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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis maio/ago 2022  Epub 01-Maio-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n276463 

Artigos

Autonomia da mulher duplicada e sedução do estranho no Solaris, de Tarkovsky

Autonomía de la mujer duplicada y la seducción de lo extraño en Solaris, de Tarkovsky

Jason de  Lima e Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-2573-2921

1Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Departamento de Metodologia de Ensino, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900 - secretariamen@gmail.com


Resumo:

Solaris, de Tarkovsky, converte a ficção científica de Stanislaw Lem em um drama trágico: um problema da consciência, mas um dilema também da ação. Se há um anti-herói dramático, Kris Kelvin, há também uma heroína trágica, Hary, e ambos são formas antagônicas e complementares de uma mesma consciência. Alguns efeitos se desdobram de tal hipótese, na ordem sucessiva da experiência do estranho: o pavor, a sedução e a familiaridade na relação com o duplo. Mas há um grau superior no caráter fantástico dessa história: a autonomia da mulher duplicada, seu discurso e sua decisão no desfecho, atitudes a partir das quais é possível fazer uma interpretação feminista do filme. O discurso de Hary representa uma crítica da condição histórica e existencial da mulher, e Hary, em contrapartida, encarna o drama de uma subjetividade inautêntica, conforme o pensamento de Simone de Beauvoir.

Palavras-chave: mulher; consciência trágica; estranho; Tarkovsky; Solaris

Resumen:

Solaris, de Tarkovsky, hace de la ciencia ficción de Stanislaw Lem un drama trágico: un problema no solo de la conciencia, pero también un dilema de la acción. Si hay un antihéroe dramático, Kris Kelvin, igualmente hay una heroína trágica, Hary, ambos formas antagónicas y complementarias de la misma conciencia. Algunos efectos se desarrollan de esta hipótesis, en orden sucesivo de la experiencia de lo extraño: el pavor, la seducción y la familiaridad en relación con el doble. Pero hay un grado aún superior en el carácter fantástico de esta historia: la autonomía de la mujer duplicada, su discurso y su decisión en el desenlace. Actitudes en razón de las cuales es posible proponer una interpretación feminista de la película. El discurso de Hary representa una crítica de la condición histórica y existencial de la mujer, y Hary, en cambio, encarna el drama de una subjetividad inesencial, según el pensamiento de Simone de Beauvoir.

Palabras clave: mujer; conciencia trágica; extraño; Tarkovsky; Solaris

Abstract:

Tarkovsky’s Solaris converts Stanislaw Lem’s science fiction into a tragic drama: not only a problem of conscience, but also a dilemma of action. If there is a dramatic antihero, Kris Kelvin, there is also a tragic heroine, Hari, and both are antagonistic and complementary forms of the same conscience. Some effects of this hypothesis unfold, in successive order of the experience of the strange: the dread, the seduction, and the familiarity in the relationship with the double. However, there is a higher degree in the fantastic character of this drama: the autonomy of the duplicate woman, her discourse as well as her decision in the outcome, attitudes which permit a feminist interpretation of the film. Hari’s speech represents a critique of the historical and existential condition of woman, and Hari, on the other hand, embodies an inauthentic subjectivity according to Simone de Beauvoir’s thinking.

Keywords: Woman; Tragic Conscience; Strange; Tarkovsky; Solaris

Introdução

Solaris, de Andrei Tarkovsky, é uma obra de arte cinematográfica que corresponde a outra da literatura, Solaris, de Stanislaw Lem. O título homônimo designa o planeta em torno do qual a história se passa, um planeta cuja superfície “não chega a se equiparar à área da Europa”, que gira em torno de dois sóis, um vermelho e um azul, com uma composição atmosférica “desprovida de oxigênio” (LEM, 2017, p. 35). Solaris recebeu o Grande Prêmio do Júri e o Prêmio da Crítica Internacional no Festival de Cannes, em 1972. Como obra de arte, seu cinema tem a virtude e o perigo de não responder senão aos dilemas e desafios que coloca, e como os coloca, sensível e estruturalmente, para o seu espectador. Assim, o filme também se torna organismo autônomo em relação à fonte que o inspirou, como um satélite de cuja órbita pôde se destacar, por duas razões: primeiro, porque o valor do texto originário, ao ser oportunamente aproveitado na adaptação, ganha voz, cenário, atuação; mas também por aquilo que o roteiro subverteu em relação à sua fonte - especialmente, o que mais interessa para este estudo,1 a inclusão do discurso de uma personagem, Hary, que no filme é representada por Natalya Bondarchuk, um discurso sobre sua condição e sua existência, direcionado aos cientistas homens da estação, que pode, como pretendo demonstrar, traduzir o drama de uma subjetividade inautêntica (drama vivido no corpo duplicado de Hary), mas um discurso que também responde criticamente à condição imposta às mulheres, histórica e ontologicamente, segundo o argumento de Simone de Beauvoir, como veremos adiante. O romance polonês Solaris é de 1961 e o longa russo, de Tarkovsky, 1972. Este último converte a ficção científica de Lem em um drama trágico: um problema da consciência, mas um dilema também da ação. Se há um anti-herói dramático, há também uma heroína trágica, e ambos são formas antagônicas e complementares de uma mesma consciência, que não pode negar aquilo que acontece: a aparição da réplica de uma companheira do passado e a ilusão de reviver o romance interrompido, sem a culpa da separação e o subsequente suicídio da companheira. Alguns efeitos se desdobram de tal hipótese, na ordem sucessiva da experiência do estranho: o pavor, a sedução e a familiaridade na relação com o duplo da mulher que o amou. Mas há um grau superior no caráter fantástico dessa história: a autonomia da mulher duplicada, seu discurso e sua decisão no desfecho, atitudes a partir das quais é possível fazer uma interpretação feminista do filme. Por fim, o retorno de Kelvin à Terra e a reconciliação com o universo familiar.

Não pretendo fazer um estudo comparativo entre Lem e Tarkovsky, mas pensar a situação em razão da qual a vontade cosmológica de saber é interditada, e no limite escarnecida, pela materialização rigorosa e involuntária a seus tripulantes do objeto de desejo e de angústia, um drama psíquico e moral ao mesmo tempo: o improvável, na ordem causal da consciência, reaparece no espaço não apenas como o fantasma de um dilema não superado, mas também como forma humanizada de um corpo vivo, com o qual é preciso conviver. Sobretudo o caso entre Kris Kelvin (Donatas Banionis) e Hary (Natalya Bondarchuk). Kris Kelvin é o epicentro da narrativa, embora seja Hary a sua reviravolta. O discurso de Hary no filme produz uma guinada feminista, ainda que Tarkovsky não exponha nesses termos o conteúdo de seu trabalho. Hary não é apenas o eco de uma voz feminina reproduzida por uma consciência masculina, mas o lugar expressivo de articulação crítica, radicalmente feminista, sobre a condição histórica e existencial da mulher. Com base n’O segundo sexo, de Simone de Beauvoir (2016a, 2016b), a questão pode ser formulada assim: como se fazer humano dentro da condição feminina? Ou inversamente, como se tornar mulher, subjugada a uma condição não humana? Hary é o duplo impossível, mas real, reencontrada no espaço, dez anos após sua morte na Terra. No romance, Kris Kelvin é o narrador, o psicólogo cujo propósito de viagem é a recuperação do contato com a estação de Solaris: seu relato sobre a condição dos tripulantes implicaria seguir ou encerrar de vez a pesquisa sobre o planeta.

