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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis maio/ago 2022  Epub 22-Fev-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n277256 

Artigos

Beauvoir e a crítica à supervalorização masculina na psicanálise freudiana

Beauvoir and the critique of male overvaluation in Freudian psychoanalysis

Beauvoir y la crítica de la sobrevaloración masculina en el psicoanálisis freudiano

Diego Luiz Warmling1 
http://orcid.org/0000-0003-4400-8170

Mateus Gustavo Coelho1 
http://orcid.org/0000-0002-6580-9279

Paula Helena Lopes1 
http://orcid.org/0000-0001-5724-7096

1Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900 - gr@contato.ufsc.br


Resumo:

Para Freud, a mulher é fortemente influenciada pelo complexo de Édipo negativo, sendo destinada a viver a condição passiva da sexualidade, assim, ele não só não encoraja a autonomia feminina, como descreve a feminilidade tendo por base o modelo masculino. Destarte, a crítica de Beauvoir à psicanálise parte da ideia de que a possibilidade de algo como um destino feminino não existe. A filósofa afirma que a condição de imanência à qual as mulheres se encontram em nossa sociedade, está pautada na socialização à qual são submetidas, privando-as da transcendência. Partindo da leitura da obra de Beauvoir, buscamos compreender melhor a situação das mulheres considerando seus contextos históricos, a fim de reivindicar suas possibilidades ontológicas da liberdade, problematizando o lugar que lhes é imposto pela cultura e reforçado pela supervalorização masculina da psicanálise freudiana.

Palavras-chave: liberdade; imanência; transcendência; segundo sexo; existencialismo

Abstract:

According to Freud, women are strongly influenced by the negative Oedipus, being destined to live the passive condition of sexuality, thus, not only does it not encourage female autonomy, but describes femininity based on the male model. In this way, Beauvoir's critique of psychoanalysis starts from the idea that the possibility of something like a female destiny does not exist. Beauvoir affirms that the condition of immanence to which women find themselves in our society, is based on the socialization to which they are submitted, depriving them of the transcendence. Starting from reading of Beauvoir's work, we seek to understand the situation of women considering their historical contexts, in order to claim their ontological possibilities of freedom, problematizing the place imposed on them by culture and reinforced by the male overvaluation of Freudian Psychoanalysis.

Keywords: Freedom; Immanence; Transcendence; Second Sex; Existentialism

Resumen:

Para Freud, la mujer está fuertemente influenciada por el Édipo negativo, estando destinada a vivir la condición pasiva de la sexualidad, él no solo no fomenta la autonomía femenina, sino que describe la feminidad a partir del modelo masculino. Así, la crítica de Beauvoir al psicoanálisis parte de la idea de que no existe la posibilidad de algo así como un destino femenino. La filósofa afirma que la condición de inmanencia a la que se encuentran las mujeres en nuestra sociedad, se basa en la socialización a la que están sometidas, privándolas de la trascendencia. A partir de la lectura de la obra de Beauvoir, buscamos comprender mejor la situación de las mujeres considerando sus contextos históricos, para reivindicar sus posibilidades ontológicas de libertad, problematizando el lugar que les impone la cultura y es reforzado por la sobrevaloración masculina del psicoanálisis freudiano.

Palabras clave: libertad; inmanencia; trascendencia; segundo sexo; existencialismo

Freud e o feminino como horizonte de ambivalência

Nota introdutória

Apesar de que os estudos sobre a histeria estivessem presentes no início das teorias psicanalíticas1, podemos dizer que Freud apenas debruça-se de forma efetiva em relação ao horizonte feminino a partir da segunda tópica2. No século XX, com as mulheres tendo maiores liberdades no cenário social, algumas começaram a se destacar junto aos debates em relação à psicanálise. No “entre-guerras”, muitas se tornaram psicanalistas, o que denunciou a necessidade de reformulação de noções como a sexualidade, a diferença sexual, o complexo de Édipo e até mesmo a libido. Destituídas de suas vozes, as mulheres por vezes eram vistas como objetos de estudo, destinadas apenas a fazer progredir o saber psicopatológico. A emergência das críticas em relação ao lugar da mulher na sociedade desencadeou, pois, uma revisão dos referenciais fálicos aceitos pela psicanálise. Notou-se, por exemplo, que boa parte das especulações freudianas se valiam de modelos capazes de sustentar “um monismo sexual e [...] uma essência viril da libido humana” (Elizabeth ROUDINESCO, 2003, p. 60). Em favor de certa ‘neutralidade epistemológica’, pautando sua teoria por viés ativo da libido e, com isso, corroborando uma leitura masculinista da sexualidade, Freud afirma que a menina tanto ignora sua vagina, como torna o clitóris um homólogo do pênis; onde se segue a impressão da castração.

O órgão ‘castrado’ faz com que a menina tome consciência da “vagina, recalcando sua sexualidade clitoridiana, ao passo que o menino vê na penetração um alvo para sua sexualidade” (ROUDINESCO, 2003, p. 60). Disto, deduz-se que a disposição sexual feminina é uma diferenciação em relação ao primado fálico da sexualidade. Secundário, o feminino é o que não é o falo. Na menina, a sexualidade “se organiza em torno do falicismo: quer um menino e deseja um filho do pai” (ROUDINESCO, 2003, p. 60). Assim, distintamente do complexo de Édipo masculino, o desenvolvimento da menina deve desvincular-se de um objeto do mesmo sexo (a mãe), para, só assim, trocá-lo pelo sexo oposto. Em Freud, este é o processo por meio do qual incide o complexo de Édipo negativo.

Pautada por este estigma, a menina desliga-se de um objeto do mesmo sexo (a mãe) e se dirige ao sexo oposto. Investindo-o de valor fálico, ela deseja o ‘objeto por excelência’: um filho do pai, ainda que fictício. Todavia, por mais que a libido seja ativa e masculina, figura em ambos os sexos um apego primordial à mãe, indicando que não há condutas puramente femininas ou masculinas. No inconsciente, dado o suposto da bissexualidade, as diferenças sexuais não existem3. Considerando a libido como um princípio ativo, Freud apregoou a indiferenciação entre os sexos através de uma primazia fálica e uma organização edipiana dissimétrica. Contudo, pouco admite o prestígio que confere ao pai.

Dessas críticas, Freud teve que rever seus supostos. Ao fim de sua obra, publica dois estudos, um para falar Sobre a Sexualidade Feminina (1931), outro para tratar da Feminilidade (1933). Nestes, entende-se que só adentraremos o ‘querer feminino’ se avaliarmos a “ligação pré-edípica com a mãe” (Sigmund FREUD, 2010b, p. 273). Sendo assim, será partindo deles que avaliaremos os seguintes problemas: 1) segundo Freud, a interpretação de que o feminino encontra na castração um certo prazer; 2) de Beauvoir, a crítica segundo a qual Freud, despreocupado com o destino das mulheres, pensa a sexualidade feminina sem ter por base outro modelo que não seja o masculino. Elucidemos a ótica freudiana.

O complexo de Édipo negativo e a inveja do falo

Das inovações da segunda tópica pulsional, Freud enfrenta um problema que sempre lhe foi escorregadio: o horizonte feminino. Após inúmeras contestações, publica dois artigos, nos quais trata da sexualidade feminina e da feminilidade4. Neles, inicia da seguinte forma: visto que, durante o estágio edipiano, a criança vincula-se ao sexo oposto, se, para o menino, a mãe é o primeiro objeto de amor, ao passo que o pai é um rival, então, na menina, seu primeiro afeto também é a mãe, mas como acha ela o caminho até o pai? (FREUD, 2010a, p. 372).

Para Freud, a transferência da mãe ao pai é própria da sexualidade feminina. Contudo, a menina só atinge esta situação edipiana positiva após haver superado um ‘complexo negativo’ (FREUD, 2010a, p. 373). Se a intensidade da ligação paterna é proporcional ao amor pela mãe, é surpreendente constatar o quanto a psicanálise negligenciou que o complexo de Édipo negativo cobre boa parte do florescimento feminino. Antes de dirigir-se ao pai, a garota vive um estágio pré-edipiano, no qual é “animada pelo desejo incestuoso de possuir a mãe, regozijar-se por tê-la toda para si” (Juan-David NÁSIO, 2007, p. 50). Sob vários aspectos, o complexo de Édipo negativo exerce uma importância ímpar. Assim, ao assumir esta ligação não-fálica, tal vínculo parece conter “as fixações e repressões a que fazemos remontar o surgimento das neuroses” (FREUD, 2010a, p. 373). Ao perceber esta fase negativa na menina, Freud admite, acerca do horizonte feminino, que tudo lhe parecia “quase impossível de ser vivificado, como se tivesse sucumbido a uma repressão particularmente implacável” (FREUD, 2010a, p. 374).

A partir disso, Freud sugere que a bissexualidade é mais evidente nas mulheres. Se o homem é orientado pelo falo, a mulher é portadora de um processo dividido em duas fases, sendo que a primeira, vinculada ao clitóris, tem caráter masculino e a segunda, associada à vagina, é “especificamente feminina” (FREUD, 2010a, p. 376). Em todo caso, em ambos os sexos, as condições da afetividade estão apoiadas na mãe. Tal como no complexo de Édipo masculino, durante o pré-édipo feminino, o pai é “um incômodo rival” (FREUD, 2010a, p. 373). Contudo, é prosseguindo nas fases da libido que a figura do pai assume, para a menina, o locus da objetalidade.

