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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis mayo/aug 2022  Epub 01-Mayo-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n279288 

Artigos

Identidade de gênero de homens transexuais à luz de Paul Preciado

Gender identity of transgender men in the light of Paul Preciado

La identidad de género de los hombres transgénero a la luz de Paul Preciado

Manoel Antônio dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-8214-7767

Leticia Carolina Boffi1 
http://orcid.org/0000-0001-9198-8963

1Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14040-901 - psicologia.pos@listas.ffclrp.usp.br


Resumo:

Este estudo teórico-reflexivo se propõe a explorar a transmasculinidade na perspectiva da teoria de Paul B. Preciado, a partir da abordagem das concepções de identidade que a atravessam e de suas repercussões na categoria gênero. O desenvolvimento das identidades transmasculinas perpassa a desidentificação com a cisheteronormatividade para subsequente identificação como sujeitos masculinos baseando-se, muitas vezes, nos efeitos plástico-prostéticos do consumo de hormônios sintéticos, que lhes possibilitam a externalização de suas subjetividades e identidades masculinas a partir das modificações do relevo corporal e de seu reconhecimento social e validação enquanto tais.

Palavras-chave: transexualidade; masculinidade; gênero; identidade de gênero

Abstract:

This theoretical-reflexive study proposes to explore transmasculinity from Paul B. Preciado’s theory. It is based on the approach of the conceptions of identity that go through this epistemology and its repercussions in the category gender. The development of transmasculine identities passes through dehydentification with the cisheteronormativity for subsequent identification as male subjects, often based on the plastic-protective effects of synthetic hormone consumption, which allow them to externalize their subjectivities and male identities from the modifications of body shape and its social recognition and validation as such.

Keywords: transsexuality; masculinity; gender; gender identity

Resumen:

Este estudio teórico reflexivo propone explorar la transmasculinidad desde la perspectiva de la teoría de Paul B. Preciado. Se basa en el enfoque de las concepciones de identidad que atraviesan su pensamiento y sus repercusiones en la categoría género. El desarrollo de las identidades transmasculinas pasa por la desidentificación con la cisheteronormatividad para la posterior identificación como sujetos masculinos, a menudo basadas en los efectos plástico-protectores del consumo de hormonas sintéticas, que les permiten externalizar sus subjetividades e identidades masculinas a partir de los cambios en la forma del cuerpo y su reconocimiento social y validación como tales.

Palabras clave: transexualidad; masculinidad; género; identidad de género

Introdução: Identidades transmasculinas

A emergência das identidades transmasculinas no Brasil é um fenômeno recente. No período anterior a 2010, quando os movimentos sociais e o surgimento das comunidades transmasculinas na internet impulsionaram sua divulgação, tais identidades de gênero não encontravam espaço na academia, na saúde e em outros cenários sociais. A partir da segunda década do século XXI intensificou-se o compartilhamento de notícias e informações que conferiam visibilidade aos homens transexuais e sujeitos transmasculinos, algumas envoltas em sensacionalismo, como a divulgação de histórias como a do ‘primeiro homem grávido’, e outras narrativas favorecedoras de uma imagem de dignidade e reconhecimento de direitos, como a inclusão dos homens transexuais a partir da redefinição e ampliação do Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde por meio da Portaria nº 2803, de 19 de novembro de 2013 (BRASIL, 2013; Vinicius ALEXANDRE; Manoel SANTOS, 2019).

Compreender os processos psicossociais de construção de tais identidades é uma questão relevante do ponto de vista científico e social. Não obstante, ainda há poucos estudos nesse campo. Entende-se que esse conhecimento pode resultar na validação desses modos singulares de existência, com possíveis reflexos positivos na humanização do cuidado, desvendando pontos importantes para serem trabalhados em medidas de promoção de saúde e prevenção de agravos. Com vistas a contribuir com esse propósito, este estudo se propõe a explorar as transmasculinidades na perspectiva da teoria de Paul B. Preciado, filósofo e escritor espanhol que se autoidentifica como homem transgênero, que tem chamado a atenção no cenário atual pela originalidade com que dialoga com as contribuições de outros autores, expandindo e subvertendo suas reflexões, a partir da articulação das tecnologias de gênero com o modo de produção capitalista contemporâneo. Em especial, pretende-se abordar as concepções de identidade que atravessam o pensamento de Preciado e suas repercussões na categoria gênero.

A gênese da perspectiva queer

Por não poder escapar à regra de ser uma construção sócio-histórica e, portanto, estar sujeita a alterações de forma e significados, a linguagem se desdobra e se recria a partir da sociedade e suas transições. Um bom exemplo dessa modificação de sentido atribuído à forma, é o que sucedeu com a palavra queer, traduzida na sua fonte original como “estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário” (Guacira LOURO, 2001, p. 546) e que, inicialmente, designava um insulto de teor homofóbico e discriminatório direcionado a gays e lésbicas. Em um revés de apropriação e ressignificação positiva, o termo foi incorporado de forma subversiva pelos movimentos políticos de emancipação das homossexualidades nos anos 1960 e 1970 (João CEZAR, 2019). Assim, subvertendo seu sentido original pejorativo, o queer passou a ser entendido, a partir dos anos 1980, como aquilo que designa resistência e oposição à normatização de identidades e sujeitos, notadamente no que se refere à heteronormatividade. No contexto nacional, a palavra queer e o campo de estudos a que ele remete infiltraram-se de modo peculiar nas universidades, e não como expressão política do movimento social como ocorreu em outros países (Larissa PELÚCIO, 2016). Foi traduzido, inicialmente, como sinônimo de termos nativos depreciativos, como ‘bicha’, ‘viado’, ‘sapatão’.

Da efervescência do movimento político que dominava o cenário internacional nos anos 1990, emerge um grupo de intelectuais que, apesar de diversos e dispersos, fundamentam suas teorias no questionamento da categoria sujeito (LOURO, 2001). O novo e heterogêneo arcabouço teórico-conceitual, que passaria a ser reconhecido genericamente como queer, desponta a partir de uma confluência entre as teorias feministas, o pensamento pós-estruturalista e a teoria psicanalítica (Leandro BRITO, 2021). Trata-se de um “acervo de engajamentos intelectuais com as relações entre sexo, gênero e desejo sexual” (Tamsin SPARGO, 2017, p. 13). Essas investigações - denominadas, ainda que de forma imprecisa, de ‘teoria’ queer - compartilham a problematização das noções clássicas e essencialistas de sujeitos, identidades e identificações. Alinhadas a essa convicção, autoras como Teresa de Lauretis e Judith Butler demarcaram as balizas de um novo pensamento potente e subversivo nos estudos de gênero.

