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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis maio/ago 2022  Epub 01-Jan-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n275821 

Artigos

Gramáticas do Atlântico Negro: Virgínia Bicudo e Grada Kilomba

Black Atlantic Grammars: Virgínia Bicudo and Grada Kilomba

Gramáticas del Atlántico Negro: Virgínia Bicudo y Grada Kilomba

1Universidade Estadual do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Fortaleza, CE, Brasil. 60714.903 - ppgs@uece.br

2Universidade Regional do Cariri, Centro de Humanidades, Departamento de Ciências Sociais, Crato, CE, Brasil. 63105-000 - urca@urca.br / gabinete@urca.br


Resumo:

Passados mais de 500 anos do início do processo colonial, pessoas negras e indígenas ao redor do mundo, notadamente no Sul Global, sofrem com estigmas, preconceitos e violências legados pelos processos de racialização. Nesse estudo, cotejamos os legados teóricos e metodológicos das pesquisadoras negras Virgínia Leone Bicudo e Grada Kilomba, contribuindo na percepção de que a localização social dos corpos racializados e generificados de ambas as pesquisadoras são instrumentos fundamentais para os deslocamentos teórico-metodológicos propostos em suas obras. Aproximamos, assim, suas investigações no tocante ao lugar que a raça ocupa na questão da colonialidade e no fazer ciência, apontando possíveis contribuições às reflexões clássicas da teoria sociológica em nosso país. A partir das obras analisadas, vislumbramos, ainda, possibilidades de instituição de contradiscursos ao projeto colonial.

Palavras-chave: Racialização; Colonialidade; Descolonização; Virgínia Leone Bicudo; Grada Kilomba

Abstract:

More than 500 years after the beginning of the colonial process, black and indigenous people around the world, notably in the Global South, suffer from stigma, prejudice and violence inherited by the processes of racialization. In this study, we compared the theoretical and methodological legacies of the black researchers Virgínia Leone Bicudo and Grada Kilomba. Contributing to the perception that the social location of the racialized and gendered bodies of both researchers are fundamental instruments for the theoretical and methodological shifts proposed in their works. Thus, we approached them investigations regarding the place that race occupy in the question of coloniality and in doing science, pointing out possible contributions to the classic reflections of sociological theory in our country. From the analyzed works, we also glimpse possibilities for the institution of counter-discourses to the colonial project.

Keywords: Racialization; Coloniality; Decolonization; Virgínia Leone Bicudo; Grada Kilomba

Resumen:

Más de 500 años después del comienzo del proceso colonial, los pueblos negros e indígenas de todo el mundo, especialmente en el Sur Global, sufren el estigma, los prejuicios y la violencia heredados por los procesos de racialización. En este estudio, comparamos los legados teóricos y metodológicos de los investigadores negros Virgínia Leone Bicudo y Grada Kilomba. Contribuyendo a la percepción de que la ubicación social de los cuerpos racializados y de género de ambos investigadores son instrumentos fundamentales para los cambios teóricos y metodológicos propuestos en sus trabajos. Por lo tanto, abordamos sus investigaciones con respecto al lugar que ocupa la raza en la cuestión de la colonialidad y en la ciencia, señalando posibles contribuciones a las reflexiones clásicas de la teoría sociológica en nuestro país. A partir de los trabajos analizados, también vislumbramos posibilidades para la institución de contra-discursos al proyecto colonial.

Palabras clave: Racialización; Colonialidad; Descolonización; Virgínia Leone Bicudo; Grada Kilomba

Introdução

Em 1977, Edward Said (1990) lançou sua obra seminal, O Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. Nela, o autor discute como nossas referências históricas e espaciais apenas adquirem poder referencial por jogos de saber-poder. Ao longo dos capítulos, demonstra como marcações de gênero, geração e localização social compõem o estofo de hierarquias e relações diferenciais que nos fazem perceber e aplicar diferenças, como se elas estivessem sempre estado ali.

Em passagem exemplar, conta-nos que o exército das metrópoles nas colônias era composto por homens jovens. Desta forma, as metrópoles se comunicavam a partir de corpos sempre ativos; regulares; supostamente impenetráveis, em oposição aos corpos e territórios das colônias, tomados como falíveis; variáveis; desfrutáveis.

Said (1990) apoia-se fartamente em Gramsci e Foucault. Ao fazê-lo, considera não apenas os avanços políticos institucionais na consolidação de posições de poder daquele(s) a quem é permitido falar, mas também na banalidade cotidiana das posições assumidas e subjetivadas pelas relações diferenciais criadas por e para homens e mulheres.

Como nos ensinou Mary Louise Pratt (1999), posições advindas das disputas referenciais assumem espantosa ubiquidade e dispersão. Viajam com e a partir dos nomes (PRATT, 1999), já que nos encontramos todos apoiados em uma linguagem que adensa as circunstâncias históricas e espaciais que vão compondo o sujeito humano e as formas que suas percepções assumem historicamente. A introjeção dessas percepções se daria a despeito da vontade ou intenção individual de cada um (PRATT, 1999; SAID, 1990).

A mútua constituição das circunstâncias de produção de si e das relações entre diferenças e hierarquias é sintetizada por Said (1990) em frase lapidar: “(...) para um europeu ou americano que esteja estudando o Oriente, não pode haver negação das circunstâncias mais importantes da realidade dele: que ele chega ao Oriente primeiramente como um europeu ou um americano, e depois como um indivíduo” (p. 23).

Novos desdobramentos sobre a produção de lugares/posições referenciais a partir da reiteração de saberes/poderes podem ser vislumbrados ao cotejar as obras de Said e Pratt às reflexões de Benedict Anderson. Apoiado em investimento teórico particular, Benedict Anderson (1989; 1985) convida a pensar o intricado rendilhado de fatores que nos levaram a tecer lugares de pertença e hierarquias sociais, conjugando-os às ideias de nação, nacionalidade e nacionalismo. Afastando-se da concepção de que as diversas experiências nacionalistas presentes desde o século XVIII até os nossos dias possam ser conjugadas a meras ações racionais embaladas pelas ideias de “liberalismo” ou “fascismo”, Anderson (1989) define nação como uma “comunidade política imaginada e imaginada como implicitamente limitada e soberana”1 (p. 14). Experiência que tem nos incitado a imaginarmo-nos como membros de uma fraternidade marcada por “um companheirismo profundo e horizontal”, a despeito da “desigualdade e exploração que atualmente prevalecem em todas elas” (p. 16). Tal ficção teria tornado possível “que tantos milhões de pessoas não só matem, mas morram voluntariamente por imaginações tão limitadas”2 (Idem).

O debate sobre a construção recente das nações como entidades históricas alinha fatores diversos. Desde jogos imaginativos, oriundos de “sistemas culturais amplos que o precederam”, tais como parentesco e religião (ANDERSON, 1989, p. 20), até a construção de formas institucionais prescritivas, tais como o desenvolvimento do “capitalismo editorial” (ANDERSON, 1989) ou a criação de um sistema educativo formal e extenso, regulado pelo Estado (Ernest GELLNER, 1981). A possibilidade de impressão e distribuição de textos comuns a milhares de leitores anônimos entre si é tomada por Anderson (1985, p. 17-56, passin) como experiência relevante na construção de um sentido de pertença a uma comunidade imaginada, irmanada pelos usos editoriais da língua, imaginação textual e visual divulgados pelo “capitalismo editorial” de romances e jornais. Por fim, Eric Hobsbawn (1990) chama a atenção para a importância da ilusão de uma entidade comum que antecederia o ordenamento do território pelo Estado: unidade racial, religião ou comunidades agrárias, marcadas por modos de vida comum. Um “protonacionalismo” articulado por intelectuais a partir da ideia difusa de “povo” (HOBSBAWN, 1990, p. 63-100).

