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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis maio/ago 2022  Epub 01-Maio-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n276367 

Ponto de Vista

Ser-menina e a imagem de Greta Thunberg na capa da revista Time

Girlhood and Greta Thunberg's image on the cover of Time magazine

Ser-niña y la imagen de Greta Thunberg en la portada de la revista Time

1Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, MG, Brasil. 35420-057 - dejor@ufop.edu.br


Resumo:

Reflito de que maneira certas representações contemporâneas enunciam o conceito de menina. O objetivo é voltar os estudos feministas da comunicação para um sujeito marginalizado nos feminismos, mas considerado crucial para o desenvolvimento humano, e compreender como esses discursos constroem regimes de visibilidade sobre as meninas. Para isso, recorro a uma análise cultural crítica, aliando a materialidade da imagem da ativista ambiental Greta Thunberg na capa da revista Time (maio de 2019) às relações de poder que a circundam e/ou envolvem, com suporte analítico de uma flânerie digital pelas redes da ativista. O arcabouço teórico se ancora nos girlhood studies e nos estudos feministas. A imagem de Greta parece dizer da inconstância da epistemologia de menina, marcada por fissuras e traumas na representação, bem como pelas ausências de outros corpos, outras meninas, para enunciá-la.

Palavras-chave: meninas; Greta Thunberg; mídia; imagem; representação

Abstract:

I reflect on how certain contemporary representations enunciate the concept of girl. The objective is to turn feminist communication studies to a subject marginalized in feminisms, but considered crucial for human development, and to understand how these discourses build visibility regimes about girls. For this, I resort to a critical cultural analysis, combining the materiality of the image of environmental activist Greta Thunberg on the cover of Time magazine (May 2019) with the power relations that surround and/or involve her, with the analytical support of a digital flânerie of the activist’s networks. The theoretical framework is anchored in girlhood studies and feminist studies. Greta’s image seems to speak of the inconstancy of the girl’s epistemology, marked by fissures and traumas in representation, as well as the absence of other bodies, other girls, to enunciate it.

Keywords: Girls; Greta Thunberg; Media; Image; Representation

Resumen:

Reflexiono sobre cómo ciertas representaciones contemporáneas enuncian el concepto de niña. El objetivo es dar atención, en los estudios de comunicación feminista, a un tema marginado de los feminismos, pero considerado crucial para el desarrollo humano, y comprender cómo esos discursos construyen regímenes de visibilidad acerca de las niñas. Para ello, recurro a un análisis cultural crítico, combinando la materialidad de la imagen de la activista ambiental Greta Thunberg en la portada de la revista Time (mayo de 2019) con las relaciones de poder que la rodean y/o involucran, con el apoyo analítico de un flânerie digital por las redes de la activista. El marco teórico está anclado en los estudios de la niñez femenina y los estudios feministas. La imagen de Greta parece hablar de la inconstancia de una epistemología de la niña, marcada por fisuras y traumas en la representación, así como por la ausencia de otros cuerpos, otras niñas, para enunciarla.

Palabras clave: niñas; Greta Thunberg; medios; imagen; representación

Diante de Margarida

Paro diante da imensa tela no Museu do Prado. Nunca a imaginara tão grande, três metros de altura. Nada do que Michel Foucault (1999) dissera me preparara para a dimensão do quadro de Velázquez1. Las meninas, me diz o título da tela, o título do texto de Foucault, a criança do sexo feminino que (me? Nos? Os fantasmas que olham a tela? As figuras no espelho da pintura?) interpela, no centro da pintura. Ao meu redor, a imensidão de turistas (como eu) admira a obra. Penso na menina.

No quadro, um dos mais famosos e estudados da pintura ocidental, Diego Velásquez nos diz muitas coisas -como, também, muita coisa tem sido dita acerca do quadro. Diz-nos acerca da representação, do campo/contracampo, do que contém e está contido, de quem olha, da fantasmagoria, da fluidez. No século XVII, Velásquez nos disse, também, acerca da menina. Ao ocupar a tela com a figura da infanta Margarida, o pintor nos aponta o dedo em direção à figura infantil no centro do quadro como a dizer: isso é uma menina (ao contrário do que nos diria Magritte, isto não é um cachimbo; ou, antes, ao encontro de Magritte, pois, de fato, isso não é uma menina, senão uma representação de uma ideia de menina). No tópico frasal, um conceito.

Uma menina tem cabelos compridos e castanho-aloirados, com franja, adornado de flores em penteado; usa vestido com babado que lhe cobre o corpo; uma menina posa, a mão graciosa e deliberadamente repousada sobre o tecido da roupa, ou tem gestos delicados de dedos finos; uma menina não pinta o rosto, mas tem bochechas rosadas - logo, é saudável. Se tem saúde, tem riqueza para mantê-la. A menina é uma criança, de provavelmente cinco anos, no limiar, portanto, da primeira infância. O título da obra, Las meninas, refere-se, de fato, a que não são meninas, na acepção contemporânea do termo, visto que, na obra, “las meninas” são “doña María Augustina Sarmiento y doña Isabel de Velasco” (Francisco JIMÉNEZ, 2018, p. 283), as damas de companhia que ladeiam a infanta Margarida, mas a menina contemporânea que nos salta do título para a imagem, para nosso imaginário, é a infanta.