Contemporaneamente, Preciado (2018) afirma que o termo queer perdeu a energia transgressora de que estava investido originalmente e, portanto, não descreve mais estratégias de subversão às categorias de gênero e sexualidade. O autor entende o significado atual do termo como um processo amplo de uma política transfeminista e de construção de subjetividades dissidentes. Como pontua Jesús Carrillo (2007, p. 379), “los movimientos queer denuncian las exclusiones, los fallos de la representación y los efectos de renaturalización de toda política de identidad”.

De modo geral, as proposições de Michel Foucault foram essenciais para instigar os questionamentos propostos pelos autores queer. Uma das ideias do autor que mais influenciaram o movimento é a existência de uma rede de micropoderes articulados ao Estado que atravessam a estrutura social, entendendo o poder como algo que existe apenas em ação e em meio a uma correlação de forças, ou seja, “não pode em hipótese alguma ser considerado nem um princípio em si nem um valor explicativo que funcione logo de saída” (FOUCAULT, 2008, p. 258). Portanto, o poder não pode ser entendido como algo substancial, fixo, imutável ou constante, nem pertencente a alguém ou a uma classe social. Tampouco é localizado em uma instituição ou emerge como algo que se cede, por meio de contratos jurídicos ou pactos políticos - as regras do direito tão somente o organizam e delimitam, no ponto em que o exercício do poder as ultrapassa. O poder, em Foucault (1980), é difuso, está em toda parte e produz efeitos de saber e verdade. O poder deve ser captado em sua capilaridade e distribuição microfísica, em suas extremidades e ramificações últimas. Refere-se a práticas sociais constituídas historicamente, que configuram formas heterogêneas que estão em permanente transformação e, portanto, devem ser entendidas mais como tática e manobra.

A partir do século XVII ocorre um fenômeno importante para entender a natureza do poder: a emergência de uma nova mecânica de controle que se apoia mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. Trata-se do poder soberano ou disciplinar, por meio do qual as tecnologias de subjetivação controlavam os corpos a partir do exterior. Já nas sociedades modernas, a partir do século XIX, podem ser identificados dois poderes circundantes: o jurídico - que se inscreve nas legislações, estatutos, regulamentos - e o biopoder - um sistema minucioso de coerções disciplinares que busca garantir a coesão do corpo social a partir das normativas estabelecidas. De acordo com Foucault (1992), este segundo poder extrapola o domínio jurídico e a esfera punitiva, pois não pode ser classificado apenas como dispositivo repressivo e que cumpre uma função exclusiva de proibir, limitar e regulamentar; ele também apresenta características em sentido positivo quando se instaura, por exemplo, a partir de um sentimento acolhedor, constitutivo da ideologia, que conforma a coletividade e que se faz aceito no coletivo. Em síntese, o biopoder é um sistema de controle social que planeja tecnicamente a vida a partir de normativas que circunscrevem, delimitam e constituem o sujeito e as nações. Nessa perspectiva micropolítico-analítica, o poder não é apenas do Estado, nem uma questão de soberania. O poder provoca ações que ora se organizam no campo do direito, ora no campo da verdade. O poder são as ações sobre as ações.

Dessa forma, compreende-se que nas sociedades existem relações de poder variadas que atravessam, esquadrinham, caracterizam, regulam e constituem o corpo individual e social. A partir dessas relações somos compelidos a produzir verdade, no rigoroso sentido de que a verdade se apresenta como lei e que nos encontramos submetidos a ela. O poder disciplina corpos ao engendrar um regime de verdade. Essa verdade produz um discurso que esquadrinha, reproduz, decide e transmite os efeitos do poder. Em Microfísica do poder, Foucault argumenta que o poder não se aplica aos sujeitos, mas os transpassa e se expressa em seus corpos.

[...] o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e, simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu (FOUCAULT, 1992, p. 103).

Foucault (1980) evidencia a ação do biopoder por meio de uma genealogia1 ao analisar como os indivíduos foram levados a reconhecerem a si próprios como sujeitos de uma sexualidade que se articula a partir de um sistema de regras e coerções normativas envolvendo, principalmente, o controle dos corpos, particularmente no que diz respeito às práticas sexuais e relações sociais derivadas. A sujeição do corpo à utilidade econômica, aptidões e atividades codificadas favorece a obediência política e a aceitação resignada das regras e normas sem reflexão crítica ou resistência.

Além de dialogar com as ideias de Foucault (1992; 2008), Preciado convoca a teoria da performatividade de gênero desenvolvida por Judith Butler (2018) para alicerçar sua própria análise. Butler parte da premissa de que subjetividades corporificadas não preexistem às convenções culturais que dão significados aos corpos e às experiências identitárias. A partir desse posicionamento, defende que o sujeito é efeito dos poderes, saberes e discursos que são culturais e historicamente específicos. Por conseguinte, a autora argumenta que gênero não é uma essência refletida em seus atos e corpos, mas práticas localizadas nas ações cotidianas, um efeito proveniente de recursos semióticos, propondo um modelo performativo da identidade, no qual ações reiteradas incessantemente, constituem a identidade como se fosse algo natural. A essência é, assim, um efeito de performances repetidas que reatualizam discursos que são produtos historicamente situados e culturalmente específicos (Rodrigo BORBA, 2014).

Examinando essa concepção teórica, a linguagem é claramente considerada como elemento fundamental na teoria da performatividade. Butler evoca a citacionalidade derridiana, que compreende que o poder do performativo reside não em um sujeito singular, mas na dinâmica da menção de uma convenção social (Jacques DERRIDA, 1971), em consonância com a necessidade de se pensar criticamente o modo de construção do Ocidente que se constrói a partir da oposição de dualidades, na qual um dos termos sempre será concebido como hierarquicamente superior e o outro, por ser pensado à luz de uma falta ou de uma negatividade, sempre será concebido como inferior (DERRIDA, 1971). A centralidade da linguagem na teoria da performatividade de Butler, mostra que a identidade não preexiste à linguagem e que a repetição é necessária a fim de sustentar a identidade porquanto esta não existe fora dos atos de fala que a sustentam (Joana PINTO, 2007).

Há um esforço notório de tais autores - Butler, Derrida e Preciado - em não recorrerem a concepções ontologizadas sobre o corpo, ou seja, sobre a concretude do biológico, bem como não aderirem a concepções simbólicas e culturais, propondo, assim, evitar os binarismos simbólico/concreto, natureza/cultura, buscando novas perspectivas sobre o concreto e o biológico que se articulam ao simbólico e à cultura.