Sobre a fase edipiana positiva, seu rigor é mais aplicável ao menino do que à menina. Diferentemente do erotismo masculino, a menina toma a mãe para, só depois, vincular-se ao pai. O complexo de Édipo feminino é, pois, o resultado de um extenso percurso, criado em virtude da ação da castração sobre a menina, sendo este o momento onde até o pai lhe recusa o falo. Durante a fase edipiana, a menina é tomada pelo desejo de ir mais longe. Ela não só quer ser o falo, mas quer ser o desejo do pai. Este é o estágio onde, ressentida e desejosa, a menina volta-se ao sexo oposto para “se refugiar e se consolar, mas também para lhe reivindicar seu poder e sua potência” (NÁSIO, 2007, p. 54). Dessa forma, engaja-se numa posição passiva.

Contudo, o complexo de Édipo é o momento onde a mãe - sendo o desejo do pai e modelo de feminilidade - inspira a menina. Para Freud, o exclusivismo pré-edipiano “assume na mulher importância bem maior do que no homem” (FREUD, 2010a, p. 379), sendo ele determinante para sua sexualidade. Repetindo esta relação arcaica, a menina só atinge o Édipo após atravessar a fase “durante a qual sexualiza, e depois rejeita, sua mãe” (NÁSIO, 2007, p. 49). Dessexualizando a mãe para, tardiamente, separar-se do pai, a mulher traz à cena o vínculo que outrora manteve com a mãe. Salta aos olhos como a menina põe fim nessa ligação, não raramente fazendo com que “acabe em ódio” (FREUD, 2010b, p. 275).

Dentre os fatores que explicam a hostilidade para com a mãe, Freud entende que, diante de tantas volições não realizadas, um dos motivos para o rompimento talvez seja o rancor criado como produto da castração e, quiçá, do encerramento de si como mulher. Se a garota está primordialmente apegada à genitora, são as restrições que esta cria sobre a atividade clitoriana que favorecerão o rompimento, servindo ao rancor e à rebeldia. Por esse motivo, a mais forte frustração ocorre na fase fálica, “quando a mãe proíbe a ocupação prazerosa com os genitais [...] em que ela mesmo havia iniciado a criança” (FREUD, 2010b, p. 278).

Isto posto, fica evidente que, segundo Freud, a inveja do falo possui uma importância ímpar sobre o desenvolvimento da menina. Ela se sente injustiçada, pois percebe que não possui um símbolo tal como o do menino. Não obstante, reconhecer-se ‘despossuída’ não significa que endosse tal situação. Por mais que o desejo do falo tenha sido rejeitado em favor das demandas sociais, a psicanálise demonstra “que ele permaneceu no inconsciente e manteve um considerável investimento de energia” (FREUD, 2010b, p. 280). Impera, desde menina, uma desvalorização da sexualidade feminina.

O complexo de Édipo negativo faz com que a renúncia se manifeste na menina desde as primeiras proibições. Assim, Freud diz que outro ponto para o rompimento com a mãe talvez seja a queixa de que esta não deu à luz a um ser fálico, mas a uma mulher, cujas demandas são alienadas e tornadas secundárias. Sentindo-se enganada, a garota julga que sua mãe a fez “acreditar que ela detinha o Falo e que o conservaria eternamente” (NÁSIO, 2007, p. 51). Outrora onipotente, agora a mãe se revela incapaz de lhe dar o falo, merecendo assim recriminações.

Responsabilizando a mãe por sua falta, a despossessão soa para a menina como uma injustiça, um prejuízo, uma humilhação pela privação do falo. Danificada em sua autoimagem, esta falta ressoa como um golpe em seu narcisismo. Incapaz de superar a inveja do falo, a garota dificilmente se adequa à cultura no sentido masculino. Sendo a marca de uma afetividade mais-além, ela está condenada a repetir “uma forma narcísica de amar” (Maria Cristina POLI, 2007, p. 31). Neste ínterim, o falo não é o pênis, mas a imagem de si, que encontra no complexo de Édipo “um curativo em seu narcisismo ferido” (NÁSIO, 2007, p. 52). Disto, segue-se não só uma luta por libertação, mas a indagação do ‘querer feminino’. Vejamos como, via repetição, a sexualidade feminina aponta ao ‘mais-além’ do gozo que suspende o saber psicanalítico e não se deixa determinar por dispositivos de saber.

O ‘querer feminino’ e a feminilidade

Da constatação de que a sexualidade feminina pode ser compreendida pelas relações antitéticas entre disposições ativas e passivas, Freud diz: em função da libido, as metas sexuais da menina “são de natureza tanto ativa como passiva” (FREUD, 2010a, p. 387). Sendo esta a marca de sua bissexualidade, a menina deseja repetir o que fora feito nela ou com ela, quando passiva - o que não significa que toda fantasia, de forma direta (encenação imaginária pertinente a realização de um desejo inconsciente do sujeito) seja fruto de fatos ocorridos na infância. Para Freud, tal desejo de repetição permite concluir algo contundente sobre a “força relativa da masculinidade e da feminilidade” (FREUD, 2010a, p. 388). Enquanto o masculino está associado ao “desejo ativo de dominação, amor, conquista, sadismo ou transformação” (ROUDINESCO, 2003, p. 61), o feminino caracteriza-se “pela passividade, a necessidade de amor, a tendência à submissão e ao masoquismo” (ROUDINESCO, 2003, p. 61).

Buscando autonomia, a criança se rejubila com a “repetição ativa de suas vivências passivas” (FREUD, 2010a, p. 388). No que tange ao horizonte feminino, vemos, segundo a psicanálise, que boa parte das meninas só realizam seus desejos ativos indiretamente, ou seja, por meio de uma exclusividade inicial com a mãe e negligência para com o pai. Desta expressão mediada dos desejos, é possível sugerir uma sequência temporal à sua sexualidade: “tendências orais, sádicas e, por fim, até mesmo fálicas” (FREUD, 2010a, p. 389).

De fato, posta a impossibilidade de a menina transpor o Édipo negativo, são obscuras as aspirações que ela apreende em função dos efeitos que a castração e a repressão lhe acarretam. Em todo caso, salta aos olhos o modo como o complexo de Édipo feminino traduz-se por fixações nas primeiras fases libidinais, quando as disposições ativas e passivas convivem entre si. Inclinadas à bissexualidade, as mulheres dificilmente se desligam destes vínculos ambivalentes e não-objetais. E se o afastamento da mãe é decisivo, impera na sexualidade feminina uma “diminuição dos impulsos sexuais ativos e um aumento daqueles passivos” (FREUD, 2010a p. 391). Diante de uma cultura pulsional eminentemente masculinista, o horizonte feminino indica, para Freud, uma posição passiva aquém das significações pertinentes à organização/objetalidade fálica, na medida em que esta - sendo central à compreensão da castração e das resoluções edipianas (em termos de antítese entre ter o falo ou viver-se como um ser castrado) - pode ser pensada como algo que, tem “um valor simbólico [não meramente anatômico], que organiza estruturalmente a vida social do sujeito, assim como um valor imaginário, pois serve de guia das imagens ideais do sujeito, norteando-o em seu comportamento e sua personalidade” (Ronaldo MANZI FILHO, 2019, p. 67). Correlata, por assim dizer, do aspecto conjuntivo da sexualidade, ao passo que a ordenação fálica tende a fazer com que as representações figuradas se organizem num sistema simbólico5, ou seja, entorno de objetos ideativos, o ‘querer’ feminino, por traduzir uma forma narcísica de amar, revela-se pela “suspensão de qualquer escolha objetal, que lhe confere o privilégio de rejeitar a lei do objeto” (Paul-Laurent ASSOUN, 1993, p. 99).

Ora, se a garota enfrenta um processo negativo no qual está apoiada na mãe, então é em função do horizonte feminino que Freud alega: “a psicanálise nos diz que devemos contar com uma só libido, que, no entanto, dispõe de metas (isto é, formas de satisfação) ativas e passivas” (FREUD, 2010a, p. 393). Muito por consequência do novo dualismo pulsional e, portanto, da constatação da “existência de impulsos libidinais com metas passivas” (FREUD, 2010a, p. 393), Freud enfim entende que não é a libido que, normativamente ativa, se divide, mas a pulsão. Diante daquilo que o ‘querer feminino’ tem a revelar para a psicanálise, constata-se, desde então, que há duas maneiras de lidar com a castração: uma fálica, conjuntiva, ativa e masculina; outra não-fálica, disjuntiva, passiva e feminina. Não obstante, se o autor reconheceu que as psicanalistas são mais capazes de perceber o quanto o horizonte feminino depende do édipo negativo, é admitindo seus limites que, em relação à atividade pulsional, passa a considerar a possibilidade de superação deste vínculo, no sentido de uma “reconciliação com a posição passiva” (POLI, 2007, p. 33).