Se a nação se impõe como “comunidade imaginada” (ANDERSON, 1985), é razoável dizer que relações de pertencimento são mais facilmente imagináveis para alguns que para outros. Como nos ensina Hobsbawn (1990):

(...) a ‘consciência nacional’ se desenvolve desigualmente entre os grupos e regiões sociais de um país (...) qualquer que seja a natureza dos primeiros grupos sociais capturados pela ‘consciência nacional’, as massas populares - trabalhadores, empregados, camponeses - são as últimas a serem por ela afetadas (p. 21).

Essas considerações impuseram relevantes reflexões sobre dinâmicas na relação entre memória nacional e território, bem como políticas de diferenciação pelo próprio Estado entre as populações que compõem a nação. Paralelo a isso, quatro décadas após a publicação de O Orientalismo, as teorias pós-coloniais se multiplicam, fazendo-nos perceber a fecundidade da obra de Said e entrever alguns de seus limites.

Em 1993 viria à tona O Atlântico Negro, de Paul Gilroy (2001 [1993]). Em Gilroy, as relações que produzem um lugar referencial para a construção da realidade não estão amalgamadas à experiência de Estado-nação. Muitas vivências estão relacionadas a um marcador comum ou a uma relação de origem comum, vislumbrada a partir de deslocamentos díspares. Forma-se o que o autor conceitua como “experiência atlântica”, uma realidade jamais abocanhada pela “realidade” da origem, pela “realidade” da raça, pela “realidade” da nação. Por isso mesmo a “experiência atlântica” produz a imagem da pirataria como experiência entre-lugares. Não a hegemonia do lugar unificado descrito como saber-poder, mas a possibilidade de observar a partir de lócus distintos consolidados em jogos de deslocamento.

Said saberia compreender essa experiência. Afinal, em seu Fora de lugar: memórias (2004 [1999]), descreve sua infância chamando a atenção para a errática origem das famílias de sua mãe e pai. Como descrito pelo autor, a erradia de sua ascendência acentuava o desacordo entre seus locais de nascimento e moradia com um nome marcadamente inglês, Edward. A confusão se adensava ainda pela impossibilidade de localizar a origem do sotaque de seus pais. Onde se falaria assim?

O caráter inconcluso das tentativas de localização de si e de seus familiares não seria apenas fruto de um olhar colonial que evanesce as periferias pela imposição de uma gramática unificada da metrópole, tal como articulado em O Orientalismo (SAID, 1990). Tais apagamentos estariam antes materializados nos corpos, nos deslocamentos por não se sabe onde, por múltiplas imprecisões e pela banalidade mesmo da ideia de origem presente nas experiências que jamais tiveram lugar no mundo.

Nesse artigo, ressaltamos os múltiplos deslocamentos e mobilização de gramáticas distintas por duas intelectuais negras, a brasileira Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) e a portuguesa Grada Kilomba (1968- ), de modo a compreender suas contribuições no tocante à questão racial. Como poderemos perceber ao longo do texto, o deslocamento internacional das duas autoras permitiu que as mesmas percebam e se comuniquem a partir de gramáticas raciais existentes ou em consolidação no Brasil, em Portugal e na Alemanha. As experiências de ausência de lugar, textualizadas ao longo do artigo, tornam-se estofo necessário para a análise da questão racial em suas obras, explicitando a existência do racismo, constantemente negado por aqueles(as/us), mas não somente, que se beneficiam, em termos simbólicos e econômicos, de seus resultados.

Virgínia Bicudo (2010 [1945] e Grada Kilomba (2019a [2008], 2019b) sintetizam para nós, portanto, apropriações piratas da “experiência atlântica”, jamais sintetizada em uma gramática única, mas ao mesmo tempo com imensos traumas e feridas advindos da racialização de pessoas negras e seus descendentes.

Sessenta e três anos separam a dissertação de Bicudo e a tese de doutoramento de Kilomba - a primeira tendo seu trabalho de 1945 apenas publicado no ano de 2010; a segunda publicando sua pesquisa em 2008, em inglês, tendo ganho edição brasileira em 2019. Os caminhos editoriais traçados por suas obras fazem com que elas apareçam para o(a/e) leitor(a/e) brasileiro(a/e) como contemporâneas, demandando reflexão sobre convenções de gênero, raça e pensamento social por nós compartilhada.

Portanto, apesar da distância temporal, as autoras produziram pesquisas que, em grande medida, podem ser aproximadas em termos metodológicos e, mesmo, de seus resultados. Objetiva-se, então, a compreensão das contribuições de Bicudo e Kilomba, no tocante à questão racial, por meio de seus trabalhos, respectivamente, Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo (2010 [1945]) e Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Cotidiano (2019a [2008]).

Discutiremos, adiante, como deslocamentos entre gramáticas nacionais, cruzamentos entre diferentes formas de conhecimento e de posições de gênero e raça na produção de conhecimento institucionalizado parecem aproximar as obras de Bicudo e Kilomba. O artigo está organizado em dois itens específicos. No primeiro, apresentamos as trajetórias de Bicudo e Kilomba, a fim de facilitar a percepção dos deslocamentos e impacto de suas obras. No caso de Bicudo, evidencia-se, também, alguns limites presentes em trajetórias intelectuais de homens e mulheres, negros e negras, no Brasil, e como sua atuação confronta esses limites. No item 2, subdividido em três subitens, apresentamos possíveis aproximações entre as duas autoras no que diz respeito a recursos metodológicos, críticas ao engenho colonial e aos traumas raciais dele decorrentes. Retomamos, ainda, a diferença entre contextos e relevância de cada uma das obras no momento e lugar em que foram escritas. Chamamos atenção, por fim, à diferença entre essas metodologias, que se beneficiam do lugar social de seus/suas autores(as) e o Pensamento Social considerado clássico no Brasil, realçando a inovação das análises realizadas por Bicudo em sua época.

1 Piratas do Atlântico Negro

Antes de adentrar às obras de Bicudo e Kilomba, busca-se, neste item, apresentar as autoras, contextualizando suas pesquisas em seu tempo histórico - o que se faz necessário a fim de que não se confundam os intentos e que se compreendam os limites e proximidades de cada uma, aqui lidas e reunidas por dois pesquisadores brasileiros, um negro e um branco, um sudestino e um nordestino, ambos homossexuais advindos de origens periféricas na construção usual do saber acadêmico institucionalizado no Brasil.

1.1 Virgínia Leone Bicudo

Eu tinha sofrimento, tinha dor e queria saber o que causava tanto sofrimento. Eu colocava que eram condições exteriores. Então pensei que, estudando Sociologia, iria me esclarecer

(BICUDO apud Maria TEPERMAN; Sonia KNOPF, 2011, p. 67).

