SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número2Fazendo Gênero en tiempos de pandemia: debates (im)pertinentesEn tiempos de guerra, cada agujero es una trinchera índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis mayo/aug 2022  Epub 01-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n286988 

Seção Temática Fazendo Gênero em tempos de pandemia

Violência de gênero e pandemia

Gender-based-violence and pandemic

Violencia de género y pandemia

Carmen Hein de Campos1 
http://orcid.org/0000-0002-4672-0084

Ela Wiecko Volkmer de Castilho2 
http://orcid.org/0000-0001-7215-5755

Isadora Vier Machado3 
http://orcid.org/0000-0002-4987-5073

1Centro Universitário Ritter dos Reis, Porto Alegre, RS, Brasil. 90840-440 - assessoriaposgraduacao@uniritter.edu.br

2Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, Brasília, DF, Brasil. 70910-900 - fdunb.pos@gmail.com

3Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil. 87020-900 - sec-ddp@uem.br


Resumo:

No artigo, apresenta-se experiências de três projetos de extensão realizados em universidades brasileiras, e debate em torno da “reinvenção” da atuação universitária durante a pandemia da COVID-19 em atividades de extensão relacionadas à violência contra mulheres. O direito de acesso à justiça pelas mulheres foi consideravelmente atingido pela dificuldade de acesso às tecnologias de informação e comunicação. Embora com as limitações das condições de trabalho remoto e adaptação às dinâmicas de atendimento virtual, os projetos se firmaram como importantes interlocutores, proporcionando às mulheres, respeitadas a autonomia e capacidade decisória, ambiente de acolhimento e escuta pautado na lógica feminista de intervenção e assessoramento.

Palavras-chave: extensão universitária; violência de gênero; COVID-19

Abstract:

The article presents experiences from three extension projects carried out in Brazilian universities, and discusses the “reinvention” of university performance during the COVID-19 pandemic in extension activities related to violence against women. The right of access to justice for women was considerably affected by the difficulty of accessing information and communication technologies. Despite the limitations of remote working conditions and adaptation to the dynamics of virtual service, the projects have established themselves as important interlocutors, providing women, with respect for autonomy and decision-making capacity, a welcoming environment based on the feminist logic of intervention.

Keywords: University extension; Gender violence; COVID-19

Resumen:

El artículo presenta experiencias de tres proyectos de extensión realizados en universidades brasileñas y discute la “reinvención” del desempeño universitario durante la pandemia de COVID-19 en actividades de extensión relacionadas con la violencia contra la mujer. El derecho de acceso a la justicia de las mujeres se vio afectado considerablemente por la dificultad de acceso a las tecnologías de la información y la comunicación. A pesar de las limitaciones de las condiciones de trabajo remoto y la adaptación a la dinámica del servicio virtual, los proyectos se han consolidado como interlocutores importantes, brindando a las mujeres, con respeto a la autonomía y capacidad de decisión, un ambiente acogedor y de escucha basado en la lógica feminista de intervención.

Palabras-clave: extensión universitaria; violencia de género; COVID-19

Introdução

Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo vivia sob a pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (Organização Mundial de Saúde; Organização PanAmericana de Saúde, 2020). A situação de pandemia fez com que governos de todos os países, incluindo o Brasil, tomassem medidas para impedir que o vírus se disseminasse entre a população. As diversas medidas tomadas repercutiram em todas as esferas da vida: na saúde, no trabalho, na educação, no lazer etc. Dentre as medidas decretadas pelos governos, estava a suspensão das atividades presenciais nas escolas e instituições de ensino superior (IES). Com isso, as IES tiveram que se adequar ao contexto pandêmico e passaram a ministrar aulas remotamente. Diversas atividades prestadas pelas IES, tais como atendimento jurídico à população de baixa renda e as de extensão universitária, sofreram com o fechamento das atividades presenciais. Assim, as atividades extensionistas tiveram que se ‘reinventar’.

Mas o isolamento social determinado pelas autoridades públicas sanitárias também teve como resultado a maior permanência em casa e, com isso, um aumento da violência doméstica, fazendo com que o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) solicitasse aos Estados medidas para combater o “horrível aumento global da violência doméstica” em meio à quarentena imposta pelos governos (ONU, 2020).

Contrastivamente, o registro de agressões (físicas e verbais) contra mulheres no país diminuiu, assim como decresceram os pedidos de medidas protetivas de urgência entre março e maio de 2020 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020). Uma das razões pode ter sido a dificuldade das mulheres de saírem de casa ou acessar os serviços de maneira remota.

Neste texto, apresentamos três experiências de projetos ou serviços que, desde a universidade, atendem mulheres em situação de violência doméstica e que passaram, portanto, por um processo de adaptações e desafios impostos pela pandemia. Pretendemos demonstrar, tão logo, o compartilhamento de experiências e vivências em comum, ainda que esta costura tenha sido percebida apenas no momento em que cada uma de nós falou sobre como vinha sendo a dinâmica dos serviços, depois de já iniciada a crise sanitária da COVID-19.

Finalmente, a ideia é a de descrever os projetos no contexto da extensão universitária, falar sobre a realidade de atendimentos durante a pandemia para, assim, destacar quais foram as similaridades no modo de atuação de todos estes.

2 Experiências de reinvenção da extensão

A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) estabelece a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão (art. 207), com o objetivo de estabelecer um vínculo entre a academia e a sociedade, “visando desenvolver democracia, equidade e ética” (Cláudia Batista MÉLO et al., 2021), aproximando estudantes e docentes da realidade que circunda o ambiente universitário.

As diretrizes para a Extensão na Educação Superior estão estabelecidas na Resolução nº. 7, de 18/12/2018 (BRASIL, 2018), do Ministério da Educação (MEC), compreendendo-a como atividade integrada à matriz curricular e à pesquisa, sendo um processo interdisciplinar, político educacional, cultural, científico, tecnológico, que promove a interação transformadora entre as instituições de ensino superior e os outros setores da sociedade (art. 3º). Desse modo, a atividade extensionista deve fazer parte do aprendizado como um todo.

Como mencionado, a pandemia da COVID-19 impactou significativamente os projetos de extensão universitária. Estudo realizado por Mélo et al. (2021) com 126 IES públicas do país demonstrou que 78,6% das IES continuaram desenvolvendo atividades durante a pandemia, das quais 87,9% adaptaram-se ao período pandêmico e 90,3% delas realizaram projetos de extensão (MÉLO et al., 2021). Ainda, segundo as autoras, a maior parte das ações de extensão estava relacionada à COVID-19 e muitas atividades foram realizadas no modo remoto. Ou seja, mesmo com a pandemia, as universidades mantiveram atividades de extensão (MÉLO et al., 2021), como é o caso das experiências que são, a seguir, analisadas.