Considerando esses argumentos, Preciado desenvolve o conceito de sexopolítica, que remete às condições de reprodução da vida ou dos processos biológicos referentes à população na qual a visibilidade do sexo e suas formas de exteriorização, em conjunto com a sexualidade e a raça, são ficções poderosas das quais derivam toda atividade teórica, científica e política contemporânea. Esse regime político tornou-se centro da produção e controle das subjetividades e, por conseguinte, de fabricação de identidades baseadas na subjugação dos indivíduos a padrões normativos. Nesse sentido, pode-se compreender que as ‘identidades’ das chamadas ‘minorias sexuais’2 se configuram dentro de um sistema social no qual

O sexo (os órgãos chamados “sexuais”, as práticas sexuais e também os códigos de masculinidade e de feminilidade, as identidades sexuais normais e desviantes) entra no cálculo do poder, fazendo dos discursos sobre o sexo e das tecnologias de normalização das identidades sexuais um agente de controle da vida (PRECIADO, 2011, p. 11).

Com as reflexões incandescentes de Preciado, podemos indagar como é possível compreender as categorias de ‘identidades sexuais normais e desviantes’, nos modos como elas se inscrevem no ‘cálculo do poder’, por meio da produção de formas de subjetivação que articulam os ‘discursos sobre o sexo’ e as ‘tecnologias de normalização das identidades sexuais’, de forma a dar robustez à estratégia de ‘controle da vida’? E, ainda, como essas noções contribuem para a desestabilização das formações cristalizadas que comumente aparecem coaguladas na categoria identidade de gênero e que são provocadas e subvertidas pela experiência trans? E, nesse campo, como pensar nas nuances e matizes das singularidades, como as identidades transmasculinas? 3

A sociedade farmacopornográfica e a concepção tentacular da subjetividade sexual

O marco mais bem-sucedido da sexopolítica no século XIX foi a construção do corpo, da mentalidade e da política heterossexual. Essa construção transpassa a prática sexual e designa uma política que garante a relação fundante entre a produção da identidade sexual e certas partes do corpo como órgãos reprodutivos, a partir de um regime baseado no sistema de oposição da anatomia sexual cuja função se dá a partir da lógica anatômica (Monique WITTIG, 2001). Essa conceituação foi fundante e esteve presente na gênese do estabelecimento de uma hierarquia entre os sexos, principalmente para a invenção das identidades sexuais sob o regime disciplinar. Dessa forma, os corpos e as práticas sexuais tornaram-se assuntos de domínio estatal e religioso, que enquadraram as mínimas alterações corporais como violação das leis da natureza e da moral.

Esses dispositivos de criação da subjetividade sexual referem-se a políticas exteriores ao corpo, em consequência dos avanços tecnológicos conquistados pela humanidade, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. É nesse momento que a descrição sociológica de Foucault, segundo Preciado (2018), falha na inclusão dos aspectos tecnológicos e subjetivos emergentes, revelando uma lacuna de análise à medida que se aproxima da contemporaneidade e de seus novos aparatos de controle e modos de subjetivação.

Nos termos do pensamento inquieto de Preciado, além da criação da identidade sexual, o papel de patrulha moral capitaneado pelas formações discursivas da Medicina e do Direito, a distinção entre espaços públicos e espaços privados, a espetacularização da vida e o avanço substancial das tecnologias de representação coletiva como a fotografia, o cinema e, principalmente, a pornografia são analisados como características vigentes do que o autor nomeia de sociedade farmacopornográfica do século XX. Os três regimes de produção social (disciplinar, biopoder e farmacopornográfico) não devem ser vistos como fases históricas consecutivas, mas como eras justapostas que atuam no (e a partir do) corpo para a produção modelar do sujeito contemporâneo.

Nesse contexto, a era farmacopornográfica define-se como o regime industrial, global e midiático engendrado a partir dos processos biomoleculares e semiótico-técnicos das indústrias farmacêuticas e pornográfica, enquanto poderes modificadores das características subjetivas - sexo, gênero e sexualidade - por meio da ação de mecanismos que afetam, diretamente, os corpos. Dessa forma, o corpo é habitado e atravessado pelos poderes disciplinadores em um dispositivo de controle que agora parte também do interior do próprio organismo vivo. Nas palavras de Preciado (2018, p. 86), “Testemunhamos progressivamente a miniaturização, internalização e introversão reflexiva (movimento de torção para o interior, para o espaço considerado como íntimo e privado) dos mecanismos de controle e vigilância do regime sexopolítico disciplinador”.

Os dois polos constitutivos do regime sexopolítico - indústrias farmacêuticas e pornográfica - funcionam em oposição: enquanto a indústria pornográfica é a propaganda para o regime dimórfico binário heterossexual e agente mantenedor da assimetria política entre homens e mulheres, as indústrias farmacêuticas promovem a modificação dos limites tradicionalmente desenhados pelas fronteiras do gênero, o que possibilita que os limites possam ser eventualmente apagados.

Como resultante do processo de tecnologização crescente da vida cotidiana, Preciado (2018) defende que a noção de gênero emerge do discurso biotecnológico do final da década de 1940 nas indústrias médicas e terapêuticas dos Estados Unidos. Para consubstanciar essa afirmação, o autor descreve a atuação do psicólogo infantil John Money, que em 1955 lidava com o diagnóstico de bebês hermafroditas. Ele acionou pela primeira vez a categoria gênero em oposição às estritas e essencializadas normas definidas pela medicina da época sobre o que é feminino e o que é masculino, expondo a flexibilidade do gênero promovida a partir de intervenções bioquímicas hormonais e sociais advindas de uma noção reificada de ‘papel social’ e ‘identidade psicológica’. A intenção subjacente era a utilização de tecnologias de modificação corporal a fim de produzir intencionalmente subjetividade conforme a ordem visual e biopolítica binária.

Ainda no que concerne à concepção de adequação corporal, em 1960 o médico endocrinologista e sexólogo de origem alemã radicado nos Estados Unidos, Henry Benjamim, utiliza os hormônios sintéticos estrogênio e progesterona em resposta a uma nova demanda clínica, endereçada por um adulto que afirma não se identificar ao gênero que lhe fora atribuído ao nascimento, em consonância com sua genitália. O médico introduz no campo da biomedicina o termo transexual, diferenciando-o da experiência de travestilidade e defendendo alguns critérios para identificar e diagnosticar um ‘transexual de verdade’, dentre os quais elegeu o sentimento de abjeção e repúdio que as pessoas transexuais podem experimentar na relação com suas genitálias (Rafael GALLI; Elisabeth VIEIRA; Alain GIAMI; Manoel SANTOS, 2013).