Assim, ao informar-nos algo sobre a menina, ao apresentar sua imagem no centro da tela, Velázquez dá reconhecimento à existência desse grupo social: nem mulheres, nem meninos, não simplesmente crianças (infantes), mas uma categoria gendrada e específica da infância. Ao estabelecer as meninas não como pequenos adultos, mas como sujeitos específicos, confere-lhes singularidade - como Philippe Ariès (1981) relata sobre a existência chancelada à infância a partir de sua diferenciação do mundo adulto na história. Da mesma maneira que Velázquez nos propõe um intrincado jogo representacional na tela, a tela pode nos propor um jogo representacional sobre a menina. Pode, na verdade, nos interpelar acerca da menina.

Diante de Greta

Maio de 2019. Na tela do computador, observo mais uma vez a imagem digital da capa da Time Magazine daquele mês2, na dimensão reduzida do dispositivo, o brilho da tela no máximo. Greta Thunberg está ao centro da imagem, sentada de lado com o rosto virado para a lente (para mim? Nós? Os adultos? O planeta?) à frente. À direita, a luz natural invade a cena e ilumina o corpo da ativista ambiental. Eis aqui uma menina, penso. Porém, a capa da revista tenta me dizer o contrário. Faz isso ao buscar apagar as marcas de enunciação da ideia de menina. Ao lado da imagem, lemos: “Líderes da nova geração - a adolescente em greve pelo planeta. Greta Thunberg”3. Greta não porta uma expressão típica das representações de meninas que circulam hegemonicamente: está séria, compenetrada (como a julgar-nos por nossos crimes ambientais?). O vestido verde a aproxima de Gaia, a deusa-terra, a mãe, a natureza, e ao mesmo tempo de uma mulher adulta: longo, de gala4, não tem elementos típicos da chamada performance discursiva da feminilidade (Lauren BERLANT, 2008), como adornos, babados ou rastros indiciários infantis como unicórnios, flores ou corações. A seu fundo não está um espaço de menina - quarto, parque, escola. O espaço que Greta ocupa é árido, cinza, concreto: adulto (uma visão do mundo distópico prometido pela emergência ambiental e climática que enfrentamos). A imagem nos tenta dizer: isso não é uma menina. E, de fato, quando a fotógrafa holandesa Hellen van Meene montou a imagem, gostaria que não víssemos “Greta como uma coisa jovem fofa, ela é uma garota séria com uma mensagem séria [...] Não se engane com a idade dela, ouça sobre o que ela está nos alertando.”5. Mais à frente, Meene diz que “ao fazer uma imagem não sobre a idade dela, mas sobre a pessoa que ela irá se tornar, significa que daqui a 10, mesmo 20 anos, essa imagem será importante. Não é tanto uma referência à idade dela, mas à história dela” (Suyin HAYNES, 2019, s/p, grifo meu).

A imagem de Greta Thunberg que vejo em minha pequena tela de retina busca promover um apagamento da menina que Greta é, porque é preciso ouvi-la e acreditar nela, e então como ouvir e acreditar em uma menina? Ouvimos e acreditamos em adultas, em mulheres adultas. Ser menina, então, no dizer da revista Time, é não ser credível. Por isso a fotógrafa se esmera em construir um porvir de Greta, afastando-a da temporalidade presente e jogando-a em direção a um futuro, à pessoa (à mulher) que ela vai se tornar.

Mais de quatrocentos anos separam a fotografia de van Meene de Greta e a infanta Margarida de Velázquez. Entretanto, o gesto efetuado pelo pintor espanhol, de (nos) mostrar uma menina, ainda é efetuado cotidianamente no cenário midiatizado contemporâneo, especialmente (mas não apenas) por meio da proliferação de variadas imagens em um momento em que transitam por diversos meios, operam em várias linguagens, se dirigem a públicos distintos. Fotografias, filmes, desenhos animados, produções seriadas, publicidade, videoclipes, todos produzem uma miríade de discursos acerca do que é uma menina, que disputam sentidos com outros campos midiáticos e da vida social, construindo uma rede de poderes-saberes.

Assim, a mídia não apenas reproduz discursos e saberes de campos como a medicina, a educação, a sociologia, mas ajuda a produzir discursos próprios que atravessam e são atravessados uns pelos outros, com tensionamentos e recorrências. Essa rede de imagens conforma uma tecnologia de gênero (Teresa de LAURETIS, 1994), que controla os significados sociais, além de produzir e fazer circular representações de gênero, e é parte importante do processo de construção de sentidos sobre tais representações e sobre o mundo. Os discursos que veicula ajudam a construir as normas performadas pelos sujeitos no mundo. Do mesmo modo, os discursos que circulam por essa tecnologia fazem parte do que constitui um sujeito: “[...] por meio de códigos linguísticos e representações culturais; um sujeito ‘engendrado’ não só na experiência de relações de sexo, mas também nas de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único” (LAURETIS, 1994, p. 208). Levo em conta ainda uma proposição importante de Lauretis acerca da construção de gênero que se opera no mundo; para além do efeito da representação, há “seu excesso, aquilo que permanece fora do discurso como um trauma em potencial que, se/quando não contido, pode romper ou desestabilizar qualquer representação” (p. 209).

