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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis maio/ago 2022  Epub 30-Maio-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n286982 

Seção Temática Fazendo Gênero em tempos de pandemia

Os 15 anos da Lei Maria da Penha

The 15th year of the Maria da Penha Law

Los 15 años de la Ley Maria da Penha

Teresa Kleba Lisboa1 
http://orcid.org/0000-0001-8328-7630

Luciana Patrícia Zucco2 
http://orcid.org/0000-0003-2955-1642

1Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-90 - ppgich@contato.ufsc.br

2Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Serviço Social, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-90 - dss@contato.ufsc.br


Resumo:

Este ensaio aborda a trajetória da Lei Maria da Penha (LMP), suas conquistas e desafios, que demarcam os 15 anos de sua vigência. A LMP institui um novo paradigma para elaborar, gestar e avaliar políticas sociais públicas voltadas à prevenção, proteção, assistência e enfrentamento das violências de gênero contra a mulher. Suas conquistas prevêem uma nova sociabilidade cultural e política, políticas intersetoriais e ações interdisciplinares, a partir de uma abordagem interseccional. Entretanto, os desafios são históricos, conjunturais, regionais, culturais e econômicos, reafirmando a complexidade do fenômeno da violência contra a mulher e a necessidade de projetá-los como pauta de discussão nos diferentes espaços da sociedade.

Palavras-chave: violência contra a mulher; violência de gênero; violência doméstica e familiar; Lei Maria da Penha

Abstract:

This essay reports the trajectory of the Maria da Penha Law (LMP), its achievements and challenges, which mark the 15 years of its validity. The LMP institutes a new paradigm for designing, managing and evaluating public social policies aimed at preventing, protecting, assisting and confronting gender-based violence against women. Its achievements predict a new cultural and political sociability, intersectoral policies and interdisciplinary actions, from an intersectional approach. However, the challenges are historical, conjunctural, regional, cultural and economic, reaffirming the complexity of the phenomenon of violence against women and the need to project them as an agenda for discussion in different spaces of society.

Keywords: Violence against women; Gender violence; Domestic and family violence; Maria da Penha Law

Resumen:

Este ensayo aborda la trayectoria de la Ley Maria da Penha (LMP), sus conquistas y desafíos, que marcan los 15 años de vigencia. La LMP instituye un nuevo paradigma para el diseño, gestión y evaluación de políticas públicas dirigidas a prevenir, proteger, atender y enfrentar la violencia de género contra las mujeres. Sus logros auguran una nueva sociabilidad cultural y política, políticas intersectoriales y acciones interdisciplinarias, desde un enfoque interseccional. Sin embargo, los desafíos son históricos, coyunturales, regionales, culturales y económicos, reafirmando la complejidad del fenómeno de la violencia contra las mujeres y la necesidad de proyectarlas como agenda de discusión en diferentes espacios de la sociedad.

Palabras clave: violencia en contra la mujer; violencia de género; violencia doméstica y familiar; Ley María da Penha

Introdução

A Lei de Nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha (LMP), é uma referência internacional, uma das três leis sobre a violência contra a mulher mais completa e bem elaborada do mundo. É importante destacar que sua promulgação resultou de um amplo processo de mobilização e luta política por parte dos movimentos feministas e de mulheres, que há mais de 30 anos reivindicavam um instrumento legal para a erradicação, prevenção e punição da violência doméstica no país. Logo, a Lei Maria da Penha tem uma trajetória histórica que a antecede e possibilita a sua constituição tal como a conhecemos hoje.

Na década de 1970, os movimentos feministas e de mulheres vão às ruas de forma organizada, com o slogan “Quem ama não mata”, protestar contra a absolvição de homens que assassinaram suas ex esposas em nome da legítima defesa da honra. “O machismo que orientava o modo como as leis eram aplicadas e os procedimentos adotados na polícia passaram então, a ocupar posições centrais na luta dos movimentos feministas” (Guita Grin DEBERT; Maria Filomena GREGORI; Adriana PISCITELLI, 2006, p. 05).

O reconhecimento pelo Estado de tal fenômeno, de certo modo como objeto de ações de políticas públicas, possibilitou, em 1980, a criação do primeiro SOS Mulher para atendimento às mulheres em situação de violência, em pleno processo de redemocratização. Nessa perspectiva, em 1983, foram criados os primeiros Conselhos Municipais e Estaduais da Mulher, para propor, discutir, elaborar, deliberar e fiscalizar a implementação de políticas públicas para mulheres.

Internacionalmente, as Conferências sobre População, no Cairo, em 1994, e da Mulher, em Beijing, em 1995, com destaque a esta última, cujo o tema central era “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, são marcos na ampliação dos direitos das mulheres em dimensões globais. Na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, os direitos das mulheres foram reconhecidos como direitos humanos, implicando os Estados signatários a implantarem políticas públicas com perspectiva de gênero para a garantia dos mesmos. Destacamos que a Conferência de Beijing adotou o conceito de gênero em detrimento do termo mulher, presente nas outras três conferências internacionais sobre a mulher. Soma-se a esses avanços, o reconhecimento da desigualdade da mulher como um problema estrutural da sociedade, decorrente das relações entre homens e mulheres, sendo a igualdade de gênero uma questão de interesse universal (Declaração e Plataforma de Ação de Beijing, 1995).