Virgínia Bicudo era a segunda de seis dos filhos de Theophilo Julio, homem negro e filho da ex-escravizada Virgínia Julio, e Giovanna Leone, mulher branca e imigrante italiana que chegara ao Brasil com sua família após a abolição jurídica da escravização. Suas palavras, transcritas acima, condensam as motivações de uma pioneira, tanto para a Sociologia quanto para a Psicanálise no Brasil. Palavras que marcam sua compreensão do lugar social e dos efeitos legados à população negra no país por meio do projeto colonial.

Em 1930, Bicudo obteve seu diploma para o magistério público no Estado de São Paulo, sendo habilitada a ministrar aulas no ensino primário. Para tanto, teria que estabelecer residência no interior do Estado. Como relatou a Marcos Chor Maio (2010), seu pai não consentira nesse deslocamento, o que a levou a buscar uma segunda formação como educadora sanitária, curso realizado entre 1931 e 1932 na Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado de São Paulo. Bicudo exerceu a profissão até 1938. A atuação profissional como educadora sanitária contribuiu com o sustento de sua família após o falecimento de seu pai, em 1933.

Em 1936, Bicudo ingressou na segunda turma do curso de Sociologia da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP). Fundada em 1933, a ELSP funcionava como instituição complementar da Universidade de São Paulo (USP). Era o momento de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, com intensa presença de professores estrangeiros, e forte influência da chamada escola de Chicago. Bicudo conta que seu interesse pelas Ciências Políticas e Sociais se amparava no desejo de compreender suas dores e sofrimentos (BICUDO apudTEPERMAN; KNOPF, 2011, p. 67). Em 1938, ela fora a única mulher a se formar em uma turma de oito bacharéis. Todavia, o pioneirismo de Bicudo na sociologia brasileira não se resume a este fato.

Na ELSP, em 1942, Bicudo fez parte da primeira turma de mestrado da Divisão de Estudos Pós-Graduados, fundada por Donald Pierson (1942), tendo defendido, em 1945, a primeira dissertação sobre relações raciais no país: “Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”, sob orientação de Pierson (Mário SILVA, 2018). Este trabalho será analisado mais à frente. Entretanto, chamamos a atenção, desde já, para o fato de que, a despeito dos pioneirismos acima relatados, somente 65 anos depois de sua defesa a dissertação fora editada pela primeira vez, sete anos após seu falecimento, com organização de Marcos Chor Maio, em 2010.

A partir de 1945, Bicudo tornou-se professora-assistente da cadeira de Higiene Mental da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo - USP (MAIO, 2010, p. 327). A continuada aproximação com a área de saúde mental marcará o Projeto UNESCO como derradeira atuação de Bicudo na área de Sociologia (ver: Roger BASTIDE; Florestan FERNANDES, 1955). A pesquisadora se volta então à Psicanálise, área em que foi igualmente pioneira e a que se dedicou até sua aposentadoria (TEPERMAN; KNOPF, 2011, p. 71).

1.2 Grada Kilomba

Grada Kilomba pode ser apresentada, brevemente, como uma intelectual multifacetada, atuando como artista; escritora; psicóloga e psicanalista. Nasceu em Lisboa, em 1968, sendo descendente de angolanos, portugueses e são-tomenses, vivendo, presentemente, em Berlim.

Em Portugal, Kilomba estudou Psicologia Clínica e Psicanálise no Instituto Superior de Psicologia Aplicada - ISPA, tendo trabalhado no Departamento de Psiquiatria com sobreviventes de guerra de Angola e Moçambique. Já na Alemanha, a autora obteve seu doutorado em Filosofia (summa cum laude), como bolsista da Fundação Alemã Heinrich Böll, pela Freie Universität Berlin, em 2008. Como se discutirá à frente, neste artigo, sua tese de doutoramento, “Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Cotidiano” (2019a [2008]), é uma compilação de episódios do chamado “racismo cotidiano”. Esse trabalho foi publicado inicialmente em inglês e, somente recentemente, em português.

Como será possível ver à frente, quando da apresentação de Memórias da Plantação (2019a [2008]), três perguntas, portanto, estão constantemente presentes em seus trabalhos (acadêmicos e artísticos): “(...) ‘quem pode falar?’, ‘sobre o que podemos falar?’, e ‘o que acontece quando falamos?’”3. Perguntas estas, presentes, como é possível perceber, também em sua produção estético-teórica, aqui brevemente referenciada por meio de um trecho de Ilusões V. I, Narciso e Eco, produzido e lido pela artista-autora e presente no catálogo da mostra em forma textual.

2 Gramáticas Descolonizadoras

Após breve exposição do contexto e produções das autoras aqui focalizadas, é possível apresentar suas obras, vislumbrando possíveis cruzamentos. Objetiva-se demonstrar como, a despeito das distâncias geográficas e temporais, ambas as autoras se contrapõem à tormenta colonial, expondo seus mecanismos de ação e propondo sua subversão. Dessa forma, seus livros serão apresentados e aproximados por meio de três subitens: embarcações descoloniais, em que são expostos os métodos e teorias que dão suporte às análises das autoras; afundando a caravela colonial, onde são apresentadas as suas análises, propriamente; e outras marés, no qual trazemos suas contribuições a fim de pensar modos de existir que não aqueles legados pelo projeto colonial.

2.1 Embarcações Descoloniais

Pensando em termos do “atlântico negro” de Paul Gilroy (2001 [1993]), propomos que se compreenda que as pesquisas e proposições de Bicudo e Kilomba fazem parte de uma gramática que desvela os mecanismos coloniais, ao mesmo tempo que propõem outros caminhos epistemológicos que visam ao desmantelamento da colonialidade (Joaze BERNARDINO-COSTA; Ramón GROSFOGUEL, 2016). Destarte, suas pesquisas estruturam embarcações que vêm afundando as caravelas coloniais que seguem pautando a estruturação do mundo mesmo após o fim do colonialismo. Suas teorias e metodologias, neste sentido, são tecnologias de conhecimento que estruturam embarcações descoloniais, que podem contribuir para a criação de novas rotas societárias.

No caso de Bicudo, é na mesma década de 1930 e no mesmo Brasil em que Gilberto Freyre muda os rumos do debate racial com seu elogio à miscigenação que a autora ingressará na área da Sociologia da ELSP.

Em sua pesquisa de mestrado, realizada em inícios da década de 1940, Bicudo trará sua primeira contribuição para o debate racial no país. Sob orientação de Donald Pierson, Bicudo realizou “Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo”, tendo como questão central a mudança social empreendida no país, refletindo sobre a integração dos grupos marginalizados, pretos e mulatos,4 na sociedade envolvente. Em sua análise, os grupos dominantes brancos também estão presentes (SILVA, 2011, p. 441), afinal, as instituições, atitudes e processos sociais que refletem as estruturas de poder forjadas pelos grupos dominantes são elementos fundamentais na análise que realiza sobre a estrutura social brasileira, norteada pela ideia de mudança social.