Neste artigo, me dedico a refletir de que maneira certas representações contemporâneas enunciam o conceito de menina, tentando contribuir para uma epistemologia da menina nos estudos feministas e demonstrando a marginalidade desses sujeitos, desses temas, no campo. Essa marginalidade é reconhecida pelas ativistas jovens que Emily Bent (2016, p. 106) acompanhou, como Alisha, que em um discurso feito na ONU, em 2015, no Dia Internacional da Mulher, “imaginou ‘um mundo [onde] as opiniões das meninas são valorizadas, [seus] sentimentos reconhecidos e [suas] vozes celebradas’”. Mas a menina foi além, ao demandar mais parceria entre meninas e mulheres e “responsabilização dentro do movimento feminista para assegurar que os direitos das meninas ‘significam algo’”6. Assim, meu objetivo é voltar os estudos feministas do campo da comunicação para um sujeito pouco tratado pelos feminismos - e pela comunicação, em especial - e, entretanto, considerado crucial para o desenvolvimento humano futuro. Bent trata da necessidade desse reconhecimento ao advogar por um ativismo feminista intergeracional, que “borra fronteiras relacionais e dinâmicas de poder, a fim de embasar a apresentação e a representação das vozes e perspectivas de meninas e adultos/as trabalhando juntos”7 (2016, p. 117). Para empreender tal tarefa, recorro a uma análise cultural crítica, aliando a materialidade das imagens às relações de poder que a circundam e/ou envolvem. Greta me conduz. Ou ainda: a capa da revista Time com a ativista Greta Thunberg, de maio de 2019, é o objeto sobre o qual me debruço. Recorro ainda, como suporte analítico, a uma flânerie digital por redes da ativista em busca do contexto que circunda a menina e sua atuação, ajudando a conformá-los. Minha abordagem feminista é culturalista, aliada a teóricas do campo do discurso fundantes para a Comunicação e aos estudos do ser-menina.

Fundada em 1923, a Time Magazine foi a primeira revista semanal dos EUA. Desde 2018 é controlada pelo bilionário da tecnologia Marc Benioff. A partir de três palavras - confiança, acesso, influência - a revista define sua missão como “contar as histórias que mais importam, desencadear debates que impulsionam mudanças globais e promover contexto e compreensão aos assuntos e eventos que definem nosso tempo”8 (TIME, 2020b). Segundo o mídia kit da revista, que se autointitula uma das marcas de mídia mais reconhecidas mundialmente, a circulação do semanário nos EUA é de 3 milhões e, globalmente, de 3,5 milhões (TIME, 2020a). Desde 1928, a revista publica uma edição dedicada à pessoa do ano -o primeiro foi Charles Lindbergh, a pessoa mais jovem [aos 25] a aparecer na capa antes de Greta, eleita em dezembro de 2019 (Lily ROTHMAN, 2019). Desde 2014, a revista publica, em especiais patrocinados pela marca Rolex, a edição Next Generation Leaders, ou líderes da nova geração, edição da qual Greta foi capa em maio de 20199.

Temporalidades subalternas, circulações globais

O ponto de partida da maioria do corpo da produção teórica feminista tem sido, e ainda é, a ideia de mulher, hegemônica enquanto categoria analítica e sujeito da luta política, reivindicada pela primeira onda feminista até o desconstrutivismo pós-moderno que demarca a instabilidade não apenas das categorias de gênero, mas também do sexo, enquanto construções culturais performativas e contingentes. Já não é mais a mulher branca, burguesa, idealizada; são muitas mulheres - cis, trans, com diversas sexualidades -, atravessadas por opressões de raça, classe, etnia, religião. Ainda assim, mulheres. O olhar dos estudos feministas e dos feminismos como projeto utópico-epistemológico e ação política volta-se, sobretudo, para as mulheres como sujeitos. Alda Britto da Motta questiona a possibilidade de qualquer sororidade que não leve em conta questões geracionais, bem como suas produções históricas e dinâmicas atuais. Para ela, é necessário um olhar diacrônico, que se atente “às continuidades e descontinuidades na trajetória das gerações de mulheres contemporâneas” (MOTTA, 2002, p. 36). Outras temporalidades e subjetividades femininas são preteridas em função desse sujeito dominante, em idade reprodutiva: as meninas e as velhas têm ocupado as margens dos projetos feministas; são temporalidades subalternas, espaços secundários, objetos de pesquisa coadjuvantes. Ela lembra que

A idade [...] é um componente bio-sócio-histórico estruturador na organização das sociedades, inclusive com definição simbólica forte, e as gerações são parte essencial da dinâmica coletiva que as impele ou lhes imprime continuidade social; ambas as esferas realizadoras ou participantes das relações de poder na sociedade. Impossível, portanto, ignorá-las ou menosprezar sua importância analítica, principalmente na construção de diferenças e de desigualdades sociais (MOTTA, 2002, p.37).

Quando as meninas ocupam posições centrais no feminismo, este costuma ser um lugar relacional: a menina é uma possibilidade de mulher, e a atenção deriva dessa característica de potência; de um projeto que pode, inclusive, fracassar e que, portanto (e só por isso) merece ser protegido - mas não escutado nem reconhecido como espaço de fala e reivindicação, como a indignação da jovem ativista mostra.