No Brasil, como país signatário das conferências internacionais e em um governo popular, é criada, em 2003, a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, com status de Ministério, para implementar programas de erradicação da violência contra as mulheres. Esta prevê a transversalidade de gênero como diretriz governamental para as políticas sociais públicas (Lourdes BANDEIRA, 2005).

Para Bandeira (2005, p. 05), a transversalidade institui

a idéia de elaborar uma matriz que permita orientar uma nova visão de competências (políticas, institucionais e administrativas) e uma responsabilização dos agentes públicos em relação à superação das assimetrias de gênero, nas e entre as distintas esferas do governo. Esta transversalidade garantiria uma ação integrada e sustentável entre as diversas instâncias governamentais e, conseqüentemente, o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando uma governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres.

É nesse contexto de alargamento das conquistas sociais que o sancionamento da LMP se torna possível, assim como seu reconhecimento da violência contra as mulheres como violação dos direitos humanos, que afeta milhares de mulheres, sem distinção de raça, classe, nacionalidade ou idade. Nesse sentido, a LMP está em conformidade com a Constituição de 1988 - artigo 226, parágrafo 8º -, a CEDAW, a Conferência de Belém do Pará, as conferências internacionais e as reivindicações do movimento de mulheres. A LMP deixa, portanto, de ser uma Lei apenas punitiva para estabelecer um novo paradigma no âmbito do Sistema Judiciário. Tal paradigma prevê a construção de uma rede de políticas sociais públicas que tenha a capacidade de promover ações de proteção, prevenção, punição e enfrentamento às violências de gênero contra as mulheres.

Embora a LMP trate da violência doméstica e familiar com foco na mulher, utilizamos, por vezes, o termo violências de gênero contra as mulheres para explicitar que as intervenções devam ser de natureza pública e considerar a perspectiva relacional, oriunda das discussões de gênero (Ricardo BORTOLI; Luciana ZUCCO, 2016). Ademais, ao adotarmos tal terminologia,

estamos nos referindo àquelas dirigidas às identidades femininas, sendo estas relacionais e construídas historicamente, em função das assimetrias nas relações de gênero. Envolveriam, ainda, um repertório associado de ações, por isso no plural (violências), e de diferentes tipos e manifestações, das mais visíveis e letais, às mais invisíveis e sutis (BORTOLI; ZUCCO, 2016, p. 72).

Logo, as violências de gênero contra a mulher abarcariam os envolvidos na situação, independentemente da natureza das relações afetivas (heterossexual ou homossexual) e das identidades de gênero, pois homens e mulheres estão imersos nas relações de gênero, as vivem e reproduzem, daí a importância de sua discussão ser transversal às instituições primárias de socialização e políticas sociais públicas. Se não tivermos espaços para pensarmos nossas relações, internalizaremos dinâmicas instituídas e as manteremos, naturalizando identidades e reforçando discursos violentos e da ordem da moral.

Nesse sentido, a LMP pauta políticas de gênero que compreendem a construção social do feminino e do masculino e, sobretudo, "(...) a natureza dos conflitos e das negociações que são produzidos nas relações interpessoais, que se estabelecem entre homens e mulheres e internamente entre homens ou entre mulheres" (BANDEIRA, 2005, p. 9). Suas conquistas prevêem uma nova sociabilidade cultural e política, políticas intersetoriais e ações interdisciplinares, a partir de uma abordagem interseccional. A LMP institui, portanto, um novo paradigma para elaborar, gestar e avaliar políticas sociais públicas voltadas à prevenção, proteção, assistência e enfrentamento das violências de gênero contra a mulher.

1. LMP e suas principais conquistas

Os avanços na LMP são de natureza teórica, social, política e de planejamento de políticas sociais públicas, envolvendo as dimensões pedagógicas e educativas. A LMP amplia a compreensão da violência para além da violência física, apontando para os diferentes tipos de violência contra a mulher: psicológica, sexual, patrimonial, moral; violência contra crianças e adolescentes, abuso, incesto, pedofilia; tráfico de mulheres, meninas, mulheres trans e travestis. Considera que a violência doméstica contra as mulheres não está relacionada à orientação sexual.

Nesse campo complexo de violação de direitos, lembramos que a perspectiva relacional de gênero nos leva a considerar que as violências de gênero implicam a todos/as os/as envolvidos/as - homens e mulheres (transexuais e travestis) -, aqueles/as que perpetram e que se encontram em relações violentas. Segundo a LMP, Art. 22, incisos VI e VII, cabe ao agressor1 comparecer a programas de recuperação e reeducação, e ter acompanhamento psicossocial, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio. Esta conquista da LMP possibilita considerar o autor da violência como aquele que necessita de assistência, como a prestada pelos grupos de ressocialização.

Nessa chave de interpretação, as violências de gênero contra a mulher ultrapassam os meandros da esfera privada, ou seja, do doméstico, para se projetar pública e socialmente, sendo possível aos/às envolvidos/as recorrerem a intervenções estatais específicas, como de segurança pública, jurídica, de assistência social e de saúde. Tal entendimento reafirma o slogan cunhado por Carol Hanisch (2009), “o pessoal é político”, adotado também pelas feministas brasileiras para enfrentar as masculinidades hegemônicas (Raewyn CONNELL; James MESSERCHMIDT, 2013), expondo à sociedade que a vida no âmbito da conjugalidade não se restringe ao espaço privado quando, na esfera do doméstico, infringem-se direitos.