Se atentarmos aos percursos dos desenvolvimentos afetivos, veremos que boa parte das diferenças sexuais são flutuantes. As características de um sexo figuram no sexo oposto, mesmo que em escalas distintas. Seja homem ou mulher, nada impede que nos comportemos mais masculinamente numa situação e, em outra, de modo mais feminino. De qualquer forma, trata-se de entender que, quando os psicanalistas falam “‘masculino’, normalmente querem dizer ‘ativo’ e quando falam ‘feminino’, ‘passivo’” (FREUD, 2010b, p. 266).

Mas, se existe relação entre pulsão e sexualidade feminina, é aqui onde precisamos ter cautela, pois não podemos subestimar os costumes que condicionam as mulheres. Precisamos considerar a influência que as restrições culturais têm sobre elas quando as transformam no segundo sexo - no Outro da situação. Pelo condicionamento de boa parte da atividade pulsional, muitas favorecem tendências masoquistas. Portanto, visto que provavelmente continuaria reafirmando certas generalizações se não reconhecesse seus vícios quanto à feminilidade, é isto que faz Freud ao indagar como cada mulher se desenvolve desde criança.

Por mais que as primeiras catexias sejam equivalentes em ambos os sexos, a investigação sobre o desenvolvimento feminino parte, segundo a psicanálise, de dois supostos: 1) antes do complexo de Édipo, predomina o exclusivismo com a mãe; 2) o direcionamento ao sexo oposto só acontece após ter-se identificado com a mãe (feminilidade) e o pai (masculinidade). Visto que Freud não compreenderia as mulheres sem supor a “ligação pré-edípica com a mãe” (FREUD, 2010b, p. 273), então, enquanto o menino conserva tanto o pai quanto a mãe, a menina terá de se deslocar de zona (clitóris - vagina) e de objeto erógenos (no pré-édipo, a mãe - no édipo, o pai). Portanto, se seus desejos assumem vias orais, sádico-anais e fálicas, há de se destacar o quanto Freud mostrou-se reticente ao falar dos impulsos femininos. Decorrentes das diferenças sexuais, tais desejos são “totalmente ambivalentes, de natureza tanto carinhosa como hostil-agressiva” (FREUD, 2010b, p. 273-274).

Assumindo uma via não-fálica, é a mãe quem seduz, orienta, estimula e desperta na menina os primeiros prazeres constitutivos da personalidade. Desde a inveja do falo, a castração representa um marco na sexualidade feminina. Ela aponta à emergência de um polo pulsional, pelo qual se dá o retorno da agressividade à própria pessoa, fazendo predominarem as funções passivas. Disto, decorre que o masoquismo é feminino.

Em virtude da repressão criada pela inveja do falo, o amor-próprio da garota modifica-se ao ponto de ela declinar de parte dos prazeres que outrora obtinha ativamente. Para Freud, isso ratifica a importância que a inveja e o ciúme em relação ao falo têm sobre a constituição psíquica das mulheres. Ao passo que a menina aceita a castração como consumada, o menino reluta contra esta possibilidade: “o menino teme a possibilidade de ser castrado. A menina, por sua vez, aceita esta privação. Percebamos que, por um lado, há posse; por outro, inveja. Sim, tudo gira entorno do falo nesse momento” (MANZIFILHO, 2019, p. 40).

Desde a tenra infância, a mulher é levada a magoar-se em seu amor-próprio pelas comparações que faz (e fazem por ela) em relação ao órgão do menino (o pênis) e ao símbolo de poder que a ele foi socialmente atribuído (o falo). Desde menina, ela “renuncia à satisfação masturbatória com o clitóris, rejeita seu amor à mãe e, não raro, reprime assim uma boa parte dos seus impulsos sexuais” (FREUD, 2010b, p. 282). Associado à castração, este longo caminho de renúncia e repetição faz com que a garota, no decorrer das fases edipianas, passe a se comportar segundo impulsos passivos, preparando assim o seu caminho ao destino da feminilidade. Em favor dos prazeres vaginais, ela renuncia ativamente aos prazeres clitorianos, e como que num impulso masoquista, acaba por remover-se da atividade fálica, fazendo com que a passividade predomine sobra sua conduta. Esta “virada para o pai é realizada principalmente com a ajuda de impulsos instintuais [pulsionais] passivos” (FREUD, 2010b, p. 284). Por isso, se o terreno para a feminilidade for fértil, o desejo por meio do qual a menina busca a figura paterna é o antigo “desejo pelo pênis que a mãe não lhe deu e que ela espera receber do pai” (FREUD, 2010b, p. 284). Segundo Freud, “deveríamos reconhecer tal desejo de pênis como um desejo apuradamente feminino” (FREUD, 2010b, p. 285). Ou seja, é por substituir ativamente as funções ativas (clitorianas) por predileções passivas (vaginais) que a inveja do falo talvez seja a expressão daquilo que Freud chama de ‘querer feminino’.

Não obstante, apesar de admitir atualizações, Freud considera injustificada a hipótese de uma libido feminina. Para ele, a libido é ativa e sexualmente universal; não só serve às funções masculinas (ativas) e femininas (passivas), como não pode ser atribuída a nenhum sexo. Servindo a ambos os sexos, há apenas uma libido; mas se “quisermos denominá-la ‘masculina’, não podemos esquecer que ela também representa impulsos com metas passivas. De todo modo, a expressão ‘libido feminina’ carece de qualquer justificativa” (FREUD, 2010b, p. 289). Esta reafirmação dos postulados iniciais de sua teoria deve-se ao fato de Freud acreditar que a efetivação dos objetivos sexuais fora “confiada à agressividade do homem e tornada independente, em alguma medida, da aquiescência da mulher” (FREUD, 2010b, p. 289), ao passo que a frigidez sexual feminina “é um fenômeno ainda mal compreendido” (FREUD, 2010b, p. 289). Assim, é outorgando às mulheres um forte narcisismo que o discurso freudiano sugere, para além das significações e objetalizações relativas às pulsões sexuais e egóicas, que a feminilidade surge “quando a menina reporta o pedido que faz ao pai a um outro homem, de quem espera receber o pênis-bebê. Isto é, quando ela retorna, de forma ativa, à posição passiva que a levou ao pai” (POLI, 2007, p. 35)

Desejando ser desejada, a mulher, segundo Freud, demarca possibilidades que não se prendem em objetos ideativos ou em imagens egóicas, mas naquilo que, mais-além, suspende os saberes psicanalíticos. Com efeito, se durante a fase edipiana, a menina deseja ocupar seu lugar junto ao pai, é no estágio pré-edipiano onde será configurada boa parte da sua personalidade. Aqui são formuladas não apenas as características predominantes, mas boa parte das funções sociais que, diante das significações fálicas, a condicionam em situações secundárias. Atemorizando-nos com sua rigidez, é como se este caminho tivesse fatigado a mulher, “permanecendo ininfluenciável a partir de então” (FREUD, 2010b, p. 293). Deste modo, foi retomando seus supostos acerca da libido que Freud concluiu: “se quiserem saber mais sobre a feminilidade, interroguem suas próprias vivências, ou dirijam-se aos escritores, ou esperem até que a ciência possa lhes dar informação mais profunda e coerente” (FREUD, 2010b, p. 293)

Dito isso, notamos que, diante de inúmeras críticas e em favor da manutenção de sua doutrina, Freud mostrou-se conservador quanto aos movimentos emancipatórios vivificados pelas mulheres. Como cientista interessado em descrever de maneira neutra e objetiva a sexualidade feminina, ele rejeitou qualquer militância, pouco se preocupando com as razões feministas. Freud foi um representante do patriarcado da época que, mesmo tentando ampliar as discussões sobre a sexualidade feminina, se valeu da influência que a psicanálise exerceu sobre a cultura para repetir às mulheres o destino de inferioridade perante os signos masculinos. Dentre tantas coisas, ele comenta, por exemplo, que quanto maior era o poder da autoridade paterna nas organizações familiares da antiguidade, “mais o filho, como seu sucessor predestinado, precisava se ver como seu inimigo, maior precisava ser sua impaciência de chegar ao poder por meio da morte do pai” (FREUD, 2019, p. 269). Baseada durante séculos na autoridade divina do pai, foi com a irrupção do feminino oportunizada pelo advento da burguesia na sociedade ocidental, que a família tradicional, no século XVIII, foi desafiada ao ponto de ceder o lugar de centralidade à figura materna. Tomando a burguesia como modelo, “a nova ordem familiar conseguiu represar a ameaça que esta irrupção do feminino representava à custa do questionamento do antigo poder patriarcal” (ROUDINESCO, 2003, p. 08-09). Assim, ao fim das contas, é como se a proposta de escuta dos conteúdos inconscientes tivesse relegado às mulheres o lugar do Outro, negando assim uma efetiva emancipação.

Isto posto e admitindo a supervalorização da doutrina freudiana quanto aos referenciais masculinos, dizemos que a psicanálise expressa, num só tempo, “o sintoma de um mal-estar da sociedade burguesa, presa das variações da figura do pai, e o remédio para esse mal-estar” (ROUDINESCO, 2003, p. 45). Isso contribui não só à autenticação do desejo de uma parte da sociedade à qual foi imposta a condição de Outro, mas à legitimação do querer feminino. Para além dos símbolos e das significações pertinentes a organização fálica, indagar o feminino é inverter a lógica psicanalítica; é interpelar seu objeto e expressar um quinhão de verdade que, irredutível, mostra-se indissociável do questionamento sobre os limites dos saberes que é capaz de proporcionar. Mais do que uma confissão de fracasso e imprecisão, o feminino é não só aquilo que Freud “conhece mal, mas aquilo que, por existir, coloca o saber analítico numa situação de suspense” (ASSOUN, 1993, p.19). Como num fragmento de verdade que não se deixa captar por quaisquer dispositivos de saber, “é mulher - ou querer-feminino, para respeitar a literalidade da formulação freudiana - justamente aquilo que a psicanálise não conheceu” (ASSOUN, 1993, p. 19).