Desde os anos 60/70, os Estudos Culturais, sobretudo, vêm se dedicando a ampliar esse escopo ao abarcar estudos sobre as adolescentes, a partir do pioneirismo de Angela McRobbie (1991), entre outras. A infância feminina vem sendo alvo recente de pesquisas no âmbito dos estudos feministas e de gênero, com trabalhos como os de Anita Harris (2004) e Catherine Driscoll (2002). Também a recente virada do sistema ONU para demonstrar a importância das meninas em relação ao desenvolvimento global é sinal dessa mudança ambígua. O chamado Girl Effect parte da premissa de que as meninas são chave para o fim da pobreza no mundo e para a melhoria nas condições de saúde e expectativa de vida nos países em desenvolvimento e recomenda focar investimentos e políticas públicas nesse grupo. Essa visão se reflete nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O quinto deles diz “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” (ONU, 2019), e detalha metas como a eliminação da violência contra mulheres e meninas. Essa estratégia tem sido adotada não apenas pelo sistema ONU, mas por organizações com o Banco Mundial e por corporações transnacionais como Nike; lemas como “lute como uma garota” se espalham em anúncios televisivos, camisetas, canecas e cartazes em marchas.

De acordo com Ofra Koffman e Rosalind Gill (2013, p. 84), trata-se de um “conjunto de discursos de políticas transnacionais, novas prioridades de investimento corporativo, intervenções biopolíticas, campanhas de marketing e branding, eventos de caridade”10 destinados a promover o orgulho de “ser uma garota”, um orgulho possuído pelas meninas do Norte Global, salvadoras (com as organizações e as corporações) das meninas do Sul Global, ainda ameaçadas muito de perto pelo fracasso do projeto do vir-a-ser mulher. Além disso, como aponta Rosie Walters (2018), tal lógica segue os discursos neoliberais que economicizam o conceito feminista de empoderamento. Mais: oferece soluções simplistas e individuais para problemas coletivos, encara os direitos das meninas no Sul Global com um meio para outros fins e, pior, responsabiliza adolescentes por saírem de suas próprias condições de pobreza. Em outra frente, pressupõe que meninas do Norte Global não enfrentam nenhum tipo de opressão e não deixa espaço para que meninas do Sul Global reclamem agência. Essa dupla inflexão da posição das meninas, importantes de um lado para iniciativas das Nações Unidas e outros organismos internacionais e, de outro, do marketing pós-feminista de grandes conglomerados capitalistas que vêm investindo no chamado “girl power” despolitizado e suas derivações, transforma esse lugar da menina como chave para o desenvolvimento em uma posição subjetiva bastante ambígua e carregada de tensões, e que tem sido pouco debatida pelos estudos feministas. Em países como EUA, Canadá e Austrália, desde os anos 1990, os girl studies ou girlhood studies11 têm se ocupado desses sujeitos, construindo um corpo teórico de consistência. São pesquisas de viés majoritariamente culturalista em campos como sociologia, educação, estudos de mídia, que buscam explorar, entre outros assuntos, as relações das meninas com a cultura pop. Têm tentado também posicionar a crítica em relação aos discursos pós-feministas e realizar uma teoria interseccional das diferentes opressões que incidem sobre as vidas desses sujeitos.

Mas ainda é fato que em diversos campos, como a sociologia ou a comunicação social, a proeminência continua dada à mulher - ou às mulheres - como sujeitos dos feminismos. No Brasil, a atenção é dada às meninas nos trabalhos do campo da educação, que investigam gendramentos em ambientes escolares, por exemplo. As relações das meninas com o consumo de mídia e com a cultura pop também são foco de investigação do campo. Na comunicação, pouca atenção é dada a esses sujeitos dos feminismos. Por conseguinte, pouco se tem estudado as representações, imaginários e afetos dos produtos culturais midiáticos consumidos por elas. Uma exceção, em parte, são os longa-metragens Disney/Pixar e o universo das princesas, escrutinados em anos recentes.

Nesse contexto, o que seria, então, uma menina? Conforme Catherine Driscoll (2002, p. 14), “é uma composição de assuntos e questões culturais e sociais”12. Ela destaca a contingência da ideia de menina, bem como a ambiguidade de fronteiras entre o ser-menina e o ser-mulher. Driscoll (2002, p. 14) aponta como as ideias acerca desses sujeitos se constroem historicamente a partir de um conjunto de discursos e tecnologias que produzem identidades das meninas em relação ao ser-menina como um gênero, ou “um conjunto de gêneros e práticas de distinção e negociação entre eles”13. Pensar as meninas, nesse cenário de contingência e imbricamento, é pensar as crianças, as adolescentes, as pré-adolescentes ou, no termo de Anita Harris (2004), jovens mulheres (ainda que se possa rejeitar o uso do termo mulher devido ao possível apagamento do ser-menina). Existem, assim, diversas possibilidades de ser menina, do ser-menina e das meninas na contemporaneidade, duas delas marcadas por Anita Harris (2004): as meninas-que-podem e as meninas-em-risco. Ambas as concepções estão interseccionadas a questões de raça e classe: as meninas que podem são, normalmente, meninas brancas e de classes mais altas, enquanto as meninas-em-risco são não-brancas (latinas, negras, indígenas…) e precisam ser protegidas (de si mesmas, da raça, etnia, da pobreza) e/ou salvas pelo Estado ou pelas promessas que o girl power imbricado de branquitude carrega.