Por sua vez, a investigação de Kilomba toma por objeto registros de racialização e generificação presentes nas sociedades contemporâneas. Escrevendo na primeira década do século XXI, a autora lida com efeitos da colonização que ainda se faziam/fazem presentes na vida e nas subjetividades de indivíduos negros e brancos, décadas após o fim jurídico do processo de colonização. Se, por um lado, indivíduos brancos lograram enriquecer e estabelecer seus padrões de existência como sendo superiores, por outro, indivíduos não brancos adquiriram feridas profundas em suas subjetividades, com nocivos efeitos em suas vidas práticas e na forma como pensam a si a partir de processos naturalizados de diferença e identificação.

Pode-se dizer, portanto, que todos fomos moldados pelos processos da colonização e seus crimes. Para Kilomba (2019a [2008]; 2019b), os efeitos desse processo parecem definir percepções díspares. Sob o ponto de vista compreendido como vencedor, aquele identificado com os colonizadores brancos, tais efeitos podem ser compreendidos pela chave do “narcisismo”, já que a sociedade é moldada a sua imagem e semelhança, em seu benefício prático e simbólico. De outro lado, sob a ótica dos entendidos como perdedores, o dos escravizados; assassinados e sequestrados, tem-se traumas; marginalização; o assassínio de suas histórias ancestrais; a negação de suas existências e o racismo que cotidianamente estrutura as relações nas sociedades.

É nesse tempo contemporâneo, cronologicamente tão distante daquele em que Bicudo produziu sua dissertação, que Kilomba propõe um debate sobre questões igualmente presentes no trabalho de Bicudo. Se, temporalmente, Bicudo e Kilomba estão separadas, suas questões e abordagens são, efetivamente, contemporâneas.

Como dissemos acima, o livro Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Cotidiano (2019a [2008]) é resultado da tese de doutoramento de Kilomba, realizada em Berlim, um contexto, como ressalta a autora, distinto, não apenas do de Bicudo, mas daquele em que nasceu e teve sua formação inicial, Berlim, onde a história colonial e a ditadura imperial fascistas deixaram outros tipos de marcas.

Sob a perspectiva psicanalítica, o trabalho de Kilomba versa sobre traumas e feridas infringidos à população não branca por meio da empresa colonial, colocando a “branquitude” em perspectiva, responsabilizando-a pelas marcas e máculas coloniais que ainda hoje assolam e degradam a vida de indivíduos não brancos. Afinal, é importante dizer que, constituída através das violências coloniais, a “branquitude” diz respeito ao lugar de poder identificado com o conjunto de valores, crenças e privilégios atribuídos às pessoas brancas que são identificadas com os colonizadores do globo (ver: Alberto GUERREIRO RAMOS (1995); Liv SOVIK (2009); bell hooks (2019)). Assim sendo, Memórias da Plantação é um livro com viés político, que não faz um percurso moral, mas busca a transformação política, social e cultural das sociedades marcadas pela experiência colonial.

Em termos de método e técnicas utilizados na realização de sua dissertação, Bicudo fez uso de estudos de caso e entrevistas, buscando compreender as “atitudes” e condições individuais de “homens de cor”. A autora dobrou-se, também, sobre os membros de uma associação de pessoas negras, por ela chamada de “Associação de Negros Brasileiros”, e sobre o jornal publicado por esta associação. Cotejou, assim, informações colhidas individualmente e o conteúdo levantado com os membros da associação e seu jornal, a fim de desvelar aspectos da estrutura da sociedade envolvente relativos ao papel social atribuído a pessoas negras (por ela classificadas como pretas e mulatas) e seus efeitos na ação social dos indivíduos racializados pelo projeto colonial.

A pesquisa de Bicudo se estendeu a mais de 30 entrevistados(as), na São Paulo dos anos 1941 e 1944. As entrevistas e demais materiais coletados possibilitaram que a autora buscasse reconhecer as “atitudes” dos indivíduos em relação a pessoas pretas, mulatas e brancas, analisando aspectos vinculados à classe e à raça.

A dissertação de Bicudo lida com dois grupos sociais: pretos e mulatos, assim divididos para que fosse possível a análise do material coletado. Atenta-se, ainda, às diferenças vivenciadas por indivíduos fenotipicamente distintos. A classificação racial proposta pela autora se deu, portanto, com base em critérios fenotípicos e relativos aos ancestrais diretos de seus(suas/sues) entrevistados(as/es).

A autora subdividiu tais grupos em mais dois grupos, considerando suas classes sociais, por ela classificadas como “classes inferiores” e “classes intermediárias” (BICUDO, 2010 [1945], p. 67-68). Bicudo entrecruza, então, dados de origem social, traços fenotípicos e de localização social, adiantando o debate fundamental nos dias atuais sobre “interseccionalidade” (Avtar BRAH, 2006). Cabendo destacar que o debate sobre “Interseccionalidade” emerge na década de 1990, na tentativa de articular distintas categorias de subordinação e diferenciação. O termo é cunhado pela jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw (2002). Adriana Piscitelli (2008) chama a atenção para a utilização do termo por variadas perspectivas teóricas, que, muitas vezes, divergem em função de como são pensadas diferença, agência e poder (p. 267, passin). Diversas autoras e autores acentuam o fato de que, embora não tenham utilizado o termo “interseccionalidade”, a articulação entre categorias de diferenciação e subordinação encontra-se presente na literatura feminista negra brasileira desde as obras de Lélia Gonzalez (1984) e Sueli Carneiro (1995), podendo, igualmente, Bicudo ser inclusa nessa seara teórico-analítica.

Vale ressaltar o contexto de repressão do Estado Novo a movimentos sociais presentes no momento da realização da pesquisa de Bicudo. A autora levanta dados da associação Frente Negra Brasileira (FNB), que atuava entre os anos de 1931 a 1937. Como citado acima, a autora chama a FNB de “Associação de Negros Brasileiros”. O jornal publicado pela Frente recebe a alcunha de “Os Descendentes de Palmares”. A FNB teve suas atividades interrompidas por conta das ações estado-novistas - por isso, inclusive, a autora não dá o real nome da associação em seu texto. Deste modo, ao recuperar a Associação e registrar partes do jornal, o trabalho de Bicudo cumpre também papel memorialístico fundamental à história dos movimentos sociais no país, explicitando os caminhos da luta antirracista, demarcando os processos coletivos e individuais vivenciados por pessoas negras na capital paulista do período.

Seis décadas depois de Bicudo, Kilomba debate as políticas de apagamento da história, do conhecimento e da estética de pessoas negras nas sociedades pós-coloniais, averiguando quem é socialmente legitimado e autorizado a falar, pensar e circular em espaços de poder. Para Kilomba, a despeito do fim da colonização, pessoas não brancas descendentes daquelas que foram escravizadas, que trazem em suas peles e traços físicos as marcas de suas ancestralidades, permanecem alijadas coletivamente dos lugares sociais de poder das sociedades pós-coloniais.

Atentando, então, para o fato de que a língua tem dimensões políticas que perpetuam regras sociais correlatas aos processos de dominação, Kilomba acrescenta à edição brasileira de seu livro um glossário que explicita sua compreensão de termos como: “sujeito”, “objeto”, “outra/o”, “negra/o”, “mestiça/o”, “mulata/o”, entre outros. Kilomba traz os significados históricos e políticos de tais termos, demonstrando como, por exemplo, o termo “negra/o” está ancorado na história de violência e desumanização colonial (KILOMBA, 2019a [2008], p. 17).