Outra mudança conceitual é a superação da violência doméstica contra a mulher como infração de menor potencial ofensivo para crime. Nesse sentido, a LMP (2006), em seu art. 9º, prevê que

a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.

Além do mais, indica a criação de um aparato institucional, como: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM); Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CREMV); Casa Abrigo; serviços de saúde especializados para o atendimento dos casos de violência contra a mulher, para atender os casos de violência doméstica contra a mulher e de violência sexual; juizados especiais da violência doméstica, neste caso, a mulher somente renunciaria à denúncia perante o juiz.

O pioneirismo da LMP trouxe como inovação importante à implementação do conceito de ‘rede’. Este prevê a atuação articulada e intersetorial entre as instituições, serviços governamentais de diferentes políticas sociais públicas, não-governamentais e comunidades. De acordo com o Caderno de Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), o trabalho em ‘rede’,

[…] Contribui para: clarificar os papéis, responsabilidades e competências; otimizar recursos, potencialidades e oportunidades do território; identificar lacunas na ‘rede’; desenvolver estratégias para o acompanhamento integrado às famílias e aos indivíduos; estabelecer acordos e pactuações institucionais e políticas; e redimensionar o trabalho e a atuação da ‘rede’, a partir dos resultados obtidos; tendo sempre como norte a intencionalidade e os objetivos comuns (BRASIL, 2011, p. 38).

Wania Pasinato (2015) chama a atenção para as particularidades no âmbito da ‘rede’, ao distinguir rede de enfrentamento, de rede de atendimento a mulheres em situação de violência. Para a pesquisadora, enquanto a rede de enfrentamento é responsável por articular, projetar e formular, programar e implementar, monitorar e avaliar, contemplando os quatro eixos da política nacional (combate, prevenção, assistência e garantia de direitos), a rede de atendimento executa, implanta, aplica, atende e encaminha, centrando-se na prestação de serviços especializados e não especializados.

Os serviços especializados de atendimento à mulher são aqueles que possuem expertise no tema da violência de gênero, a saber: centros de atendimento à mulher em situação de violência (centros de referência de atendimento à mulher, núcleos de atendimento à mulher em situação de Violência, centros integrados da mulher), casas abrigo, casas de acolhimento provisório (casas de passagem), delegacias especializadas de Atendimento à Mulher (postos ou seções da Polícia de Atendimento à Mulher), núcleos da mulher nas defensorias públicas, promotorias especializadas, juizados especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, Ouvidoria da Mulher, serviços de saúde voltados para o atendimento aos casos de violência sexual e doméstica, Posto de Atendimento Humanizado nos aeroportos (tráfico de pessoas) e Núcleo de Atendimento à Mulher nos serviços de apoio ao migrante (BRASIL, 2011b). Enquanto os serviços não-especializados, em geral, constituem a porta de entrada da mulher na rede, a saber: hospitais gerais, serviços de atenção básica, programa saúde da família, delegacias comuns, polícia militar, polícia federal, Centros de Referência de Assistência Social/CRAS, Ministério Público, defensorias públicas (BRASIL, 2011c).

De acordo com o Documento Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011b), a constituição da rede de enfrentamento busca dar conta da complexidade da violência contra as mulheres e do caráter multidimensional do fenômeno, que perpassa diversas áreas, tais como: a saúde, a educação, a segurança pública, a assistência social, a justiça, a cultura, entre outras.

Por sua vez, a rede de atendimento faz referência ao conjunto de ações e serviços de diferentes setores (em especial, da assistência social, da justiça, da segurança pública e da saúde), que visam à ampliação e à melhoria da qualidade do atendimento; à identificação e ao encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência; e à integralidade e humanização do atendimento. A rede de atendimento às mulheres em situação de violência é parte da Rede de Enfrentamento à Violência contra as mulheres, contemplando o eixo da Assistência. Este objetiva garantir o atendimento humanizado e qualificado por meio: da formação continuada de agentes públicos e comunitários; da criação de serviços especializados e da articulação entre os governos - Federal, Estadual, Municipal, Distrital - juntamente com a sociedade civil, para o estabelecimento de uma rede de parcerias para o enfrentamento da violência contra as mulheres, no sentido de garantir a integralidade do atendimento (BRASIL, 2011a).

Pasinato (2015) adverte, ainda, que o trabalho em rede requer uma articulação entre as categorias Intersetorialidade, Interdisciplinaridade e Interseccionalidade (raça/etnia, geração, orientação sexual, deficiências, regionalidade, situação econômica, etc.), sobre as quais nos propomos a pensar.

1.1. Intersetorialidade

A Intersetorialidade subentende a garantia de um fluxo de atendimento institucional, um protocolo da violência que defina o caminho que uma mulher em situação de violência deva seguir quando necessita de amparo, proteção e assistência. Prevê ações integradas entre diferentes setores responsáveis pelas políticas sociais e entre os diferentes espaços da esfera pública.

No entender de Potyara Pereira (2014, p. 21), “a intersetorialidade tem sido considerada uma nova lógica de gestão, que transcende um único ‘setor’ da política social, e estratégia política de articulação entre ‘setores’ sociais diversos e especializados”. Assim, o prefixo inter representaria a superação da setorialidade das políticas sociais, ressignificando as ‘caixinhas’ de cada área ou disciplina na produção do conhecimento e na práxis das políticas voltadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres. Logo, um dos principais objetivos da intersetorialidade é a horizontalidade das relações entre os setores, com base na interdependência dos serviços.