Para Freud, a mulher é um ponto de interrogação. Como um cavalo de Tróia que se instala no núcleo do edifício psicanalítico, o aprofundamento dos estudos sobre a mulher “foi identidade do saber analítico consigo mesmo, ou seja, sua pretensão de verdade. A Mulher é aquela que Freud suspeita, lucidamente, de ter permanecido como uma verdade impermeável ao saber que ele produziu a seu respeito” (ASSOUN, 1993, p. 20). Em seu querer, ela é o registro de um fragmento de verdade insolucionável que, repetindo sem cessar a castração, é capaz de restituir à psicanálise sua necessária ambivalência. Da constatação acerca da condição da mulher como o segundo sexo, veremos agora como Simone de Beauvoir tece sua crítica a esta supervalorização das significações fálicas, afirmando que a psicanálise influenciou a consolidação e manutenção da condição da mulher como Outro.

Simone de Beauvoir: uma leitora crítica da psicanálise freudiana

Da subjetividade situada ao reconhecimento: nossa fundamental ambiguidade.

Beauvoir entende que O Segundo Sexo (1949) esforçou-se por descrever a condição da mulher. Ela indaga as possibilidades que o “mundo fálico” recusou às mulheres e nota: em todas as situações, “o homem se colocava como o Sujeito e considerava a mulher como um objeto, o Outro” (BEAUVOIR, 2009b, p. 145-146). Se há uma forma humana, é majoritariamente masculina, ao passo que a mulher “aparece como o negativo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 16), sendo relegada à passividade. Destituída de significação própria, a mulher é aquilo que o “homem decide que seja” (BEAUVOIR, 2009c, p. 16). Seu corpo é um ser sexuado: o segundo o sexo, o símbolo da diferenciação que só se determina pelas cifras masculinas. Enquanto o homem serve-se de sua autonomia, a mulher “é o inessencial perante o essencial” (BEAUVOIR, 2009c, p. 17). Se o “homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 2009c, p. 17). Todavia, ser o Outro é fruto do que a cultura denota como experiência feminina. Por isso, “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009c, 361). Angulares, estas palavras nos fazem perceber que a autora de O Segundo Sexo é um importante marco da literatura feminista contra a supervalorização dos signos fálicos que enquadram a mulher como um ser inessencial.

Em A Força da Idade (1960), Beauvoir se vangloria da liberdade como constituinte de sua substância: “pensávamos ser pura consciência e pura vontade” (BEAUVOIR, 2009a, p. 16). Visando a autenticidade, alegava ser preciso fazer o sujeito coincidir consigo e suas escolhas. Para nós, isso sugere que Beauvoir não responsabiliza as mulheres por suas subordinações, mesmo quando classifica a submissão como um ato de má-fé6. Tais alegações precisam considerar a compreensão existencialista da facticidade7 e de como as estruturas de poder, a cultura e as disposições históricas permeiam a condição de imanência das mulheres.

Indagando, por exemplo, se a superação seria “possível para uma mulher encerrada num harém?” (BEAUVOIR, 2009a, p. 290), Beauvoir afirma o caráter coletivo da liberdade, compreendendo que somos capazes de optar por como viver, ainda que estejamos imersos em constrangimentos (Cf. Sonia KRUKS, 1992, p. 100-101). Dentre as teóricas de sua época, o pioneirismo de Simone remonta a um feminismo longínquo (Cf. KRUKS, 1992, p. 94-96), mas que serve bem aos reclames atuais.

É pensando a subjetividade situada que Beauvoir aponta aspectos inter-relacionais acerca da corporeidade, a fim de refletir sobre “liberdade, opressão, reconhecimento e a condição feminina” (Ingrid CYFER, 2015, p. 66). Sua dinâmica “Eu - Outro” é fundamental para pensar a condição da mulher em relação a “Transcendência - Imanência”. Dada a situação relacional, onde as ações de outrem influenciam diretamente nossos atos, entende-se que existem situações onde a opressão aliena o indivíduo, sem que lhe restem condições para outra ação. Nestes casos, não se engajar não é simples má-fé, mas má-fé que repousa na criticidade da reificação.

Para Beauvoir, o encontro com o outro trata-se de uma relação mediada por instituições assimétricas. Nesse sentido, sua crítica a Freud torna evidente que as instituições privilegiam uma das partes e que essa vantagem tende a fixar o Outro como inessencial (Cf. KRUKS, 1995, p. 84). Afirmando que a mulher é o segundo sexo, Simone ressalta que o feminino é o Outro desigual, produzido por uma socialização sexista estruturante permeada por instituições que reduzem a mulher ao corpo.

Para ela, “o corpo da mulher é um dos elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 70). Mas, diferentemente de Freud, isto implica que seu corpo é o que a prescreve uma condição secundária. Sendo veículo do ser-no-mundo, o corpo “só tem realidade vivida enquanto assumido pela consciência através das ações e no seio de uma sociedade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 70). Neste sentido, é crucial à subjetividade, mas jamais antecede ou define seu destino. Vital ao horizonte feminino, o corpo não é coisa, mas “a nossa tomada de posse do mundo e o esboço de nossos projetos” (BEAUVOIR, 2009c, p. 67). Por isso, é preciso indagar o que a humanidade fez da mulher, pois ser o Outro perante o falo é assumir a situação de uma encarnação sujeita aos paradoxos da natureza e da cultura.

É como corpo submetido a tabus que o sujeito “toma consciência de si e se realiza” (BEAUVOIR, 2009c, p. 69). Atravessado por outrem, o indivíduo se valora em nome dos costumes que “refletem os desejos e os temores que traduzem sua atitude ontológica” (BEAUVOIR, 2009c, p. 69). Não objetivo, o corpo não pertence totalmente ao sujeito. Imerso na civilização, ele é sujeito em relação intencional com este mundo. Situado e condicionado, é pelo corpo e no corpo que o ser se faz no mundo.

Ora, se ser o segundo sexo implica estar reduzida ao corpo, então a encarnação convive com a alienação. Estruturada através de regras supostamente cristalinas, a cultura é capaz de reificar o corpo feminino e deteriorar sua subjetividade sem anulá-la. Tecendo comentários sobre a infeliz cumplicidade feminina com a opressão, é aqui onde - abrandando a radicalidade da má-fé existencial sem, todavia, ceder ao determinismo social ou deixar de incorporá-la ao signo ontológico da liberdade - Beauvoir entende que “as circunstâncias convidam a mulher [...] a voltar-se para si mesma e a dedicar-se a seu amor” (BEAUVOIR, 2009c, p. 817).

Enxergando no narcisismo um processo de alienação, ainda que a mulher busque reunir-se na imagem que possui do seu corpo, tal representação é incapaz de sintetizar a ligação entre corpo e subjetividade. No narcisismo, “o eu é posto como um fim absoluto e o sujeito nele foge de si” (BEAUVOIR, 2009c, p. 817). E é por personificar uma forma narcísica de amar que, imersa num mundo masculino, a mulher pouco se realiza como corpo intencional. Entregando-se à posição passiva, a mulher raramente faz de si objeto de cultivo e idolatria.

Ainda que fundamental, a ação voluntária não é suficiente para modificar o rigor de muitos costumes. Para além do individual, a mulher independente só pode surgir através de uma profunda transfiguração dos costumes, visto que sua situação não é somente sua, mas está interligada à condição das mulheres na sociedade. Portanto, a luta contra a opressão é, também, “a luta pelo reconhecimento mútuo” (CYFER, 2015, p. 71).

Para nós, isso permite entender que a lida com a alteridade não se limita à superestima do Eu em detrimento de outrem. Indo além da pura hostilidade narcísica, não se trata de priorizar o confronto e a nulificação, pois o Outro não é espelho daquilo que faço, mas alguém apto a corresponder-me. Para Beauvoir, esta relação de correspondência implica o reconhecimento, cuja função é fazer-nos assumir que somos sujeito e objeto. Somos ambivalentes, e a liberdade de outrem é condição de minha própria liberdade.

Sendo este o primeiro passo para a constituição do sujeito, esta perspectiva implica alteridade, compreendendo que a condição da liberdade é para mim e para o Outro, simultaneamente. Trata-se de arcar com os riscos de desapegar-se de uma imagem especular de si para reconhecer no Outro a condição de sujeito capaz de revelar quem sou. Portanto, reconhecer-se pelos olhos de outrem não é consequência do que falam sobre nós, mas do fato de estarmos abertos ao diálogo (Cf. Nancy BAUER, 2001, p. 236), na medida em que nos dispomos a renunciar às representações estáticas de nós mesmos. Aquém da pura negatividade, faz-se necessário assumir a responsabilidade de construir um mundo em codependência e coautoria.