Na análise de Preciado (2018), a abordagem de tais casos adota como critério de atribuição de gênero modelos distintos. O primeiro modelo trata do reconhecimento visual, no qual seus significantes são tomados como verdades científicas (genitália) e o real é o visível; o segundo modelo aponta para a produção de uma existência de ‘sexo psicológico’, no qual aflora uma convicção subjetiva robusta de ser homem ou mulher, alicerçada em uma ontologia imaterial. Esses dois modelos funcionam juntos apenas porque

É necessário imaginar os ideais biopolíticos da masculinidade e da feminilidade como essenciais transcendentais dos quais pendem, em suspensão, estéticas de gênero, códigos normativos, de reconhecimento visual, convicções psicológicas invisíveis que levam o sujeito a se afirmar como masculino ou feminino, como homem ou mulher, como heterossexual ou homossexual, como cis ou trans (PRECIADO, 2018, p. 112).

O conceito de gênero introduz uma ruptura justamente porque refere-se ao primeiro momento de autorreflexão da epistemologia baseada na diferença sexual. Nessa ‘crise epistêmica’ declarada por intermináveis e acirrados debates entre o que é natural (natureza) e o que é criação (cultura), homens e mulheres se encontram à deriva diante da eliminação das características que os diferenciavam. Ao invés de corroborar essa nova realidade de construções identitárias caracterizada pela pluralidade de corpos e desejos, os discursos políticos e as tecnologias biológicas e médicas dos anos 1950, intervêm na estrutura corporal dos sujeitos a fim de reafirmar o dimorfismo sexual/corporal; assim, o eterno embate entre natureza e cultura é redimensionado. Natureza e identidade são substancializadas e “levadas ao nível de uma paródia somática” (PRECIADO, 2018, p. 114). Nesse contexto, o gênero parece ser sintético, não um desfecho imutável. Um devir - mais do que um destino incontornável - aberto à constante transformação, mutável, imitável e passível de ser tecnicamente produzido e reproduzido à exaustão.

Em uma contribuição seminal a esse debate, a escritora e professora de história Teresa de Lauretis (1990), italiana radicada nos Estados Unidos, desenvolveu a noção de ‘tecnologias de gênero’, uma concepção crucial que fornece um background para a compreensão das ideias que seriam desenvolvidas posteriormente por Preciado. Para a autora, os dispositivos de filmagem funcionam como produtores de gênero e de subjetividade sexual, ou seja, nos termos de Preciado (2018), a sociedade farmacopornográfica é uma máquina de representação na qual o texto, a imagem e a corporalidade se alastram pelos meios cibernéticos, em movimento tentacular. O gênero pode ser compreendido como um efeito de significados derivados da produção e codificação de signos visuais e textuais regulados politicamente, e o sujeito está constantemente implicado em um processo corporal de produção, representação e interpretação de signos (LAURETIS, 1987).

À vista disso, na concepção farmacopornográfica, a masculinidade e a feminilidade são lidas como consequências do capitalismo industrial, termos “sem conteúdo empírico para além das tecnologias que os produzem” (PRECIADO, 2018, p. 111). Nessa perspectiva, entende-se que as declarações acerca das naturalizações do sexo, da heterossexualidade e das identidades sexuais são conceitos fabricados globalmente na indústria midiática, biomédica e biotecnológica. Gênero passa a ser definido como um conjunto de tecnologias corporais, técnicas farmacológicas e audiovisuais que funcionam como próteses de subjetividade, e a programação predominante de gênero investida nesse contexto opera a partir da seguinte enunciação: “um indivíduo = um corpo saudável = um sexo = um gênero = uma sexualidade = uma propriedade privada” (PRECIADO, 2018, p. 127).

Nessa vertente teórico-analítica, a subjetividade é desencadeada nos circuitos tecno-orgânicos codificados em termos de gênero, sexo, raça e sexualidade, e o corpo produzido na era farmacopornográfica não é uma superfície dócil e passiva, mas um sistema sígnico vivo e pulsante, esquadrinhado e segmentado por diferentes tecnologias políticas. A identidade, portanto, é resultado da ação dessa tecnologia de gênero, como “um saber interior sobre si mesmo, de um sentido do eu sexual que aparece como uma realidade emocional para a consciência” (PRECIADO, 2018, p. 127). As definições sobre si mesmo - homem/mulher; heterossexual/homossexual - resguardam biopolíticas, signos e significados produzidos em discursos, práticas performativas e materialização corporal. A produção de gênero é sempre um conjunto de estratégias de identificação e desidentificação dispostas concomitantemente.

Para Preciado (2018) importa entender que, no contemporâneo, assiste-se a uma horizontalização na distribuição e consumo das técnicas de produção de corpos, que resultam em produção massiva de identidades. A novidade é que tanto corpos normativos quanto corpos dissidentes podem ter acesso e passam a utilizar as tecnologias de gênero cotidianamente. Algumas das questões antecipadas por Preciado (2018, p. 136-137) lançam um olhar para: “quem tem acesso aos tratamentos hormonais? E de acordo com quais diagnósticos clínicos? De que maneira classe e raça modificam a distribuição e o acesso às tecnologias de produção de gênero?”.

A constituição da transexualidade na era farmacopornográfica

A emergência dos termos cisgênero e transexual - termo utilizado neste estudo como sinônimo de transgênero, sendo que este último pretende não refletir a patologização historicamente instaurada pelo uso biomédico da nomenclatura anterior - refere-se a um status de gênero tecnicamente produzido, no qual as diferenças repousam na consciência dos processos tecnológicos de produção de masculinidade e feminilidade a partir do reconhecimento social no espaço público (PRECIADO, 2018). Pessoas cisgêneras são aquelas que se identificam com o gênero atribuído ao nascimento, incorporando-o às suas práticas, convicções e leituras de sua própria subjetividade, enquanto que pessoas transexuais se apresentam como sujeitos que não se identificam com o gênero que lhes fora atribuído ao nascimento. Deve-se lembrar que todas as pessoas se utilizam das tecnologias de gênero tanto para traçar suas rotas de fuga em relação à normatização (transexual), quanto para sua autoafirmação dentro da normativa (cisgênera) e suas respectivas identidades. A sujeição às normas de gênero ou sua recusa radical não depende, portanto, da negação das tecnologias em nome da ‘pureza’ da natureza, mas da reapropriação das técnicas de produção para a constituição de uma subjetividade própria, pela via do empoderamento.