Ademais, como se pode notar, Kilomba propõe uma subversão fundamental da ordem socialmente estabelecida como regra para a língua portuguesa, colocando os termos primeiramente no feminino. Fato imprescindível, já que seu livro traz a perspectiva de gênero das questões que aborda, inter-relacionando gênero e raça. Além disso, cabe dizer, que em sua língua materna, a nossa, não há a indeterminação de gênero presente em termos como Black, sinônimo inglês para “negra/o”, e opta, Kilomba, por trazer o feminino em primeiro plano. Assim, ao longo de seu texto, os referidos termos aparecem em itálico e, mesmo, entre aspas, demarcando os problemas coloniais encrustados em suas significações.

Pode-se dizer, por conseguinte, que o trabalho de Kilomba lida com a distribuição do poder na sociedade pós-colonial. Desta maneira, é interessante rememorar as três perguntas, acima mencionadas, que são foco das análises da autora: “(...) ‘quem pode falar?’, ‘sobre o que podemos falar?’, e ‘o que acontece quando falamos?’”.5 A partir disto, na introdução de seu livro, Kilomba demarca: “não sou o ‘objeto’, mas o ‘sujeito’” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 27). Uma frase simples e direta (diga-se que é esta a toada de sua escrita), mas que subverte a lógica de produção, circulação e recepção do conhecimento em sociedades pós-coloniais. Influenciada por Frantz Fanon (1925-1961) e bell hooks (1952-), entre outros(as/es), Kilomba não somente pergunta sobre as autorizações sociais de quem, quando e sobre o que se pode falar, como atua subvertendo a lógica estabelecida que seria aquela que autoriza pessoas brancas e desautoriza pessoas negras. Como demarcado em seu subtítulo, sua análise se centra em episódios de “racismo cotidiano”.

“O racismo é uma realidade violenta” - explicita a autora (KILOMBA, 2019a [2008], p. 71). Em tempos de negação da existência do racismo, tempos estes que não são novos, é fundamental a demarcação de Kilomba tratando da prática do racismo como estruturante das relações em sociedades moldadas no processo colonial. Para ela, o racismo pode ser definido a partir de três características simultaneamente articuladas: 1) ele produz “a construção da diferença”, posto que indivíduos não brancos e/ou de religiões de matrizes não cristãs são colocados como distintos da norma, que seria “branca”; 2) tais diferenças “estão inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos”, afinal, a diferença produzida é articulada ao estigma, à desonra e à inferiorização daqueles compreendidos como diferentes; e, 3) estes processos são acompanhados pelo “poder” em suas vias histórica, política, social e econômica. Assim, “é a combinação do preconceito com o poder que forma o racismo. E, neste sentido, o ‘racismo é a supremacia branca’” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 76) e, destarte, os demais grupos raciais não poderiam ser tomados como racistas por não possuírem tais poderes. Ademais, o racismo teria dimensões globais, influenciando nas partilhas das benesses sociais como, por exemplo, a representação política e midiática, nos postos de emprego mais elevados, entre outras.

Diferenciado de outros modos de racismo, como o “racismo estrutural”, que exclui pessoas negras das estruturas sociais e políticas de poder, o “racismo cotidiano” referir-se-ia a “todo vocabulário, discursos, imagens, gestos e ações que colocam o ‘sujeito negro’ e as Pessoas de Cor não só como ‘Outra/o’ (...), mas também como ‘Outridade’, isto é, como a personificação dos aspectos reprimidos na sociedade ‘branca’” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 78). Ou seja, refere-se ao que a psicanálise concebe como “projeções” de “sujeitos brancos” que “reprimem” suas características e colocam o que não desejam enxergar em si na conta daqueles vistos como diferentes.

O termo cotidiano define este racismo não como experiência incomum, raridade ou desvio da normatividade, mas como um padrão de abuso que ocorre frequentemente na vida de “sujeitos negros” e “Pessoas de Cor”. Uma gramática acessada cotidianamente para reaver as figurações produzidas pelo colonialismo sobre a relação entre brancos e não brancos.

Para compreender, reconstruir e recuperar essas experiências de mulheres “negras” em uma sociedade “branca” e patriarcal, Kilomba realizou entrevistas com seis mulheres “negras” afrodiaspóricas com idades entre 25 e 45 anos de idade. Um perfil próximo ao seu, buscando estabelecer, com isto, uma relação mais próxima entre ela, a pesquisadora, e suas entrevistadas.

Ao longo do livro, a partir de exemplos de sua vivência particular e de duas de suas entrevistadas, a autora explicita como tal gramática é acessada em gestos e falas cotidianas de violência naturalizada, seja entre crianças brancas e pessoas negras; seja entre familiares de pessoas negras; seja entre pessoas com quem as pessoas negras vivenciam sua intimidade. Estaríamos todos, brancos e não brancos, prontos a contribuir com a herança colonial, atualizando-a a partir de nossos gestos, palavras e formas de subjetivação. A autora realiza, então, o que chama de análise “episódica”; centrada em relatos significativos de “racismo cotidiano” e genderizado, a que ela e suas interlocutoras encontram-se submetidas.

Em seus tempos e contextos, tanto Bicudo quanto Kilomba valem-se de técnicas, métodos e teorias que lhes permitem averiguar a questão racial legada pela modernidade. A partir de seus lugares sociais como mulheres negras em sociedades pós-coloniais, focalizam indivíduos negros sobre quem a racialidade fabulou uma diferença fundamental, que segue sustentando sociedades díspares para pessoas consideradas diferentes racialmente. Ambas demonstram a necessidade da escuta daqueles(as/us) marginalizados(as/es) pelo aparato jurídico-moral de seus contextos, ao passo que desvelam estruturas sociais moldadas por pessoas brancas no processo de modernização das sociedades, estabelecendo uma mirada sobre a “branquitude” (Sara AHMED, 2004).

Como se pode perceber, os contextos que amparam a produção de Bicudo e Kilomba são bastante distintos. Enquanto Kilomba articula autores(as/es) que a antecederam, utilizando-os(as/es) para compreender os traumas coloniais, Bicudo realiza deslocamentos em um tempo em que vigorava a falácia da “democracia racial”, em um contexto em que as referências não favoreciam suas descobertas. Apesar disto, ambas as autoras concebem e executam pesquisas que vão ao centro da questão racial, valendo-se de perguntas, técnicas e teorias que lhes permitiram navegar pelos mares hegemônicos construindo contra-saberes que fundamentam uma descolonização do saber-poder colonial-ocidental.

2.2 Afundando a Caravela Colonial

Os aparatos teórico-metodológicos lançados por Bicudo e Kilomba permitem desnudar as estruturas que fundamentam a sociedade ocidental. Esmiuçaremos aqui as ferramentas analíticas operacionalizadas em suas pesquisas.

Ao mesmo tempo que desvela as formas de opressão dos indivíduos negros na sociedade brasileira, mostrando os mecanismos de inferiorização das pessoas negras em relação a indivíduos brancos, Bicudo constata uma mudança nas “atitudes sociais” em curso, especialmente quando traz a análise da associação e seu jornal, demonstrando como buscavam uma mudança da estrutura social em relação à questão racial. As entrevistas realizadas por Bicudo são reveladoras da falibilidade da noção de “democracia racial” em vigor. Seguem alguns trechos do material coletado e analisado pela autora.