Viagens de aventura e vontade de saber

Uma indagação pode parecer ordinária para começar a análise de Solaris, embora tenha, à guisa de questão, seu efeito extraordinário: o que move alguém a viajar sem se opor aos desvios de seu percurso, sem saber se volta ou não à terra natal, e se voltar, sem saber se permanecerá o mesmo? O caso de Gulliver, o clássico personagem de Jonathan Swift, que se perde no caminho das Índias, padece na mão das pequeninas criaturas de Lilipute, vence o caminho de regresso à casa, mas não permanece mais do que dois meses com sua família: “o insaciável desejo de conhecer países estranhos não me permitia continuar lá [Londres] por mais tempo” (SWIFT, 1979, p. 69). Esse ímpeto, claro, não se encontra aos montes. Nossas viagens são, via de regra, programadas. Mas a ficção pode nos dar uma parte do gosto das explorações. Gosto incitado não raramente pela vontade de saber e pela curiosidade do desconhecido. Mas não haveria também uma vontade de poder na obstinação dos aventureiros ou aventureiras, tripulantes do espaço ou viajantes do tempo? Tal como no romance Nós, de Ievguêni Zamiátin, nas palavras do protagonista D-503, engenheiro construtor da Integral, nave que projeta para lançar ao espaço, em pleno esplendor tecnocrata e otimista do século XXVI:

Espera-se submeter ao jugo benéfico da razão os seres desconhecidos, habitantes de outros planetas […]. Se não compreenderem que levamos a eles a felicidade matematicamente infalível, o nosso dever é obrigá-los a serem felizes. Mas antes de recorrermos às armas, empregaremos a palavra (ZAMIÁTIN, 2017, p. 16).

Obrigá-los a serem felizes, pela astúcia retórica primeiramente, antes do convencimento bélico. Não é dada a escolha para os estrangeiros ou bárbaros do espaço: são submetidos “ao jugo benéfico da razão”, porque não é dada a escolha à própria sociedade terráquea que canta o Hino do Estado, Estado para a qual os corpos são como “células no ritmo da felicidade taylorizada” (ZAMIÁTIN, 2017, p. 70). No ano de publicação de Solaris, o livro de Stanislaw Lem, 1961, o presidente estadunidense John F. Kennedy anuncia para o seu Congresso o audacioso empreendimento de uma viagem à lua. A União Soviética já havia lançado em 1957 o primeiro satélite artificial do mundo. Ambos, Estados Unidos e União Soviética, viviam no auge da Guerra Fria, uma guerra efetiva em termos militares e geopolíticos, e efetiva também em termos tecnológicos e espaciais. Kennedy fala com aquela convicção que os estadunidenses têm de sobra:

Mas por que, alguns perguntam, a lua? Por que escolher esse como o nosso objetivo? Podem também perguntar por que escalar a maior montanha? Por que, há trinta e cinco anos, voar sobre o Atlântico? […] Nós escolhemos ir à lua! Nós escolhemos ir à lua nesta década e fazer outras coisas, não porque elas são fáceis, mas porque são difíceis, porque esse objetivo servirá para organizar e medir o melhor de nossas energias e nossas habilidades (KENNEDY, 1962, tradução nossa).

A soberba natural dos imperialistas: consagram-se a fins que possam medir os próprios meios, porque não são fáceis, mas difíceis. Qual a lógica? Os fins importam à medida que põem à prova os meios, as condições técnicas, a potência de um recurso, o sucesso de uma explosão. Se recorrermos a Da terra à lua, de Júlio Verne (2018), o projeto de lançar um foguete à lua em 1865 é concebido dentro de um clube de homens armamentistas da cidade de Baltimore, nos Estados Unidos, profundamente decepcionados pelo fato de não haver mais guerra, temerosos por verem sem lucro e sem efeito os seus preciosos conhecimentos de artilharia e balística. Se não há mais guerra, inventemos os foguetes! Para onde apontam esses foguetes, o que buscam, tudo isso é secundário para o clube dos belicistas de Baltimore, no tédio sofrido pela obrigação de viver em paz.

Ficção científica e drama trágico

Somente a literatura fantástica reúne gêneros tão distintos quanto entrecruzáveis, tais como a ficção científica, o drama trágico e as crônicas de viagem. Solaris, de Tarkovsky, está nesse cruzamento. O filme russo, baseado no romance polonês de Stanislaw Lem (publicado na era da disputa armamentista e espacial), não é exatamente uma ficção científica. A ficção científica é um dos elementos de Solaris, um elemento que, para Tarkovsky, era o menos importante, ainda que tenha gostado de construir foguetes e bases espaciais, como ele próprio admite (TARKOVSKY, 1998). Quando seu amigo Tonino Guerra lê a carta de uma jovem que lhe pergunta se a ficção científica é para ele um mundo pelo qual se apaixona ou é um modo de fugir da realidade, Tarkovsky, no documentário Tempo de viagem (1983),2 produzido pela TV RAI, responde de sua poltrona: “Nem uma coisa, nem outra.” Tarkovsky coloca dois problemas à pergunta, com base nos quais confessa não se sentir à vontade com a ideia de que seus filmes sejam puramente ficção científica: primeiro, porque não gosta de escapar da vida; segundo, porque se recusa a ver um filme seu reduzido a um gênero, sobretudo por um apelo de ordem comercial. “Por isso, quando fiz filmes de ficção científica não os considerei como tal” (TEMPO DE VIAGEM, 1983). Solaris o colocou nesse risco, já que não pôde “evitar certos detalhes fantasiosos” (TEMPO DE VIAGEM, 1983). Ao passo que, sobre o filme Stalker (1979), diz ele, “tirado de um romance de ficção científica [Piquenique na estrada, de Arkádi e Boris Strugátski] parece que consegui superar o gênero e destruir qualquer sinal de ficção científica” (TEMPO DE VIAGEM, 1983). Mas do que, afinal de contas, tratava Solaris? Tarkovsky responde no seu livro Esculpir o tempo, originalmente publicado em 1986: “Solaris tratava de pessoas perdidas no Cosmo e obrigadas, querendo ou não, a adquirir e dominar mais uma porção de conhecimento” (TARKOVSKY, 1998, p. 239). A ânsia infinita por conhecimento, “dada gratuitamente”, complementa, “é uma fonte de grande tensão, pois traz consigo ansiedade constante, sofrimento, pesar e desilusão, já que a verdade última nunca pode ser conhecida (TARKOVSKY, 1998, p. 239).

Tarkovsky ainda fala de uma consciência que provém do fato de o ser humano ter ultrapassado a lei moral, uma consciência que o atormenta: “até mesmo a consciência envolve um elemento da tragédia” (TARKOVSKY, 1998, p. 239). Essa me parece uma premissa central para o argumento estético de Solaris. Poderia ser chamada de ‘consciência trágica’. A poesia grega não inventou o conceito de consciência, ao menos no sentido moderno de consciência de um sujeito, em razão da qual seria capaz de pensar, decidir e se sentir culpado. Muito embora Eurípedes já tivesse feito a relação entre consciência e sofrimento no seu Orestes, representado em 408 a.C.: “Que doença (nósos) te destrói?”, pergunta Menelau. E Orestes responde no verso 396: “A consciência (sýnesis), porque pratiquei uma ação terrível” (EURÍPEDES, 1999, p. 47). Agamêmnon sacrifica Ifigênia, sua filha, irmã de Orestes e Electra: exigência dos deuses para a viagem de Agamêmnon a Troia, cuja frota ganha ventos favoráveis para cruzar o mar. Clitemnestra, para vingar a filha, mata Agamêmnon no retorno de Troia ao palácio de Argos. Orestes vinga a morte do pai: cumpre o ciclo de violência umbilical das culpas e dos resgates, pelo matricídio. A noção de hybris é também fundamental para a tragédia grega. Hybris é a desmedida, a ruptura com alguma ordem, a ideia de que uma fronteira foi ultrapassada, a fronteira que separa o divino do humano, por uma armadilha do divino, mas também por uma pretensão do humano, um querer a mais, um poder sem freios, uma audácia cujo efeito não se poderia calcular: o castigo inexoravelmente cai sobre o mortal, rei ou escravo, homem ou mulher. Édipo sabe que mata um homem pelo caminho, decifra o enigma da esfinge à porta de Tebas, sabe que se casa com uma rainha viúva, mas não sabe o quanto sua história já pertencia àquela cidade. Édipo se sente enganado pelo deus Apolo. Apollo que, por sua vez, é o nome da nave que leva os primeiros homens à lua: Neil Armstrong e Buzz Aldrin.

