intelectuais do Sul global pertencentes ao grupo Modernidade/Colonialidade e às/os intelectuais e acadêmicas/os e do Movimento Negro, cuja luta é responsável por uma série de conquistas no âmbito educacional. A junção das duas perspectivas é possível, pois opto por romper com a lógica da monocultura (aqui entendida como forma única de pensamento), a partir da qual só caberia um caminho em direção às práticas decoloniais. Nesse sentido, incorporo as palavras de Luiz Rufino e assento em sua encruzilhada de saberes, sintetizada abaixo:

A noção de encruzilhadas emerge como disponibilidade para novos rumos, poética, campos de possibilidades, práticas de invenção e afirmação da vida, perspectiva transgressiva à escassez, ao desencantamento e à monologização do mundo. A encruza emerge como a potência que nos possibilita estripulias. Nesse sentido miremos a descolonização. (RUFINO, 2017, p.13).

Primeiro, cabe pontuar, senão a ausência dos saberes negros na história ensinada, a pouca presença deles. A implementação das já citadas leis 10.639/2003 (BRASIL, 2003) e 11.645/2008 (BRASIL, 2008), que estabelecem a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira e indígena na educação básica - conquista de extrema importância do Movimento Negro e das organizações e grupos indígenas - foram fundamentais. Contudo, a não obrigatoriedade das mesmas em nenhuma disciplina específica, ou ainda a sobrecarga de conteúdos que recaem sobre a disciplina História, dificultam uma abordagem ampla das temáticas, circunscrevendo-as a datas comemorativas e a expressões festivas, resumindo e esvaziando culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas em toda sua diversidade. (Mauro COELHO; Wilma COELHO, 2021).

Outra questão importante a ser pontuada é a formação docente insuficiente para dar conta da temática, demandando formações continuadas (Benjamin de PAULA; Selva GUIMARÃES, 2014). Poderíamos pensar na importância das formações continuadas em todas as áreas, pois docentes devem se manter estudando num processo contínuo de reciclagem. Contudo, estamos falando de uma temática que tem, em média, de 60 a 90 horas de formação dentro dos cursos de licenciatura, divididas majoritariamente entre duas disciplinas: História da África e Educação para as Relações Étnico-raciais (conforme malhas curriculares dos cursos de História da Universidade de Pernambuco, da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Federal Rural de Pernambuco).

Para pensar o ensino de história de e por mulheres negras, recorremos à reflexão de Luciana Ballestrin (2020), para quem a busca pela decolonialidade diante do ‘sistema-mundo moderno/colonial de gênero’ é atuar na compreensão da importância desses saberes múltiplos e se colocar em ação, tomando o racismo como organizador estruturante das hierarquias sociais. Para esta autora, María Lugones é uma das primeiras a fazer a interlocução entre o grupo Modernidade/Colonialidade (MC) e o feminismo latino-americano, na intersecção inseparável entre raça e gênero.

El entender el lugar del género en las sociedades precolombinas desde el punto de vista más complejo sugerido en este trabajo permite un giro paradigmático en el entender la naturaleza y el alcance de los cambios en la estructura social que fueron impuestos por los procesos constitutivos del capitalismo eurocentrado colonial/moderno. (LUGONES, 2008, p. 92).

Um elemento fundamental à descolonização do saber no ensino de História, abordado pela pedagoga Catherine Walsh (2013), diretamente influenciada pelo grupo MC, é a observação do uso superficial da ideia de interculturalidade por uma educação visivelmente neoliberal. Segundo a autora, não se trata de apresentar algumas das narrativas coniventes, apagando das mesmas a diferença colonial, “consequência da passada e presente subordinação de povos, linguagens e conhecimentos” (WALSH, 2013, p. 15). Trata-se, ao contrário, de mostrar essas tensões, mesmo entre os grupos subalternizados, visto que as relações de poder não são vividas de forma igual por todos, nem em todos os locais onde a colonização moderna se fez presente.

A crítica de Catherine Walsh recai, também, sobre a forma folclórica como essas culturas e povos tradicionais são apresentados nos espaços educacionais, nunca como produtores de saberes válidos. Teríamos, então, primeiro que desaprender a ler o mundo apenas por uma lente, e reconstruir as narrativas históricas deixando visíveis a diferença colonial, a violência, a espoliação e o massacre gerado pela colonialidade do poder, que segue tendo, na colonialidade do saber, seu grande sustentáculo de manutenção. Podemos, então, pontuar que tanto a intelectualidade negra e o Movimento Negro, quanto as/os intelectuais ligados ou influenciados pelo grupo Modernidade/Colonialidade traçam respostas e resistências às diversas violências geradas pelo Estado moderno colonial de gênero (LUGONES, 2008). Em seguida, discorrerei sobre como as professoras negras emergem como produtoras e demandantes de um ensino de história diferenciado, descolonizado.