Neste sentido, uma das principais ações do Programa Mulher Viver sem Violência2, da então Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, da Presidência da República, foi a criação e implementação da Casa da Mulher Brasileira.

A Casa da Mulher Brasileira é um equipamento de alta complexidade, criado para oferecer um atendimento humanizado às mulheres em situação de violência doméstica. É um serviço que revoluciona o modelo de enfrentamento à violência de gênero, pois integra, amplia e articula todos os serviços do governo oferecidos às mulheres em situação de vulnerabilidade.3

A intersetorialidade, inerente aos serviços prestados pela Casa da Mulher Brasileira, identifica o fluxo que uma mulher em situação de violência pode percorrer em um mesmo espaço para ser atendida na sua integridade, como é possível constatar no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos:4

  1. Acolhimento - O serviço da equipe de acolhimento e triagem é a porta de entrada da Casa da Mulher Brasileira. Forma um laço de confiança, agiliza o encaminhamento e inicia os atendimentos prestados pelos outros serviços da Casa, ou pelos demais serviços da rede, quando necessário;

  2. Apoio - A equipe multidisciplinar presta atendimento psicossocial continuado e dá suporte aos demais serviços da Casa. Auxilia a superar o impacto da violência sofrida e a resgatar a autoestima, autonomia e cidadania;

  3. Delegacia - Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) é a unidade da Polícia Civil para ações de prevenção, proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e sexual, entre outros;

  4. Juizados - Os juizados/varas especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher são órgãos da Justiça responsáveis por processar, julgar e executar as causas resultantes de violência doméstica e familiar, conforme previsto na Lei Maria da Penha;

  5. Ministério Público - A Promotoria Especializada do Ministério Público promove a ação penal nos crimes de violência contra as mulheres. Atua, ainda, na fiscalização dos serviços da rede de atendimento;

  6. Defensoria Pública - O Núcleo Especializado da Defensoria Pública orienta as mulheres sobre seus direitos, presta assistência jurídica e acompanha todas as etapas do processo judicial;

  7. Promoção e Assistência - Esse serviço é uma das portas de saída da situação de violência para as mulheres que buscam sua autonomia econômica, por meio de educação financeira, qualificação profissional e inserção no mercado de trabalho. As mulheres sem condições de sustento próprio e/ou de seus filhos podem solicitar sua inclusão em programas de assistência e de inclusão social dos governos federal, estadual e municipal;

  8. Central - Possibilita o deslocamento de mulheres atendidas na Casa da Mulher Brasileira para os demais serviços da rede de atendimento: saúde, rede socioassistencial (CRAS e CREAS), medicina legal e abrigamento, entre outros. Nos casos de violência sexual, a contracepção de emergência e a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis/Aids devem ocorrer em até 72 horas. Além do atendimento de urgência, os serviços de saúde também oferecem acompanhamento médico e psicossocial.

  9. Brinquedoteca - Acolhe crianças de 0 a 12 anos de idade que acompanhem as mulheres, enquanto estas aguardam o atendimento.

  10. E ‘Alojamento' ou Abrigamento - Espaço de abrigamento temporário de curta duração (até 24 horas) para mulheres em situação de violência, acompanhadas ou não de seus filhos, que corram risco iminente de morte.

Atualmente, são somente oito as unidades da Casa da Mulher Brasileira no país: duas em Brasília (DF); Curitiba (PR); São Luís (MA); Campo Grande (MS); Fortaleza (CE); São Paulo (SP) e Boa Vista (RR), que contam com o espaço intersetorial. Seu principal objetivo é contribuir ao enfrentamento da violência contra a mulher, integrando a rede de enfrentamento.

Para garantir a Intersetorialidade no atendimento a mulheres em situação de violência é importante que a atuação dos profissionais ocorra com base na interdisciplinaridade.

1.2. Interdisciplinaridade

A interdisciplinaridade propõe uma perspectiva integral para abordar o tema da violência contra as mulheres, o que significa dizer que para chegar a uma explicação sobre a complexidade que envolve cada situação, se faz necessário a interação de distintos pontos de vista: social, psicológico, jurídico, histórico, entre outros. Dessa forma, é recomendável que profissionais com diferentes tipos de conhecimento ou formações debatam entre si cada situação de violência, para que o processo de intervenção e encaminhamento seja eficaz e para que ocorra a construção de um conhecimento compartilhado, em relatórios, pareceres ou outro tipo de publicação.

Segundo Hector Leis (2005), a interdisciplinaridade pode ser entendida como um encontro entre diferentes disciplinas para estabelecer um diálogo, uma síntese equilibrada e convergente entre concepções racionais, instrumentais e subjetivas de integrantes de um mesmo grupo de profissionais ou pensadores. Pressupõe um trabalho em equipe e ao mesmo tempo demanda dedicação e empenho individual.