O argumento de Solaris, mais do que a exploração científica de um planeta, tem a ver com a imposição do passado na destinação humana. “Quando eu li o romance de Lem, o que me tocou, sobretudo, foram os problemas morais evidentes entre Kelvin e sua consciência, como manifestado na forma de Hary” (TARKOVSKY, 1994, p. 362, tradução nossa). Tarkovsky supõe padecer Kelvin de “uma consciência pesada, porque se sente culpado por um crime, e tenta mudar interiormente em relação a Hary” (TARKOVSKY, 1994, p. 363, tradução nossa). Essa perspectiva foi, aliás, uma das frustrações de Lem em relação ao filme: Tarkovsky não fez Solaris, mas Crime e castigo (LEM, 1987). “O que vemos no filme é apenas como o abominável Kelvin levou a pobre Hary ao suicídio e por isso tem dores de consciência que são agravadas por sua aparição: uma estranha e incompreensível aparição” (LEM, 1987, tradução nossa). Coincidência ou não, Tarkovsky inaugura seu diário de 1970 com uma anotação bastante reveladora: “Por ora eu devo ler. Tudo o que Dostoievsky escreveu […] ‘Dostoievsky’ poderia se tornar o mote principal de tudo o que eu quero fazer no cinema” (TARKOVSKY, 1994, p. 3, tradução nossa). E cita em seguida a urgência de Solaris e suas tensões com a produtora russa: “Agora Solaris. Por ora, o progresso é agonizantemente lento porque as coisas chegaram a um ponto de crise com a Mosfilm” (TARKOVSKY, 1994, p. 3, tradução nossa).

Talvez Kris Kelvin não tente, nem queira, “mudar interiormente” algo em relação ao que foi vivido com Hary, como supôs Tarkovsky, mas apenas sinta ser menos humanamente cruel a resignação diante do absurdo de reencontrar sua amante na órbita de outro planeta. Resignação que se torna cumplicidade recíproca, forma de vida a dois. Lem, em contrapartida, não poderia negar a condenação de seu personagem, imposta sobre si mesmo, em razão da memória de uma mulher por cuja morte, desde sempre, de alguma maneira, sente-se culpado; e o narrador confessa isso, no romance, ao ser flagrado pela primeira vez por Hary: “olhando-me atentamente, como se não soubesse que eu a havia matado” (LEM, 2017, p. 93). Por isso, não se trata apenas de um drama psíquico, mas também moral. Esse encontro de Kelvin com o duplo de um passado não totalmente sublimado é uma chave à mão para se abrir as primeiras portas da percepção da trama de Solaris. O passado do qual Kris não pôde se desviar, não pôde se proteger, nem pela psicologia, com toda a sua racionalidade, nem no espaço, com toda a sua imensidão. O passado nem sempre bem-vindo, na ruptura do qual muitas vezes está a surpresa de sua volta. É um argumento antigo se pensarmos em Édipo Rei, de Sófocles, c. 429 b.C., mas também em O passado não perdoa (1960), de John Huston. O retorno do passado pode ser traduzido, em termos freudianos, como a reativação do reprimido, cuja emergência produz o sentimento do estranho. Ele pode se dar em uma experiência banal, mas suficientemente inquietante para retirar o que subjaz do sujeito e irromper de outro lugar o que se julgava vencido. O inquietante (unheimlich), ou o estranho, para Sigmund Freud (2010b, p. 365), “é, também neste caso, o que foi outrora familiar (heimlich), velho conhecido. O sufixo un, nessa palavra, é a marca da repressão”. Não há sentimento do estranho sem a pressuposta normalidade, a despeito da qual atuam as engrenagens do inconsciente, embora o inconsciente não se reduza ao que foi reprimido, já que o reprimido, como diz Freud, “é uma parte do inconsciente” (FREUD, 2010a, p. 100).3 O inquietante estava ali, apenas não o víamos, e não poderíamos tê-lo visto, porque foi neutralizado pela consciência.

O drama de Kris Kelvin é antecipado no filme pela narrativa de um colega de profissão, Burton (Vladislav Dvorzhetsky), a um conselho de cientistas dedicados à investigação do universo: um depoimento gravado em videocassete há uma década ou mais, e revisto agora no aconchego da casa dos pais de Kelvin, um dia antes de sua partida. O anfitrião recebe Burton com amizade, brinca sobre Kelvin, seu filho: “Trabalha muito, noites a fio. Essa ciência solarística, um contador contando suas contas” (SOLARIS, 1972).4 A ironia tautológica traduz o círculo ocioso dentro do qual giram os estudos sobre o planeta há um século. O psicólogo, durante a sessão familiar, fala na degeneração da solarística. Terminado o vídeo, Kelvin tem uma conversa a sós com Burton, não sem antes perder o olhar na fotografia de uma jovem, emoldurada na parede, sua mãe, como vimos a saber mais tarde, figura de uma potência e de um significado exclusivo para Tarkovsky. O segundo signo, determinante para o drama, é também a fotografia de uma mulher: ela toma a atenção de Kelvin entre seus velhos papéis lançados à fogueira, depois da querela com Burton. Essa mulher, como descobrimos quando ele já está na estação, era sua companheira, Hary. A primeira mulher, sua mãe, ele perde durante a mocidade, sem que Tarkovsky esclareça suas razões. A segunda, sua companheira, põe fim à própria vida durante a juventude. A ausência de ambas as mulheres ocupa o imaginário de Kris Kelvin no espaço, e não por acaso: o trauma do desaparecimento da figura materna quando moço, o impacto de uma separação e um suicídio na juventude.

Nesse longo preâmbulo do filme, portanto, Kelvin recusa o testemunho de Burton aos cientistas que, à época, já não lhe tinham dado crédito. Burton sobrevoou o oceano de Solaris para resgatar dois colegas desaparecidos em uma exploração aérea: ele descreve a neblina viscosa, a calmaria da superfície, a visão das árvores e, por fim, a enorme e repugnante criança no planeta. A gravação em vídeo exibida no início do filme substitui o que vem só mais adiante no romance, no capítulo intitulado “O pequeno apócrifo”, uma coletânea de dissertações solarísticas: misticismos, comprovações e conjecturas, livro ao longo do qual, ocupando um lugar proeminente, Kelvin encontra o famoso relatório de Burton. A presença de Burton na datcha (casa de campo), seu depoimento assistido no vídeo com a família (através do qual já aparecem as primeiras imagens do oceano), em seguida a conversa pessoal entre ele e Kelvin: tudo isso é criado por Tarkovsky. Depois de partir, Burton faz uma chamada de vídeo a seu amigo, o pai de Kelvin, para ainda compartilhar a bizarra constatação de que a criança vista no planeta era a mesma que havia reconhecido no colo da mulher de Fechner, um dos companheiros mortos na explosão, quando esteve em sua casa para levar as condolências. Burton está em seu carro, atravessa longos túneis e viadutos, entre outros veículos que se cruzam no plano mais aberto da imagem de uma cidade cujas máquinas sobrevoam como pontos de luz no contraste da noite com os faróis acesos: Tarkovsky escolhe Tóquio como locação para essa sequência. Semelhantemente ao que acontece nas tragédias gregas, a inaceitável veracidade dos fatos é razão suficiente para que Burton seja neutralizado pelo diagnóstico de loucura. Édipo constrange Tirésias, o cego adivinho, a dizer a verdade, mas ao ouvi-la, Édipo recusa-se a entendê-la, e suspeita de um complô para usurpar seu trono (SÓFOCLES, 2017). Para Kris Kelvin, o problema é simples: ou ele determina a interrupção da pesquisa sobre Solaris, que já se arrasta, ou propõe bombardear o planeta. Burton pergunta então a Kelvin: “Você quer destruir aquilo que não é capaz de compreender?”, e diz mais: “Não, eu não defendo o conhecimento a qualquer preço. Conhecimento só vale se reside em fundamentos de moralidade” (SOLARIS, 1972).