A partir do momento em que os hormônios sintéticos passam a ser acessíveis e largamente empregados com objetivo de produzir e reproduzir o gênero, tanto na construção da masculinidade em homens cisgêneros quando na transmasculinidade, deixam de ser apenas molécula química para adquirir um status de molécula política, enquanto o corpo encarna possibilidades de transcender as restrições das normas de sexo e gênero impostas na constituição das identidades. A oportunidade de burlar o cistema é repreendida vigorosamente com o controle estatal de acesso e comercialização refreada da molécula da testosterona. Adquirir hormônio com um corpo transmasculino só é possível por meio da compra ilegal da molécula ou a partir da submissão resignada aos protocolos diagnósticos referentes à transexualidade, que dão acesso à prescrição médica da substância. Isso porque a transexualidade foi historicamente definida e inscrita nos meios médicos e sociais a partir de seu processo de patologização. Entende-se a medicalização da vida como a conversão de problemas humanos ou diferenças sociais e culturais em problemas médicos, em consonância com a criação de categorias diagnósticas, que criam as doenças ou transtornos.

Apesar da transexualidade ter sido retirada da categoria de transtornos mentais pela Organização Mundial de Saúde e tenha passado a integrar a categoria de ‘condições relacionadas à saúde sexual’, sendo reclassificada como ‘incongruência de gênero’ no ano de 2018, permanece ainda como “disforia de gênero” no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA - APA, 2014). Esses movimentos favorecem com que o status de doença permaneça cristalizado no imaginário social e médico, e que suas reverberações alcancem as políticas de saúde (Cleiton VIEIRA; Rozeli PORTO, 2019), que são construídas em função de um processo patológico, minimizando a importância dos marcadores sociais e dos contextos culturais que dimensionam a vida desses sujeitos (Diogo SOUSA; Jorge IRIART, 2018). Portanto, deve-se refletir sobre as práticas de cuidado, buscando a despatologização a partir da eliminação de planos terapêuticos impositivos ou compulsórios, que só fazem reiterar a normatização e a binaridade de corpos (Manoel SANTOS, Ricardo SOUZA, Lúcia LARA, Eduardo RISK, Wanderlei OLIVEIRA, Vinicius ALEXANDRE, Érika OLIVEIRA-CARDOSO, 2019).

E o que estaria por trás do discurso patologizador? A serviço de que e a quem interessa a retórica classificatória? Só é possível criar sujeitos “normais e naturais por meio da produção de outros perversos ou patológicos” (Richard MISKOLCI, 2009, p. 173). Assim, a catalogação de um corpo trans pelos serviços de saúde especializados, como condição necessária para prescrever hormônios sintéticos e manter o controle médico-legal sobre o consumo, é demonstração cabal do poder regulatório exercido no esplendor de sua soberania. Em contraponto, o livre acesso aos hormônios representaria uma ruptura na epistemologia binária e heterossexual, o que é percebido como ameaçador ao establishment, isto é, à ordem política, ideológica, econômica e legal que constitui a sociedade (Murilo MOSCHETA; Laura SOUZA; Manoel SANTOS, 2016).

A partir de tais reflexões é tentador pensar que o corpo seria passivo em sua relação com o biopoder, entretanto, essa noção é infundada, pois é sua existência material que possibilita a inscrição protética dos gêneros. Essa inscrição se dá a partir da apropriação das disciplinas de saberes e poderes, na medida em que as rearticula para a produção de corpos, entendidos, em geral, como ‘desviantes’. Nesse sentido, o corpo transexual é (re)significado a partir de ações políticas e efeitos reiterados de sujeições, controles e resistências à normatização.

Ao retornar às concepções de Foucault, Preciado (2014) desenvolve a noção de contrassexualidade em relação à enunciação da indiferença entre aparatos naturais e artificiais, descrevendo uma forma de superação das subjetividades que são consequências da cisheteronormatividade4, destilando possibilidades de resistência e ressignificação dos corpos. A contrassexualidade “não é a criação de uma nova natureza, pelo contrário, é mais o fim da Natureza como ordem que legitima a sujeição de certos corpos a outros” (PRECIADO, 2014, p. 21). Para acionar essa contraprodução do status quo, o autor desenvolve a categoria de componentes suplementares cujo objetivo é expor a plasticidade do corpo. Nesse contexto, o instrumento ‘dildo’ emerge como um dos exemplos da escassez da diferença entre a ordem biológica e a ordem artificial na perspectiva da materialidade corporal, provando que as normatividades em questão, perpetuadas pelos corpos e sua concretude, não passam de elementos, entre muitos outros, de um sistema arbitrário de significação.

(...) o dildo se torna, pouco a pouco, um vírus que corrompe a verdade do sexo. Não é fiel à natureza dos órgãos. É o servo que se rebela contra o dono e, propondo-se como uma alternativa de prazer, torna irrisória a autoridade deste. Não existe utilização natural do dildo (PRECIADO, 2014, p. 83).

A contradisciplina, que Preciado extrai da biopolítica de Foucault, vai somar-se à desconstrução da metafísica da presença, tal como pensada por Derrida. Nesse contexto, Preciado (2018) compreende a utilização de tecnologias de gênero, especificamente as que incidem sobre os corpos transexuais, como um processo transfeminista cujo objetivo é criar novas estruturas de inteligibilidade cultural. No que se refere a essa materialidade que é (trans)formada e esculpida pela hormonização, “el cuerpo queer pone en cuestión la mitología que garantiza la naturalización de la filiación y la diferencia sexual” (CARRILLO, 2005, p. 399). Ao ‘desnaturalizar’ noções basilares do direito, como filiação, e desafiar abertamente a construção biomédica de gênero atrelada à diferença sexual, o corpo trans denuncia a precariedade das orientações sedimentadas de mundo e abala as ilusórias certezas que sustentam o binarismo e estabilizam as identidades.

As identidades transmasculinas no apogeu da era farmacopornográfica

A identidade pode ser descrita enquanto ponto de conexão entre o self e todas as características adjacentes do contexto social (Tomaz da SILVA; Stuart HALL; Kathryn WOODWARD, 2000). Certos descritores são tomados como fundamentos estáveis na constituição da identidade - tais como sexo, sexualidade e gênero -, o que solidifica tais circunscritores como presumíveis estruturantes da composição das subjetividades. Contudo, a partir das reflexões expostas pode-se compreender esses descritores como efeitos culturais e políticos; por conseguinte, seriam objetos de reflexão e intervenção que, possivelmente, culminariam na alteração de seu status primordialmente inflexível.