Nomeada como “Caso nº 7”, uma das entrevistadas por Bicudo, que foi classificada, de acordo com os critérios definidos pela autora, como “preta” e de “classe social inferior”, trabalhando como empregada doméstica, traz o seguinte relato:

O branco faz pouco caso do preto, por causa da cor. Quando me mudei do Interior para São Paulo [há 10 anos], sofri muito, porque na rua me xingavam de negra ou mexiam comigo. Certo dia, passava por uma rua [Bela Vista], vestida com uma blusa branca engomada, e uma moça que sempre me aborrecia me disse: “Mosca caída no leite”. Não me contive e virei-lhe um tapa no rosto. Nunca mais ela mexeu comigo. Nas lojas da cidade, quando a gente entra para comprar alguma coisa, só é atendida depois de muito esperar (BICUDO, 2010 [1945], p. 71).

Bicudo traz ainda entrevistas realizadas com indivíduos que classificou como “mulatos”. Inspirando-se nas teorias de Stonequist (1901-1979), Bicudo partiu da hipótese de que indivíduos “mestiços” poderiam indicar mais camadas da organização da estrutura social vigente, desvelando a lógica estrutural acerca da questão racial (BICUDO, 2010 [1945], p. 103).

Classificada como “mulata e de classe inferior”, o “Caso nº 19” traz o relato de uma mulher de 50 anos, casada com um homem branco e que em muito se orgulha de seus netos serem crianças de olhos azuis e tez clara. Ela relatou à Bicudo:

No Interior, eu costurava e atendia as mulheres como parteira. Aqui não tenho calma para costurar, fico nervosa de ver tudo sujo [habitação coletiva]. No Interior, eu tinha uma casa ampla, enquanto aqui tenho de morar num quarto. Lavo roupa para viver. Meus netos são lindos, têm olhos azuis e cabelos amarelos. As pessoas não valem pela cor. Mas há pessoas que na rua desconhecem um negro; isso está errado. Esta neta [menina de 12 anos, parda] é feia, puxou as avós. Sempre lhe digo que ela não é filha legitima, mas foi dada e, apesar de ser brincadeira, ela chora (BICUDO, 2010 [1945], p. 107).

Cremos que, talvez, estes pequenos trechos das entrevistas realizadas por Bicudo por si só sejam capazes de desconstruir a noção de “democracia racial”, reinante outrora como hoje. No entanto, é preciso, ainda, destacar os argumentos da autora. Mesmo sem utilizar o termo colonialismo, tão presente especialmente em uma perspectiva de autores(as/us) negros(as/es), estas e as demais entrevistas levam Bicudo a compreender os efeitos nocivos do projeto colonial e a desigualdade estabelecida entre brancos e não brancos na sociedade brasileira. Do mesmo modo, percebemos, a partir do texto da autora, os efeitos da estrutura social moldada a imagem e semelhança das classes dominantes brancas, sobre as “atitudes”, objetivas e subjetivas, de seus(suas/sues) interlocutores(as/us).

Em suas análises do material coletado, a autora demarca que “(...) no convívio íntimo com brancos, o preto adquire as maneiras de pensar e sentir do branco também no que se refere ao próprio preto, passando a ter para o preto a mesma atitude e os mesmos sentimentos do branco” (BICUDO, 2010 [1945], p. 97). Em muitos casos, argumenta a autora, a autoidentificação com os valores brancos dominantes faria com que os mecanismos psíquicos dos indivíduos negros passassem a ver “(...) os pretos do ponto de vista do branco, desprezando-os” (BICUDO, 2010 [1945], p. 97).

Bicudo revela ainda uma contribuição fundamental a partir daquilo que chamamos hoje “interseccionalidade” (BRAH, 2006) entre raça e classe social. Suas entrevistas e análises demonstram que não bastaria a ascensão social em termos de classe para que o racismo deixasse de existir. O que nota é, de fato, o contrário, pessoas negras em posições socialmente mais favoráveis sofrendo discriminações e, ao mesmo tempo, se isolando, posto que convivendo com pessoas brancas se sentiam “fora de lugar”, simultaneamente, evitando conviver com pessoas negras por conta dos valores que lhe conformavam as “atitudes”, sendo tais valores, novamente, constituídos pela estrutura social que regia as ações sociais (BICUDO, 2010 [1945], p. 102).

Neste ponto, Bicudo se afasta de uma importante proposição de seu orientador, Donald Pierson (1942), que, em seu estudo sobre a população baiana, concluiu que a discriminação por raça seria secundária se comparada à discriminação por classe social. Ora, vemos que o trabalho de sua orientanda, Virgínia Bicudo, demonstra justamente a inter-relação entre raça e classe nos processos de discriminação social.

Voltemo-nos agora às Memórias da plantação, de Grada Kilomba.

Seu primeiro capítulo, intitulado “A Máscara: Colonialismo, Memória, Trauma e Descolonização”, traz a história de Anastácia, mulher negra que fora escravizada e teve sua imagem perpetuada quando lhe fora imposto um castigo que tapava sua boca. Por meio dessa imagem, Kilomba discute o histórico de silenciamento da população negrodescendente, explicitando as medidas sádicas de indivíduos brancos6 no âmbito das sociedades coloniais. Demonstra o processo de construção da negritude como Outra, ao passo que a branquitude fora construída como a norma. Como dirá a autora:

Esse é o trauma do sujeito negro; ele jaz exatamente nesse estado de absoluta ‘Outridade’, na relação com o sujeito branco. Um círculo infernal: ‘Quando gostam de mim, dizem que é apesar de minha cor. Quando não gostam de mim, apontam que não é por causa de minha cor’. Fanon (1967, p. 116) escreve: ‘Em ambas situações, não tenho saída’. Preso no absurdo. Parece, portanto, que o trauma de pessoas negras provém não apenas de base familiar, como a psicanálise argumenta, mas sim do traumatizante contato com a violenta barbaridade do mundo branco, que é a irracionalidade do racismo que nos coloca sempre como a/o ‘Outra/o’, como diferente, como incompatível, como estranha/o e incomum (KILOMBA, 2019a [2008], p. 40, grifos no original).

Para Kilomba, por conseguinte, máscaras, como a imposta à Anastácia, e os processos de silenciamento infligidos aos “sujeitos negros” são significativas de um “medo branco”. A “repressão”, em sentido freudiano, das verdades acerca das violências e crimes cometidos pelo colonialismo a partir da relação entre brancos e negros. A máscara vedando a boca do “sujeito negro” buscaria impedir o desvelamento das verdades desagradáveis “reprimidas”, tornando-se parte do inconsciente de “sujeitos brancos” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 41).

Recorrendo a Paul Gilroy, a autora fala de cinco mecanismos de defesa do ego através dos quais os sujeitos brancos poderiam passar a ouvir os sujeitos não brancos e se tornarem conscientes de sua “branquitude”, de sua história que inclui as partes desagradáveis e “reprimidas”. Esses mecanismos seriam: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação (KILOMBA, 2019a [2008], p. 43-46).