Embora a ficção científica não se sobreponha à dimensão existencial da trama cosmológica, com a qual decisivamente Tarkovsky se preocupa, a discussão sobre ética e ciência está colocada, a exemplo desse diálogo, criado pelo diretor. No livro, há uma conversa entre Kelvin e Snout muito significativa também nesse sentido. Dr. Snout (Jüri Järvet), estudioso da cibernética, é quem recebe Kelvin na estação de Solaris, e o recebe muito confusamente, está assustado. No dia anterior havia se suicidado um companheiro de ambos, o fisiologista Guibarian (Sos Sargsyan). O suicídio é recorrente nessa história. Mais ao fim do livro, Snout fala a Kelvin: “Estou lhe avisando pela segunda vez: aqui existe uma situação além da moral” (LEM, 2017, p. 233). Se a ciência só tem validade caso ela se sustente em fundamentos morais, como agir humanamente quando a vontade de saber (em prol do contato com seres de outros mundos) produz uma situação para além da moralidade possível? Esse me parece o problema ético tanto do livro quanto do filme. O que, portanto, não interessa a Tarkovsky na ficção científica é o vício futurista que possa ocultar o problema da condição humana: ou na relação com o desconhecido, ou na intriga com o conhecido. A ideia de um longínquo planeta cujo oceano era uma espécie de gigantesco cérebro já era, como ideia, fantástica o bastante para Tarkovsky não perder o que parecia mais dramaticamente decisivo nessa história: a existência humana, o absurdo de vivê-la, o amor como ilusão rompida, sua reincidência, um castigo, mas um aprendizado também. Jean-Claude Carrière (2015, p. 110) tem razão ao dizer que “a ficção científica no cinema envelhece ainda mais rapidamente que nos livros, pois tem que dar forma e substância visível ao futuro”. Não por menos, Tarkovsky aconselha sua figurinista a não usar nos personagens roupas espaciais: “daqui a trinta anos as pessoas irão rir de nós”, conta a própria figurinista, Nelli Fomina (2016). A ficção cosmonáutica de Solaris serve então de pretexto para Tarkovsky pôr em cena um problema real em jogo, o da própria consciência: entre a cognição dos fenômenos e o sofrimento moral causado por seus significados. No caso de Kelvin, a constatação do fantasma vivo no presente e a rememoração de um passado que, como tal, não pode ser modificado. Mas, além desse par amoroso, Kris Kelvin e o (duplo de) Hary, Tarkovsky insere outro, problemático o suficiente para render boa parte da história da psicanálise: o par Kelvin e sua mãe (Olga Barnet).

O cinema tem uma potência semelhante à literatura: perscrutar a alma humana sob todos os aspetos. Antonin Artaud reivindica “filmes fantasmagóricos, poéticos, no sentido denso da palavra”. Mas o que significa isso? “O cinema reclama os temas excessivos e a psicologia minuciosa. Exige a rapidez, mas, sobretudo, a repetição, a insistência, a volta sobre o mesmo. A alma humana sob todos os aspectos” (ARTAUD, 2010, p. 10, grifo do autor). Solaris é uma espécie de vivissecção da alma de um psicólogo no espaço, fadado à exposição de um desejo impossível pela forma materializada do duplo de uma mulher, Hary. Mas de um duplo, e isso me parece extraordinário, que alcança rapidamente a autonomia de seu feminino, e se inclina à humanização, por dois atributos: o sentimento de amor e o reconhecimento de ser mulher naquele lugar, cujas condições, por mais desumanas que sejam, não a impedem de supor alguma independência em relação a seus próprios sentimentos, pelos quais ela luta e em razão dos quais ocupa o lugar de fala diante dos homens da ciência.

A sedução do estranho e o átomo mais doloroso

O filme tem quase três horas de duração. É o terceiro longa-metragem de Tarkovsky, depois de A infância de Ivan (1962) e Andrey Rublev (1966). O Prelúdio em fá menor, de Bach, abre os créditos iniciais, imagens de longas algas, muitas árvores, um lago, e os primeiros quarenta minutos nos aproximam da paisagem familiar em torno de Kelvin. A casa de campo de seu pai e sua companheira, a chegada de um amigo, crianças brincando, muita chuva repentinamente e um cavalo solitário na cena, como não raro em Tarkovsky. Não apenas cenário de uma despedida, mas prenúncio do incógnito, com as tensões em razão das quais a presença de Burton não alivia. Mas o que existe de mais estranho nesse planeta tão estudado e ainda tão pouco conhecido? Só lá Kelvin e nós, espectadores, saberemos. São os hóspedes: a resposta do oceano aos raios enviados pela estação. No livro de Lem há um capítulo, inclusive, intitulado “Os hóspedes”. Em polonês é a palavra goście, que no proto-indo-europeu corresponde a gʰosti (estranho ou inimigo). No latim hospes designa o que recebe hospitalidade, o estrangeiro, e hospis, por sua vez, o forasteiro, o inimigo. Cada tripulante acolhe o seu ‘hóspede’: uma criatura que retorna a suas cabines, que acompanha seus hábitos e necessidades, que aprende a comer e tem forma humana. Como isso acontece? Esse é o enigma no qual estão postos os personagens: Sartorius, Snout e Kelvin. O modo de lidar com esse enigma é que varia de um tripulante para outro. O fenômeno levou o fisiologista Guibarian ao suicídio, um dia antes de Kelvin chegar à estação. Na ocasião, Snout alerta o psicólogo: “Caso você veja algo fora do comum, que não seja eu ou Sartorius, tente não perder a cabeça”. “O que eu veria?”, pergunta Kelvin. “Depende de você”, responde Snout (SOLARIS, 1972). A resposta é quase um oráculo. Aconteça o que acontecer, lembra o novo tripulante de que os três não estão na Terra. Antes de sair da cabine de Snout, no filme, praticamente empurrado pelo cientista, Kelvin olha para o interior do aposento e flagra uma orelha desnuda, aproximada pelo enquadramento de câmara. A porta é fechada, Kelvin toma o corredor, encontra a cabine de Guibarian e uma fita de videocassete que lhe é destinada. Assiste na tela o próprio Guibarian, que se dirige a Kelvin e lhe aconselha a não tomar o fenômeno, nem suas consequências, por loucura: pode acontecer a qualquer um naquele lugar. Como Sartorius, Guibarian defende o bombardeio do oceano como única forma possível de contato com o monstro. O oceano é chamado em alguns momentos de ‘monstro’ no romance: “monstro pensante”, incompreensível e incomensurável.5 Monstruosas são também suas formações orgânicas. No livro, aliás, há um capítulo, “Os monstros”, com a descrição dos imponentes fenômenos da criatura marítima, analisadas na monografia de Geise, com a qual Kris se depara na biblioteca: ondas, erupções, cataclismos, segundo nomes científicos, longuinos, mimoides, simetríades, e suas variadas formas, ilhas, montanhas, construções gregas e romanas.