O self e o social se influenciam mutuamente no processo de construção das identidades e, na constituição da identidade transmasculina, eles não são de todo distintos. Preciado (2018) afirma que os ‘critérios psicológicos’ utilizados para identificação - “sou homem”, “sou homossexual”, “sou travesti”, “sou gay”, “sou mulher”, “sou lésbica” - são ficções somato políticas produzidas por um conjunto de tecnologias de dominação dos corpos que constituem o sujeito em suas potencialidades e limites, a partir da circunscrição de sua subjetividade. Nesse sentido, assim como o autor interpreta a subjetividade sexual, pode-se definir a identidade de gênero:

No hay una saturación discursiva de la subjetividad sexual: la subjetividad surge como un gusano que atraviesa la malla de una red y, al mismo tiempo que cava abre un camino, traza una inscripción, deja un rastro, teje una trama que recodifica el discurso preexistente (PRECIADO, 2007, p. 4).

Essa produção de gênero só se torna exequível a partir da desidentificação e do não reconhecimento de si mesmo em referência à cisheteronormatividade, processo crucial para a transformação da realidade. Ou seja, o desencontro entre o self e o social abre brechas que alimentam possibilidades de criação de outras subjetividades e corpos. Assim, do descompasso emana uma experiência que resiste à representação exterior imposta como verdade sagrada e imutável. Dessa forma, homens transexuais constroem um itinerário de desidentificação social a partir das marcas inscritas em sua carne pelas normativas enunciadoras do que é ser homem e ser mulher. Em um segundo momento, para desfazer as marcas que o gênero inscreveu em sua carne, o sujeito nega as definições binárias pré-concebidas, entendendo-se enquanto homem a partir da sua própria subjetividade e corporalidade.

Um cuidado necessário é a não naturalização de uma única identidade de homem transexual, pois mesmo nessa identidade não normativa ainda resvalam características distintas entre sujeitos, que são as marcas que os singularizam. A composição de uma identidade transmasculina nada tem de fixa ou essencial, como se apregoa no discurso do senso comum. Em termos teóricos, bastaria a autoidentificação como homem transexual (ou apenas homem). Contudo, identificar-se como homem não é suficiente para que a sociedade o reconheça e o valide como tal, diante de um crivo hegemônico que esquadrinha e categoriza sujeitos conforme uma ordem visual binária (Vinicius ALEXANDRE; Manoel SANTOS, 2021). Nesse sentido, homens transexuais que optam pela não hormonização ou sujeitos de identidades não binárias transmasculinas5 encontram-se em uma posição de frequente fragilidade e disputa para alcançar sua validação social.

Como descrito anteriormente, na era farmacopornográfica deve-se compreender que o hormônio e a sua aplicação transcendem sua finalidade médica, incorporando signos e discursos circulantes no espaço social compartilhado. A testosterona per se não faz de ninguém um homem e sequer é passaporte para acesso à masculinidade, entendendo que seus efeitos corpóreos não são essencialmente masculinos. Entretanto, a maioria das consequências induzidas pela testosterona foram propriedade exclusiva dos homens cisgêneros até poucas décadas atrás, quando o hormônio passou a ser sintetizado. Apesar disso, o consumo da testosterona exógena só torna o sujeito reconhecido como homem a partir de signos conectados diretamente à masculinidade - se ele ostenta pelos faciais e corporais, voz grave, ombros largos. Trata-se da produção de gênero em sua materialidade, esculpindo um corpo culturalmente lido como masculino. A legitimação social da identidade transmasculina é um processo complexo de significação que se inicia (mas só se inicia) com a aplicação dos hormônios. “Nesse caso, a substância não só modifica o filtro com que decodificamos o mundo: também modifica radicalmente o corpo, e, portanto, o modo pelo qual somos decodificados pelos outros” (PRECIADO, 2018, p. 413). Uma das consequências desse processo foi a consolidação do controle das corporações científico-farmacêuticas sobre os sujeitos, que passam a ser seus clientes-usuários suplicantes, que submetem seus corpos dóceis e submissos.

A construção de uma identidade (trans)masculina depende da organização de poderes, tecnologias e técnicas corporais transmitidas por meio de signos semióticos, de rituais materiais e daquilo que Butler denomina de repetição estilizada das normas. Nesse sentido, os homens transexuais usufruem das tecnologias de gênero como uma estratégia hiperidentitária, entendida como a utilização máxima dos recursos disponíveis de produção de gênero (PRECIADO, 2011). Essa estratégia de otimização pode ser compreendida como um movimento do homem trans de se reapropriar do poder que lhe fora sequestrado pela Medicina, com vistas a se assenhorar de seu próprio processo de esculpir sua subjetividade para tornar-se o que ele já é. Trata-se de modelar o relevo corporal de modo a que se consiga aproximá-lo o máximo possível da representação de gênero que se deseja.

Em consonância a esse senso de contrassexualidade facultada pela testosterona, encontra-se nas transmasculinidades, o exercício de uma masculinidade sem seu aparato normativo fundante: o falo. Nesse sentido, Preciado delineia o ‘dildo’ também como o instrumento de supressão eminente do que é natural e do que protético, especialmente, no caso das transmasculinidades, que por si só desmancha o poderio do falo e carrega seu manifesto de resistência. Nesse quesito, a contrassexualidade identifica o ‘dildo’ como o instrumento suplementar que busca produzir aquilo que supostamente deve complementar.

A contrassexualidade diz: a lógica da heterossexualidade é a do dildo. Esta remete à possibilidade transcendental de dar a um órgão arbitrário o poder de instaurar a diferença sexual e de gênero. O fato de se ter “extraído” do corpo, em forma de dildo, o órgão que institui o corpo como “naturalmente masculino” deve ser considerado como um ato estrutural e histórico decisivo entre os processos de desconstrução da heterossexualidade como natureza. A invenção do dildo supõe o final do pênis como origem da diferença sexual. [...] Nesse sentido, o dildo pode ser considerado como um ato reflexivo fundamental na história da tecnologia contrassexual. Torna-se necessário filosofar não a golpes de martelo, e sim de dildo. Já não se trata de romper os tímpanos, mas de abrir os ânus. É preciso dinamitar o órgão sexual, aquele que se fez passar pela origem do desejo, por matéria prima do sexo, aquele que se apresentou como centro privilegiado no qual se toma o prazer ao mesmo tempo que se dá, e como reservatório de reprodução da espécie” (PRECIADO, 2014, p. 80).

Na lógica construída por Preciado, o ‘dildo’ ultrapassa o pênis como algo da ordem da natureza e da propriedade, “porque todo mundo, desde então, pode ter seu próprio pênis, aliás, quantos quiser” (Rafael HADDOCK-LOBO, 2016) - situação que desnuda a precariedade do pênis, instituindo-o como nada mais do que um brinquedo como outro qualquer. Para Preciado (2014), o pênis é concebido como único órgão legítimo com privilégio para penetração no leito conjugal, sendo um dispositivo a serviço do biopoder e o ‘dildo’ como linhas de fuga.