Professoras negras no combate aos silenciamentos históricos

Professoras e professores de História, durante grande parte do século XX, reproduziram nas escolas do país narrativas eurocêntricas, baseadas em argumentos que privilegiavam os protagonistas brancos, seus saberes e culturas. Apenas sujeitos brancos tinham garantidas suas diversidades, assim como sua ciência e religião eram apresentadas como conhecimentos válidos em sala de aula. Para compreendermos o que fundamentava essas narrativas, recorremos ao conceito de colonialidade do ser (QUIJANO, 2005), aliado ao de colonialidade do saber (MIGNOLO, 2017). Esses conceitos, que caracterizam a inferiorização dos seres de suas subjetividades e saberes, nos auxiliam a compreender como se reproduzem os conhecimentos tidos como aceitáveis e as narrativas centradas na figura do colonizador, influenciando diretamente na construção das autoestimas, tanto de alunas, alunos e alunes como daquelas/es que se encontram no exercício docente.

Pensar em docentes negras, especificamente, é pensar em sujeitos que venceram "a branquitude do saber, a profecia auto-realizadora e a autoridade da fala [brancas]", nos adverte Sueli Carneiro (2005). São recorrentes violências às quais mulheres negras são submetidas em espaços educacionais, indo desde a maior vulnerabilidade a assédios, até as contínuas sugestões para que recorram a trabalhos intelectualmente menos instigantes, pois são tidas como menos capazes. É sobre essas mulheres negras, que após anos de formação se dedicam à docência, que recai meu interesse. Como, depois de tanto resistir para existir como docentes, seguimos invisibilizadas pelas narrativas históricas? Quais práticas e movimentos são possíveis e desejáveis para romper o silêncio?

As professoras negras universitárias, que nos tempos da professora e pesquisadora Lélia Gonzalez (1983) eram raras, cresceram na ocupação do ensino superior nos últimos anos. As políticas afirmativas (especificamente a Lei 12.990/14 (BRASIL, 2014), de cotas raciais em concursos públicos), aliadas aos altos índices de conclusão escolar, são apontadas como responsáveis pela entrada em massa dessas professoras no mundo da docência e da pesquisa. São elas que, dentro da universidade, questionam esses saberes hegemônicos que por meio de suas alunas, outras mulheres negras e sujeitos vários, chegam às salas de aula da educação básica. Elas incluem cores nas bibliografias cheias de autores brancos europeus, que pouco conhecem nossa realidade, e nos currículos repletos de temas tidos como ‘gerais’, mas que na verdade encobrem os diversos epistemicídios aos quais essas mesmas mulheres negras ainda resistem diariamente (CARNEIRO, 2005).

O movimento negro teve, desde suas primeiras ações, a educação como reivindicação basilar. Nilma Lino Gomes (2007; 2017; 2018) delineia a importância histórica desse movimento para as conquistas educacionais brasileiras e pontua, também, o quanto suas práticas sempre foram descolonizadoras dos currículos. Recorrendo aos estudiosos do currículo, como Miguel Arroyos (2011) e Tomás Tadeu Silva (1999), Nilma Lino Gomes (2018) afirma, ainda, que como o currículo é construído por meio de relações de poder, logo, certos educadores decidem o que deve ou não constar, quais grupos representam a si mesmos e quais não devem ser parte do conteúdo das narrativas. A autora faz a crítica e, o mais importante, mostra que o currículo é um documento vivo, assim, da mesma forma que é colonizado, pode ser descolonizado pelas práticas e lutas nos diversos níveis da educação.

Conhecer as professoras da Mata Norte e suas histórias, é não só aprender a existir elaborando resistências, mas como construir narrativas outras, pois “a trajetória individual e coletiva dos sujeitos subalternos (especialmente das mulheres negras) é vista como um privilégio epistemológico de onde se elabora também um pensamento de fronteira a partir de uma perspectiva subalterna” - argumentam Joaze Bernardino-Costa e Ramón Grosfoguel (2018, p. 9). Muitas são as historiadoras e professoras negras que produzem saberes sobre mulheres negras e/ou ensino de História, realizando pesquisas de grande qualidade a partir de perspectivas epistemológicas diversas. Aqui, destaco algumas como Valéria Gomes Costa (2019), Emília Vasconcelos dos Santos (LEANDRO; SANTOS; 2019), Maria Cláudia Cardoso Ferreira (2014) e Ana Maria Veiga (2020).