Na sequência do filme, Kelvin se afasta da cabine de Guibarian e parte em busca de Sartorius (Anatoly Solonitsyn), que demora a atendê-lo, não o permite entrar. Sartorius sai de sua cabine e segura com força a porta contra a qual batem pelo lado de dentro, mas não evita que um pequenino homem escape de seu interior, faça muito barulho e o puxe para dentro da cabine novamente. Primeira hora já transcorrida, o olhar de Kelvin atravessa a escotilha circular e vemos a imagem do oceano. Tarkovsky explora os efeitos plásticos de uma superfície coloidal em contrastes de verdes claros e escuros, com pontos cintilantes e movimentos circulares. Uma jovem ruiva caminha pelo corredor, às costas de Kelvin. Espantado, ele a segue, e chega ao refrigerador onde encontra o corpo de seu amigo, dr. Guibarian. Volta para seu aposento, assiste de onde parou a gravação do companheiro, quando vislumbra de relance em cena a jovem que viu pelas galerias da estação. Exausto, se estende na cama e dorme. Sentimos o intervalo do tempo, desde o seu conturbado pouso, quando uma parte do rosto de uma moça surge sob a luz de fogo das escotilhas. O enquadramento abre aos poucos: ela está sentada na poltrona diante de Kelvin, que desperta. Faz dez anos que Hary se foi, teria vinte e nove agora, mas parecia a mesma: “os mortos permanecem jovens”, pensa Kelvin no livro de Stanislaw Lem (LEM, 2017, p. 88). Ela se aproxima, sobe à cama, eles se beijam. Kelvin se senta, está impactado. Hary encontra um retrato, olha-se no espelho e se reconhece como a jovem da fotografia. Tem a sensação de que esqueceu alguma coisa. Pergunta se ele a ama. É insuportável, para ela, ficar longe de Kris. Kris, assim ela o chama, sempre pelo primeiro nome. O psicólogo não aceita essa realidade, está suado, muito suado desde que chegou à órbita de Solaris. Convence sua visitante a vestir uma roupa astronáutica. Na plataforma de lançamentos, Kris a conduz ao interior do foguete e rapidamente o ejeta: manda Hary para o espaço. Snout, um pouco mais tarde, faz graça do colega, mas também o acalma, vem a saber do suicídio de Hary. Snout lhe conta sobre a aparição dos hóspedes, fenômeno que começa logo após a experiência de bombardeio radioativo sobre o oceano, sem, no entanto, haver explicação até então de como o organismo protoplasmático extrai as informações de nossa memória, muito menos de como as visitas entram pela blindagem da estação. Snout diz a Kelvin ter tido sorte: “Esta mulher é apenas teu passado. E se tivesse aparecido algo que nunca viste na realidade, só em imaginação?” (SOLARIS, 1972). Se Kelvin sentiu medo, como diz a Snout para se desculpar, logo sente angústia, por não saber se pode ou não evitar o regresso de Hary. “Voltará?”, pergunta. Snout responde: “Sim e não”. “Uma segunda Hary?”, pergunta ainda Kelvin. “Podem ser muitas”, responde Snout (SOLARIS, 1972). Clément Rosset cita os casos de desdobramento da personalidade do outro nas histórias de terror, no livro O real e seu duplo, publicado em 1976. Não era o original que aparecia ao narrador ou protagonista, mas o seu duplo perverso. Apenas ao fim da trama surge “de súbito o original em pessoa, que zomba e se revela ao mesmo tempo como o outro e o verdadeiro” (ROSSET, 2008, p. 92). O que causa pavor. No caso de Solaris, o horror é inverso: a original é desde o início negada na estação, dela só havia restado a memória, não poderia estar ali, sua personalidade se desdobrou em uma criatura extraterrena, que tem corpo, palavra e emoção. Rosset suspeita sobre qual seja a origem da angústia sofrida no engodo entre o visível e o real, no trato com o outro: “Talvez o fundamento da angústia, aparentemente ligado aqui à simples descoberta que o outro visível não era o outro real, deva ser procurado num terror mais profundo: de o eu mesmo não ser aquele que pensava ser” (ROSSET, 2008, p. 92). No romance de Lem, Kelvin sonha com Guibarian, mas no próprio sonho ele o nega como o verdadeiro Guibarian e o espectro do companheiro lhe pergunta: “E como é que você sabe quem é você?” (LEM, 2017, p. 206). A pergunta reconduz o sujeito ao impacto do primeiro espanto, no abismo reencontrado entre o que se imaginava ser e o que já não se sabe mais quem seja. A existência duplicada do outro gera a desconfiança sobre quem se é: afinal, o que constitui a nossa humanidade e quais as suas fronteiras?

A cabine de Kelvin agora está envolta por uma coloração de cobre reluzente em contrastes mais escuros. “Kris, onde você está?”. Hary retorna entre as sombras, retira o seu xale de crochê e o coloca sobre a cadeira, ao lado do outro, idêntico àquele do qual se despiu antes de ser lançada às estrelas. No romance, Kris desabafa: “Esses dois [xales] idênticos eram a coisa mais terrível que eu já tinha presenciado até então” (LEM, 2017, p. 146). O duplo de um duplo perdido no espaço, mas antes, mimese de uma mesma mulher desaparecida na Terra. Impossível deixá-la sozinha. Em uma cena de angústia, fechada dentro da cabine, para alcançar seu amante, Hary se bate contra a porta metalizada até rasgá-la e se corta toda ao longo do corpo. Tem a vantagem de se regenerar rapidamente, mesmo do ácido, como logo depois Kelvin pode tirar a prova na análise química de seu sangue. Quando os três cientistas finalmente se encontram, Hary acompanha Kris, e ele a apresenta. Sartorius e Snout explicam que as criaturas são feitas de neutrinos, e não de átomos como nós, e que sua estabilidade depende do campo de força gerado pelo oceano. Sartorius, reparando Hary, elogia Kelvin por possuir “um belo exemplar”. Kelvin não gosta: “É minha mulher!” (SOLARIS, 1972). Quando Sartorius lhe propõe uma autópsia na sua parceira, o psicólogo lhe fala que isso seria o mesmo que amputarem a sua própria perna, afinal, ela sentiu dor quando se cortou na porta. A dor se torna o critério a partir do qual Kelvin protege sua hóspede de qualquer experimento ofensivo. Snout diz que o oceano captura dos sonhos as informações para a criação de suas visitas e propõe dois métodos para a sua desintegração: a emissão de raios na direção do oceano para a desestabilização dos neutrinos ou o encefalograma de Kelvin. A ideia do encefalograma é capturar seus pensamentos diurnos e enviá-los ao oceano para que seja bloqueada sua atividade noturna, quando justamente as visitas regressam.6 O psicólogo se coloca mais uma vez na defesa de Hary, ou melhor, de seu simulacro. Teme agora seu fim. Não quer se submeter à operação. Passou a amá-la como talvez nunca tivesse amado, mesmo a Hary da Terra.

Ambos estão perplexos e confusos com a situação que vivem: Kelvin não é mais o mesmo que conheceu e amou Hary original; e a réplica de Hary é outra que sua matriz […] A réplica de Hary é agora, para Kelvin, a única e verdadeira Hary: a Hary da Terra é que se tornou um fantasma de sua memória (Nazareno Eduardo de ALMEIDA, 2013, p. 167).

Inversão psíquica: o duplo passa a ser o único, ao passo que o real se torna a ilusão, e assim é novamente reprimido. Kris a ama, mas não pode amá-la senão na órbita de Solaris. Aqui há o que Louis Vax chama de “sedução do estranho”: “O sentimento do estranho torna o humano estranho a si mesmo. Ele o ‘aliena’.” (VAX, 1987, p. 13, tradução nossa). Há uma luta, mas diferente da batalha entre o senhor e o escravo. “A luta contra um obstáculo exterior se exalta e se fortifica pelo combate. O sentimento do estranho é uma tentação: face à sua ameaça, a coragem consiste na fuga e a covardia no confronto” (VAX, 1987, p. 13, tradução nossa). Livre do confronto com a verdade científica, Kelvin tem a coragem de se deixar atraído pela estranheza da situação. O psicólogo é quem, por isso mesmo, entra radicalmente em contato com o oceano: falam o mesmo idioma, pelo corpo e pela voz de uma mulher. Ele (o oceano) entrou em mim, diz o narrador de Stanislaw Lem, “nem sei como, para percorrer toda a minha memória e descobrir seu átomo mais doloroso” (LEM, 2017, p. 238).