2.1 Numape/UEM: Extensão universitária durante a pandemia (Universidade Estadual de Maringá/PR)

O Numape/UEM (Núcleo Maria da Penha) é um projeto de extensão que presta serviço de atendimento, orientação e prevenção à violência doméstica e familiar contra mulheres, no âmbito da Universidade Estadual de Maringá, no noroeste do Paraná. Em funcionamento desde 2016, o projeto oferece atendimento jurídico e psicossocial, com uma proposta de se constituir enquanto espaço de escuta qualificada e de acolhimento, formação e atuação preventiva, pautado na lógica da advocacy feminista (Marlene LIBARDONI, 2000, passim) para mulheres em condição de vulnerabilidade e hipossuficiência econômica.

Em maio de 2020, o Numape/UEM registrou o surpreendente índice de mais de 500 (quinhentos) atendimentos mensais. Em apenas dois meses de crise sanitária e isolamento, já se vislumbrava a necessidade de reajustar as estratégias de prevenção e enfrentamento, porque a média de atendimentos mensais costumava ser de menos da metade do número apresentado. Um ano depois, em conformidade com os registros do projeto, já somavam 704 atendimentos ao todo, apenas no mês de maio.

Na condição de projeto de extensão, o núcleo surgiu na Universidade Estadual de Maringá, a partir de uma iniciativa de financiamento público. Em 2014, a então Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do Estado do Paraná lançou o edital 07/2014, como parte do Programa de Extensão “Universidade sem Fronteiras”. A proposta aprovada tomava como modelo os formatos pioneiros de advocacy feminista como o SOS-Mulher ou a própria Themis, além de aproveitar outros projetos já existentes no Paraná nos mesmos moldes, como o NEDDIJ (Núcleo de Defesa dos Direitos Infantojuvenis) e um Numape já existente na Universidade Estadual de Londrina (UEL) (Isadora Vier MACHADO; Crishna Mirella de Andrade CORREA, 2016, passim). O serviço conta com profissionais recém-formadas dos campos do Direito e Psicologia, além de equipes de estágio e orientação por parte de professoras da instituição, com instalação no campus central da universidade.

O Numape foi pensado para funcionar nos moldes extensionistas freireanos, como um ato comunicativo em que pudesse haver reciprocidade entre as sujeitas comunicantes (Paulo FREIRE, 2001), dentre a equipe e, ainda mais importante, dentre a equipe e as mulheres assistidas. Portanto, o estabelecimento de um fluxo de acolhimento e encaminhamento, pautado na lógica da escuta qualificada, foi muito importante para que o núcleo pudesse viabilizar sua práxis feminista ao longo dos seus anos de funcionamento. A manutenção de um grupo de estudos, de reuniões permanentes de discussão de casos, a interlocução com a rede de atendimentos e enfrentamento à violência, e o privilégio de um funcionamento interdisciplinar, sem hierarquias entre as áreas, têm sido elementos estruturais para dar sequência ao trabalho.

O fluxo de atendimentos pressupõe a chegada das mulheres a partir de portas de entrada variadas (em boa parte dos casos, são encaminhadas pelo Centro de Referência especializado do Município, pela Delegacia da Mulher, ou pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar da Comarca que, por sua vez, é um dos polos para atendimento a mulheres na região). Passada a triagem, quando são avaliados os critérios de renda e vulnerabilidade, a equipe psicossocial faz os primeiros atendimentos, garantindo a acolhida inicial e o atendimento de urgências (como o fornecimento de passes para o transporte público até o núcleo, o abrigamento, o atendimento de necessidades dos/as filhos - caso existam, dentre outras). Enfim, a equipe jurídica passa a atuar, mediante agendamento prévio, atendendo às necessidades de cada caso. Esta etapa, entretanto, não interrompe o acompanhamento pela equipe psicossocial, que realiza ligações mensais para as mulheres mais vulneráveis, faz acompanhamentos antes das audiências, ou articula medidas de acolhimento ou encaminhamento junto à rede básica e/ou especializada.

A pandemia, todavia, imprimiu um ritmo de funcionamento diferente e colocou desafios adicionais para que se pudesse pensar o processo de enfrentamento às violências e, acima de tudo, o papel do núcleo neste contexto.

O Numape, como outros serviços da rede de atendimento e enfrentamento, vivenciou a síntese do aumento dos casos de violência doméstica e familiar - não só em termos quantitativos, mas, sim, notadamente, qualitativos. Aliás, um fator disparador do número de casos deve ser registrado nessa experiência: mesmo que as notícias sinalizassem a explosão de ocorrências, os números do projeto subiram efetivamente depois da participação da coordenadora à época em um programa televisivo de grande audiência local, em que ela divulgava a continuidade dos atendimentos por mecanismos como contato telefônico ou por meio da rede social WhatsApp. As mulheres perderam a referência de como noticiar uma ocorrência de violência. A delegacia especializada local permaneceu fechada por algum tempo, realizando os boletins por meio de protocolos virtuais. O Centro de Referência também oscilou os protocolos de atendimento - em um determinado período em que as trabalhadoras do serviço também contraíram a doença, teve que fechar. O fórum permanece fechado até o presente momento, sujeito às diretrizes nacionais sobre audiências virtuais.

Os serviços, por sua vez, também foram modulados conforme as circunstâncias - as reuniões passaram a ser virtuais, os atendimentos a distância se sujeitaram ao fornecimento de novos “chips” telefônicos pela universidade, e muitos custos econômicos foram assumidos pela própria coordenadora, nas inconstâncias desse processo.

Há que se reconhecer, portanto, que assim como a experiência da pandemia não é igual para homens e mulheres, a experiência da violência doméstica durante a pandemia também não é - para as próprias mulheres que sofrem violências, e para as mulheres engajadas nos serviços de atendimento. Nesta intervenção, é preciso, também, dar eco à voz das mulheres atuantes nestes projetos de extensão universitária, como o Numape.