Atentando à zona de intersecção entre poder, igualitarismo, corporeidade e ação coletiva, Beauvoir esboça não só o caminho para a superação da má-fé, como sugere vias para o alcance de proporcionalidade entre homens e mulheres. Situada, tal balança é ajustada pelo conjunto das práticas e instituições sociais. Ela é feita por agentes que, corporificados, não são apenas lócus naturais, mas “facticidade e liberdade, um corpo político” (CYFER, 2015, p. 74). Destarte, a alteridade requer que admitamos nossa ambiguidade:

Essa trágica ambivalência pela qual o animal e a planta apenas passam, o homem a conhece, ele a pensa. [...] Este privilégio que ele detém sozinho: ser um sujeito soberano e único no meio de um universo de objetos, eis o que ele compartilha com todos os seus semelhantes; a seu turno objeto para todos, ele nada mais é, na coletividade de que depende, que um indivíduo. (BEAUVOIR, 2005, p. 14)

Existentes, somos ‘Para-si’, sendo essa ambiguidade produto da liberdade situada. Individual e coletiva, toda ação pressupõe que o sujeito renuncie a seu ímpeto de tornar o Outro um espelho de si e, aceitando também sua condição de objeto, recuse a má-fé, assumindo responsabilidades. Em vista disto, Beauvoir nos lega a possibilidade do horizonte feminino e da cultura serem compreendidos via alteridade. Ao ter-nos mostrado que o ser designado como inessencial - o Outro perante o Um - não é menor e, tampouco, deve conformar-se com as opressões, afirmando-se capaz de desafiar as imposições por meio de um discurso que transvalore os paradoxos deste mundo intersubjetivo. Trata-se de uma “mentalidade outra”, ou seja, uma nova perspectiva para pensar a questão do feminino (Magda Guadalupe SANTOS, 2010, p. 118). Reafirmando-se como sujeito-objeto, Simone estabelece que a ambiguidade é fundamental à nossa condição existencial, evidenciando assim a originalidade do seu pensamento.

Sobre os limites da abordagem freudiana

No capítulo sobre O Ponto de Vista Psicanalítico d’O Segundo Sexo, Beauvoir pontua que, sendo o corpo um fator não-objetivo, a maior contribuição da psicanálise aos estudos sobre a mulher foi ter dado o passo de considerar a mulher o ser que “se sente como tal” (Petra BASTONE, 2019, p. 71). Freud entende “que nenhum fator intervém na vida psíquica sem ter revestido um sentido humano” (BEAUVOIR, 2009c, p. 71). Não é a natureza quem delimita o que é vir a ser mulher, “esta é que se define retomando a natureza em sua afetividade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 71). Apesar de reconhecer tais contribuições, Beauvoir atenta à dificuldade em se interpelar a elasticidade dos conceitos psicanalíticos. Ainda que tenha pensado o corpo, Freud construiu suas análises partindo de modelos fálicos cujos supostos encaram a mulher como um ser mutilado. Nessa direção, fica difícil saber quando o falo assume um sentido carnal ou quando expressa os valores da virilidade.

Se se ataca a letra da doutrina, o psicanalista afirma que lhe desconhecemos o espírito; se se lhe aprova o espírito, ele procura de imediato restringir-nos à letra. A doutrina não tem importância, diz um: a psicanálise é um método; mas o êxito do método fortalece a fé do doutrinário (BEAUVOIR, 2009c, p. 71)

Desta perspectiva, Beauvoir corrobora com Sartre quando este diz que o corpo é “coextensivo ao mundo, está expandido integralmente através das coisas e concentrado nesse ponto único que todas elas indicam e que eu sou sem poder conhecê-lo” (Jean-Paul SARTRE, 2014, p. 402). Mas também concorda com Merleau-Ponty, pois, “ambígua, a sexualidade é coextensiva à vida” (Maurice MERLEAU-PONTY, 2011, p. 233). Para ela, tais afirmações podem ser interpretadas de duas maneiras: 1) o existente possui uma significação sexual, 2) o sexual detém um sentido existencial. Ora, se o sexual não coincide com o genital, então a sexualidade torna-se ampla ao ponto de turvar a hipótese de que o sexual refere-se à aptidão de animar o biológico.

Por calçar a sexualidade feminina em símbolos fálicos, Beauvoir alega que Freud pouco se preocupou com o destino das mulheres. Sua doutrina admite que a sexualidade feminina é tão evoluída quanto a masculina, mas não a estuda em si mesma (BEAUVOIR, 2009c, p. 72). Freud reitera que a libido é “de natureza masculina, apareça ela no homem ou na mulher” (FREUD, 2016, 139). Para ele, não é a libido quem se divide, mas a pulsão, cujos horizontes assumem vias fálicas e não-fálicas. A libido feminina lhe seria insustentável, pois se trata de “um desvio complexo da libido humana em geral” (BEAUVOIR, 2009c, p. 73). Até que, no Édipo, se diferencie, o transcorrer da libido é similar em ambos os sexos. Deste modo, enquanto o erotismo masculino centraliza-se no pênis/falo, a mulher possui dois sistemas erógenos, cujas predileções a condicionam a assumir um ‘destino’ secundário, representado pela ausência do falo. Para Beauvoir, apesar das revisões, em Freud o falo segue sendo o órgão privilegiado. Nesse sentido, é por possuir um desenvolvimento mais complexo que, para Freud, a mulher se arrisca “a não atingir o termo de sua evolução sexual, a permanecer no estágio infantil e, consequentemente, a desenvolver neuroses” (BEAUVOIR, 2009c. p. 73).

Disto, decorre o Édipo, a castração e o Super-eu, cuja função é censurar o incesto, fazendo com que predominem as inibições. Beauvoir nota: se a menina é hostil à castração, então Freud só a estudou “a partir da forma masculina” (BEAUVOIR, 2009c, p. 74). Culpando a mãe por sua ‘mutilação’, a garota desenvolve um sentimento de rivalidade capaz de tornar o “complexo de Electra menos nítido do que o de Édipo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 74). Segundo Beauvoir, a descrição psicanalítica da sexualidade feminina é subjugada pelo modelo fálico. Freud esquece que a ausência do falo não é uma decisão; “o tiraram dela” (BEAUVOIR, 2009c, p. 74). Restando apenas indiferença, náusea e hostilidade, a mutilação feminina vai muito além de diferenças anatômicas. Socialmente rebaixada, não é a menina quem se desvaloriza, ela é subjugada à condição de Outro. Ela é depreciada pelos mesmos fatores que a imputam o destino de ser castrada e invejosa.

Enquanto tomar o falo como prescindível de explicações históricas, a psicanálise falhará em reconhecer que “a inveja da menina resulta de uma valorização prévia da virilidade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 75). Por não se inspirar numa libido feminina, o complexo de Electra carece de explicações detalhadas. Salvo exceções, não há como generalizar que o pai seja, para a filha, a fonte de excitações, pois é só na puberdade onde “se desenvolvem no corpo da mulher várias zonas erógenas” (BEAUVOIR, 2009c, p. 75). Se a mãe não é enaltecida pelo desejo que incute nos filhos, então o fato do ‘querer feminino’ dirigir-se ao pai é o que lhe confere originalidade, mas isto não parte da menina. Tornada Outro, não é ela quem decide sobre seus desejos. Na imanência, toma para si o desejo que lhe impõem desejar. E, ao tomar a atitude ativa de colocar-se passiva, sofre. Portanto, o falicismo é um fato social que Freud não só fracassa em explicar, como confessa não saber nem por quais motivos, nem que tipo de “autoridade decidiu, em um momento da história, que o pai superaria a mãe” (BEAUVOIR, 2009c, p. 75).

Distanciando-se da psicanálise, Beauvoir reintegrou na personalidade os significantes sexuais, partindo da ideia de que o complexo de inferioridade feminino é paralelo à recusa da feminilidade. Não é a falta do “pênis que provoca o complexo, e sim o conjunto da situação” (BEAUVOIR, 2009c, p. 76). A menina/mulher não inveja o falo; sua aversão se direciona ao fato deste símbolo conceder privilégios ao menino/homem, como se isso lhe outorgasse superioridade. Humilhada por sentir-se inferiorizada, por vezes ela reage, procurando masculinizar-se, lutar com armas femininas ou encontrar na maternidade o pênis faltante. Ora, mas se isso significa que ela se conforma à situação imputada, então a mulher “é dividida contra si mesma muito mais profundamente do que o homem” (BEAUVOIR, 2009c, p. 76).

Freud dá a entender que o drama feminino é redutível à antinomia entre tendências viris/clitorianas e femininas/vaginais. Deixada de lado quando se fala do que lhe falta, a mulher em Freud não vive “o seu desejo senão como uma espera de poder, enfim, possuir algo equivalente ao sexo masculino.” (Luce IRIGARAY, 2017, p. 34). Seu fim seria: “o da ‘falta’, da ‘atrofia’ (do sexo) e da ‘inveja do pênis’ em relação ao único sexo reconhecido como válido” (IRIGARAY, 2017, p. 34). Condenada a ser o Outro, a mulher está alocada na imanência de não ser, enquanto o homem faz-se a si mesmo.