Familiaridade do estranho e autonomia da mulher duplicada

Por qual razão Tarkovsky teria evitado o cenário e o figurino futuristas da ficção científica? Para se manter próximo da literatura? A vantagem é que na literatura se pode mais facilmente abstrair a imagem futurista de uma ficção científica e por isso mesmo preservar o território da estranheza: pela aparência de normalização do absurdo. O leitor facilmente minimiza o primeiro choque e é absorvido pela expansão de um universo privado, nas longas conversas cúmplices de um casal, nos reencontros e carinhos casuais. No filme, Kelvin chega a compartilhar com Hary um videocassete gravado pelo seu pai, mais jovem. Tarkovsky usa esses vídeos como camadas narrativas, telas dentro de telas: montanhas de neves cercadas de árvores, semelhante a Bruegel, enfatizado mais adiante. Aparece a mãe de Kris nessa gravação, em distintos momentos na paisagem, melancólica, esquiva, Kris ainda criança, depois mais moço. Ao fim, surge Hary, Hary que acena e se apoia em uma árvore. “Aquela mulher de casaco branco me odiou”, comenta a Hary do espaço sobre a mãe de Kelvin (SOLARIS, 1972). Ela morreu antes de se conhecerem, fala Kris. Jogo simbolicamente curioso de sobreposições entre uma e outra mulher, como se disputassem o lugar da falta de Kris, no luto estendido por amores não completamente vividos. Não à toa, nos delírios de Kris Kelvin durante seu encefalograma, já ao fim, a imagem materna volta: ele vê Hary em cores, vai ao seu encontro e abraça o corpo feminino, já em preto e branco, e o rosto que vemos em seguida, de outro plano, é o de sua mãe. Como foi sua viagem, ela pergunta. Ele se diz cansado, sente-se só, ao que sua mãe lhe responde com ternura: “Você leva uma vida estranha, está mal cuidado, sujo” (SOLARIS, 1972).

Pavor, sedução e familiaridade: esses três níveis do estranho são importantes para a interpretação de Solaris. A sensação de pânico e de pavor, na primeira aparição de Hary, conciliada pela sedução e pela naturalização do estranho, território propício para aceitar, subsequentemente, a familiaridade de uma vida a dois. Mas, para além desses três níveis, há outro fator que configura um grau superior e distinto do estranho em Solaris. À medida que o duplo de Hary ouve as conversas entre os homens e percebe o que está em jogo, sabe que a Hary de fato se envenenou e que ela, por sua vez, resulta de algo diferente da Hary original. Implora a palavra de Kris. Ele lhe conta a respeito de seu caso com Hary da Terra, a mudança para outra cidade, depois a repetição das brigas, o rompimento, a ameaça de suicídio por parte de sua companheira, a morte logo após deixá-la. “Talvez tenha compreendido que eu não a amava, mas agora estou amando”, diz Kris, e pede para Hary dormir. “Não sei dormir”, ela responde, e fala de memórias longínquas, tem a consciência de não ser um sonho. “Isto é apenas um sonho”, afirma Kris (SOLARIS, 1972). No livro de Lem, Kelvin diz à companheira sideral: “fiz uma coisa horrível”. “Para ela?”, pergunta a Hary de Solaris. “Sim, quando estávamos…”. “Não diga nada”, ela o interrompe. “Por quê?”. “Porque quero que você saiba que não sou ela” (LEM, 2017, p. 223). A réplica se destaca de seu original para amar um homem ao qual já sentia pertencer, ao passo que Kelvin se dá conta de que ama outra mulher, porque o que julga ter feito no passado não o autoriza a amar a mesma mulher, a que está morta. Estranhada de si, o duplo de Hary repete a destinação de seu original, tenta o suicídio, toma oxigênio líquido, mas fracassa. A repetição do trauma para Kelvin é negada pela revivificação de Hary. “É horrível”, comenta Snout, “não consigo me habituar a essas ressurreições”, e se retira (SOLARIS, 1972). É uma cena terrivelmente dramática. Hary está deitada, morta e pálida de olhos abertos. Veste uma camisa azul, umedecida e transparente. Tem sangue seco nos lábios, sofre o primeiro espasmo, e o segundo, escorre sangue da boca. O plano se abre, vemos inteiramente seu corpo, a profundidade do corredor em forma de arcos, uma perna flexionada, os cotovelos apoiados no chão, a cabeça erguida. Ela se contorce e se deita, tem tremores e convulsões, luta pelo ar. Kris a recolhe sentada, cobre-a com um robe. Hary reconstitui a percepção das coisas, aos poucos, com olhos semiabertos, gelidamente suada. Ela põe em dúvida quem seja e sabe que está fatalmente impedida de ser a outra, a original, e assim se vê condenada a ser o outro, o outro da mesma, mas também daquela que ressuscita. Julga-se repugnante a Kelvin, mas ele nega, diz amá-la. Snout alerta Kelvin: “Quanto mais tempo fica aqui com você, mais se humaniza” (LEM, 2017, p. 230). Kelvin passa a ter crises, se recolhe com Hary, tem calafrios. Se o sentimento do estranho é gerado pelo horror ao desconhecido (ainda que retorne como o familiar), o alienígena ou replicante, ao tomar alguma consciência existencial, estranha uma realidade da qual desde sempre esteve excluído.

É um lugar-comum na literatura. A interdição da humanidade transforma o ser no monstro. É o drama da criatura do dr. Victor Frankenstein. Escondido, no depósito de lenha de uma cabana, observa pelas frestas a vida de uma família. Aprende o amor pelas palavras, o prazer de ouvir um canto, encanta-se pelas pessoas daquele lar, mas logo percebe não fazer parte daquele mundo, nem de mundo algum: vê a impossibilidade de ser acolhido pelos outros em razão do terror que inspira sua imagem. Nasce o sentimento de vingança. A vontade de aterrorizar ocupa a impossibilidade de ser amado. Mas, em vez de matar as pessoas amadas próximas de seu criador, como fez a criatura de Frankenstein na história de Mary Shelley (2015), a Hary de Solaris se sacrifica: não necessariamente pelo amado, menos ainda pela ‘humanidade’, mas, antes, sacrifica-se pela impossibilidade de amar e de humanamente sentir. É ela quem pede o teste com base no encefalograma e o registro de pensamentos diurnos, conscientes, que são enviados ao oceano, antes da absorção dos sonhos noturnos: “uma explosão de luzes e o sopro do vento”, como diz Snout ao fim do filme (SOLARIS, 1972). A operação foi um sucesso. Hary não volta. Snout mostra a Kelvin a carta escrita por ela: lamentou trair o parceiro, mas julgou ser melhor para os dois. Confessa ter sido ela quem solicitou aos cientistas a experiência de sua autodestruição.

Mas antes desse desfecho, há uma sequência no filme bastante significativa para se entender o fenômeno da humanização feminina do duplo: o aniversário de Snout na biblioteca. O cenário sustenta uma repetição de ícones de nossa cultura: um busto de Sócrates, a série dos Meses de Bruegel, uma Vênus de Milo ao fundo de Snout, castiçais e velas, muitos livros, claro, e um vitral atrás de Kelvin. Hary participa do encontro. Estão reunidos em silêncio, menos Snout, que chega mais tarde, bastante atrasado para o próprio aniversário. Parece bêbado, toma o livro da vista de Kelvin: “Nada disso presta”, pega outro livro e pede a Kelvin que leia determinada passagem. É uma fala de Sancho de Dom Quixote:

Só sei uma coisa, meu senhor, quando estou dormindo desconheço o medo, as esperanças, os trabalhos e a beatude. Agradeço a quem inventou o sono, esta única balança que iguala um pastor a um rei, um imbecil a um sábio. Mas também tem seu lado negativo, parece-se muito com a morte (SOLARIS, 1972).