As visões hegemônicas e racistas que atravessam a trajetória dessas docentes são reproduzidas e reforçadas nas escolas, graças a um currículo que reafirma os saberes gerados pelos colonizadores. Concordo com Ana Veiga (2020, p. 27) que “a ocupação de espaços públicos já é um começo, mas está distante de dar conta da complexidade que contextualiza a emergência de protagonistas ‘outras’, que ainda tateiam e lutam por seu lugar na história”. As professoras negras, seus corpos e saberes habitam as escolas e universidades, cabendo agora produzir cada vez mais narrativas propositivas que atravessem o ensino de História.

Negras na tela, com pincel e nas cadeiras

As atividades do PIBID em História da UPE - Mata Norte, na Escola Dom Mota, foram iniciadas em 16 agosto de 2018. A partir dessa data, oito discentes - metade alunas e outra alunos - do segundo ao quarto período do curso de licenciatura em História, sob minha coordenação e a supervisão de uma professora da escola, se reuniram, quase a cada semana, por um ano e seis meses -tempo de duração do projeto. O grupo completo era composto por vinte e quatro estudantes, divididos em três escolas, porém, neste artigo, focaremos no grupo e atividades relativas à escola Dom Mota, como informado anteriormente.

A professora supervisora do nono ano do ensino fundamental se autoidentifica como parda: “parda é o que tem no meu registro, né?”1. Ela recepcionou o grupo com entusiasmo, o mesmo que manteve durante os dezoito meses de projeto. O envolvimento da professora nas atividades e o retorno sobre o que as/os/es estudantes da escola achavam de cada atividade foram fundamentais para cada passo construído em seguida.

Terminado o projeto, há mais de um ano, ainda recebo mensagens e relatos da professora sobre as atividades realizadas na escola, o que demonstra o comprometimento da docente supervisora com a temática e o seu interesse, assim como dos discentes. Por que ela dizia ser um projeto tão importante? “Janaina, olhe, a maioria dos meus alunos são negros”. Nesse contexto, e também em outros, como não escurecer nossas propostas?

Dentro da Universidade de Pernambuco, foi na sala do Laboratório Interdisciplinar de Formação de Educadores (LIFE) de onde conduzi as reuniões semanais. Realizamos leituras específicas sobre racismo, direitos humanos, mulheres negras, consciência histórica, críticas ao episteme eurocêntrico e à produção do livro didático - com o apoio de muitos dos textos utilizados na feitura deste artigo, entre eles, e com destaque, os trabalhos de María Lugones.

Discutimos, primeiramente, a construção dos direitos humanos a partir do trabalho de Costas Douzinas (2009), indagando: Quem são os sujeitos historicamente considerados humanos? Quem construiu a declaração universal dos direitos humanos? E para quem?

A análise exploratória dos relatórios, vídeos e diário de campo, confluem para as acepções de Lugones (2014) acerca da dicotomia entre o humano e o não-humano, uma questão central para o sistema colonial moderno. A autora discorre sobre os lugares diferenciados da mulher branca-reprodutora, das fêmeas não-humanas, indígenas e negras, de almas impuras, sexualmente animalescas e insensíveis à dor, e dos machos não-humanos sexualmente violentos e ao mesmo tempo submissos, mediante o medo do estupro iminente. Esses machos e fêmeas não eram considerados humanos, mas corpos assujeitados. A missão civilizatória colonial era a máscara eufemística do acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável, violação sexual, controle da reprodução e terror sistemático (por exemplo, alimentando cachorros com pessoas vivas e fazendo algibeiras e chapéus das vaginas de mulheres indígenas brutalmente assassinadas). (LUGONES, 2014)

Dada por finalizada a colonização, as fêmeas não-humanas, bem como os machos não-humanos mudariam de natureza para se tornarem agora mulheres e homens, negras/os e indígenas sobre os quais pesa a colonialidade de gênero. É partindo desse conceito que descrevo e analiso as potencialidades, para o ensino de história, das narrativas fílmicas sobre mulheres negras na sala de aula. Antes de iniciar a descrição das experiências é necessário lembrar que uma produção cinematográfica se apresenta como um registro humano, devendo ser interpretado e decodificado posto que carrega em si representações do real e diálogos com espectadores/as/ies e a cultura onde se insere. “Isso significa entender que a sua leitura não se dá de forma imediata, é necessário fazer perguntas à obra fílmica e perceber que a sua constituição está permeada por valores e crenças de um tempo histórico”. (Teresa TERUYA, Delto FELIPE, 2013, p.150)