Beauvoir afirma que, apesar dos impactos negativos de uma teoria, é possível não só mantê-la, mas expandi-la, mesmo que muitos fatos a contrariem. Rastreando em toda angústia um desejo, o freudismo integra “os próprios fatos que o contradizem” (BEAUVOIR, 2009c, p. 77). Assim, por mais que, via sexualidade feminina, restituamos a ambivalência do enigma freudiano, se desejamos descrever uma história particular utilizando-nos dos métodos psicanalíticos, nos deparamos não apenas com conceitos filosóficos, mas com um quadro implícito de anomalias. Rejeitando esta via, Beauvoir diz: se uma teoria nos obriga a expandi-la indefinidamente, “é preferível abandonar seus antigos quadros” (BEAUVOIR, 2009c, p. 77).

O psiquismo não pode ser reduzido a um mosaico parte-extra-partes, constituindo-se como unidades indissociáveis e corporificadas. Sendo o humano o locus da antinomia entre impulsos e proibições, a teoria psicanalítica malogra não só quando renega a ideia de escolha, mas quando, sem explicar-lhes a origem, desliga “impulsos e proibições da escolha existencial” (BEAUVOIR, 2009c, p. 78). Para Beauvoir, o Super-Eu emana uma tirania despótica, ao passo que as tendências pulsionais existem sem se saber porquê. Portanto, se seguirmos Freud, a unidade humana não apresentará a “passagem do indivíduo à sociedade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 78).

Ora, se corpo e existência estão imbricados, então a sexualidade atravessa a vida humana por inteiro. Sendo o existente um corpo sexuado, é nas situações afetivas com estes outros existentes, que igualmente nos respondem, onde a sexualidade está empenhada. Irradiados entre si, corpo, existência e sexualidade constroem mutuamente suas significações. Assim, nos parece descabido asseverar na sexualidade um signo capaz de explicar as todas ações humanas. Segundo Beauvoir, Freud toma por verdadeiros fatos inexplicados. Ele entende que, enquanto seres permeados por costumes, o humano se dá na relação do próprio corpo com o corpo de outrem, mas esquece que buscamos “a existência através do mundo inteiro, apreendido de todas as maneiras possíveis” (BEAUVOIR, 2009c, p. 79).

A psicanálise recusa a ideia de escolha para, em favor do inconsciente, fornecer, mediante análise em primeira pessoa, determinantes capazes de fazer com que o sujeito compreenda seus sonhos, atos falhos, delírios e até mesmo o seu destino. Nesse sentido, só a liberdade contradiz certas constantes, possibilitando ao sujeito fazer-se autenticamente. Só uma abordagem ontológica poderia “restituir a unidade dessa escolha” (BEAUVOIR, 2009c, p. 80).

Para Beauvoir, os signos pessoais não são meras alegorias. Reveladas de muitas maneiras e para muitos indivíduos, as vivências existenciais não jorram do inconsciente. Neste sentido, é fugindo de nós mesmos que a angústia da má-fé leva a procurar-nos nas coisas. Buscamo-nos em tudo o que conseguimos deter algum sentimento de poder. Segundo Beauvoir: “o pênis é posto pelo sujeito como si mesmo e outro que não si mesmo; a transcendência específica encarna-se nele de maneira apreensível e ele é fonte de orgulho; é porque o falo é separado que o homem pode integrar na sua individualidade a vida que o ultrapassa” (BEAUVOIR, 2009c, p. 81). Em Freud, o falo corporifica a liberdade e a transcendência; coisa esta que a mulher, na imanência, sendo o Outro, pouco ou nada vivencia.

Objetificada, a mulher se aliena em coisas aparentemente inapreensíveis. Tornada Outro não por uma decisão sua, mas pelo ambiente masculinista onde vive, “ela se vê inteira como alienação” (BASTONE, 2019, p. 80). E, por não possuir um falo, dificilmente torna-se “presente a si própria enquanto sexo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 82). Não obstante, em tal simbologia, deter soberania não significa que suas constantes definam algum destino. Se em algum momento as mulheres se firmassem como sujeitos das situações fariam com que o pênis perdesse valor (BEAUVOIR, 2009c, p. 82). Portanto, se a psicanálise diz encontrar “sua verdade no contexto histórico” (BEAUVOIR, 2009c, p. 82), deveria observar essa facticidade, considerando que só situacionalmente a anatomia pode despertar um privilégio. A vantagem concedida por Freud aos signos masculinos se dá pelo privilégio social “que o pênis é capaz de trazer ao homem e do qual a mulher é privada” (BASTONE, 2019, p. 80).

O existente não se torna mulher apenas pela consciência de seu sexo, mas pelo significado social da feminilidade. Interiorizando as ocorrências psíquicas, Freud roga que os dramas individuais se desenvolvem desde o inconsciente, mas passa por alto que a “vida é uma relação com o mundo” (BEAUVOIR, 2009c, p. 82). A psicanálise malogra ao tentar explicar por que a mulher é o Outro, sendo obrigada a confessar seu descuido quanto à injustificada supremacia masculina. Assim, não se trata de recusar as contribuições de Freud à compreensão da sexualidade feminina, mas de assinalar a parcialidade do seu método, na medida em que toma a sexualidade como objeto descrevendo as diferenças sexuais “a partir da libido masculina” (BEAUVOIR, 2009c, p. 83).

Para justificar sua teoria, a Freud nada resta, senão "encarar como um dado original essa espécie de apelo a um tempo urgente e amedrontado que é o desejo da fêmea; é a síntese indissolúvel da atração e da repulsa que o caracteriza" (BEAUVOIR, 2009c, p. 83). Enquanto a libido for definida através do macho e a sexualidade apresentar-se como um dado irredutível, a menção de uma libido feminina nos levará a repensar as qualidades do objeto erótico, de modo a redefini-lo tal como se apresenta no ato sexual. Desviando dos quadros normativos propostos por Freud, Simone se põe contra a possibilidade de um destino feminino. Para ela, não há uma escolha entre a transcendência e a imanência. Assim, a mulher precisa primeiramente dar-se conta de que não é inessencial, nem tampouco um “joguete de impulsos contraditórios, ela inventa soluções entre as quais existe uma hierarquia ética” (BEAUVOIR, 2009c, p. 83-84). Deste modo, trata-se de se reconhecer num mundo de valores para, só assim, atribuir às condutas uma dimensão existencial de liberdade.

Centrado na autoridade do falo, Freud impôs o destino que as pulsões nos reservam, dando a uma suposta normalidade um estatuto moral. Segundo Beauvoir, esta noção pode ser “muito útil em terapêutica, mas adquiriu, na psicanálise em geral, uma inquietante extensão” (BEAUVOIR, 2009c, p. 84). Ora, se alguém não apresenta um desenvolvimento normal, o discurso psicanalítico logo conclui que este modus operandi em nada se relaciona com uma escolha positiva, mas com uma negação, apontando-a como uma falha que fez o curso da libido ser desviado. Deste modo, se não é em função de um projeto existencial que o sujeito é explicado, então o destino da sexualidade feminina reside, segundo a psicanálise, em alienar-se num modelo: “é preferir ao movimento espontâneo de sua própria existência uma imagem alheia, é fingir ser” (BEAUVOIR, 2009c, p. 84). Sendo, portanto, uma alegoria, tornar-se mulher é não só uma fonte de malogro e alienação, mas é ser tornada Outro.

Assim, adotando a ótica masculina, a psicanálise vê como “femininas as condutas de alienação, e viris aquelas em que o sujeito afirma sua transcendência” (BEAUVOIR, 2009c, p. 85). Fixando o homem como estereótipo do humano, Freud deixa brechas ao entendimento de que, para toda ação onde uma mulher escolhe conduzir-se como humano, ela está buscando imitar a conduta masculina. Por isso, contrário aos supostos freudianos, é preciso entender que, embora tenha apontadas para si conjunturas capazes de complexificar seu processo de subjetivação, a “mulher define-se como ser humano em busca de valores no seio de um mundo de valores” (BEAUVOIR, 2009c, p. 85). À luz das contribuições beauvoirianas, compreender a condição da mulher trata-se de olhar para a situação.

Considerações sobre a supervalorização masculina em Freud

A psicanálise é elaborada por meio de estruturas conceituais em que a categoria homem equivale à noção de humanidade, em detrimento das especificidades da categoria mulher. Com efeito, admitimos que Freud inovou quando, dentre os discursos médicos e filosóficos de sua época, atentou àquilo que escapa à objetivação dos saberes. Em suas tópicas, Freud refletiu sobre as consequências da diferenciação sexual, da castração e, dado o Édipo negativo, as metáforas pertinentes à sexualidade feminina. Contudo, é importante ressaltarmos que, apesar do salto que o pensamento de Freud trouxe para a teoria psicanalítica, o seu pensamento em relação às mulheres ainda estava bastante atrelado aos preconceitos de sua época.

Em O Segundo Sexo, Beauvoir assegura que, durante um bom tempo, ambos os sexos seguem percursos similares, não raro usufruindo das mesmas capacidades. Se seus futuros são distintos, isto não se deve a leis naturais, mas ao fato de que tais situações são socialmente condicionadas. Assim, quando as examina, Beauvoir afirma que, enquanto o futuro do menino é aberto, “o destino da menina é muito diferente” (BEAUVOIR, 2009c, p. 366).