O percurso de cinco etapas não seria moral, mas um caminho que exigiria trabalho em termos psicológicos e psicanalíticos por parte dos “sujeitos brancos”. Assim: “(...) em vez de fazer a clássica pergunta moral ‘Eu sou racista?’ e esperar uma resposta confortável, o “sujeito branco” deveria se perguntar: ‘Como eu posso desmantelar meu próprio racismo?’” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 46). Destarte, os “sujeitos brancos” são todos atrelados à “branquitude”, coletivamente, de modo que precisariam passar por processos psicanalíticos a fim de sanarem as máculas coloniais em suas subjetividades.

No capítulo quatro, chamado “Racismo Genderizado: ‘(…) Você Gostaria de Limpar nossa Casa?’ - Conectando ‘raça’ e gênero”, Kilomba coteja à sua conceituação de racismo uma perspectiva do gênero. A autora relembra um exemplo pessoal, ocorrido no início de sua adolescência. Indo a uma consulta médica, fora “convidada” a limpar a casa da família do médico que a atendeu. A partir desse episódio, Kilomba analisa que “raça” e gênero são inseparáveis. Assim, em virtude de seu lugar racial e de gênero, mulheres “negras” receberiam a menor porcentagem na distribuição social do poder, tal qual distribuído pelo colonialismo: “(…) construções racistas baseiam-se em papéis de gênero e vice-versa, e o gênero tem um impacto na construção de ‘raça’ e na experiência do racismo”, dirá a autora (KILOMBA, 2019a [2008], p. 94). Opressões racial e de gênero levam a experiências singulares de racismo. Assim, tratar de racismo genderizado é tratar da estruturação das relações sociais “(…) para se referir à opressão racial sofrida por mulheres negras como estruturada por percepções racistas de papéis de gênero” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 99).

Essa perspectiva se desenrola ao longo do livro, a partir da análise das entrevistas realizadas por Kilomba. No capítulo intitulado “Políticas Espaciais”, a autora traz os episódios de “racismo cotidiano” ocorridos com Alicia, mulher afro-alemã, que, a despeito de ser alemã, relata ser constantemente questionada sobre suas origens, sua nacionalidade, ou seja, sendo sempre posta para fora de sua nação em virtude de sua negritude. De acordo com Kilomba, “trata-se de uma construção na qual ‘raça’ é imaginada dentro de fronteiras nacionais específicas e nacionalidade em termos de ‘raça’” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 99).

A história de Alicia permite que Kilomba veja uma mudança no vocabulário do racismo. Na nova gramática do racismo, raramente seria possível expressar uma inferiorização racial explícita. Apela-se, portanto, a “diferenças culturais” ou de “religiões”. Ademais, os questionamentos direcionados à Alicia sobre seu pertencimento nacional, já que, na visão racista, uma mulher poderia ser negra “ou” alemã; mas nunca negra “e” alemã, permitem que Kilomba trate das relações de poder envolvidas nesse processo que visa à expulsão de Alicia de sua origem nacional. Pensando a partir de Anderson (1989), poderíamos dizer que, nessa comunidade imaginada, corpos negros são tomados como corpos não pertinentes, em contrabando.

Kilomba realiza outra análise bastante relevante no capítulo intitulado “A Palavra N. e o Trauma”. A autora parte do relato de Katheleen:

Eu não lembro a primeira vez que alguém, de fato, colocou as mãos em mim, para checar como pessoas negras são... É muito frequente pessoas brancas tocarem nosso cabelo ou nossa pele para sentir como somos. Eu não me lembro da primeira vez (...) Mas eu lembro que meu namorado tinha uma professora de piano e, um dia, eu fui buscá-lo em uma dessas aulas. A professora tinha uma filha pequena, que, ao me ver, começou a falar: ‘Que Negerin [N.T. Feminino de Neger] linda! A Negerin parece tão legal. E os olhos lindos que a Negerin tem! E a pele linda que a Negerin tem! Eu também quero ser uma Negerin!’. E eu ouvi esta palavra: N., N., N., N., repetidamente (KILOMBA, 2019a [2008], p. 155 [grifos no original]).

A partir desse relato, Kilomba demonstra como a palavra negerin, termo alemão para “negra”, reforça o trauma legado pela colonialidade. Em uma mesma frase, há dois termos, linda e negerin, sendo um positivo e o outro negativo devido à empresa colonial que, de acordo com a autora, afirma uma posição de subalternidade das pessoas negras em relação a pessoas brancas. Demarcando que “ser chamada/o de N. nunca significa ser chamada/o apenas de negra/o; é ser relacionada/o a todas as outras analogias que definem a função da palavra N.” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 157 [grifos no original]). Aos olhos da autora, ao ser chamada de N., Katheleen vivenciaria uma ruptura com a sociedade, posto que é lembrada que a sociedade é pensada como branca. Em sua análise demonstra, então, como o processo de discriminação diferencia pessoas por meio dos discursos racistas fixados na pele negra.

De fato, há mais casos e reflexões empreendidas tanto por Kilomba quanto por Bicudo, todavia, cremos que, a partir da breve explicitação de parte do conteúdo que analisam por meio das ferramentas descritas no item anterior, torna-se nítido que o “cotidiano” é a chave de análise de ambas. No caso de Kilomba, há a conceituação do “racismo cotidiano”, antes mencionada, o que não ocorre no trabalho de Bicudo. Porém, ambas as autoras coletam dados sobre o dia a dia de seus(suas/sues) interlocutores(as); trazendo histórias que lhes permitem desvelar o racismo. Mas este desnudamento não é vazio de sentido, não se dá sem propósito; com esta ação, as autoras demonstram como operam os mecanismos racistas e, assim, traçam rotas para que seja possível afundar a caravela colonial.

2.3 Outras Marés

Embora sessenta e três anos separem as defesas de seus trabalhos, apenas dois anos distanciam suas publicações e nove distanciam suas publicações no Brasil. Neste sentido, não apenas pela proximidade em termos de divulgação de suas pesquisas, mas, especialmente, pelo modo como acessam seus lugares de pertença racial e de gênero para encarar os traços coloniais vigentes nos contextos analisados, é possível tomar seus textos e análises como coetâneos.

As terminologias e pontos de partida de ambas as autoras, de fato, são distintos. Mesmo em termos de linguagem, de um lado, Kilomba problematiza termos ancorados no colonialismo que são utilizados para definir negrodescendentes e “pessoas de cor”, uma preocupação não proeminente no trabalho de Bicudo. Além disso, é possível encarar o trabalho de Frantz Fanon (1983) como um divisor de águas nos debates sobre os traumas coloniais. Mas, se Kilomba é influenciada pelo trabalho do pesquisador martinicano, o trabalho de Bicudo fora realizado anteriormente ao dele.

Contudo, a despeito das distinções que perpassam os contextos de produção de seus trabalhos, é possível criar pontes entre ambos. Central, neste sentido, seria o fato de que as duas autoras abordam o que se pode chamar de processos de alienação da “negritude” pela “branquitude”. Bicudo não fala em termos de “traumas”, como Kilomba, mas, por meio de suas entrevistas, ambas trazem as percepções de indivíduos negrodescendentes para tratar das máculas e efeitos do racismo.