2.2 Projeto de Extensão Promotoras Legais Populares e o monitoramento de MPUs durante a pandemia: uma experiência promissora

O Projeto de Extensão “Promotoras Legais Populares: acesso à justiça, cidadania e igualdade de gênero” vem sendo desenvolvido desde 2018, em parceria com a ONG Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos e o Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), na cidade de Canoas/RS.

A Themis é uma ONG feminista sediada em Porto Alegre/RS e desenvolve, desde 1993, o Programa de Formação de Promotoras Legais Populares (PLPs), criado a partir de iniciativas de ONGs realizadas em diversos países, dentre eles, o Peru, para formar juridicamente paralegais (Carmen Hein de CAMPOS; Gabrielle Bezerra Sales SARLET; Denise Dourado DORA, 2018).

O trabalho das paralegais aumenta o acesso à justiça de pessoas desfavorecidas, fortalece a implementação de leis, ajuda a promover a saúde das mulheres, a proteção ambiental, o sustento de grupos de baixa renda e reforma de leis (Stephen GOLUB, 2002, p. 360).

Nesse sentido, o programa de Formação de PLP, inspirado nas paralegais, tem por objetivo garantir o acesso das mulheres à justiça, promover os direitos humanos e disseminar o conhecimento jurídico para a defesa dos direitos das mulheres.

Partindo da premissa de que o conhecimento sobre os direitos é essencial para o acesso à justiça, o Direito e os direitos devem ser desmistificados. A desmistificação do Direito permite que ele seja aprendido pelas pessoas que mais dele necessitam, saindo da esfera de controle do monastério dos sábios (Luiz Alberto WARAT, 1995) para as mãos das mulheres da comunidade (CAMPOS; SARLET; DORA; 2018, p. 27) que passam a ser agentes da produção do conhecimento.

Nesse sentido, as PLPs são lideranças comunitárias capacitadas em um curso básico de formação sobre direitos que dura em torno de quatro meses e atuam voluntariamente em suas comunidades na defesa (orientação e triagem de demandas de violação de direitos), na prevenção de violações (educação sociocomunitária em mutirões e oficinas) e na promoção de direitos (participação e representação em conselhos, conferências, comissões e fóruns). As PLPs ampliam as condições de acesso à justiça e são uma ponte que aproxima a população do Estado, a cidadã dos serviços públicos (THEMIS, 2021). O foco da capacitação é a atuação em situações que envolvam violências contra mulheres, especialmente, doméstica e familiar.

Desde o início desse Programa, a Themis já capacitou mais de 55 ONGs para replicar cursos de PLPs em todo o país e já formou mais de 1500 mulheres como PLPs na região sul (THEMIS, 2021).

As PLPs atuam atendendo, informando e encaminhando as mulheres em situação de violência para a rede de serviços, fazendo a articulação dos serviços com a rede, pressionando os serviços para um atendimento qualificado e para a formulação de políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres.

Em 2018, o Mestrado em Direitos Humanos/UniRitter desenvolveu um projeto de extensão, em parceria com a Themis, para a formação de PLPs no município de Canoas/RS, formando 25 PLPs. Desde então, elas atuam no Serviço de Informação à Mulher (SIM/Canoas), nos Conselhos Municipais (da Mulher, da Saúde e Tutelar), nas escolas etc.

Na continuidade do projeto, as PLPs fizeram um “estágio” junto ao Serviço de Assistência Judiciária (SAJUIR) da UniRitter, para oportunizar a troca de saberes entre as PLPs e estudantes do curso de Direito e fortalecer a atuação das PLPs na comunidade.

Em 2020, a pandemia restringiu o acesso das mulheres aos serviços, pois muitos tiveram suas atividades reduzidas e outros fecharam, forçando a adaptação do projeto de extensão e da própria atuação das PLPs. Nesse sentido, elas voltaram-se para o enfrentamento à pandemia e suas ações incluíram o confeccionamento de máscaras e sua distribuição para profissionais e mulheres da comunidade, e, ainda, recolhimento e distribuição de alimentos para famílias necessitadas.

Em maio de 2020, a Themis e o Poder Judiciário do estado do Rio Grande do Sul firmaram um Acordo de Cooperação Técnica (ACT), com o objetivo de estabelecer um fluxo de acompanhamento das medidas protetivas de urgência concedidas a mulheres residentes no município de Canoas/RS, durante o período da pandemia da COVID-19. Essa iniciativa foi proposta pela Vara de Violência Doméstica face à preocupação com a fiscalização das MPUs que estavam sendo concedidas durante o período pandêmico.

Conforme o Acordo, a Vara de Violência Doméstica de Canoas/RS encaminha para a Themis uma lista com informações sobre as mulheres com pedidos de Medidas Protetivas de Urgência contendo o número do processo, o nome completo, o endereço e o contato telefônico. A Themis, por sua vez, de posse dessa relação, verifica junto ao Centro de Referência Municipal se há casos já referenciados. Os casos não referenciados são encaminhados às PLPs previamente cadastradas para o monitoramento, conforme a região de moradia das PLPs. Atualmente, são cinco as PLPs que fazem o monitoramento.

Para a realização do monitoramento, a Themis criou uma metodologia que inclui a produção de material com orientações sobre a metodologia e o fluxo de monitoramento dos casos encaminhados; a sistematização de informações sobre os monitoramentos realizados pelas PLPs; o assessoramento às PLPs sobre dúvidas em relação a orientações e encaminhamentos dos casos atendidos; o envio das informações sobre os monitoramentos realizados pelas Promotoras Legais Populares ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Canoas/RS, e o compromisso expresso das PLPs de sigilo sobre as informações recebidas (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, 2020).

Todo o monitoramento é realizado por telefone, pelas PLPs que recebem um valor em crédito em seus celulares, pago pela Themis. Caso haja necessidade de contato presencial, a PLP encaminha o caso para os serviços que continuam prestando atendimento presencial (Polícia Militar, Patrulha Maria da Penha, Postos de Saúde, hospitais e para o Serviço Jurídico da UniRitter).

As PLPs registram todos os atendimentos em uma planilha criada para esse fim, que é encaminhada à Vara de Violência Doméstica com vistas ao deferimento, prorrogação ou revogação das Medidas Protetivas de Urgência, bem como de outras providências - quando necessário.