A violência e espoliação, fundamentais ao estabelecimento do sistema colonial moderno, não apenas apagaram a história das mulheres negras, mas também a desumanizaram, criando narrativas animalescas, de incompetência, hipersexualização e estupidez. Quando essas imagens aparecem, subliminar ou explicitamente nas narrativas históricas, levam pessoas negras a se verem sempre como inferiores, ou perdedoras da história. A omissão da história das mulheres negras sobretudo, na maioria dos conteúdos ministrados em sala de aula deixa discentes sem referência de si, garantindo a continuidade da colonialidade (também) generificada (LUGONES, 2014).

A violência persistente, subjetiva e física, está refletida nos números da violência no Brasil, apresentados no Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2020), no qual o assassinato de mulheres negras teve um aumento de 12,4%, enquanto o de mulheres brancas diminuiu 9,6%, entre 2008 e 2018. Assim, é fundamental discutirmos como são abordadas, em sala de aula, as condições históricas da constituição dessas desigualdades para que estudantes construam novos olhares sobre racialização e seu papel na constituição da sociedade brasileira.

Importante que entendamos, também como pontua Lugones (2008), o papel do trabalho assalariado, prerrogativa do europeu branco, que nos legou uma gigante invisibilidade e desvalorização do trabalho das mulheres negras. Pior ainda pensarmos nas relações intersubjetivas de dominação, ao destituir os diversos sujeitos de suas cosmovisões, organizações sociais e práticas cotidianas. A destruição ou tentativa de apagamento dos conhecimentos sobre si e sobre os seus foi, e é continuamente reiterada.

No ensino de história que segue a Europa como padrão de conhecimento, como se ela fosse anterior a todos os outros e como se os sujeitos e grupos humanos seguissem uma evolução, onde colonizados seriam os ‘primitivos’, destituídos de saber, crenças e organização sociopolítica, se inflama um discurso salvacionista e repressor. Nesse momento, me pergunto: História para quem? Quais sujeitos têm suas subjetividades construídas ou apagadas (não-sujeitos) pelas narrativas aí expostas? Por mais que a Base Nacional Curricular Comum (BNCC, 2020) discorra sobre a necessidade de discentes conhecerem a diversidade e a pluralidade da cultura brasileira, além de indicar que devem saber se portar contra qualquer tipo de discriminação, a periodização comumente utilizada na educação escolar acaba concorrendo para que estudantes não desenvolvam relações críticas com o que vem sendo ministrado (Antonia FERNANDES, 2018).

Lugones (2014) realiza uma crítica às concepções eurocêntricas dicotômicas e excludentes, que pode ser aqui retomada, para que compreendamos que as bases da lógica científico-cartesiana se infiltram em nossos currículos e se impõem como forma única de pensar o mundo - ocidental-, assim como os conceitos construídos pelo norte global sobre a nossa história. Nesse sentido, desenvolver um olhar opositor é essencial, e o material audiovisual pode ser uma das plataformas para isso. Assim, a “intervenção pedagógica de desconstruir as verdades socialmente impostas por meio das narrativas fílmicas” se torna um “caminho metodológico de uma pedagogia contra-hegemônica.” (TERUYA; FELIPE, 2013, p. 159).

As pibidianas e pibidianos, juntamente à professora supervisora, realizaram a exibição do curta metragem já citado, que mexeu especialmente comigo enquanto mulher negra. Cores e botas (2010) narra a história de uma menina negra, alterego da diretora Juliana Vicente, cujo sonho era ser paquita - nome dado às integrantes de um grupo de meninas brancas e loiras que acompanhavam a apresentadora Xuxa em seus programas televisivos. Juliana fundou em 2009 a produtora Preta Portê Filmes para produzir cinema com forte conteúdo social, engajado. Reconhecida nacionalmente, Juliana é também produtora de mais de 20 filmes, com cerca de 100 prêmios no mundo todo.