Raramente a genitália feminina é reverenciada. Esta não se deixa pegar e, em certo sentido, faz da menina um ser sem sexo. Em função de como é tratado este seu invólucro ‘quase secreto’, “ela se acha situada no mundo de um modo diferente do menino e um conjunto de fatores pode transformar a seus olhos a diferença em inferioridade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 366). Enquanto o menino sente orgulho dos efeitos que os símbolos relacionados a sua genitália possuem no mundo, a menina sofre vergonha por sua sexualidade. Não sendo alvo de veneração, alocada na imanência, ela se reconhece como o Outro. E, com tamanha veneração ao sexo oposto, “sente, na diferença, a inferioridade” (BASTONE, 2019, p. 82).

Dispondo a inveja do falo como determinante da personalidade, muitos psicanalistas supõem que a castração é suficiente para engendrar um trauma na menina. Não obstante, afirmam que isto só ocorre por causa de “uma série de acontecimentos ligados ao pênis” (BASTONE, 2019, p. 82). Socialmente enaltecidos, os signos masculinos fazem com que a menina sinta algo similar a uma suposta inveja ou inferioridade. Ao passo que, para o menino, o falo é a prova de sua frágil autonomia, para a menina, é esse ‘alterego’ quem a torna destituída de significação própria. Isso indica que, por considerar que os meninos são capazes de superar com mais sucesso os obstáculos decorrentes das diferenças sexuais, Freud concede “um papel primordial à ansiedade de castração e à inveja do pênis na determinação da identidade” (Patricia PORCHAT, 2014, p. 44). Reiterando uma leitura viciada, a psicanálise estaria convencida da superioridade dos homens em relação às mulheres.

Contra este estado de coisas, Beauvoir não acredita que a passividade seja natural às mulheres, entendendo tal destino como um construto social. No lugar de a encorajarem a ser livre e autônoma, a mulher vive em conflito entre as possibilidades de sua transcendência e seu ser como o Outro. Convencem-lhe de “que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia” (BEAUVOIR, 2009c, p. 375). E se é flagrada reivindicando ou exercendo sua liberdade, de modo a aventurar-se no meio onde vive, por vezes terá de conviver com a alcunha masculina. Freud até tentou argumentar que a feminilidade não é só passividade, mas de forma superficial, pois asseverou a predominância da passividade na expressão das mulheres. Tais afirmações carregam a generalização segundo a qual a supressão da agressividade constitui o destino feminino. Quanto a isto, Beauvoir é enfática: a mulher não é um ser passivo, tampouco naturalmente coisa alguma; ela é, tal qual o homem, liberdade, mas a facticidade a limita de vislumbrar-se subjetivamente.

Em verdade, ainda que Freud tenha pensado como a afetividade se desenvolve desde a infância, seus escritos contêm controvérsias a respeito da sexualidade das mulheres. Para Beauvoir, quando diz que a mulher se realiza ao dar à luz um filho homem, Freud reforça a valoração atribuída aos símbolos fálicos, deixando de lado hipóteses que não compactuem com as normativas vigentes. Aliás, a libido em Freud é ativa. Para ele, a libido não é nem masculina nem feminina; por isso, supostamente neutra. Entretanto, é visível que o papel ativo corresponde ao masculino. Portanto, ele recusa a ideia de uma libido feminina.

Nessa direção, com as críticas de Beauvoir, é vital que perguntemos o quanto de Freud ainda está presente na teoria psicanalítica. Para Kehl, é possível perceber que a psicanálise permanece impregnada pelas convicções do seu fundador (Maria Rita KEHL, 2008, p. 229). Assim, para Freud a mulher estaria condenada ao anobjetal, tratando-se de “uma forma narcísica de amar” (POLI, 2007, p. 31), que se reconcilia com a posição passiva, assegurando que não é a libido quem se divide, mas a pulsão.

Pré-edipiana, a condição feminina adere ao retorno da agressividade à própria pessoa. Tal horizonte indica um subsolo capaz de restituir a ambivalência dos nossos afetos, suscitando uma eficácia psíquica que torna o humano um ser desejante e transporta as diferenças sexuais para referenciais em primeira pessoa. Por isto, podemos dizer que: Freud mostrou-se um tanto conservador em relação a sua teoria e às lutas protagonizadas pelas mulheres. Neste sentido, as mulheres não são “encorajadas por Freud a exercerem uma profissão, a militarem pela igualdade ou a se tornarem as concorrentes dos homens [...]” (ROUDINESCO, 2003, p. 63). Assim como boa parte da sociedade de sua época, Freud se importava com as diferenças sexuais. Para esses, “mandar as mulheres para a luta pela existência era uma ideia ‘abortada’” (Peter GAY, 1989, p. 52).

Nessa direção, ainda que contasse com parcerias profissionais do sexo feminino, “pensar em Martha Bernays, sua ‘meiga e querida garota’, como uma concorrente parecia a Freud uma pura estupidez” (GAY, 1989, p. 52). Destinadas aos encantos de uma conduta passiva, Freud até poderia admitir que os sistemas educacionais evoluíssem ao ponto de atenuar as diferenças sociais entre homens e mulheres, “mas a emancipação total significava o fim de um ideal admirável” (GAY, 1989, p. 52). Insistentemente preocupado em saber os pensamentos de Martha, este posicionamento era de tal forma recorrente sobre sua conduta que lhe suscitava não só certa insegurança quanto ao que ‘sua’ mulher pudesse estar lhe ocultando, mas uma forte tendência a impor suas ideias, de modo a fazer com que a noiva apenas concordasse com suas pontuações. Esvaziada dos cuidados de si, Martha foi relegada aos afazeres da casa, a fortaleza e o refúgio requeridos pelo marido. E isto de tal modo que, se Freud não desejasse, ela também não se permitia “quase nada além do cumprimento do dever” (KEHL, 2008, p. 238).

Partindo de Beauvoir, entendemos que a submissão das mulheres em relação aos homens é premissa para que estes se mantenham no lugar de Eu e reafirmem às mulheres a condição do Outro. Aos homens, não raro essa é a única compreensão possível de um relacionamento. Existe apenas um Eu e um Outro. Todavia, esta ótica retroalimenta a ideia segundo a qual não é possível dois ‘Eu’ numa relação.

Camuflando seus posicionamentos na retaguarda de conceitos analíticos, Freud deixa transparecer um lamento: enquanto um homem de trinta anos ainda é capaz de explorar suas possibilidades, é de se espantar ver o quanto o desenvolvimento de uma mulher da mesma idade já parece ter findado seu processo, não raro assustando “com sua fixidez e imutabilidade psíquica” (FREUD, 2010b, p. 293). Ininfluenciável, “é como se a difícil evolução até a feminilidade tivesse esgotado as possibilidades da pessoa” (FREUD, 2010b, p. 293). Pode-se dizer que, para Freud, a mulher se esgota na feminilidade, não havendo outros caminhos possíveis. Desde que o casamento e a maternidade sejam garantidos, a mulher, segundo Freud, “nada mais teria a almejar, senão realizar seus afazeres domésticos” (BASTONE, 2019, p. 86). Desta forma, se era preciso, do ponto de vista psíquico, colocar alguém na condição de castrado, então Freud buscou “manter a alteridade absoluta da mulher, para que ela lhe fizesse o favor de representar esse ‘outro’ castrado que o protegesse da angústia” (KEHL, 2008, p. 232). É como se ele estivesse convencido de que ser o desejo daquele que deseja é só o que uma mulher quer.

O mundo criado e defendido pelos homens daquela época desejava não só que as mulheres, divididas entre burguesas e operárias, “ficassem relegadas à solidão, mas também submersas na ignorância” (José Artur MOLINA, 2011, p. 52). Mergulhado neste contexto, mesmo um intelectual como Freud pensava que as mulheres “tinham outra natureza e não deviam competir com os homens” (MOLINA, 2011, p. 52). Encontrando aí uma correnteza difícil de controlar, a leitura freudiana indica que a questão sobre como é ‘tornar-se mulher’ revela a preocupação de saber se tal gênese pode ser “atribuída a fatores constitucionais, hereditários ou [...] construídos a partir de uma subjetividade reinante” (MOLINA, 2011, p. 55). Condicionadas por outrem a desejar aquilo que lhes falta no corpo, ‘tornar-se mulher’, no sentido psicanalítico, é o que define "o percurso feminino ao longo do complexo de édipo” (Joel BIRMAN, 2016, p. 180).

Nessa direção, não se trata de recusar as contribuições freudianas, mas de apresentar suas lacunas, incongruências e, por fim, as questões não pensadas acerca do contexto das mulheres. Fazendo da afetividade um dado para, disto, julgar que a “diferença anatômica poderia levar à biologia a responsabilidade pela diferença psíquica entre os sexos” (MOLINA, 2011, p. 55), é preciso dizer: apesar dos avanços desde os estudos sobre o inconsciente, a interpretação psicanalítica da “identidade masculina se fez com bastante rapidez [...], sem que o mesmo zelo fosse mostrado em relação à identidade feminina” (BIRMAN, 2016, p. 175).