Para o autor, o principal obstáculo da atividade interdisciplinar é a departamentalização do ensino e das áreas de atuação. Muitas vezes, profissionais, pesquisadores ou docentes se deixam envolver por idiossincrasias das quais nem sempre estão conscientes. Cada qual se orienta por epistemologias e metodologias previamente definidas por seus campos de conhecimento, tendo dificuldade de abrir-se para o novo. Sendo assim, a interdisciplinaridade deveria ser entendida como uma prática em andamento, na qual a humildade e aceitação do diferente é requisitada, principalmente quando se trata de profissionais integrantes de uma equipe.

Na maioria das Instituições que atuam com a violência contra as mulheres, as/os assistentes sociais e as/os psicólogas/os são as/os profissionais que acolhem e fazem a primeira abordagem às mulheres. Por meio de uma escuta social qualificada, realizam entrevista em profundidade para conhecer a demanda, compreender a situação e refletir com as mulheres sobre os encaminhamentos a serem realizados, sem perder de vista as escolhas das mesmas. Este espaço de escuta é fundamental para que a mulher em situação de violência possa se sentir segura frente a um/a profissional que transmita confiança, que acredite no que ela vai falar, que a respeite e a encoraja a expressar sentimentos que, até então, estavam guardados por medo, sendo possível no atendimento ordená-los e explicitá-los. É necessário que a situação apresentada pelas mulheres seja acolhida, qualificada e tratada com respeito e sigilo profissional.

De acordo com o artigo 29 da LMP, a equipe de atendimento multidisciplinar é um serviço complementar importante dos novos juizados, a ser composta por profissionais das áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Cabe a essa equipe fornecer subsídios por escrito sobre a mulher em situação de violência ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos, pareceres, estudos sócio econômicos, verbalmente ou em audiências (artigo 30). A equipe multidisciplinar desenvolve, ainda, trabalhos de acolhida, orientação, encaminhamento e prevenção voltados para a mulher em situação de violência, em especial para familiares - crianças e adolescentes.

É mister destacar que a questão da violência contra a mulher ainda é considerada por grande parte dos magistrados como NÃO prioritária. Alguns operadores da Lei apresentam resistência em relação aos laudos, pareceres, relatórios ou estudos sociais apresentados sobre as mulheres em situação de violência feitos por psicólogas/os e assistentes sociais. Tendem a acreditar mais na palavra do réu do que da vítima; possuem uma noção idealizada de família e, por vezes, propõem a reconciliação da vítima com o réu, o que descaracteriza o crime, impossibilitando a imputação da pena.

Nesse quadro, as contribuições dos movimentos feministas foram e continuam sendo fundamentais, pois descortinam e dão visibilidade ao modelo patriarcal presente no debate criminológico, que estrutura a sociedade ocidental, além de apontarem para a necessidade do trabalho interdisciplinar. Desconstroem, portanto, os discursos sexistas que culpabilizam e punem as mulheres. O direito é visto, assim, como sendo masculino (como racionalidade e objetividade), impregnado de conceitos machistas. A reivindicação é, desse modo, pela inserção de conceitos oriundos dos estudos feministas e de gênero, bem como de direitos especiais às mulheres nas disciplinas e currículos do referido curso.

Nesse sentido, o trabalho interdisciplinar vem ao encontro da complexidade que envolve o fenômeno da violência e funcionará com uma epistemologia convergente, em que as diferentes áreas interagem como uma unidade operacional que enriquece o objeto de conhecimento e as técnicas de abordagem, apontando para a importância da interseccionalidade.

1.3. Interseccionalidade

A LMP reafirma, em seu artigo 2º, que as mulheres, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, gozam de direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, indicando uma interseccionalidade, sem assim denominá-la.

Em se tratando de opressão, exploração e discriminação, Lélia Gonzalez esclarece que:

Para nós, amefricanas do Brasil […] assim como as ameríndias, a conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada (GONZALEZ, 2020, p. 47).

Ao introduzir o conceito de interseccionalidade, Kimberle Crenshaw (2002) se refere a uma associação entre múltiplos sistemas de subordinação, ou seja, situações em que ocorrem dupla ou tripla discriminação. Para a autora, “[…] a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (CRENSHAW, 2002, p. 177).

Para tanto, Crenshaw (2002) utiliza uma metáfora de intersecção, fazendo uma analogia com um cruzamento de avenidas em que os vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe, constituem as ruas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. “Essas vias são por vezes definidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez, é diferente da opressão de classe” (CRENSHAW, 2002, p. 177).

A autora nos adverte que tais sistemas de subordinação, frequentemente, sobrepõem-se e se cruzam, criando intersecções complexas, de exclusão e discriminação, nas quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. Por exemplo, as mulheres negras estariam mais sujeitas a serem atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas as vias, uma vez que comumente estão posicionadas em um espaço em que o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se encontram.

Nesta chave de interpretação, as mulheres negras e pobres estariam mais expostas às violências de gênero. Assim como as mulheres negras, as mulheres ribeirinhas, pomeranas, da mata, indígenas, entre outras, teriam mais dificuldades de acesso à ‘rede’ e à Justiça. Ademais, destacamos que as violências de gênero se estendem para além dos marcadores de gênero, raça/etnia e classe, abarcando, igualmente, as dimensões de geração, corporalidade, capacitismo, entre outras.