O enredo gira em torno de um concurso para ser paquita, feito na escola de classe média alta frequentada por Joana, única menina negra da instituição. Os pais de Joana a incentivam o tempo todo a participar, comprando todos os aparatos de paquita, incluindo diversas botas. Os espelhos, em várias passagens do filme, refletem a negritude dos personagens, que parece não ser reconhecida apenas por eles mesmos, ao não problematizarem, em nenhum momento, essa questão. Joana é a única não aprovada no teste. Na cena seguinte, em um restaurante, seus pais discutem se devem intervir na escola, mas não porque houve racismo, mas porque não tiveram seus anseios respondidos. O irmão de Joana é o único que problematiza a questão, mesmo sem falar a palavra racismo, dizendo apenas que “para nós as coisas não são assim”. Ao fim do curta, Joana se encanta por uma máquina de fotografia, simbolizando o despertar da diretora para a captura das imagens, e se desfaz das botas de paquita, pois ela compreende que não passaria num teste futuro, pois como ela diz “não sou loira”.

Compreendi cada momento da frustração do debate proposto por Juliana, bem como a reação negativa das discentes negras dessa geração, que já tem novas oportunidades de construir suas próprias referências, para além de paquitas; elas se indignaram por Joana não ser aceita e, pior, por não ter o racismo reconhecido por seus pais. As frases como “querer é poder” e “tudo depende de trabalho e muita sorte” foram destacadas pelas discentes como ‘falácias’ que não se aplicam à realidade de meninas negras. Ao final da reflexão, algumas alunas sugeriram colocar a menina Joana como figura principal no palco para uma performance. O vídeo impactou muito, levando-as a refletir sobre o culto e a valorização dos traços brancos, olhos, peles e cabelos claros, presentes na figura da Paquita e ainda tão valorizados em nossa sociedade.

Seguindo, com o fôlego recobrado, realizamos a oficina seguinte algumas semanas depois, exibindo o documentário Babás (2010), dirigido por Consuelo Lins. Nele, fotos de famílias do século XIX são utilizadas para falar do cuidado das amas de leite, cuidado e afeto esses que não excluem a violência com a qual eram tratadas e as dores sofridas por não poderem cuidar de seus próprios filhos. Nos séculos XX e XXI, as babás seguem ocupando papel fundamental na vida das famílias de classes média e alta do país. A narradora se coloca como mulher criada por essas mulheres e que também não prescinde das mesmas para o cuidado de seu filho.

Denise, a sua babá, dormia em sua casa de segunda a sábado, e a própria diretora diz não poder imaginar um trabalho que a obrigasse a ficar seis dias longe de seu filho. Consuelo retoma o tempo da infância de seu filho, imagens e filmagens para narrar o cotidiano da relação dele com Denise e comparar com relações escravagistas. Desde as funções realizadas até os ensinamentos passados por Denise, que são distintos dos da mãe, tais relações de afeto, também deixavam Denise longe de sua filha por seis dias, filha que era criada pela avó, para que Denise pudesse trabalhar.

Novamente, o lugar da mulher negra na tela foi seguido de rostos em negação, balançados de cabeças e indignação. A narrativa, além de tratar de questões históricas relacionadas à violência colonial, inclui a sensível questão da maternidade da mulher negra. Recorremos mais uma vez a María Lugones (2014) para pensar os processos de violação, sujeição e controle de reprodução aos quais as mulheres negras estavam, e ainda estão, submetidas: cuidando do filho de outra mulher (branca) enquanto elas e seus próprios filhos são desumanizados.

Ao avançar na construção de uma crítica a uma possível unidade entre mulheres brancas(tidas como sujeitas universais) e mulheres negras, María Lugones (2008) pontua que as relações de gênero não são imunes ao processo de racialização, tal qual propôs Aníbal Quijano(2005) ao delinear a ‘colonialidade do poder’, ou seja, segundo a autora, as formas de controle das subjetividades, do trabalho e do sexo estão conectadas com a colonialidade, logo, intrinsecamente sujeitas ao processo de racialização. Não existe hoje, bem como não existiu durante a colonização, nenhuma sororidade ou parceria entre as ‘mulheres’ e as ‘fêmeas’ não-humanas, agora mulheres negras e indígenas.

A exploração exposta no documentário Babás ratifica essas relações e nos auxilia na abordagem das mesmas no ensino de História. Essas reflexões de Lugones não apenas dialogam com as autoras norte-americanas, como Patrícia Collins (2000; 2018), mas também brasileiras, como a já citada Sueli Carneiro.

A fortiori, essa necessidade premente de articular o racismo às questões mais amplas das mulheres encontra guarida histórica, pois a “variável” racial produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como as masculinidades subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres brancas). (CARNEIRO, 2003, p. 113).