O sono é a esquiva do real, o corte demiúrgico do quotidiano, e necessário. O real que é suportável, na maioria das vezes, mas não por todo o tempo, continuamente. Nem as esperanças nem os medos da vigília nos esgotam. É semelhante o sono a um intervalo cíclico entre as ansiedades e as decepções da vida diária, ativa e desperta. Só apresenta o inconveniente de ser próximo da morte, pela qual em contrapartida todos os problemas são resolvidos, ao menos para quem se vai. O encontro da biblioteca não representa uma comemoração muito agradável. As diferenças já estão bem claras entre os tripulantes, por isso também nada mais precisam esconder. Sartorius zomba de Kelvin por passar os dias deitado com sua namorada, não entende o que ele veio fazer em Solaris. Sartorius representa o pragmatismo do espírito científico, a verdade segura na sua forma de método, aplicação e resultado, e por isso julga ter Kelvin perdido totalmente a noção de realidade. Hary intervém em defesa de seu companheiro: “Kris parece mais consequente que vocês dois”, ela fala. “Continua a ser humano, apesar destas condições desumanas […]. Para vocês, as visitas são uma coisa estranha, irritante. Mas as visitas são vocês mesmos, são a sua consciência” (SOLARIS, 1972). Não permite que Sartorius a interrompa. Hary se diz mulher - “eu ainda sou uma mulher” -, e se coloca firmemente no lugar da fala. Sartorius reage: “Mulher? Você nem mesmo é um ser humano […] Você é uma réplica mecânica, uma cópia, uma imitação” (SOLARIS, 1972). Dr. Sartorius desloca Hary para um lugar provisório, alheio, sem direitos ou razões que o valham para existir, sentir ou falar. A verdade dita perturba não apenas o cientista da humanidade, mas o homem da ciência. Hary se reconhece como mulher, antes mesmo de enfrentar o problema de ser ou não ser humana. O seu discurso feminino, para não dizer feminista, não portaria também um corpo de mulher? (Muito embora existente apenas neste encontro entre o inconsciente de Kris e a materialização do planeta Solaris). Simone de Beauvoir, n’O segundo sexo, escreve:

Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana (BEAUVOIR, 2016a, p. 26).

A mulher é o outro do homem, mas o outro da mulher (o segundo sexo) não é o homem. Não há, nesse caso, reciprocidade, muito menos autêntica alteridade: “para um indivíduo do segundo sexo, o outro sexo não é o masculino, mas o feminino, ou seja, o seu mesmo. A mulher é o outro para si mesma. Ela não é o outro do Outro, ela é o outro do Um” (Izilda JOHANSON, 2020, p. 4). Como o outro do essencial, ela mesma, a mulher, é constituída histórica e ontologicamente como ser inessencial (ou inautêntico), em termos existencialistas. Se a questão, para Beauvoir (2016a), é como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina, a questão, para Hary é: como se tornar mulher, subjugada a uma condição não humana? Tornar-se mulher não significa tornar-se algo de uma vez por todas, causa final da imanência de sua condição, já que mulher, como escreve Judith Butler (2019, p. 69), “é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e ressignificações”.7 Hary encarna, portanto, o drama de uma subjetividade inautêntica e é nesse sentido que cabe à obra de Tarkovsky uma interpretação feminista. Como tal, Hary representa um perigo, uma negatividade, maniqueísmo previsível de sua condição fantasmática, até é possível dizer. Mas antes, ameaça pressuposta na sua apresentação e posição de mulher. Para Beauvoir (2016a, p. 115-116):

No momento em que o homem se afirma como sujeito e liberdade, a ideia de Outro se mediatiza. A partir desse dia a relação com o Outro é um drama: a existência do Outro é uma ameaça, um perigo. A velha filosofia grega, que nesse ponto Platão não desmente, mostrou que a alteridade é a mesma coisa que a negação e, portanto, o Mal.

Logo após Sartorius anulá-la como mulher por negá-la como pessoa, para voltarmos ao filme, Hary lhe responde: “Você pode ter razão. Mas eu estou me tornando humana […]. Eu já não preciso dele para viver. Eu sinto tanto quanto você […]. Eu amo. Eu sou humana” (SOLARIS, 1972). Sentir e amar, sem necessariamente depender de outro, ou se ver fadada a ser ‘o Outro’, se converte nos princípios em razão dos quais é possível tornar-se humana, reconhecer-se humanamente. Ainda que o amor não seja para a mulher, predominantemente, uma experiência de mediação para si mesma: “na maioria dos casos”, argumenta Simone de Beauvoir (2016b, p. 489),

a mulher só se conhece como outro; seu ‘para-outrem’ confunde-se com seu próprio ser; o amor não é para ela um intermediário de si para si, porque ela não se encontra em sua existência subjetiva; permanece mergulhada nessa amante que o homem não somente revelou como criou; sua salvação depende dessa liberdade despótica que a fundou e pode em um instante aniquilá-la.

Hary chora visceralmente depois de declarar ódio àqueles homens. Kris se ajoelha à sua frente, Sartorius grita para impedi-lo, pois não aceita a subordinação de seu colega cientista ao que chamou antes de “belo exemplar”. Sartorius se retira. Snout comenta fazerem mal por brigar, perdiam assim a dignidade humana. “Não”, responde a Hary da estação. Vocês “são homens, cada qual à sua maneira. É por isso que brigam” (SOLARIS, 1972). Kelvin acompanha Snout à saída, mas logo volta à biblioteca: Hary está só, sentada sobre a mesa, fumando um cigarro, compenetrada na pintura d’Os caçadores da neve. Contemplamos com ela as distintas figuras da tela, duração que dilata também as emoções. Repentinamente, o castiçal levita, o lustre trepida. O oceano altera regularmente a órbita do planeta, a estação se readapta, perde internamente sua força gravitacional. É o que acontece nesse momento. Hary e Kris também são suspensos do chão, lentamente. Kris a toma pela cintura. Sobrevoa, no primeiro plano da cena, o livro de Cervantes, aberto, e vemos uma das ilustrações de Gustave Doré. Ao som de Sebastian Bach, o casal abraçado levita no salão, como se fosse um sonho, tiramos proveito do cenário: uma das mais belas temporalidades de Tarkovsky.

No início de toda essa sequência, quando Snout chega à biblioteca para o encontro, Sartorius lhe propõe um brinde. Snout diz algo perspicaz o bastante para desbancar nossa vontade de saber ocidental, prisioneira não apenas das mais variadas formas de machismo, mas de um humanismo narcisista, na herança do qual o “último humano” (der letzte Mensch), nas palavras de Zaratustra (NIETZSCHE, 2011), sente a Terra ficar pequena demais para ele.8 Por isso o conhecimento da Terra não lhe basta, em contrapartida, o que busca no universo não é outra coisa senão a expansão de si mesmo, de seu saber e de seu poder, e da própria Terra. O contato buscado no universo reforça o ímpeto imperialista de submeter o outro desconhecido. Mas como dominar o que não se conhece? A vontade de domínio do universo, e de suas espécies vivas, não acusaria uma das sintomáticas formas de machismo? O brinde de Sartorius é em homenagem a Snout e à ciência, ao que replica o aniversariante da nau de Solaris:

Ciência? Tolice! Na nossa situação, o gênio e o medíocre são igualmente impotentes. Dizemos que pretendemos conquistar o Cosmo. Na realidade, só queremos aproximar a Terra das fronteiras dele. Não nos importam outros mundos. Queremos é um espelho. Procuramos muito contato, mas nunca o encontraremos. Estamos na situação idiota de quem aspira um objetivo que teme e do qual não necessita. O humano precisa apenas do humano (SOLARIS, 1972).