Para Beauvoir, a sexualidade feminina não é a falta do falo, apesar de que, esta falta seria um fator condicionante dentro dos processos de sociabilidade para as mulheres. A autora afirma que ser mulher não é tornar-se o destino que o desejo masculino prescreve; não é ser a diferença diante do falo; não é ser Outro. Por isso, a sexualidade feminina precisa ser pensada segundo suas características, sem ter por base o emblema da masculinidade. Neste cenário, é a libido o que mais incomoda Beauvoir. Ainda que considere certo paralelismo, Freud não estuda a sexualidade feminina “em si mesma” (BEAUVOIR, 2009c, p. 72). Predominantemente, suas atitudes demonstram “a pobreza das descrições relativas à libido feminina” (BEAUVOIR, 2009c, p. 82-83).

Se para Freud a libido é, em certo sentido, entendida como masculina e inconsciente, se ele lamenta que as mulheres sofram com a passividade outrora imposta, então há de se perguntar por que motivos as disposições ativas estão associadas aos signos fálicos? Afinal, a condição da passividade decorre de causas naturais ou seria fruto das pressões sociais incidentes sobre as mulheres? Desejando aquilo que, biológica e socialmente, não possui, a mulher “teme o sexo masculino como inversão de um desejo frustrado, desejo que é dado, e não refutado” (BASTONE, 2019, p. 88). Do ponto de vista beauvoiriano, isto é suficiente para alegar que a explicação freudiana do desejo feminino é construída de tal forma que a libido e a inveja do falo surgem como fatos incontestados.

Assim, seria como se a mulher nutrisse, desde o inconsciente, uma forte inveja ao falo, como afirma Freud. É como se ela estivesse destinada a cumprir, na sociedade, a condição passiva que lhe fora prescrita pelo querer masculino. Designando a um certo ideal de feminilidade o ‘fim da linha’ das escolhas de quaisquer mulheres, Freud não só lhes recusa a possibilidade de buscarem a transcendência e se tornarem responsáveis por suas vidas, como as coloca no centro de inúmeras alienações, na tentativa de fazer suprirem suas faltas. Portanto, ao passo que os psicanalistas buscam rastrear as possibilidades de identificação da menina entre tendências ‘virilóides’ e ‘femininas’, Simone diz ser preciso conceber as mulheres “hesitando entre o papel de objeto, de Outro que lhe é proposto, e a reivindicação de sua liberdade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 85). Isto leva a crer que as críticas beauvoirianas possibilitam novos caminhos a serem percorridos quanto à problematização das lacunas sobre a sexualidade feminina.

Contudo, o próprio Freud afirma que seu estudo sobre a feminilidade “é incompleto e fragmentário” (FREUD, 2010b, p.293f). Para Beauvoir, isto indica que Freud interpreta as mulheres por meio de aspectos psicossexuais, presumindo que seja possível explicar-lhes seus anseios e destinos. Por isso, talvez seja vital falar não só do desenvolvimento afetivo e do querer feminino, mas da situação das mulheres que, imersas numa sociedade masculinista, anseiam por assumir as responsabilidades de suas escolhas e que, nesta luta, enfrentam um mundo onde lhes ditam a condição do Outro. Para isto, é preciso não apenas mostrar o quanto a psicanálise vê a mulher como um ser inferior, mas dispor a mulher num mundo repleto de valores, de modo a atribuir “às suas condutas uma dimensão de liberdade” (BEAUVOIR, 2009c, p. 83).

O que nos leva a concluir que, para Beauvoir, tornar-se mulher é fazer-se a partir da facticidade. Situando os caminhos da emancipação como via para a transcendência, ou seja, uma forma de reconstruir-se pela negação do destino da passividade, no sentido de superar a inveja, a soberania e os privilégios concedidos ao falo. Neste sentido, suas críticas são fundamentais à interpelação do conservadorismo e da supervalorização fálica na obra freudiana. Assim, tornar-se mulher é uma escolha situada, sendo parte da estruturação de tabus sociais, que em nada se relacionam a condições naturais. Beauvoir marca a história dos estudos sobre a condição da mulher reafirmando sua liberdade e possibilidade de transcendência.

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1Sendo considerado o ponto inaugural da psicanálise, lembramos que é função da análise sobre a histeria que, a partir da segunda metade do século XX, foi possível lançar um novo olhar sobre as histórias narradas pelas mulheres. Inaugurando, por assim dizer, o método de escuta dos sintomas histéricos, trata-se de um estudo dedicado à problematização das relações íntimas entre pais aproveitadores, mães submissas e autoritárias e filhas rebeldes e vítimas. Tais estudos operam como uma síntese das interrogações da sociedade ocidental ao fim do século XIX. Dentre tantas coisas, abrem margem à possibilidade de emancipação das mulheres, à redução do patriarcado, bem como ao advento de uma nova modalidade de diferenciação sexual.

2Desde os anos 20, a querela das pulsões toma um novo caminho quando Freud passa a tratar de assuntos como a compulsão de repetição e a pulsão de morte, o que operará duas mudanças chaves em sua teoria. Estamos falando não só da reformulação de sua primeira teoria do psiquismo e da sexualidade, mas da problematização da sexualidade feminina segundo os termos da dinâmica e das especificidades que lhe são próprias. Com efeito, neste período, Além do Princípio do Prazer (1920) mesmo caso de cima, deve estar mencionado no corpo do texto e nas referências ao final ou se retiram as notas de rodapé é publicado no intuito de revisar o que fora dito sobre os conceitos de sujeito, objeto e economia libidinal para, disto, propor uma via de contato com o vazio pulsional, de modo a permitir pensar como “a castração e a feminilidade também entram nesse rol de experiências que tocam no limite do representável” (POLI, 2007, p. 30)

3Cabe aqui um esclarecimento: em Freud, não existem sujeitos detentores de condutas puramente femininas ou masculinas. Com efeito, sendo ele defensor de um universalismo libidinal e de um monismo sexual, isso significa que, no inconsciente, não existe a diferença entre os sexos.

4Na história da psicanálise, vale notar que mulheres como Marie Bonaparte e Helene Deutsch, Jeanne Lampl-De Groot e Ruth Mack-Brunswick se posicionaram favoráveis à concepção freudiana da sexualidade feminina. Não obstante, principalmente no que diz respeito às consequências das aberturas teóricas dos anos 1920, é preciso lembrar que nomes como Melanie Klein, Josine Müller, Karen Horney e o próprio Ernest Jones passaram a contestar a fixidez das noções empregadas por Freud, alegando, dentre outras coisas, que sua leitura ainda era bastante incipiente. Comum a estes interpretes também era a seguinte interpretação: Freud recorreu à “um monismo sexual e [...] uma essência viril da libido humana” (ROUDINESCO, 2003, p. 60).

5Tratado em termos de falocentrismo, este sistema remete às teorias freudianas da sexualidade feminina e da diferença sexual. Objetal por excelência, isso implica um monismo teórico, pelo qual opera, no inconsciente, apenas uma libido de essência viril e masculina.

6Em Sartre, a má-fé corresponde a tentativa de fuga do sujeito dando a si um determinismo. Não se trata de negar o que sou. O sujeito da má-fé, busca no mundo algo que possa determiná-lo, e cujas propriedades negam sua condição negativa. Assim, não só nega sua liberdade, mas abre mão de si. A má-fé refere-se, então, à tentativa do indivíduo em se autodeterminar. Diferentemente do mentiroso ciente de sua ação, a má-fé é a conduta na qual o sujeito mente para si mesmo - um autoengano. Por conseguinte, será, num só tempo, enganado e enganador. Ele estará fadado ao fracasso, pois, desejando ser a causa e o efeito de sua determinação, carregará em sua conduta a ameaça da consciência esconder em seu ser um permanente risco de má-fé. Tomamos aqui o conceito retirado de Sartre, pois é a partir desta leitura que Beauvoir desenvolve a sua teoria.

7Para Sartre, a facticidade é a indicação que dou a mim do ser que devo alcançar para ser o que sou.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: WARMLING, Diego Luiz; COELHO, Mateus; LOPES, Paula Helena. “Beauvoir e a crítica à supervalorização masculina na psicanálise freudiana”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e77256, 2022

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 20 de Setembro de 2020; Revisado: 25 de Janeiro de 2022; Aceito: 14 de Fevereiro de 2022

diegowarmling@hotmail.com

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paulahelenalopes.phl@gmail.com

Diego Luiz Warmling (diegowarmling@hotmail.com) é doutorando e mestre em Ontologia do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFil/UFSC). Graduando do curso de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), licenciado e bacharel em Filosofia pela UFSC

Mateus Gustavo Coelho (mateusgusco@gmail.com) é doutorando do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas, mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Paraná e graduando em Letras Português pela UFSC. Atualmente é membro do Instituto de Estudos de Gênero (IEG-UFSC) e do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH-UFSC).

Paula Helena Lopes (paulahelenalopes.phl@gmail.com) é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGP-UFSC), graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGP-UFSC). Atualmente é professora no curso de Psicologia da UNISOCIESC - Campus (Continente) Florianópolis.

Contribuição de autoria: Diego Luiz Warmling: Concepção, redação, revisão, discussão dos resultados. Mateus Coelho: Concepção, redação, revisão, discussão dos resultados, formatação final. Paula Helena Lopes: Concepção, redação, revisão, discussão dos resultados.

Conflito de interesses: Não se aplica

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