Finalizando as oficinas de narrativas fílmicas no nono ano, se realizou a exibição da palestra de Chimamanda Ngozi Adichie (2019) ao TED-Talk, tratando sobre os perigos de uma história única. Os integrantes do PIBID enfatizaram a divisão da sala nesse momento, enquanto muitas alunas estavam atentas ao tema, animadas a cada tirada ou ‘fora' que Chimamanda dava em sua colega de quarto norte-americana, participativas e críticas nas discussões, perguntando sobre os ‘historicídios’ que se cometem ao construirmos generalizações e estereótipos. Já outra boa parte dos alunos se encontrava bastante dispersa como se o tema fosse algo distante e não os tocasse diretamente, apesar dos exemplos dados e das relações feitas durante as discussões. Será difícil ouvir uma mulher negra? Por que muitos estudantes não consideram os saberes produzidos por mulheres negras como saberes válidos? Muito precisamos avançar, não só na produção desses conhecimentos, mas na conquista do reconhecimento nos diversos espaços de sua circulação.

Últimas considerações

“Estamos nos movendo em um tempo de encruzilhadas, de vermos umas às outras na diferença colonial construindo uma nova sujeita de uma nova geopolítica feminista de saber e amar” (LUGONES, 2014, p. 951). Esta frase final do artigo “Rumo a um feminismo descolonial” foi, na realidade, o ponto de partida para a feitura de meu trabalho. Ela representa para mim uma mudança de lentes para as relações raciais intrinsecamente generificadas em nossa sociedade e a necessidade de construirmos outras formas de amar, lutar e produzir saberes no ensino de História.

As mulheres negras docentes e sujeitas da história lutam pelo reconhecimento de sua humanidade, numa colonialidade que insiste em silenciamento e invisibilidades, seja nas narrativas históricas, nas salas de aula ou nos porões de lojas de shopping. Uma colonialidade que permite o acesso brutal a seus corpos, desprotegidos e violados, subjetivamente entendidos como menos dignos de cuidado e proteção e menos vulneráveis à dor. E se temos referências é porque no ‘locus fracturado’ definido por Lugones, existimos e resistimos à diferença colonial.

São várias as intelectuais que vieram antes de María Lugones na construção desses saberes, e muito do que essa intelectual produziu se deve à influência do feminismo negro norte-americano. Neste trabalho, focamos em autoras e autores que nos possibilitaram uma melhor compreensão de como construir práticas decoloniais de ensino de História por e sobre mulheres negras. As discussões sobre o quão diferente é nossa questão racial daquela norte-americana, já foram trazidas por uma série de intelectuais negros e, mais recentemente, foram sintetizadas na obra de Silvio Almeida (2018) sobre o racismo estrutural. O Movimento Negro reivindica a categoria raça e seu caráter sociológico para explicitar o racismo da sociedade brasileira, negado por anos, sob a égide do mito da democracia racial (GOMES, 2007).

Para as minhas proposições e análises foi de fundamental importância tecer a relação entre a obra de Lugones e as mulheres negras, problematizando as intrínsecas relações de gênero e raça nas sociedades colonizadas. Por fim, não se tratava mais de uma busca de sororidade, mas de compreender como fomos separadas daquelas que na colonização eram consideradas mulheres. O ensino de História não pode prescindir de expor as marcas dessa diferença colonial como fruto da invasão europeia e de seu maquinário falsamente moderno, mas colonizador, em detrimento de todas as outras epistemologias possíveis. É preciso um esforço coletivo, dialógico, dentro e fora das instituições escolares para evitar epistemicídios sobre as culturas afrodiaspórica e originárias que nos constituem historicamente como uma nação.

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1Depoimento da docente supervisora, registro de diário de campo.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SILVA, Janaina Guimarães da Fonseca e. “Lugones e o escurecer do ensino de história”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e85047, 2022

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 30 de Novembro de 2021; Revisado: 13 de Janeiro de 2022; Aceito: 17 de Janeiro de 2022

Janaina.guimaraes@upe.br; guimaraes.janaina@gmail.com

Janaina Guimarães da Fonseca e Silva (Janaina.guimaraes@upe.br; guimaraes.janaina@gmail.com) é doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2012). É professora adjunta da Universidade de Pernambuco, campus Mata Norte e membra permanente do PROFHistória da UPE e do Programa de Pós-graduação em História da UFRPE. É coordenadora do GT Estudos de Gênero da Associação Nacional de Pesquisa em História (ANPUH), sessão Pernambuco

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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