Considerações finais

É possível pensar Solaris, de Tarkovsky, como um drama trágico. Se Kris Kelvin está mais próximo do anti-herói dramático, Hary, em contrapartida, pelo discurso e pela ação, é a heroína trágica por excelência. No desfecho do filme Solaris, Kelvin sonha com sua mãe na estação, volta à Terra e se ajoelha à soleira da porta diante do pai, que o acolhe na chuva. Essa foi uma das razões para Lem definitivamente não ter gostado do filme. O escritor esperava que Kelvin encontrasse “algo extraordinário no universo”, mas o cineasta criou, segundo o escritor, “a visão de um cosmo desagradável seguida pela conclusão de que se deveria voltar imediatamente para a Mãe Terra” (LEM, 2003). Mas, para Tarkovsky, suponho, o regresso encerra o ciclo dramático por uma peripécia também do espiritual: não se volta nunca mais o mesmo. Sobretudo quando a ‘mesma’ mulher, que se supunha conhecer, vem a ser ‘outra’, impensável, mas real, e não apenas ‘o outro do mesmo’. Sem ela, no entanto, o homem, o protagonista, passa a pressentir o terror de se ver novamente só e todo o ser do universo não é senão o reverso de seu nada, eco de seu vazio. Quando o espelho das convicções de Kelvin se quebra no espaço, é a Terra quem o acolhe, muito embora partido, dividido no interior de si mesmo. Uma conversa com Snout, na biblioteca da estação, reúne algumas belas questões filosóficas e existenciais para o tom final do filme: as razões da vida, as perguntas sem respostas, a vontade de saber: “as simples verdades humanas requerem mistérios. O mistério da felicidade, da morte, do amor”, diz Kelvin (SOLARIS, 1972). O sentimento de horror, sedução, familiaridade do estranho, por parte de Kris, e a autonomia da mulher duplicada, por parte de Hary, com relação ao outro e a seus próprios sentimentos, configurada no ímpeto de um discurso e na soberania de sua decisão final, revela não somente a fragilidade da consciência, mas o perigo da ciência, quando atuam sob a ilusão de um domínio de seus meios e fins. Ambas, é bom lembrar, ciência e consciência, já são criações e reproduções de hierarquias de gênero na história do Ocidente, predominantemente masculinas no próprio filme.9 Continuamos, em todo caso, estrangeiras e estrangeiros de um cosmo tão curioso quanto temível. O extraordinário talvez não provenha radicalmente senão das coisas mais familiares da Terra, algumas vezes reservadas ao sono, outras, aos segredos não sublimados do coração.

Referências

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1Este artigo é resultado de uma das pesquisas desenvolvidas durante o estágio de pós-doutorado em Filosofia da Arte, realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 2020, em parceria com a Saint-Louis University de Madrid, Espanha, sob a supervisão do professor Renzo Llorente.

2O documentário Tempo de viagem trata da viagem de Tarkovsky, com sua companheira Larisa Tarkovskaya, à Itália, onde são recebidos pelo poeta e roteirista Tonino Guerra para o estudo das locações do próximo filme de Tarkovsky, Nostalgia, de 1983. É fundamental o olhar e as intervenções de Larisa Tarkovskaya, como assistente de direção, para a escolha dos lugares do filme, dirigida aos menos turísticos e previsíveis da paisagem italiana, arquitetônica ou natural, de uma beleza e profundidade distintas, se comparadas àquelas que se tornaram mais repetidamente vistas na propaganda das agências de viagem ou no próprio cinema.

3No ensaio O inconsciente, de 1915, Freud adverte: “Aprendemos, com a psicanálise, que a essência do processo de repressão não consiste em eliminar, anular a ideia que representa o ‘instinto’, mas em impedir que ela se torne consciente. Dizemos então que se acha em estado de ‘inconsciente’, e podemos oferecer boas provas de que também inconscientemente ela pode produzir efeitos, inclusive aqueles que afinal atingem a consciência. Tudo o que é reprimido tem de permanecer inconsciente, mas constatemos logo de início que o reprimido não cobre o que é inconsciente. O inconsciente tem o âmbito maior; o reprimido é uma parte do inconsciente” (FREUD, 2010a, p. 100).

4As citações do filme Solaris (1972), dirigido por Tarkovsky, foram retiradas diretamente da legenda em português produzida pela Mosfilm/Continental Home Vídeo (DVD). Os nomes próprios também foram mantidos segundo a indicação da legenda, cuja grafia se altera um pouco comparada àquela do romance.

5Quando, por exemplo, ao fim, Kelvin é submetido ao encefalograma: “Meu encefalograma. Um registro completo de todos os meus processos cerebrais transformados em oscilações de uma penca de raios que será enviada lá para baixo. Para o interior daquele incompreensível e incomensurável monstro […] O encefalograma é o registro completo. Até dos processos inconscientes” (LEM, 2017, p. 237). Mas já no início do livro o oceano é chamado de “monstro pensante” pelo narrador, diante do qual julgavam estar os cientistas, como se fosse um “mar-cérebro protoplasmático” (LEM, 2017, p. 42).

6“O Sartorius acha que, como o ‘hóspede’ sempre aparece só quando a gente acorda, aparentemente o oceano retira de nós a receita de sua produção durante o nosso sono. É por isso que ele age dessa forma. Então, o Sartorius quer mandar para ele o nosso estado de vigília, os pensamentos conscientes, entende?”, explica Snout a Kelvin no romance (LEM, 2017, p. 196).

7Vale não apenas ler a citação completa, mas o que segue dela, que serve de fundamentação para o que Judith Butler chama de “genealogia da ontologia de gênero”, quando retorna a Simone de Beauvoir para o esclarecimento do termo mulher: “Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se mulher em definitivo, como se houvesse um telos a governar o processo de aculturação e construção. O gênero é a estilização repetida do corpo” (BUTLER, 2019, p. 69).

8Em Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, aparece a descrição do “último homem”: “Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela? ― assim pergunta o último homem, e pisca o olho. A terra, então, se tornou pequena e nela saltita o último homem, que tudo apequena” (NIETZSCHE, 2011, p. 18).

9Vale, sob esse aspecto, uma citação bastante esclarecedora de Judith Butler: “Na tradição filosófica que se inicia em Platão e continua em Descartes, Husserl e Sartre, a distinção ontológica entre corpo e alma (consciência, mente) sustenta, invariavelmente, relações de subordinação e hierarquia políticas e psíquicas […] As associações culturais entre mente e masculinidade, por um lado, e corpo e feminilidade, são bem documentadas no campo da filosofia e do feminismo. Resulta que qualquer reprodução acrítica da distinção corpo/mente deve ser repensada em termos de hierarquia de gênero que essa distinção tem produzido, mantido e racionalizado” (BUTLER, 2019, p. 35-36).

Como citar este artigo de acordo com as normas da revista: LIMA E SILVA, Jason de. “Autonomia da mulher duplicada e sedução do estranho no Solaris, de Tarkovsky”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e76463, 2022

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 16 de Agosto de 2020; Revisado: 10 de Maio de 2021; Aceito: 01 de Julho de 2021

jlimaesilva@yahoo.com.br; blogphilosophia@gmail.com

Jason de Lima e Silva (jlimaesilva@yahoo.com.br; blogphilosophia@gmail.com) é professor de Filosofia, atua na área de Ensino e Filosofia, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e se dedica aos estudos da Filosofia da arte. Editor da série Filosofia, arte e educação, da Apoloro virtual edições. Líder do grupo Filosofia, arte e educação, vinculado ao Diretório de Pesquisa do CNPq

Contribuição de autoria: Não se aplica. A versão original deste artigo foi traduzida para o inglês por Tony O’Sullivan (osullivan.tony@gmail.com)

Conflito de interesses: Não se aplica

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