Até maio de 2021, foram encaminhadas pela Vara 760 medidas protetivas. Destas, 269 não foram distribuídas para as PLPs, pois já estavam referenciadas na rede, especialmente no Centro de Referência da Mulher (CRM) do município de Canoas. Por outro lado, 240 não foram monitoradas porque as mulheres residiam em outro município, ou não havia informações completas, como, por exemplo, ausência do número de telefone, recusa do acompanhamento ou falta de resposta às tentativas de contato. Desse modo, foram efetivamente acompanhadas 251 (contato efetivo) e foram enviados 390 relatórios ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Canoas sobre os monitoramentos realizados pelas PLPs.

O monitoramento indica ser uma experiência promissora por várias razões: a) propicia a participação da comunidade, particularmente de ativistas capacitadas (as PLPs) no monitoramento da lei. Ou seja, um acompanhamento da sociedade civil no monitoramento das MPUs; b) estabelece uma comunicação horizontal: não é um contato formal com o sistema de justiça, mas de mulheres da comunidade para mulheres da comunidade, permitindo uma comunicação horizontal e não vertical, como a produzida pelo sistema de justiça; c) possibilita a identificação de falhas na atuação do sistema de justiça e o melhoramento da aplicação da lei ao permitir corrigir o fluxo das MPUs, e d) fortalece a rede de serviços via referenciamento dos casos ao CRM, à vara e a outras instituições, reforçando a integração da rede.

O monitoramento popular das MPUs dá sentido e cumprimento às medidas integradas previstas no art. 8º da LMP e também à Recomendação Geral 33, do Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - sigla em inglês) sobre acesso à justiça na qual a acessibilidade dos sistemas de justiça é um dos elementos importantes do acesso à justiça, por isso, a prestação de assistência, aconselhamento e representação jurídica devem ser gratuitas ou a baixo custo nos processos judiciais ou quase judiciais em todos os campos do direito. Nesse sentido, o Comitê CEDAW recomenda aos Estados-Partes que:

37. d) Desenvolvam parcerias com prestadores não governamentais de assistência jurídica competentes e/ou capacitem ‘promotoras legais populares’ para prestar informação e ajuda às mulheres sobre o funcionamento dos processos judiciais e quase judiciais e os sistemas de justiça tradicionais (CEDAW, 2013, grifamos).

O reconhecimento do Comitê CEDAW de projetos como as “promotoras legais populares” como agentes capacitadas para prestar informação e ajuda às mulheres sobre o funcionamento dos processos judiciais demonstra o acerto dessa iniciativa. A atuação das PLPs no monitoramento das MPUs é uma forma de fazer cumprir o art. 8º da LMP e a Recomendação Geral 33/CEDAW e uma possibilidade concreta de ampliar a participação da sociedade civil na implementação da lei Maria da Penha.

2.3 O Projeto de Extensão Maria da Penha: Atenção e Proteção a mulheres em situação de violência doméstica e familiar (PMP) na Ceilândia/DF

O PMP, vinculado ao Grupo de Pesquisa Direito, Gênero e Família da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), desenvolve-se no Núcleo de Prática Jurídica da UnB (NPJ) na cidade satélite de Ceilândia, no Distrito Federal (DF), para efetivar o direito à assistência judiciária às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, previsto no art. 27 da Lei Maria da Penha. O nome Ceilândia provém da “Campanha de Erradicação de Invasões” (CEI), iniciada em 1971, e que se constituiu na primeira experiência de remoção de favelas do governo do Distrito Federal (Maria Salete Kern MACHADO; Nair Heloisa Bicalho SOUSA, 1998) e que concentra ainda hoje grupos sociais dos mais vulneráveis do DF.

Em dezembro de 2019, Ceilândia, incluindo as favelas Pôr do Sol e Sol Nascente, contava com 2.863 registros relacionados à violência doméstica, de um total de 16.861 no DF. Em 2020, foram 2.985 para 15.995; em 2021, 2.894 para 16.327 (SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA PÚBLICA, 2022). Em todos os anos, esta região figura em primeiro lugar na estatística de violência doméstica do DF.

O PMP, criado em 2007, tem como premissa a compreensão da violência de gênero como um fenômeno estrutural que perpassa as relações interpessoais, familiares e sociais e de que o seu enfrentamento não se faz apenas pelo Direito ou pelo sistema judicial. Assim, atua em conjunto com outras áreas do conhecimento, como a Psicologia e o Serviço Social, e procura articular-se com a comunidade, por meio de outro projeto de extensão, o das “Promotoras Legais Populares”, bem como com a Rede Social da Ceilândia.

Propõe-se a “prestar assessoria jurídica e psicológica a mulheres em situação de violência doméstica e familiar” em uma “perspectiva feminista, interdisciplinar, e de respeito à autonomia das mulheres”. Não persegue a punição do agressor, mas o fortalecimento das mulheres em situação de vítimas para que rompam o ciclo de violência a que estão submetidas e elaborem novos projetos de vida. A intervenção psicológica se dá no marco da teoria sistêmica, que dialoga com a ideia da desigualdade de gênero como estruturante das relações pessoais e sociais.

Para a realização desse objetivo, o PMP conta com o trabalho voluntário de uma equipe com número instável de profissionais e estudantes das áreas do Direito, da Psicologia e do Serviço Social. A distância entre a Rodoviária do Plano Piloto em Brasília e o centro de Ceilândia é de cerca de 30km. O transporte pelo metrô demora mais de uma hora. De forma intermitente, a depender dos editais anuais, um/a ou dois/duas estudante/s é/são contemplados/as com bolsa de iniciação científica ou de extensão.

A atuação é bastante diferenciada em relação a serviços semelhantes, consistindo no assessoramento jurídico e psicológico concomitante às mulheres que procuram o PMP, por indicação de outras assessoradas, ou dos órgãos do sistema de justiça. Até março de 2020, o atendimento presencial era feito aos sábados pela manhã, no NPJ. Após uma roda de conversa, realizada por psicóloga/o e estagiárias/os da Psicologia, acompanhada também por integrantes do Direito, as mulheres passavam ao atendimento individual por advogada/o e estudantes de Direito e de Psicologia, sob supervisão de profissionais das duas áreas. Nesse momento, eram ouvidos os relatos, esclarecidas as possibilidades de encaminhamentos, o funcionamento do sistema de justiça e da rede de apoio, bem como discutia-se com a assessorada a possibilidade, por exemplo, do ajuizamento de ação, se fosse o caso. As crianças que, porventura, a acompanhassem, eram acolhidas na brinquedoteca.