De acordo com a pesquisa realizada por Márcia Florêncio e Patrícia Grossi (2014), a violência contra a pessoa idosa no Brasil tem uma natureza velada e carece de construção de instrumentos para identificá-la. Para as autoras, é muito importante que os/as profissionais que atuam com a questão, saibam utilizar ferramentas de rastreio de violência contra a pessoa idosa, ajudando-os/as a decidir sobre a efetivação da denúncia e encaminhando o caso para a devida assistência, uma vez que:

a violência contra idosos continua sendo um fenômeno invisível na sociedade e muitas pessoas idosas não revelam os maus-tratos sofridos aos profissionais de saúde: por vergonha, por medo de retaliações por parte do agressor, por achar que não irão acreditar na sua história e/ou para preservar a imagem da família, entre outros (FLORENCIO; GROSSI, 2014, p. 702).

Os casos de violência contra pessoas com deficiência também têm se projetado no Brasil. Estudo recente feito por Nicole de Melo et al. (2021) aponta que no período de 2011 a 2017 foram notificados 1.429.931 casos de violência interpessoal ou autoprovocada, sendo 116.219 (8,1%) de violências contra pessoas com deficiência.

Os casos notificados concentraram-se no sexo feminino (66,7%). Metade das vítimas (50,7%) eram de raça/cor da pele branca e 61,6% tinham entre 20 e 59 anos de idade. A deficiência mental foi a mais frequente, entre os tipos de deficiência objeto deste estudo (58,1%), seguida da deficiência intelectual (22,1%). (MELO, et al., 2021, p. 02)

Conforme o estudo, estima-se que pessoas com deficiência apresentam probabilidade 50% maior de sofrer violência, comparadas às pessoas sem deficiência. Reitera-se, desse modo, a importância de levarmos em consideração a perspectiva da interseccionalidade quando se trata da Rede de Enfrentamento e de Atendimento a mulheres em situação de violência, pois a superação das violências de gênero depende de mais recursos, mas, igualmente, do compromisso e da aposta política dos agentes estatais na implementação da LMP.

Várias foram as conquistas com a LMP na viabilização de direitos fundamentais das mulheres, que impõem, do mesmo modo, um conjunto de desafios, sendo o maior deles o enfrentamento da desigualdade entre os gêneros. Os desafios são históricos, conjunturais, regionais, culturais e econômicos, reafirmando a complexidade do fenômeno da violência contra a mulher e a necessidade de projetá-los como pauta de discussão nos diferentes espaços da sociedade.

2. Principais desafios e obstáculos à aplicabilidade da LMP

Dos desafios e obstáculos que envolvem a aplicabilidade da LMP, listamos cinco que consideramos centrais, embora a ordem de apresentação tenha sido utilizada como um recurso didático para projetar a magnitude da situação, e não para hierarquizá-los. Ademais, não pretendemos esgotá-los, mas projetá-los para contribuir com o debate.

Dentre os desafios, o primeiro a ser destacado envolve o desmonte da Secretaria Especial de Política para as Mulheres (SPM), em 2015.5 A SPM, com status de Ministério, criada em 2003, no governo Lula, construiu uma trajetória no governo federal e em diferentes gestões fomentou a igualdade de gênero. Baseou-se no paradigma de ‘rede’ e de transversalidade de gênero como um conjunto de ações articuladas e integradas por diversos setores, como saúde, segurança pública, acesso à justiça, dentre outros, no enfrentamento às desigualdades de gênero. Promoveu as Conferências Nacionais de Política para as Mulheres (CNPM), das quais resultam os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (PNPM), incorporando o enfrentamento à violência contra as mulheres como uma das linhas de ação.

A SPM assegurou, ainda, a Política Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, em 2005. Para sua implementação, lançou o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, em 2007, que consiste em um acordo federativo entre o governo federal, os governos dos estados e os dos municípios brasileiros para o planejamento de ações. Um dos cinco eixos do Pacto é a Garantia da Aplicabilidade da Lei Maria da Penha, com dotação orçamentária específica.

Esse transcurso histórico-legal é fundamental para perceber que a LMP surge em um contexto de reconhecimento de direitos e de criação de políticas públicas para todas as mulheres. Ademais, deve ser pensada (resgatada) também a partir desse prisma, qual seja: a mulher como o foco da atenção das ações e da garantia dos direitos, e não a família, como postula o atual Ministério.

O segundo desafio envolve o caráter preventivo da LMP. Tratando-se de violência contra a mulher, não basta a existência de uma lei avançada, é preciso problematizar, de modo interseccional, a construção do feminino e do masculino nos diferentes espaços de socialização, desnaturalizar a violência e promover ampla divulgação da referida Lei, detalhando-a e explicando seus itens.

Uma das principais medidas contempladas pela LMP é a prevenção. Neste sentido, o artigo 8 da Lei Maria da Penha traz a linha mestra sobre como as políticas públicas que visam combater a violência doméstica e familiar contra a mulher devem proceder, com destaque para os seguintes itens:

[…] III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbam a violência doméstica e familiar; […] V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral; […] VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia; IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL, 2006).

Os espaços mais propícios para assegurar as medidas de prevenção da violência contra a mulher e demais violências de gênero são as escolas e universidades, incluindo em seus currículos conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia (interseccionalidade) e ao fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher. É na escola/universidade que ocorre o processo de socialização de crianças, jovens e adultos, durante a aprendizagem de saberes e de valores éticos e morais. Por esse motivo, os espaços de formação se constituem como propícios para a abordagem dos processos de construção da violência, e da socialização de meninos e meninas na produção de situações de violência doméstica contra mulheres.