De acordo com Francis KICH (2020, p. 40), “Na hierarquia das relações cisheteronormativas, a presença de um pênis ou de uma vagina pode acionar os significados de descrédito, discrepância e diminuição nas relações sexuais entre homens transgêneros e cisgêneros”. Nas transmasculinidades, a utilização de ‘dildo’ para práticas sexuais - ou packers6 - é comum. A utilização de tal aparato tecnológico se constitui como uma materialidade morfoprostética, que constitui o corpo do sujeito enquanto materialidade que está diretamente relacionada ao seu uso e, como tal, é de extrema importância para a cena sexual dos homens trans que o adotam (KICH, 2020). Isso porque essa materialidade oferece a possibilidade de dar prazer aos dois participantes da cena sexual, tanto a parceira/o/e, quanto ao próprio homem trans que compreende tal tecnologia como extensão de si mesmo e expressão de sua identidade transmasculina em seus sentidos particulares. Nesse contexto, os corpos são ressignificados em função do que se tem, da imaginação e da procura de maximizar o prazer dentro de um grande mosaico de possibilidades eróticas (João NERY; Eduardo MARANHÃO-FILHO, 2017).

Deve-se ter em mente que a identidade do homem transexual é desde sempre conceitualizada no teatro biomédico como patológica e anormal, o que torna tal sujeito, à luz desse saber-poder, um ser abjeto e ininteligível. A hormonização é o procedimento pelo qual esses sujeitos se tornam inteligíveis em decorrência da passabilidade - conceito que descreve uma performance perfeita de gênero a partir das normativas binárias e cisgêneras na qual o sujeito é lido socialmente como pertencente ao gênero que deseja - nesse caso, homem. Acontece que o êxito da passabilidade culmina no abafamento da identidade transexual. A ocultação da transexualidade confere a esses sujeitos certos benefícios e vantagens, como a proteção contra as diversas violências a que são submetidos no cotidiano em uma sociedade intolerante, excludente e aniquiladora das diferenças, principalmente as recorrentes manifestações da transfobia (Guilherme de ALMEIDA, 2012; Antar MARTÍNEZ-GUZMÁN; Lupicinio ÍÑIGUEZ-RUEDA, 2017; Gabriela BAPTISTA-SILVA; Cristiano HAMANN; Adolfo PIZZINATO, 2017; Willian DULLIUS; Lara MARTINS, 2020).

A despeito de Preciado reconhecer a multiplicidade de eixos e linhas de fuga que constituem a identidade de gênero dos sujeitos, incluindo o modo de produção capitalista nesse contexto de produção de subjetividade, suas análises não se desdobram sobre aspectos de classe ou raça. Embora o autor não deixe de considerar que esses eixos de subordinação também são constitutivos das identidades e da produção de subjetividades estratificadas em seus respectivos gêneros, é importante reconhecer essa lacuna no seu pensamento. Um homem transexual branco não tem acesso às mesmas experiências identitárias do homem transexual negro, como pontua Bruno SANTANA (2019), ele próprio um homem trans negro que relata como, em seu percurso pós-transição, passou a ser submetido a uma leitura social como homem perigoso e violento. Assim, quando a transfobia deixou de atormentar o seu dia a dia, graças à excelente passabilidade que adquiriu após a hormonização, ele passou a ser lido e hostilizado como homem negro, sofrendo com o racismo estrutural da polícia e de pessoas brancas.

Além de desmistificar as tecnologias corporais e entendê-las como parte da produção da subjetividade em ação, Preciado (2018) chama a atenção para as possibilidades de empoderamento dos sujeitos a partir de seus próprios corpos, conforme o que ele denomina de “autointoxicação” em seu projeto radical descrito em TESTO JUNKIE: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfico.7 Organizado pelo autor como um corpo-ensaio, no qual ele registra pormenorizadamente sua experiência, o uso da testosterona aparece como meio de desfazer as marcas do gênero inscritas no corpo pela mercantilização e controle capitalista da sexualidade e das tecnologias reprodutivas. Tensionando ao máximo essa estratégia, Preciado propõe a auto-hormonização com testosterona como um processo de desvencilhamento dos poderes circundantes, celebrando a constituição de novos corpos e sujeitos que se esculpem e se redefinem para além das normas, libertando-se dos controles e circunscritores impostos pelo capitalismo tardio. É também no contexto contrassexual que o autor lê as identidades transmasculinas: “a butch, a machona, a bofinho, as transgêneras, as F2M e os M2F mostram seu poder performativo como imposturas orgânicas, mutações prostéticas, recitações subversivas de um código sexual transcendental falso” (PRECIADO, 2014, p. 30-31).

O autor identifica nesse processo um modo de subverter os cânones da masculinidade e transcender a normatividade esperada com a transição de gênero. Preciado defende que, na travessia, o sujeito trans acede a uma representação de si que carrega a simbologia do poder masculino em um corpo inicialmente lido como feminino - e, como tal, desprovido de poder. “O que é preciso fazer”, afirma, “é sacudir as tecnologias da escritura do sexo e do gênero” (PRECIADO, 2014, p. 27).

Considerações finais

Neste estudo não se almejou retornar às descrições fixas e imutáveis das identidades transmasculinas, como se tais sujeitos fossem de certo modo representantes de uma hegemonia fabricada. No caminho inverso das proposições naturalizadoras, buscou-se refletir sobre a concepção da noção identitária à luz da análise sociopolítica de Preciado, elegendo como foco a produção de subjetividades dos homens trans. Desse modo, este estudo teve por objetivo explorar as concepções de identidade presentes no pensamento de Preciado e suas reverberações no conceito de gênero, mais particularmente na compreensão das identidades transmasculinas.

Conforme sabemos, Paul B. Preciado se insere na tradição dos estudos pós-estruturalistas trabalhando, mais especificamente, na vertente da desconstrução, da crítica aos modos de conhecer e de subjetivar típicos da modernidade, definidos como uma ontologia assentada nos pressupostos da continuidade, da substância, da linearidade, da lógica formal, do princípio da não contradição, da identidade enfim. Fiel à tarefa derridadiana da desconstrução do pensamento ocidental, Preciado segue a abordagem crítica desconstrutiva que procura trazer para a compreensão dos modos de conhecer e de subjetivar os pressupostos do devir, do descontínuo, da contradição, do indecidível, do paradoxal, dentre outros. Assim, o autor não opera com a categoria de identidade como recurso analítico, pois não recorre às categorias da modernidade para pensar a constituição psíquica a partir da ontologia. No máximo, na sua teoria, a partir da desconstrução do sujeito é pensada a questão dos efeitos de sujeito postos na constituição psíquica.

Em outras palavras, o binarismo e a hierarquia que acompanham as referências das matrizes identitárias modernas são problematizadas por Preciado, que adota as críticas às dicotomias. Ainda que a partir de seu pensamento possamos pensar possibilidades para o trabalho dos movimentos sociais críticos, não temos a adesão às matrizes identitárias, nem as concepções teóricas sobre o corpo ontologizado. Assim, nos estudos de Preciado constatamos a aposta em uma nova epistemologia e uma nova ontologia em relação aos pressupostos modernos, pois não temos uma semiologização irrestrita do mundo e do corpo, bem como não encontramos uma concepção sobre uma suposta concretude a priori do mundo e do corpo.

Depreende-se dessa análise que, na atual configuração da sociedade farmacopornográfica, a triunfal consolidação das indústrias farmacêutica e pornográfica, aliadas ao furor incontido do capitalismo vigente, constituem tecnologias de produção das subjetividades enquanto próteses políticas. O desenvolvimento das identidades transexuais passa pela desidentificação com as normas cisheteronormativas, que estabelecem a binaridade de corpos a partir de sua diferença sexual-anatômica, em uma composição social sexopolítica de agenciamento de significados culturalmente construídos. A identificação subsequente enquanto homens transexuais baseia-se, muitas vezes, nos efeitos plástico-prostéticos do consumo de hormônios sintéticos, que lhes possibilitam a externalização de suas subjetividades e identidades masculinas a partir das modificações do relevo corporal. Isso é especialmente perceptível quando se confere um processo de passabilidade e reconhecimento, com validação social dos corpos pela via da autenticação no sistema binário de gênero e consequente redução das violências discriminatórias.

No regime biopolítico da era farmacopornográfica, o Estado exerce seu poder no controle onipresente dos corpos trans a partir da regulação do mercado e das medidas de restrição do acesso e aquisição da testosterona. O homem transexual pode burlar esses limites e constrangimentos impostos à sua subjetivação por meio da autoingestão e do consumo ‘ilegal’ da molécula. O viés empoderador dessa ação é a possibilidade da utilização libertária do corpo como palco para a emergência de novas estruturas de inteligibilidade. Um corpo que se converte em um ‘experimento’, que é submetido à prova ou exame para avaliar suas características ou qualidades, um corpo-ensaio - ‘ensaio’ também no sentido de testar, converter a carne em texto, na medida em que o corpo do filósofo é distendido em seus limites para poder ser lido como suporte para uma outra autoficcção identitária. Mas é preciso estar alerta. Quanto mais a cartografia do essencialismo se desmantela, mais a reação/opressão recrudesce na tentativa de segurar as rédeas que garantem a estabilidade das hegemonias e a manutenção dos privilégios naturalizados.

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1 Genealogia do poder é uma concepção de investigação dos fenômenos, proposta por Foucault, fundamentada na análise não-jurídica do poder, o que proporciona um deslocamento do poder em relação ao Estado, considerando seu exercício em rede.

2‘Minorias’ no sentido de minoritariamente representadas nos espaços sociais e, portanto, invisibilizadas e deslegitimadas, tendo frequentemente que lutar para afirmarem sua existência, terem suas vozes ouvidas e sua humanidade reconhecida, na medida em que seus direitos são sistematicamente violados.

3No âmbito deste estudo, identidades transmasculinas circunscrevem todos os sujeitos que ao nascimento foram designados como mulheres a partir do reconhecimento visual sobre os genitais e que, em algum momento de suas vidas, identificam-se dentro do espectro da masculinidade. Em termos de nomenclatura, homens transexuais são localizados dentro do espectro binário de gênero, enquanto que pessoas transmasculinas estão situadas fora do binarismo de gênero, posicionando-se a partir da não-binaridade.

4A cisheteronormatividade caracteriza-se, segundo Eli Rosa (2020), como um conjunto bem delimitado de normas, reproduzidas de forma ampla na sociedade, que têm por objetivo a produção e formatação de subjetividades para que estas sejam sempre cisgêneras e heterossexuais. Tal naturalização ressalta os fins reprodutivos da dimensão sexual humana e não admite a quebra de tal ideologia, punindo exemplarmente aquelas que se localizam à margem de tal configuração, impondo a desvalorização desses indivíduos e a patologização de suas condutas e desejos.

5Identidade não-binária transmasculina refere-se aos sujeitos que foram lidos ao nascimento como mulheres, entretanto, não se identificam parcial ou totalmente dentro da binaridade homem/mulher e se reconhecem a partir de características ditas masculinas.

6Packer é uma palavra de origem inglesa que designa “próteses penianas produzidas e pensadas para homens trans” (Shay RODRIGUEZ, 2019, p. 15).

7Em língua espanhola, a palavra yonqui significa drogado, viciado. Nessa obra, publicada originalmente em 2008 como Testo yonqui, Preciado aborda criticamente as tecnologias reprodutivas, que incluem o uso de fármacos, como contraceptivos orais, viagra, drogas utilizadas com finalidade de doping, fluoxetina, além do uso clínico dos hormônios sexuais.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SANTOS, Marco Antônio; BOFFI, Leticia Carolina. “Identidade de gênero de homens transexuais à luz de Paul Preciado”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e79288, 2022.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - bolsa de Mestrado processo 88887.600239/2021-00, recebida pela segunda autora. O presente trabalho foi também financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, bolsa de Produtividade em Pesquisa, Nível 1A concedida ao primeiro autor.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 01 de Fevereiro de 2021; Revisado: 09 de Setembro de 2021; Aceito: 24 de Setembro de 2021

masantos@ffclrp.usp.br; manoelmasantos@gmail.com

leticiaboffi@usp.br; leticiaboffi@gmail.com

Manoel Antônio dos Santos (masantos@ffclrp.usp.br; manoelmasantos@gmail.com) é Professor Titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP. Psicólogo, mestre e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Livre-docente pela FFCLRP-USP. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1A. Membro da Academia Paulista de Psicologia (cadeira 33). Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-FFCLRP-USP).

Leticia Carolina Boffi (leticiaboffi@usp.br; leticiaboffi@gmail.com) é mestranda em Psicologia da Saúde e do Desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Co-cordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Masculinidades (FFCLRP-USP). Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (LEPPS-FFCLRP-USP). Membro do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO (FFCLRP-USP). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia.

Contribuição de autoria: Manoel Antônio dos Santos: concepção e conceitualização do artigo, elaboração e redação do manuscrito, análise e discussão dos resultados, redação e revisão do manuscrito

Conflito de interesses: Não se aplica

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