Pensar as meninas na Comunicação requer levar em conta a circulação global de produtos culturais, especialmente a circulação que envolve a equação Norte Global-produção/Sul-Global-consumo, em uma via que não é de mão única, mas infinitamente mais fluida em um sentido que no outro. Isso significa que, em muitos sentidos, o imaginário de menina está intrinsecamente conectado ao que a produção do Norte Global veicula como menina, uma imagem certamente limitada. Há ainda uma questão vocabular que reflete a tensão inerente ao conceito de menina. Nos girlhood studies, girl pode se referir tanto ao sujeito feminino criança quanto à adolescente. Em português, o vocábulo se divide em dois - menina e garota. Opto pelo uso do vocábulo menina porque o uso da cultura popular brasileira me parece tender mais à associação entre infância/adolescência e menina do que ao vocábulo garota. O audiovisual é um dos loci onde essa associação parece se expressar mais claramente: uma busca livre no IMDB por títulos de produtos audiovisuais com a palavra-chave ‘garota’ revelou majoritariamente produções adultas e algumas exceções adolescentes, como Uma garota encantada (Ella enchanted). Busca similar no perfil infantil do Netflix revelou o seriado pré-adolescente Garota conhece o mundo (Girl meets world). Essas flâneries digitais, singelas, mas significativas, ajudam a mostrar que os regimes de visibilidade sobre as meninas revelam uma inescapável dimensão temporal14, que, por sua vez, se relaciona à infância/adolescência dos sujeitos femininos. Uma menina refere-se, convencionalmente e contemporaneamente, a um sujeito entre 0 e 12 ou 0 e 18 anos. Mas dizer isso é dizer o suficiente? Tais convenções dão conta desses sujeitos?

No Glossário de termos do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 há diversas menções a meninas em vocábulos como Casamento forçado. E há uma definição do que o Sistema ONU considera como meninas - como sujeitos de direitos (na esteira do entendimento do ECA), mas sempre sob a supervisão dos adultos. Além disso as define como:

[...] uma categoria socialmente construída em torno de pessoas do sexo feminino entre 0 e 18 anos de idade. A infância é construída com o entrecruzamento de outras identidades que os indivíduos têm. Etnia, classe, nacionalidade, ambiente familiar, orientação sexual, profissão e outras categorias, como, por exemplo, se essas pessoas vivem em um ambiente violento, se foram privadas de liberdades, se possuem deficiências ou se são do hemisfério ocidental ou oriental; são essas as identidades cujas interconexões irão enquadrar essas meninas em uma situação com mais ou menos acesso aos direitos humanos. (ONU, 2016, p. 18)

Catherine Vanner destaca os diversos sentidos da palavra menina (girl), incluindo a referência à idade aludida pela ONU e um insulto. A expressão se refere majoritariamente a crianças ou adolescentes femininas, mas pode se aplicar a mulheres de um amplo leque etário. “Com o reconhecimento de identidades trans e não-binárias, a categoria de menina se expandiu para incorporar quem se identifica como tal, independente do sexo designado no nascimento”15 (VANNER, 2019, p. 119). Na conformação de tal ideia também encontram-se sentidos culturais, atravessados pela mídia. Trata-se de movimento pendular, que parte do mundo, mergulha na representação e retorna ao mundo, e é a partir dele que busco entender, então, o que conforma essa ideia de menina para certa cultura visual contemporânea, ou o que tal cultura nos diz sobre as meninas. Meu objetivo é compreender como esse discurso ajuda a construir um regime de visibilidade do que é uma menina que vá além da oposição/negação do ser mulher ou do ser adulto, ou seja, que expanda a compreensão temporal para pensarmos também espaços e afetos. Agnes Heller (2016, p. 37) define um adulto como “quem é capaz de viver por si mesmo a sua cotidianidade” e capaz de dominar as relações sociais. Logo, uma menina não é capaz de plenamente dominar as relações sociais e viver por si mesma seu cotidiano. E o que mais? Que pistas essas representações dão a partir do que manifestam ser uma menina? Como essas manifestações ajudam a mapear o que constitui uma menina? O que excluem e o que penetra nas brechas do discurso?

Las meninas

Se as meninas irão mudar o mundo, conforme pregam a ONU, as corporações e o pós-feminismo, algumas certamente estão tentando fazê-lo, dentro da chave do que Sarah Projansky (2014) identifica como meninas espetaculares. Projansky argumenta que meninas sempre estamparam as capas de revistas jornalísticas de referência, que construíram e contribuíram com uma fascinação pública com as meninas. Essa presença ubíqua na cultura da mídia produz meninas como celebridades, “figuras espetaculares com as quais devemos nos importar [...] não necessariamente significa que meninas têm poder, mas antes que a fascinação contemporânea com meninas está ligada a uma feminização do conceito de celebridade”16 (2014, p. 59), e que, além disso, a tensão entre meninas-em-risco e meninas-que-podem se relaciona à idolatria ou difamação de estrelas. Ao analisar capas das revistas Time, Newsweek e People entre 1990 e 2012, Projansky identifica que a grande maioria das meninas que capturam a atenção são brancas. Entre elas, meninas “símbolos fenomenais de sucesso nacional” (dos EUA). Greta Thunberg parece oscilar entre essa representação de um ser-menina branco relativamente passível e vulnerável e uma versão alternativa, que inclui meninas não brancas, atletas que dominam o mundo, “meninas que trabalham juntas para se protegerem e meninas que escolhem voar”17 (p. 94).