Especialmente no que diz respeito às formulações sobre formação da nação, questões raciais, de gênero e classes sociais, os trabalhos de Bicudo e Kilomba são contundentes: é preciso demarcar de onde se fala. Ou melhor, é preciso compreender negrodescendentes como “sujeitos” e não somente “objetos”. A produção das obras destas duas mulheres negras, de fato, em muito se diferencia daquelas produzidas, não sem seus méritos, por, em geral, homens brancos que não demarcaram seus lugares sociais e que, ainda hoje, são considerados clássicos. Que sejam clássicos e tenham suas importâncias, não negamos, porém, o preconizado distanciamento entre objeto de pesquisa e pesquisador(a/e) não garante trabalhos que levem em consideração nuances importantes, como, por exemplo, os efeitos subjetivos, intersubjetivos e hierarquizantes causados pelas narrativas racializantes advindas da empresa colonial. Legado ensinado pelas duas autoras tematizadas ao longo desse artigo.

O debate acerca dos clássicos da Sociologia é, de fato, extenso, mas cabe pontuar que “a compreensão da sociologia, enfim, não muda pela canonização de novas pensadoras nem pela constatação de que mulheres participaram da construção do pensamento sociológico” (Verônica DAFLON; Luna CAMPOS, 2020, p. 428). Destarte, não buscamos, aqui, perfazer um percurso de incorporação acrítica dos trabalhos de Bicudo e Kilomba à Sociologia, mas indicar que seus trabalhos requerem atenção deste campo de saber. Posto que apresentam pesquisas exemplarmente conduzidas, com usos teórico-metodológicos relevantes para debates, especialmente e não somente, acerca das relações raciais.

Efetivamente, cremos ser possível dizer que tanto Kilomba quanto Bicudo contribuem para o processo de descolonização da sociedade ocidental. Suas análises são propositivas. Característica mais explícita no caso de Kilomba, mas não ausente do trabalho de Bicudo. Ambas as autoras revelam a estrutura racista que fundamenta as sociedades que analisam e, assim, indicam outras possibilidades de ação. Deste modo, seus trabalhos podem ser até mesmo compreendidos como reações às ações dos opressores, colocando-os desnudos, buscando explicitar traumas gerados em negrodescendentes e indicando outros caminhos societários.

Por fim, voltemos à pista lançada por Gilroy sobre a experiência diaspórica atlântica. As produções de Kilomba e Bicudo parecem amalgamadas a seus corpos fora de lugar. Para Bicudo, um corpo de mulher em meio à turma de bacharéis em Sociologia e Política na década de 1930; um corpo de mulher negra orientada por intelectual branco norte-americano. Para Kilomba, uma mulher negra nascida e educada em Lisboa, onde era confundida constantemente nos locais onde trabalhava com “a senhora da limpeza” (KILOMBA, 2019a [2008], p. 11). Seu trânsito para a Alemanha, “onde a história colonial (...) e a ditadura imperial fascista também deixaram marcas inimagináveis” (p. 11), faz com que seu tratamento sobre a experiência negra em diferentes países seja algo como um jogo de palavras, uma gramática em trânsito.

A experiência e obra de ambas se encontram, por conseguinte, calcadas em figurações produzidas entre nações diferentes, entre lugares sociais diferentes, jamais unificadas na totalidade da origem étnico-racial, na totalidade de uma ancestralidade abrangente, mas sempre dependente da habilidade de produzir novas figurações, com tesouros roubados em gramáticas distintas, visados a partir de trânsitos entre lugares sociais insuspeitos.

Considerações Finais

O tempo e a geografia separam Virgínia Bicudo e Grada Kilomba. Todavia, ambas produziram trabalhos que, a despeito das diferenças, comprovam a existência do racismo, colocando em primeiro plano seus efeitos e danos à subjetividade de pessoas negras em sociedades pós-coloniais. Sociedades que, mesmo hoje, têm em suas estruturas regramentos que, em um plano prático e simbólico, dão margem para ações racistas e de subjugo de populações inteiras com base em suas “raças”. Acessadas a partir da “raça” que as distingue e distancia dos colonizadores de ontem, tais populações são enquadradas em subcategorias de uma sociedade que, supostamente, as antecederia, que existiria com ou sem elas.

Os tempos requerem mudanças urgentes. Trouxemos, aqui, duas autoras separadas por seis décadas que, apesar das diferenças de abordagem e análise, tratam de questões deveras semelhantes. Os relatos presentes nos dois livros analisados acima são prova disso: dor, trauma e sofrimento, de um lado, o do(a/e) colonizado(a/e), e aproveitamento de benesses e apagamento das violações, do outro, o do(a/e) colonizador(a/e).

Ao comprovarem a existência do racismo, tanto Virgínia Bicudo quanto Grada Kilomba caminharam em direção a avanços científicos, políticos, culturais e sociais no que se refere aos efeitos do colonialismo. No entanto, não basta que as autoras tenham realizado tais obras, estas necessitam ser efetivamente lidas e operacionalizadas. A mirada ao Norte já teve sua história e tem suas contribuições (a própria Kilomba é europeia), contudo, o Sul (no sentido não apenas geográfico, mas em termos de marginalização e, deste modo, podemos agregar o trabalho de Kilomba ao Sul) tem suas produções, as quais não apenas desvelam e comprovam fatos sociais concretos, no sentido durkheimiano do termo, mas propõem mudanças sociais, políticas, enfim, transformações estruturais fundamentais aos avanços sociais. Deste modo, ler e aproximar os trabalhos de Grada Kilomba e Virgínia Bicudo pode, de fato, contribuir em muito para avanços na área de Sociologia e na descolonização do saber-poder nas sociedades ocidentais pós-coloniais.

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1Para o autor, qualquer comunidade maior que as primitivas aldeias de contato face a face são imaginadas, não devendo ser avaliadas por sua (in)autenticidade, mas “pelo estilo em que são imaginadas” (ANDERSON, 1989, p. 15).

2No original: “Ultimately it is this fraternity that makes it possible, over the past two centuries, for so many millions of people, not so much to kill, as willingly to die for such limited imaginings” (ANDERSON, 1985, p. 16).

3Disponível no site da artista: http://gradakilomba.com/bio/. Acesso em 04/03/2020.

4Estes são os termos utilizados pela autora, os quais são repensados e problematizados, como veremos, por Grada Kilomba.

5Disponível no site da artista.

6Aqui, as demarcações em itálico, relativas a termos como branco, negra/o, outra/o entre outros, acompanham aquelas feitas por Kilomba em seu livro.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MARCONDES, Guilherme; MARQUES, Roberto. “Gramáticas do Atlântico Negro: Virgínia Bicudo e Grada Kilomba”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e75821, 2022.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, por meio de bolsa de pós-doutorado concedida ao autor principal

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 20 de Julho de 2020; Revisado: 25 de Novembro de 2021; Aceito: 10 de Dezembro de 2021

gui.marcondesss@gmail.com

enleio@yahoo.com.br

Guilherme Marcondes (gui.marcondesss@gmail.com) é pós-doutorando (com bolsa PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS/UECE). Doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ).

Roberto Marques (enleio@yahoo.com.br) é doutor em Antropologia Cultural pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ), professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (PPGS-UECE) e do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (URCA). Suas pesquisas dedicam-se às formas expressivas da articulação entre gênero, sexualidade, espacialidades e localização social.

Contribuição de autoria: Guilherme Marcondes dos Santos: concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados. Roberto Marques: concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados.

Conflito de interesses: Não se aplica

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