O atendimento psicológico individual na forma de encontros terapêuticos dependia da necessidade percebida pela/o profissional da Psicologia, a serem feitos também aos sábados ou encaminhados a outros serviços da rede de atendimento. Tendo em vista a inexistência de estágio supervisionado do Serviço Social no NPJ, nunca foi possível formar equipes de atendimento com estudantes e profissionais dessa área. Mas, em vários momentos da história do PMP, estiveram presentes, facilitando a articulação com a Rede Social de Ceilândia.

É utilizada a palavra assessoramento, em vez de assistência jurídica/judiciária, para ressaltar a horizontalidade na relação com as mulheres, construindo estratégias em conjunto, sem imposição e respeitando o tempo necessário para que elas decidam sobre o que desejam de uma intervenção judicial no conflito que vivenciam. Assim, o PMP desenvolveu uma metodologia interdisciplinar de acolhimento e escuta, baseada na presença física, na empatia e na relação horizontal (Ela Wiecko Volkmer de CASTILHO; Sonia Maria Alves da COSTA COUTINHO; Isabella Flávia Maia COUTINHO, 2020a). Essa metodologia foi desestruturada com a decretação do estado de pandemia e das medidas de isolamento social para prevenir a disseminação descontrolada do contágio pelo novo coronavírus. As atividades acadêmicas, a partir de março de 2020, passaram a ser realizadas de forma remota, e o NPJ até hoje encontra-se fechado, mesmo porque estão sendo realizadas obras de engenharia no prédio. Em consequência, as rodas de conversa e os atendimentos presenciais das mulheres que frequentavam o PMP foram cancelados, bem como reduzida drasticamente a possibilidade de receber novos casos, pois a divulgação do PMP se dava, na sua maior parte, pelo “boca a boca”. Restaram os processos judiciais em andamento e o contato esporádico por WhatsApp com as mulheres, para informar o trâmite das ações e, eventualmente, a propositura de alguma medida judicial urgente.

O PMP passou, então, a pensar em como receber novos casos e fazer um atendimento a distância, num contexto de isolamento social e de dificuldades no acesso à tecnologia digital. A oportunidade surgiu com a implantação da Delegacia de Atendimento Especial à Mulher em Ceilândia (Deam II), em junho de 2020. Mas, só a partir do final do ano, a Delegacia disponibilizou ao PMP, pela primeira vez, listas com nomes e números de telefones de mulheres que haviam registrado violências no contexto doméstico e familiar e manifestado interesse em assistência jurídica e/ou psicológica.

A equipe dedicou-se a fazer as ligações telefônicas, com resultados iniciais desanimadores. Do total das ligações feitas, pode-se afirmar, ‘grosso modo’, que metade das mulheres não atendeu ou, quando atendeu, disse que houve engano. A outra metade se distribuiu entre as que declararam não poder participar dos encontros on-line, as que recusaram e um pequeno número que aceitou o apoio psicossocial e jurídico oferecido. Isso não significou adesão efetiva, porque, posteriormente, algumas mulheres interromperam o contato.

Esses resultados foram também observados pelas psicólogas do PMP, na clínica de estágio de uma universidade privada que mantém convênio com o Tribunal de Justiça. Reportaram que, das quase 40 mulheres encaminhadas pelos juizados de violência doméstica e familiar, foi possível entrar em contato com apenas 20, que atenderam pelo número de telefone informado ao juízo. Entre essas, somente 12 demonstraram interesse no atendimento, mas não chegaram a ser atendidas efetivamente, uma vez que não compareceram na data combinada para o encontro on-line e, após serem contatadas, ofereceram diversos motivos para esquivar-se do atendimento (CASTILHO et al., 2020b).

De qualquer forma, o PMP preocupou-se em definir protocolos para o contato telefônico e para o atendimento via aplicativo WhatsApp, constatado o meio digital mais acessível para as mulheres pobres. As extensionistas são orientadas a verificar a possibilidade de entrar em contato com a assessorada com segurança e respeitados os preceitos éticos, por meio de mensagem escrita, ou, a depender do caso, por chamada de voz. Também, de recomendar às assessoradas que o contato seja salvo com nomes diversos, de forma a evitar a identificação das extensionistas, em especial da advogada, da psicóloga ou da assistente social com o PMP, pois não é possível saber se o agressor tem acesso ao celular da vítima. No momento dos atendimentos, é recomendado o uso de fones de ouvido, ou que seja prestado em local não compartilhado com outras pessoas, a fim de que a mulher se sinta mais à vontade e, assim, consiga se aproximar da confidencialidade proporcionada no atendimento presencial.

Estabelecido um fluxo de recepção, em 2021, voltou-se a oferecer, aos sábados pela manhã, uma roda de conversa on-line com o objetivo de estimular falas terapêuticas grupais. A adesão das mulheres assessoradas é ainda muito baixa, mas, quando ocorre, se percebe a relevância para fortalecer a autoestima delas. Também são realizadas as reuniões de capacitação das/os estudantes, planejamento, estudos de caso ou de avaliação. O atendimento individual interdisciplinar em trio (uma pessoa do Direito, outra da Psicologia e a assessorada) ocorre durante a semana, em horários diversos, conforme a necessidade e disponibilidade da assessorada, o que era inviável antes de 2020. São realizados, em média, cinco (5) encontros de acolhimento, cujo foco são questões específicas individuais das assessoradas. Os casos que exigem atendimento psicoterapêutico ou psiquiátrico são encaminhados a instituições da rede social do DF. O chamado processo eletrônico substituiu definitivamente os autos físicos, em papel, e as audiências, enquanto subsistir a pandemia, se realizam em plataformas digitais.

Diante do que foi exposto, não temos como apontar estatisticamente o aumento de casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres na região atendida pelo PMP, durante a pandemia, mas podemos afirmar que o direito de acesso à justiça pelas mulheres, em sentido amplo, foi consideravelmente atingido pela dificuldade de acesso às tecnologias de informação e comunicação, isto é, à inclusão digital, que, na atualidade, constitui caminho para inclusão social, econômica, cultural e política.

3 Sobre encontros e desencontros das experiências relatadas

Nas práticas de extensão universitária, compreendemos a fundo aquilo que os dados apontam que as diversas formas de violências sofrem atravessamentos fundamentais e recaem sobre os corpos das mulheres de modo muito diferente durante a pandemia. Embora este não seja o foco do debate aqui proposto, vale lembrar, por exemplo, que as pessoas negras atravessam a pandemia em São Paulo com o trágico registro de 25% a mais de mortes do que as pessoas brancas. Ou seja, este percentual é indicativo de como, para as mulheres negras, a experiência de violência na pandemia vem somada ao risco aumentado da própria doença (PORTAL GELEDÉS, 2021).