As greves semanais pelo meio ambiente de Greta, realizadas desde 2018, têm potência e alcance similar ao discurso de Emma González em 17 de fevereiro de 2018 após o massacre na Stoneman Douglas High School, em Parkland, EUA. Quatro anos antes, em outubro de 2014, Malala Yousafzai recebeu o Prêmio Nobel da Paz por sua luta pelo acesso universal das meninas à educação, dois anos após ser baleada na cabeça enquanto ia para a escola no Paquistão. Greta começou as greves aos 15 anos; o discurso de Emma pelo controle de armas ocorreu quando ela tinha 17 anos, mesma idade com que Malala se tornou a mais jovem ganhadora do Nobel da Paz. As mensagens que seus corpos encarnam são fortes: são discursos pela vida e pelo futuro - das meninas e do planeta. São gritos de alerta e socorro. Os temas pelos quais lutam são temas próprios a suas vivências como meninas, materializando a presença de culturas das meninas experienciadas por esses sujeitos. Sem hierarquizar, são problematizações distintas das lutas de mulheres, ainda que possam coincidir com estas em muitos momentos. São palavras de ordem, hashtags de alcance mundial - #fridaysforfuture, #nomoreguns. Não à toa, as três estamparam as capas da Time Magazine18.

Fica claro, portanto, que na contemporaneidade a epistemologia da menina contempla uma ‘temporalidade’ demarcada de maneira confusa na materialidade do corpo púbere ou pré-púbere, que menstrua cada vez mais cedo, ruindo fronteiras entre menina e mulher, mas também um ‘espaço’. Se, tradicionalmente, as meninas ocupam espaços restritos - a casa, o clube, o quarto - porque estão envolvidas em narrativas de contenção que permitem aos meninos explorarem o mundo, mas demandam das meninas proteção familiar (especialmente paterna) (Angela MCROBBIE, 1991), a menina contemporânea transcende esses espaços, mais além da infância e da adolescência. Tal espaço é preenchido também, simbolicamente, pelo ativismo, pela preocupação com o mundo, com o futuro e com questões de gênero. Tais meninas não buscam mais ser preparadas para o casamento e a maternidade. Suas vidas vão além da cumplicidade feminina mantida segura em espaços fechados. São meninas que não podem mais ser protegidas, porque o mundo deixou de ser um lugar seguro (nunca foi), mas que também não aceitam mais proteção: elas querem conquistas e direitos - pelo menos as meninas espetaculares querem.

Esse espaço também é ocupado materialmente. Greta Thunberg é fotografada longe de casa, sozinha. A ativista ambiental se deslocou pela Europa, de trem ou barco, rumo aos Estados Unidos para falar sobre a emergência climática global. O ser-menina de Greta implica poder sair do lugar, viajar, deslocar-se livremente; e efetivamente fazê-lo. Assim, ser-menina torna-se um espaço a ser preenchido mais amplamente. São espaços, também, a serem preenchidos pela fala dessas meninas, que precisa ser ouvida. Abandonam, assim, a posição de infantes. Segundo Anderson da Mata (2010) lembra, a etimologia da palavra infante remete àquele ou àquela que não fala.

Como protagonistas em um campo de disputa de poder, meninas como Greta Thunberg são o tempo inteiro empurradas para fora do espaço que buscam ocupar ou admoestadas para que ocupem uma posição estática e silente. Na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021 (COP26), em novembro de 2021, a ativista brasileira Txai Suruí foi abordada por um membro da delegação brasileira após seu poderoso discurso de alerta, calcado nos saberes dos povos originários, na abertura do evento, para que não falasse mal do Brasil. No dia seguinte ao discurso, o presidente brasileiro de extrema direita Jair Bolsonaro afirmou, desmerecendo a atuação de Txai, que “levaram uma índia para lá” para, segundo ele, criticar o Brasil. Após a declaração, seguiu-se uma avalanche de mensagens de ódio nas redes dela. A ativista sueca também enfrenta backlash (Susan FALUDI, 2001) nas redes sociais, vindo de políticos - homens anglo-saxões heteronormativos brancos e de direita, em reação a suas falas.

O troll Steve Milloy, comentaria da rede de TV dos EUA de viés conservador Fox News, costuma chamar Greta de ‘filhote climático’ em sua conta no Twitter19 e já disse que quando alguém se rende a um argumento feito por um ‘filhote adolescente’, essa pessoa perdeu. Greta ainda é classificada por ele como ‘mijona climática’ e sua infância é constantemente acionada como demérito à sua credibilidade. Outro troll constante é o ex-presidente dos EUA Donald Trump, que já ironizou sua juventude. Bolsonaro a chamou de ‘pirralha’. Assim, a condição não adulta da ativista é acionada para colocar sua credibilidade em questão, mas não apenas isso: seu comportamento é classificado como criancice. Henrique Mazetti e João Freire Filho (2020, p. 11) aludem ao ‘Efeito Greta’ em relação a lideranças políticas jovens inspiradas pela sueca e demarcam o protagonismo dela: “um papel mobilizador, capaz de motivar outros jovens a engajarem-se [...]”. Elencam ainda questionamentos que a atuação da menina suscita, interpelando sua condição de criança; seu autismo; e sua condição feminina, recorrendo à noção patriarcal de histeria, ao constrangimento às emoções femininas e à legitimação seletiva da raiva. “Ao demonstrar emoções que fogem aos scripts emocionais destinados às mulheres, Greta Thunberg se transforma em alvo de discursos machistas que pretendem delimitar as formas adequadas de expressão da revolta feminina” (MAZETTI; FREIRE FILHO, 2020, p. 30).