A comunicação social, igualmente, é uma das instâncias destacadas na Lei como dispositivo importante na prevenção, sendo indicada a promoção de valores éticos e sociais de forma a coibir estereótipos que legitimem ou exacerbam a violência doméstica e familiar. Cabe, ainda, à comunicação social dar visibilidade à violência estrutural, pois o mesmo sistema que produz homens que abusam de mulheres, produz homens que abusam dos próprios homens, e à importância do cuidado e autocuidado das técnicas e técnicos que atuam com as situações de violência.

Na perspectiva educacional, o foco é a promoção de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica contra a mulher que divulguem a Lei e os instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres. A intenção é que as mulheres possam ter acesso às informações, inclusive sobre a não interferência de crenças religiosas nas questões que dizem respeito às mulheres em situação de violência, que elas possam conhecer o ciclo da violência, bem como entender que o responsável pela violência é quem a perpetra.

O terceiro desafio é a criação de serviços para homens autores de violência doméstica e familiar contra as mulheres, cuja proposta se encontra inserida em dois artigos da Lei Maria da Penha. Primeiramente, no artigo 35, que trata dos equipamentos e programas recomendados à aplicação da Lei, e que deverão ser criados pelos entes federativos - União, Distrito Federal, Estados e Municípios -, no limite de suas competências. As recomendações desse artigo se referem às atividades que comporão a rede de serviço especializada no atendimento das mulheres e seus familiares, […] e incorpora também a previsão de criação e integração de “centros de educação e reabilitação para os agressores” (Artigo 35, V). O tema reaparece no artigo 45 da LMP, que modifica a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984) para possibilitar que o juiz possa determinar o comparecimento obrigatório dos agressores em “programas de recuperação e educação” (Artigo 152, § único).

O documento Diretrizes Gerais dos Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor (s/d), editado em 2008 pela Secretaria de Política para Mulheres (SPM), apresenta normas e orientações para a execução de atividades com homens autores de violência. É um instrumento de referência para o trabalho dos/as profissionais das áreas de Humanas e Sociais, especialmente para as equipes que trabalham com grupos de homens autores de violência, em particular, assistentes sociais e psicólogas/os.

Ressaltamos a importância de os serviços terem caráter obrigatório e pedagógico, com base na perspectiva feminista de gênero, e não de tratamento psicológico, social ou jurídico. Logo, a natureza dos grupos deve seguir a perspectiva de ressocialização e não de terapia, para que os homens possam se perceber como autores de violência - assumir o papel de responsabilidade, buscar informações, rever seus relacionamentos -, repensar as masculinidades e se ressocializar.

A criação de um grupo deve contar com uma equipe multidisciplinar, para uma atuação de caráter interdisciplinar, e deverá ser composta de, no mínimo: um coordenador, um/a profissional de Ciências Sociais, Pedagogia, Psicologia e/ou Serviço Social. Integra-se ao conjunto de profissionais a equipe de apoio técnico: um auxiliar administrativo, recepcionista, motorista e segurança, que deverão participar de uma capacitação de pelo menos 60 horas.

Independentemente do local onde for desenvolvido, o serviço é previsto como parte das ações de enfrentamento à violência e, como tal, integrante da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, devendo atuar de forma articulada com os demais serviços da rede (Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Casa-Abrigo, Centro de Referência da Mulher, Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, Defensorias/Núcleos Especializados da Mulher, Centro de Referência Especializados de Assistência Social, serviços de saúde). Essa obrigatoriedade está relacionada com a compreensão da violência de gênero como um fenômeno social complexo e multifacetado, que requer a ação articulada de diversas áreas para seu enfrentamento.

O quarto desafio é de ordem política e demanda prioridade por parte dos gestores sobre a questão da violência contra as mulheres. De acordo com o documento Lei Maria da Penha - do papel para a vida, publicado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA, 2007), o Programa de Prevenção e Combate à Violência contra a Mulher está inserido nos Planos Plurianuais (PPAs), nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) e nas Leis Orçamentárias Anuais (LOAs), com ações específicas e dotação orçamentária prevista. Isso significa que as instituições que executam os orçamentos públicos estão sujeitas à fiscalização por órgãos internos e externos, e necessitam prestar contas de suas realizações e gastos periodicamente. A prestação de contas deve ser pública, isto é, acessível à população e não apenas às instâncias de fiscalização e controle do governo. O referido documento alerta, ainda, que se os governantes afirmam que em sua gestão “o enfrentamento à violência contra as mulheres é política prioritária e que estão implementando a Lei 11.340/06, precisam apresentar programas e ações específicas, destinar recursos e executá-los” (CFEMEA, 2007, p. 60).

Estudo feito pela Agência Câmara de Notícias6 explicita que no ano de 2020 apenas R$ 5,6 milhões de um total de R$ 126,4 milhões previstos na Lei Orçamentária (para o ano de 2020) foram efetivamente gastos com as políticas públicas para mulheres. Quando se compara o total de recursos autorizados nas leis orçamentárias (LOA) de 2019 e 2020, verifica-se um crescimento de R$ 51,7 milhões para R$ 126,4 milhões, ou seja, 144% de aumento. Na LOA 2020, foram autorizados R$ 20,1 milhões para atividades relativas à Casa da Mulher Brasileira em todo o país, e a totalidade das verbas foi reservada para os serviços, mas nenhum valor foi efetivamente pago até a presente data.