Da mesma forma, as pessoas indígenas, alvo de grandes embates nos planos de imunização (Mariana VICK, 2021), têm sofrido sistematicamente com a COVID-19, o que põe em destaque como as mulheres indígenas padecem de incontáveis dificuldades para superar as condições de mortalidade e violência também durante a pandemia. As mulheres com deficiência, por sua vez, enfrentam dificuldades de acessibilidade durante o isolamento - a dinâmica de distanciamento social, o uso de máscara, a mudança da lógica de mobilidade nas cidades, tudo isto cria dificuldades adicionais que se somam de forma nefasta à experiência da violência. Assim como as mulheres pobres, que atravessam a pandemia vulnerabilizadas pela doença, assujeitadas por vínculos precários de trabalho e, em contextos de violência doméstica, desprovidas de meios para acessar os novos mecanismos de funcionamento da rede de atendimento e enfrentamento à violência.

Além da vivência particular de cada uma destas mulheres que encarnam de diferentes modos a violência doméstica, porque têm em seus corpos diferentes marcadores de raça, classe, etnia etc., que as leva a atravessar a própria pandemia de modo dificilmente particular, a doença ainda escancara três outros pontos importantes de debate: (i) A retumbância do discurso do governo federal (ou do silenciamento do governo federal) sobre a pandemia e, além disso, sobre a violência doméstica em si; (ii) A falta de compreensão ou o desencontro na compreensão sobre essa diversidade de experiências pelos agentes da rede, sobretudo aqueles que atuam no sistema de justiça; (iii) A sobrecarga das profissionais que atuam nos serviços de atenção e cuidados a estas mulheres - onde gostaríamos de situar, portanto, a universidade, e deslindar o conteúdo principal deste texto, levando a conhecimento público as condições em que promovemos este enfrentamento.

Brisa Campos, Bruna Tchalekian e Vera Paiva (2020) analisam o contexto de vulnerabilidade programática em tempos de pandemia, na rede de enfrentamento à violência doméstica da cidade de São Paulo, e pontuam os impactos que a doença gerou no funcionamento da rede daquele município, em diferentes regiões, com a precarização dos serviços somada às dificuldades socioeconômicas agravadas nestes últimos dois anos. Um fator de destaque no texto é a politização do quadro de vulnerabilidade institucional, a partir da identificação de que o posicionamento e o histórico de declarações e posturas sexistas do presidente da República em exercício, sem dúvida, fragilizam ainda mais a conjuntura de enfrentamento.

Não houve, até o momento, uma agenda contundente de enfrentamento da pandemia por parte do governo federal, quanto menos estratégias de combate aos reflexos pontuais da mesma, como o expressivo aumento dos casos de violência doméstica.

Além disso, um estudo realizado pela Câmara dos Deputados evidenciou que somente R$ 5,6 milhões de um quantitativo de R$ 126,4 milhões previstos na Lei Orçamentária de 2020 foram gastos com as políticas públicas para mulheres. No mais, houve uma fusão das políticas de enfrentamento à violência com outras pautas genéricas, tal qual a proteção à família (Lara HAJE, 2020). Quer dizer, o enfrentamento à violência doméstica está longe de ser uma pauta prioritária.

Este eixo político vai ao encontro de outra realidade potencializada pela pandemia: a ausência de compreensão, por parte de algumas instâncias, da própria rede a respeito das diversas experiências de violências sofridas por cada mulher brasileira. Reportagem divulgada pelo Portal Catarinas, datada de junho de 2020, retrata a falta de intersetorialidade que acomete a rede catarinense, ampliando as dificuldades no processo de enfrentamento às violências antes mesmo da sobrevinda da pandemia (Juliana RABELO, 2020). Na mesma linha, Cecília MacDowell Santos (2015) afirma identificar uma espécie de bipolaridade no funcionamento da(s) rede(s) na cidade de São Paulo, chamando a atenção para uma verdadeira condição de inconstância nas políticas socioassistenciais e jurídicas e na própria compreensão sobre violência doméstica que circula de forma díspar nos diversos serviços. Esta disrupção ficou ainda mais latente durante a pandemia, já que cada serviço precisou dispor de seus recursos e métodos para adaptar novas formas de atendimento e acolhimento. Afinal, não houve uma política integrada de encaminhamento que sinalizasse um único método viável. Com isto, um dos impactos mais presentes na rotina dos projetos de extensão, conforme se nota neste texto, foi a dificuldade de comunicação com as mulheres assistidas. Como boa parte do público atendido se atém ao crivo da vulnerabilidade econômica, ou seja, são mulheres de baixa renda e que, portanto, tiveram (e ainda têm) grande prejuízo de comunicação, porque não contam com aparelhos celulares ou com recursos suficientes para manter a linha de seus telefones ativos, houve grande dificuldade para fazer atendimentos ou participar de audiências virtuais.

As dificuldades, além de materiais, também são potencializadas pelo fato de que o distanciamento físico prejudica a compreensão, sobretudo, dos atos processuais. Nos acompanhamentos presenciais e participações presenciais em audiências, a acolhida e as orientações são facilitadas pelo suporte que as profissionais podem fornecer a cada uma das assistidas. Na dinâmica virtual, esse suporte é também comprometido, embora a equipe de todos os projetos tenha adotado estratégias de adaptação, como telefonemas constantes, para manter a qualidade dos acompanhamentos e uso do WhatsApp, aplicativo que foi fundamental para sustentar a rotina de atendimentos em boa parte do contexto dos serviços de atendimento aqui pontuados e que esteve no centro do desenvolvimento de novas tecnologias sociais de acompanhamento dos casos.

Outro ponto ao qual se pretende conferir destaque é a pergunta que não pode ser escamoteada no contexto de análise aqui proposto: quem cuida de quem cuida? E qual o lugar da universidade nesta dinâmica, uma vez que a posição de agentes que enfrentam diariamente a violência doméstica é, também, em sua maioria, ocupada por mulheres? No caso dos projetos em questão, mulheres, em sua maioria jovens, contratadas na condição de bolsistas, portanto, com um vínculo precarizado pela ausência de direitos trabalhistas básicos atinentes a cada uma das classes profissionais.