É nesse contexto de disputas discursivas que a tentativa de mascarar a infância de Greta Thunberg na capa da revista Time de maio de 2019 circula. Porém, mesmo que a fotografia tente sufocar a menina Greta buscando fazer emergir uma mulher, a menina escapa pelas brechas; como o trauma do excesso evocado por Lauretis (1994). Destaco, aqui, dois índices do ser-menina que fissuram a representação. O primeiro são as tranças longas e retas, das quais uma é vista e a outra, imaginada, pendendo até a cintura de cada lado do cabelo dividido rigorosamente ao meio. As tranças simples são um penteado infantil, um penteado de escola - um penteado de menina, não de mulher. Não costuma ser usado por mulheres em vestidos glamurosos nas capas de revista; essa marca indiciária está em imagens como a da protagonista do seriado Anne with an E; Anna, de Frozen; Dorothy, de O Mágico de Oz, e na maioria das imagens de Greta no Facebook20. O segundo índice que fissura essa representação são os tênis azuis usados por ela, no lugar dos saltos que uma mulher portaria hegemonicamente para combinar com o vestido, em uma performance de feminilidade tradicional. Os calçados de elástico, semi-encobertos pela barra do vestido, estão com as solas sujas - não são novos nem fazem parte da produção fotográfica. São da menina que se senta para ser fotografada, usando um vestido que não lhe pertence. Finalmente, há algo mais que denuncia o ser-menina na imagem de Greta Thunberg: quem nos olha e nos interpela não é uma mulher. O rosto dela não traz os índices de feminilidade performados pelas mulheres em capas de revista. Não usa batom, blush, delineador, sombra. Seu rosto, semi-iluminado, está natural. As feições são infantis: às bochechas redondas se juntam olhos sem olheiras.

Curiosamente, após a capa de maio, Greta retorna à Time em dezembro de 2019, ao ser escolhida pessoa do ano21. Fotografada por outra mulher, Evgenia Arbugaeva, Greta ocupa o espaço; o sair de casa e aventurar-se característico da menina-que-pode contemporânea. Ergue-se sobre as pedras em uma praia de Lisboa, o rosto de menina mirando o extracampo (o futuro?). Aqui, a natureza é evocada não como metáfora, mas materialmente: “Enquanto ela posava [...], o céu ficou rosa dourado criando uma bela luz, a maré subia e ondas quebravam em volta dela [...] Nesse momento parecia que todos os elementos e forças da natureza se alinharam para criar a mágica”22, conta Arbugaeva (Karl VICK, 2019). Uma outra Gaia emerge das ondas, subversão da Afrodite de Botticelli - no lugar da beleza, a terra. A Terra. Os cabelos longuíssimos estão soltos, em precário alinhamento e agitados de leve ao vento. O figurino não parece produzido - casaco rosa claro, calça e tênis. Roupa de menina. Meses após o ser-menina de Greta ter de emergir nas brechas da representação, ele ressurge como promessa que rasga essa representação: a menina-deusa que rejeita a feminilidade hegemônica e as demandas da beleza e opta por outro tipo de poder - não necessariamente o poder ao qual a revista se refere, ‘da juventude’. Ainda assim, uma menina. Branca. Europeia. Espetacular.

Quem é essa menina?

A capa da revista Time de maio de 2019 com Greta Thunberg se relaciona com uma série de opressões de gênero que a menina vive, e a capa subsequente demonstra a contingência da categoria menina nos discursos midiáticos contemporâneos. Porém, é imprescindível mirar não apenas as capas, mas também a imagem de Greta com um olhar interseccional (Kimberlé CREENSHAW, 1991), que permita ver outras fissuras nessa representação. Uma das fissuras mais evidentes nos convoca a pensar no chamado ser-menina transnacional (transnational girlhood), termo utilizado em análises de meninas “influenciadas por estruturas transnacionais como colonialismo, imperialismo, capitalismo, desenvolvimento internacional e/ou outros movimentos sociais internacionais para explorar como elas operam dentro ou em oposição a tais estruturas”23 (VANNER, 2019, p. 123).

A mirada situada dessa imagem a partir do Sul Global torna quase irresistível opor o ativismo de Greta às opressões diárias vividas pelas meninas ditas ‘desempoderadas’ dessas regiões. Porém, para além dessa oposição binária que enquadra a análise em narrativas da menina-em-crise que precisa ser salva pelo feminismo empoderado do Norte Global, prefiro pensar nas ausências que as capas da revista Time me evocam e, a partir de tais ausências, os limites dessa representação, se a imagem global de Greta Thunberg compõe o imaginário do que é uma menina. Greta obviamente mostra que a visibilidade da agência das meninas, um dos temas caros aos girlhood studies, está predominantemente corporificada na mídia ocidental por meninas brancas e individualizadas. Com exceção de Malala e, mais recentemente, Txai Suruí, praticamente não são representadas na mídia meninas ativistas transnacionais não-brancas, evidenciando a branquitude da reverberação midiática de demandas de meninas ao redor do mundo, cujas lutas englobam, mas não se resumem a, educação, emergência climática ou controle de armas. Não à toa, a academia tem chamado atenção para a necessidade de localizar as experiências das meninas, especialmente no Sul Global, atentando para a inter-relação entre aspectos midiáticos, históricos, geográficos (VANNER, 2019), entre outros, nessas vivências.