Por último, ressaltamos o desafio do contexto de pandemia instalado pelo coronavírus a partir do ano de 2020, no Brasil. Tal realidade impôs a implementação de uma política diferenciada e estratégica de enfrentamento das violências domésticas e familiares para diminuir o agravamento causado pelo isolamento social, a ser adotada pela rede de atendimento local de cada município, como nos sugeriram Raissa Nothaft e Maylla Chaveiro:

1) Divulgar massiva e periodicamente informações atualizadas sobre o funcionamento da rede de atendimento municipal; 2) Reforçar a articulação da rede, envolvendo os/as profissionais das demais políticas sociais e a sociedade civil organizada, bem como desburocratizar o atendimento […] seja ele presencial, online ou por telefone; 3) Nos municípios em que não há Casa Abrigo, […] criar abrigos temporários, requisitar quartos de hotéis para servirem de abrigos provisórios ou disponibilizar transporte para municípios próximos que tenham vaga; 4) Articular a rede de forma a conseguir cestas básicas e cuidados contra o Covid-19 para disponibilizar às mulheres que buscarem atendimento presencial […]; 5) Ampliar e implementar a Patrulha Maria da Penha; 6) Buscar meios para manter o atendimento psicossocial dos/as envolvidos/as em situação de violência, como, por exemplo, o tele atendimento ou o atendimento online (NOTHAFT; CHAVEIRO, 2020, p. 6).

Se, por um lado, podemos nos orgulhar que a LMP é uma referência internacional, por outro, ainda persistem muitos desafios, destacando-se, entre eles, maior vontade política e garantia de dotação orçamentária por parte dos gestores responsáveis pela criação, promulgação e implementação de políticas de enfrentamento às violências contra as mulheres. É imperativo que os gestores reconheçam que a violência contra a mulher é uma questão pública, por conseguinte, de responsabilidade do Estado.

Os mecanismos de controle social - conselhos de Direito, movimentos sociais e sociedade civil em geral - possuem papel significativo no exercício de suas funções de cobrança, monitoramento e avaliação das políticas relacionadas ao enfrentamento à violência contra as mulheres e à efetiva implementação da LMP.

Que mais mulheres comprometidas com a equidade de gênero possam ocupar cargos de poder para definir prioridades nas políticas publicas para que em breve, todas as mulheres possam ter uma vida livre de violência!

Referências

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1Destacamos que ‘agressor’ e 'vítima' são termos insuficientes quando tratamos da temática de violências de gênero contra a mulher, particularmente entre casais/pares, independentemente da natureza das relações afetivas (heterossexual ou homossexual) e das identidades de gênero.

2Para maiores informações, ver: http://www.mulheres.ba.gov.br/arquivos/File/Publicacoes/CasadaMulherBrasileira_DiretrizesGeraiseProtocolosdeAtendimento.pdf

3Disponível em: http://www.mulher.df.gov.br/casa-da-mulher-brasileira/. Acesso em 10/08/2021.

4Para maiores informações, ver: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/violencia/programa-mulher-viver-sem-violencia/servicos-disponiveis-na-casa-da-mulher-brasileira. Acesso 10/08/2021.

5Em 13 de outubro de 2015, a SPM é destituída (rebaixada) do status de Ministério e incorporada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos pela Medida Provisória (MP) nº 696. Em 12 de maio de 2016, se reorganizou a estrutura da Presidência da República e dos ministérios que compõem o Governo federal, mediante a MP nº 726, publicada no Diário Oficial da União. A nova estrutura prevê a junção da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e Secretaria Nacional de Juventude (SNJ). Com a nova reforma administrativa, a SPM permanece na condição de Secretaria de Políticas para as Mulheres, passando a ser vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania. Em 2019, é criado o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

6Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/668512-governo-gastou-apenas-r-56-milhoes-de-um-total-de-r-1264-milhoes-previstos-com-politicas-para-mulheres/. Acesso em 03/08/2021.

7Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: LISBOA, Teresa Kleba; ZUCCO, Luciana Patrícia. “Os 15 anos da Lei Maria da Penha”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e86982, 2022

8Financiamento: Não se aplica

9Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

10Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 12 de Abril de 2022; Revisado: 14 de Maio de 2022; Aceito: 27 de Maio de 2022

ppgich@contato.ufsc.br; tkleba@gmail.com

lpzucco@uol.com.br; lpzucco@uol.com.br

Teresa Kleba Lisboa (ppgich@contato.ufsc.br; tkleba@gmail.com) é professora titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina; coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero da UFSC e vice- coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Saúde, Sexualidade e Relações de Gênero (NUSSERGE/UFSC). Coordenadora do Grupo de Trabalho que atua na implementação do Observatório da Violência de SC

Luciana Patrícia Zucco (lpzucco@uol.com.br; lpzucco@uol.com.br) é professora do Departamento de Serviço Social (DSS), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), do Programa de Pós Graduação em Serviço Social (PPGSS/UFSC), e do Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/UFSC). Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Saúde, Sexualidade e Relações de Gênero (NUSSERGE/UFSC) e integrante do Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC)

Contribuição de autoria: As autoras contribuíram igualmente

Conflito de interesses: Não se aplica

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