A primeira questão a que se pretende conferir ênfase é a situação das profissionais no quadro do plano de imunização. Diferentemente das profissionais da rede de enfrentamento, consideradas servidoras vinculadas à saúde pública e, portanto, componentes do quadro prioritário de vacinação, boa parte das estagiárias, profissionais ou professoras não se enquadrou de pronto na categoria.

Nos momentos de retorno presencial, poucos recursos de biossegurança foram disponibilizados, também porque a realidade da universidade pública não permite outro padrão de funcionamento. A recomendação de que os atendimentos fossem feitos em ambiente arejado, com janelas e portas abertas, contrasta com a política de sigilo e com a necessidade de, por muitas vezes, manter as portas trancadas.

Na rotina dos projetos, as adaptações também isolaram o projeto dos demais órgãos da rede. Na condição de extensão universitária, não estão atrelados ao funcionamento destes órgãos e o trabalho remoto criou ainda mais distanciamento. O debate sobre o desenvolvimento de projetos conjuntos, ou até mesmo o atendimento por órgãos da rede jurídica sofreu, assim, prejuízos significativos.

De outra parte, os projetos também acabam padecendo do descrédito que a própria universidade sofre na comunidade. A agenda pública não inclui as urgências pela manutenção e aparelhamento da universidade. O discurso que circula no imaginário social é o de que, na condição de profissionais privilegiadas/os, professoras/es trabalham remotamente e “no conforto da casa” porque assim desejam. O próprio representante da bancada do governo federal no Congresso, o deputado federal Ricardo Barros, em pronunciamento público, sustentou que “só professor não quer trabalhar durante a pandemia” (UOL, 2021). O congressista fazia referência aos professores da rede fundamental e básica, mas o pronunciamento, exarado por uma figura pública originária de Maringá - onde fica um dos projetos aqui destacados, solidifica o ideário de que professores/as, em geral, vivem confortavelmente a atual crise sanitária e não podem reclamar de sua condição.

Com isto, a perspectiva dos projetos é a de continuar se adequando às condições de trabalho remoto, muitas vezes, às expensas das coordenadoras, com o apoio das pró-reitorias e gerando uma sobrecarga de trabalho às profissionais, constantemente detidas ao trabalho virtual e ainda sujeitas às inúmeras demandas por relatórios e burocracias de controle institucional a que se submetem projetos universitários com financiamento público. O retorno ao funcionamento presencial, por sua vez, não é diferente. Os protocolos de biossegurança não têm dado conta dos riscos gerados pelos atendimentos às mulheres.

Mesmo assim, vale repisar que, para um consistente enfrentamento do aumento dos casos de violência doméstica, sobretudo nas comarcas vinculadas ao funcionamento dos projetos aqui descritos, a atuação da extensão universitária é crucial. Os projetos são um interlocutor valioso entre a rede e as mulheres, proporcionando um ambiente de acolhimento e escuta pautado na lógica feminista de intervenção, preocupado com a autonomia e a capacidade decisória das mulheres (Cecília MacDowell SANTOS; Isadora Vier MACHADO, 2018, passim). Ignorar tal realidade significa enfraquecer a luta contra a violência doméstica. Na falta de políticas públicas consistentes e articuladas, a universidade cumpre com um papel muito importante que, por óbvio, não visa substituir as primeiras, mas que sempre problematiza suas falhas, faltas e contribui para a luta política de garantia por direitos, considerando as particularidades na experiência de cada mulher brasileira e comprometida com o avanço desta mesma garantia.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Planalto, 1988. Disponível em Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm . Acesso em 08/02/2022. [ Links ]

BRASIL. Resolução n.º 7, de 18 de dezembro de 2018. Brasília: Ministério da Educação, 2018. Disponível em Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=104251-rces007-18&category_slug=dezembro-2018-pdf&Itemid=30192 . Acesso em 06/02/2022. [ Links ]

CAMPOS, Brisa; TCHALEKIAN, Bruna; PAIVA, Vera. “Violência contra a mulher: vulnerabilidade programática em tempos de sars-cov-2/covid-19 em São Paulo”. Psicologia e Sociedade, Recife, v. 32, p. 1-20, 2020. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/j/psoc/a/Bqv5dn5fbL3LTrm3PGvJDzN/?lang=pt . Acesso em 02/06/2021. [ Links ]

CAMPOS, Carmen Hein de; SARLET, Gabrielle Bezerra Sales; DORA, Denise Dourado. “A educação em direitos humanos das mulheres: uma análise acerca da experiência das Promotoras Legais Populares no município de Porto Alegre - Rio Grande do Sul”. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). A reflexividade jurídica dos novos movimentos sociais do século XXI no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 25-39. [ Links ]

CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; COSTA, Sonia Maria Alves da; COUTINHO, Isabella Flávia Maia. “O impacto da pandemia para mulheres em situação de violência doméstica e familiar no Distrito Federal: observações a partir de um projeto de extensão universitária”. In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de; RAMPIN, Talita Tatiana Dias; AMARAL, Alberto Carvalho (Orgs.). Direitos Humanos e Covid-19: grupos sociais vulnerabilizados e o contexto de pandemia. Belo Horizonte: Plácido, 2020a. p. 473-491. [ Links ]

CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de et al. “Projeto de extensão e ação contínua Maria da Penha: 10 anos de atenção e proteção a mulheres em situação de violência doméstica e familiar em Ceilândia/DF”. Participação, Brasília, v. 1, n. 33, p. 68-79, 2020b. Disponível em Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/participacao/article/view/22866 . Acesso em 8/12/ 2021. [ Links ]

CEDAW. “Recomendação geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça”. Comitê sobre a eliminação da discriminação contra as mulheres. ONU Mulheres, 2013. Disponível em Disponível em https://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf . Acesso em 18/02/2022. [ Links ]

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. “Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19”. 3 ed. Nota Técnica. São Paulo: FBSP [online], 2020. Disponível em Disponível em https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf . Acesso em 02/04/2021. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 11 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. [ Links ]

GOLUB, Stephen. “Paralegais como apoio para suas comunidades”. In: GOLUB, Stephen; McCLYMONT, Mary. Caminhos para a justiça: projetos de promoção e defesa de direitos apoiados pela Fundação Ford no mundo. Rio de Janeiro: Renovar; Fundação Ford, 2002. p. 359-381. [ Links ]