A branquitude da representação midiática de Greta desconsidera outros temas da agenda das meninas, mas mesmo ao focar na questão do clima, ignora os distintos impactos que a emergência climática global tem em meninas do Norte Global e em meninas do Sul Global, incluindo indígenas, latinas, negras, meninas com deficiência, refugiadas, entre outros grupos, sujeitos de diferentes maneiras às mudanças nos regimes de chuva, secas prolongadas, estiagem de alimentos, queimadas, deslocamentos forçados, fome. E, nesse sentido, é um regime de visibilidade que limita a vivência da emergência climática global à de uma menina sueca, invisibilizando outros grupos de meninas que também enfrentam - e enfrentarão, como mulheres - distintas consequências do problema.

Assim, parece-me que a imagem de Greta Thunberg na capa da revista Time faz circular certa ideia de menina contemporânea, que emerge apesar de tentativas de sufocá-la ou desacreditá-la, configurando uma fissura. Ao circular globalmente (ou transnacionalmente) este ser-menina, a capa nos convoca a pensar sobre o ser-menina, sobre a menina, buscando retirar esse sujeito de sua subalternidade epistemológica nos estudos feministas. No jogo materializado pela imagem de Greta, o ser-menina se presentifica pelas brechas da representação, como excesso e configurando, por sua vez, o trauma, mas o que se materializa na imagem também evidencia tudo que a imagem não é: os limites dessa representação, as ausências - ajudando, por sua vez, nesse processo. Trata-se, portanto, de um jogo representacional repleto de fissuras, ausências e trauma, em que Greta nos mira e nós devolvemos este olhar, mirando ‘uma menina’.

Referências

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1A obra de Diego Velázquez, de 1656, pode ser vista no site do museu: https://bit.ly/3fJ1Pw8. Acesso em 10/08/2020.

2A capa da revista está disponível no site da revista Time: https://bit.ly/3gPoUyG. Acesso em 10/08/2020.

3Tradução minha.

4Ainda que tenha sido adquirido em um outlet de Copenhague pela fotógrafa Hellen van Meene, a caminho do ensaio.

5Tradução minha.

6Tradução minha.

7Tradução minha.

8Tradução minha.

9O projeto está disponível em https://bit.ly/3aiemFM. Acesso em 10/08/2020.

10Tradução minha.

11Corpo de estudos em torno das meninas ou garotas, estabelecido por volta do final da década de 1980, com precursoras como Angela McRobbie. O massacre na Escola Politécnica de Montreal, em que um homem cometeu 14 feminicídios com discurso de ódio contra feministas, foi um ponto de inflexão para as discussões, pois anos antes os grupos batalhavam pela entrada de mais meninas nas engenharias e matemática. Desde 2008, o periódico acadêmico interdisciplinar Girlhood studies: an interdisciplinary journal reúne discussões do campo.

12Tradução minha.

13Tradução minha.

14Alda Britto da Motta (2002, p. 42) ressalta que pensar idades e gerações implica em uma discussão temporal a partir de duas categorias articuladas: tempo social etário e tempo social geracional, noções que se interpenetram quando falo de meninas e que rejeitam uma distinção estrita entre idade e geração/sujeito e coletividade, ao perceber que mesmo o biológico “é de inscrição subjetiva nos indivíduos e nos grupos”. Para Motta (2002, p. 43, grifo da autora), “numa perspectiva de idade/geração, ser jovem, ou ser velho, é uma situação, vivida em parte homogeneamente e em parte diferencialmente segundo o gênero, a raça/etnia e a classe social dos indivíduos de cada grupo etário”.

15Tradução minha.

16Tradução minha.

17Tradução minha.

18Malala estampou a capa da revista em maio de 2013, na edição das 100 pessoas mais influentes do mundo. Em dezembro de 2013, a revista divulgou uma capa com cada um dos finalistas na escolha de “Pessoa do ano”, vencida por Barack Obama; Malala era uma delas. Emma González aparece no primeiro plano da capa da revista de 2 de abril de 2018, junto a quatro ativistas do movimento March for our lives. Em dezembro de 2020, a Time publicou pela primeira vez a escolhida como “criança do ano”: a menina estadunidense de ascendência indiana Gitanjali Rao, de 15 anos, que produziu um app contra cyberbullying.

19O perfil do comentarista é https://twitter.com/JunkScience. Acesso em 10/08/2020.

20Na seção Fotos da página de Greta no Facebook é possível ver reiteradas imagens das tranças que ela porta: https://bit.ly/31GNA6a. Acesso em 10/08/2020.

21A capa está disponível no site da revista Time: https://bit.ly/3fV9cko. Acesso em 10/08/2020.

22Tradução minha.

23Tradução minha.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: BARBOSA, Karina Gomes. “Ser-menina e a imagem de Greta Thunberg na capa da revista Time”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e76367, 2022.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 11 de Agosto de 2020; Revisado: 03 de Janeiro de 2022; Aceito: 23 de Fevereiro de 2022

karina.barbosa@ufop.edu.br; karina.barbosa@gmail.com

Karina Gomes Barbosa (karina.barbosa@ufop.edu.br; karina.barbosa@gmail.com) é pesquisadora feminista, professora do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da UFOP. Tem estágio pós-doutoral no PPGCOM da UFMG. Líder do grupo de pesquisa Ponto e do programa de extensão Sujeitos de suas histórias. Integra as redes de pesquisa Renami e Recria. Doutora e mestra em Comunicação Social pela UnB. Pesquisa gênero, mídia e infância.

Contribuição de autoria: Não se aplica.

Conflito de interesses: Não se aplica

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