HAJE, Lara. “Governo gastou apenas R$ 5,6 milhões de um total de R$ 126,4 milhões previstos com políticas para mulheres”. Agência Câmara de Notícias [online], 2020. Disponível em Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/668512-governo-gastou-apenas-r-56-milhoes-de-um-total-de-r-1264-milhoes-previstos-com-politicas-para-mulheres/ . Acesso em 02/06/2021. [ Links ]

LIBARDONI, Marlene. “Fundamentos teóricos e visão estratégica da Advocacy”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 207-222, 2000. [ Links ]

MACHADO, Isadora Vier; CORREA, Crishna Mirella de Andrade. “Na trilha dos feminismos: Lei Maria da Penha, extensão universitária e a constituição de novos atores sociais no enfrentamento às desigualdades de gênero”. Revista de Gênero, Sexualidades e Direito, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 134-150, 2016. [ Links ]

MACHADO, Maria Salete Kern; SOUSA, Nair Heloisa Bicalho de. Ceilândia - mapa da cidadania. Em rede na defesa dos direitos humanos e na formação do novo profissional do direito. Brasília: Faculdade de Direito/UnB, 1998. [ Links ]

MÉLO, Cláudia Batista et al. “A extensão universitária no Brasil e seus desafios durante a pandemia da COVID-19”. Research, Society and Development, v. 10, n. 3, p. e1210312991, 2021. Disponível em Disponível em https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/12991 . DOI: 10.33448/rsd-v10i3.12991. Acesso em 18/02/2022. [ Links ]

ONU - ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “Chefe da ONU alerta para aumento da violência doméstica em meio à pandemia do coronavírus”. Nações Unidas Brasil, 2020. Disponível em Disponível em https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-violencia-domestica-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/ . Acesso em 10/02/2022. [ Links ]

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE; ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE. “OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia”. OMS, 11/03/2020. Disponível em Disponível em https://www.paho.org/pt/news/11-3-2020-who-characterizes-covid-19pandemic#:~:text=OMS%20afirma%20que%20COVID%2D19%20%C3%A9%20agora%20caracterizada%20como%20pandemia,-11%20Mar%202020&text=11%20de%20mar%C3%A7o%20de%202020,agora%20caracterizada%20como%20uma%20pandemia . Acesso em 10/02/2022. [ Links ]

PORTAL GELEDÉS. “Com pandemia, SP registra 25% de mortes a mais entre negros e 11,5% entre brancos em 2020”. Portal Geledés [online], 2021. Disponível em Disponível em https://www.geledes.org.br/com-pandemia-sp-registra-25-de-mortes-a-mais-entre-negros-e-115-entre-brancos-em-2020/ . Acesso em 02/06/2021. [ Links ]

RABELO, Juliana. “Um vírus e duas guerras: cinco mulheres sofrem violência doméstica a cada hora em SC”. Portal Catarinas [online], Florianópolis, 2020. Disponível em Disponível em https://catarinas.info/um-virus-e-duas-guerras-cinco-mulheres-sofrem-violencia-domestica-a-cada-hora-em-sc/ . Acesso em 02/06/2021. [ Links ]

SANTOS, Cecília MacDowell. “Curto-circuito, falta de linha ou na linha? Redes de enfrentamento à violência contra mulheres em São Paulo”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 23. n. 2, p. 577-600, 2015. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38878 . Acesso em 02/06/2021. [ Links ]

SANTOS, Cecília MacDowell; MACHADO, Isadora Vier. “Punir, restaurar ou transformar? Por uma justiça emancipatória em casos de violência doméstica”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, RT, ano 26, v. 146, p. 241-271, 2018. [ Links ]

SECRETARIA DE ESTADO DA SEGURANÇA PÚBLICA - SSP. Análise de Fenômenos de Segurança Pública nº. 002/2022 - COOAFESP, Governo do Distrito Federal, 2022. Disponível em Disponível em http://www.ssp.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2017/11/Ana%CC%81lise-FSP-002-2022-Viole%CC%82ncia-Dome%CC%81stica-no-DF-DF-jan-dez-2021-2.pdf . Acesso em 19/02/2022. [ Links ]

THEMIS. Promotoras Legais Populares [online], 2021. Disponível em Disponível em http://www.themis.org.br . Acesso em 02/05/2021. [ Links ]

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2020. Disponível em Disponível em http://www.tjrs.jus.br . Acesso em 02/05/2021. [ Links ]

UOL. “Só o professor não quer trabalhar na pandemia, diz Ricardo Barros”. UOL [online], 2021. Disponível em Disponível em https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/04/20/ricardo-barros-governo-critica-professores.htm . Acesso em 02/06/2021. [ Links ]

VICK, Mariana. “Os desafios da vacinação de indígenas contra a covid-19”. Nexo Jornal [online], 2021. Disponível em Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/02/05/Os-desafios-da-vacina%C3%A7%C3%A3o-de-ind%C3%ADgenas-contra-a-covid-19 . Acesso em 02/06/2021. [ Links ]

WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito II - A epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995. [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: CAMPOS, Carmen Hein de; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; MACHADO, Isadora Vier. “Violência de gênero e pandemia”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e86988, 2022.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 12 de Abril de 2022; Revisado: 26 de Maio de 2022; Aceito: 31 de Maio de 2022

Carmen.campos@uniritter.edu.br; charmcampos@gmail.com

wiecko@unb.br

ivmachado@uem.br

Carmen Hein de Campos (Carmen.campos@uniritter.edu.br; charmcampos@gmail.com) é doutora em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora do Programa de Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter. Coordenadora do Projeto de Extensão Promotoras Legais Populares. Pesquisadora em temas de violência contra mulheres, gênero, criminologia feminista e teoria feminista do direito

Ela Wiecko Volkmer de Castilho (wiecko@unb.br) é doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), leciona no Programa de Pós-Graduação em Direito, Linha de Pesquisa “Criminologia, Estudos Étnico-raciais e de Gênero” e no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, Linha de Pesquisa “Políticas Públicas, Movimentos Sociais, Diversidade Sexual, Raça e Etnia”, ambos na Universidade de Brasília. Coordena o Projeto de Extensão Maria da Penha: Atenção e Proteção a Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar na Ceilândia/DF

Isadora Vier Machado (ivmachado@uem.br) é doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunta de Direito Penal do Departamento de Direito Público da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Coordenadora do Projeto de Extensão NUMAPE/UEM. Pesquisadora em temas de violência contra mulheres e gênero

Contribuição de autoria: As autoras contribuíram igualmente

Conflito de interesses: Não se aplica

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons