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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis mayo/aug 2022  Epub 01-Mayo-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n283946 

Resenhas

Quando se é sujeito e objeto da própria escrita

To be the subject and object of your own writing

Cuando eres sujeto y objeto de tu propia escritura

1Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano, Recife, PE, Brasil. 50740-550 - ppg.mdu@ufpe.br

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.


Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos, coletânea lançada pela editora Zahar em 2021, reúne um conjunto muito especial de escritos da intelectual sergipana Beatriz Nascimento (1942-1995), entrelaçando os sentidos de sua atuação enquanto militante antirracista e feminista, à efervescência do período em que a temática da desigualdade racial adentra o universo acadêmico e disputa uma representação na mídia impressa nacional. Sua trajetória de vida, assim como sua aguçada sensibilidade, foi significativa para a construção deste seu papel de pioneirismo e de “afirmação da mulher negra como sujeito do conhecimento sobre seu povo” (Sueli CARNEIRO, 2006, p. 11)1. Organizada pelo antropólogo Alex Ratts, o conjunto de vinte e quatro escritos produzidos entre 1974 e 1994, primorosamente selecionados e devidamente contextualizados, não apenas fazem justiça ao legado de um pensamento de alto teor crítico-revolucionário, que fora, ainda, pouco reverberado no espaço acadêmico, mas também reitera a atualidade de suas formulações.

O livro se divide em quatro seções, ademais do capítulo introdutório, seguindo a ordem cronológica das publicações originais, e organiza-se quanto à confluência temática, sendo a primeira parte voltada para as discussões em torno da “Intelectualidade, relações raciais e de gênero”, na qual são apresentados quatro dos seus primeiros ensaios publicados em veículos de comunicação; na segunda, “Escravismo, fugas e quilombos”, conjunto majoritariamente composto por resenhas, é possível ter um vislumbre do espírito agudamente crítico de suas formulações em diálogo com as principais produções circulantes no meio acadêmico da época; a terceira seção, “O quilombo como sistema alternativo”, é a mais densa e significativa de todo o volume, pois seleciona escritos relacionados ao seu projeto de pesquisa inacabado, no qual a autora elege como ideia-força a formação social do quilombo enquanto base de interpretação da sociedade brasileira, discutindo a possibilidade de uma continuidade histórica entre os quilombos e as favelas cariocas, uma contribuição singular para o pensamento social brasileiro que deve ser difundida e retomada por aqueles estudiosos da área; a quarta e última parte, “Movimento negro e cultura”, concentra textos marcados pela abertura a outras interfaces discursivas, assim como pelos processos políticos e sociais da redemocratização brasileira.

A responsabilidade de recolocar no debate das relações raciais e de gênero a contribuição analítica de Beatriz Nascimento só poderia ter sido atribuída a Alex Ratts, que já navega com familiaridade por entre o acervo pessoal da autora, este que fora doado ao Arquivo Nacional2 por sua filha Bethania Nascimento, em 1999, quatro anos após o fatídico episódio que colocou Beatriz entre as mulheres vítimas fatais da violência de gênero. Ratts, que é mestre em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor em antropologia social pela mesma instituição, hoje é professor na Universidade Federal de Goiás (UFG). Foi fundador e coordenador geral do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Descendentes (NEAAD/UFG) e, desde 2008, é coordenador do Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-Raciais e Espacialidades do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais (La GENTE/IESA/UFG).

A coletânea em questão é o terceiro produto publicado fruto do encontro entre o pesquisador e a contribuição intelectual da ativista, revisitada via acervo3. Foi a partir desse contato íntimo com uma produção que reúne uma múltipla e profunda antologia de inquietações, empenhado em conectá-las a um contexto sociopolítico mais amplo, que Alex Ratts, em 2006, organizou e publicou o Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, volume que reúne artigos, ensaios e poemas da autora sob o selo do Instituto Kuanza & Imprensa Oficial. Já em 2015, contando com a colaboração de Bethânia Nascimento, lançou o livro Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento, numa seleção que enfatiza a faceta artística e sensível, como componente indispensável do pensamento insurgente mobilizado por Beatriz. Interessado na retomada da produção textual de intelectuais negros e sua inserção no ementário das disciplinas das universidades, sobretudo, brasileiras, para além de uma reparação histórica ou da prestação das devidas homenagens, Ratts4 defende a abertura de espaços e dissoluções de assimetrias na academia a partir da adoção de cotas epistêmicas. Há aqui uma consonância gritante com o posicionamento de Beatriz Nascimento.

Uma história feita por mãos negras oferece um panorama amplificado do pensamento da historiadora, centrado no questionamento de “como fazer, como escrever a história sem se deixar escravizar pela sua abordagem?” (Beatriz NASCIMENTO, 2021, p. 37), o qual se desdobra por dois eixos principais. O primeiro, surtido pelo direcionamento de duras críticas de ordem político-metodológica à historiografia oficial (e a ciência disciplinar como um todo), que, segundo a autora, impregnada pelos efeitos de estrutura, reverbera concepções corrompidas por uma “ideologia nacional” - a mesma “neurose cultural brasileira” da qual falava Lélia Gonzalez (1984, p. 223-244) - que reproduz racismo e sexismo, entre outras expressões de uma consciência dominadora, em suas determinações. Em um outro tom de “pretuguês”5 (GONZALEZ, 1984, p. 223-244), Beatriz Nascimento assinala de forma precisa que seria esta a razão pela qual o negro e sua história no Brasil só poderiam ter sido estudados a partir de uma perspectiva reducionista, fragmentada e obcecada no embate escravismo-abolicionismo. A história individual, os saberes corporificados, os processos interacionais e a alta complexidade institucional da organização social alternativa que foram os quilombos ficando à sombra de uma interpretação verdadeiramente comprometida corriam o risco de “servir principalmente para a cristalização de mal-entendidos que dificultam a formação de uma consciência livre de elementos racistas entre as gerações atuais de brasileiros” (NASCIMENTO, 2021, p. 89).

Dentre os perigos decorrentes das limitações disciplinares assinalados por Beatriz, estaria a dificuldade de se compreender o histórico de resistência negra para além da problemática da integração na sociedade de classes. Para a autora, há nesse campo espaço para tantas outras lutas possíveis e o dilema racial brasileiro jamais poderia ser confundido com algum outro no tocante ao debate da mobilidade social da teoria marxista. Para tanto, a pesquisadora dialoga com as produções dos autores Florestan Fernandes, Clóvis Moura e Edson Carneiro. O esforço empreendido nesse eixo discursivo se faz no sentido de propor um avanço analítico, para insistir numa interpretação particularizada ao contexto brasileiro mais do que negar a materialidade e a historicidade das relações raciais. O posicionamento metodológico adotado por Beatriz Nascimento em toda a sua produção nos faz entender que, negociando a incorporação de olhares lançados às vivências, isto é, sobre a prática da herança existencial do povo negro no país, e, fazendo seu levantamento à luz de uma fidelidade histórica, se poderia entender o quilombo como uma investida organizada e complexa que busca, como principal objetivo, sua própria conservação - a sobrevivência do grupo -, mas que também almeja o seu reconhecimento enquanto momento histórico de longa duração e grande importância para a compreensão das relações raciais estruturantes da sociedade brasileira.

O segundo eixo estruturante mobilizado por Beatriz Nascimento incide sobre a reivindicação pela tomada da palavra, pela demarcação de um lugar negro como a centralidade a ser estabelecida na produção intelectual sobre a problemática racial. E isso, pela tradução de seu pensamento, significa propor duas ideias-chave a seguir elaboradas.

A primeira seria a ideia de que existe valor no esforço de complementar as fontes de documentação primária dos arquivos oficiais com o levantamento de uma oralidade histórica e da memória dos povos quilombolas - levando em consideração a corporeidade, a emotividade dos seus saberes; as possíveis reminiscências de um código cultural - para que se justifique o traçar de um continuum entre os ‘sistemas sociais alternativos criados pelos negros’ (NASCIMENTO, 2021, p. 109), partindo dos quilombos para as formas contemporâneas das favelas, ou até mesmo as ocupações. Aliás, não seria incoerente vislumbrar que, se viva, a estudiosa teria muito a comentar sobre essa expressão, das mais radicais modalidades de luta urbana, que assim como os quilombos, passa a representar um espectro de esperança e de recuperação do poder usurpado de uma população marginalizada e majoritariamente racializada, sobretudo da que leva seu nome, no bairro de Japãozinho, em Aracaju, terra onde nasceu.

A segunda proposição, mais objetiva, seria a de que se abra espaço para uma produção de conhecimento elaborado por alguém ‘de dentro’, por um corpo negro que vive os efeitos coercitivos de ter sua subjetividade sequestrada pelos efeitos de uma estrutura. Algo que se comprova, pela sua produção, como uma crítica que vai além da disputa pela representatividade. Por ocupar justamente esse espaço, foi capaz de escrever “Por uma história do homem negro”, ensaio que abre a coletânea, no qual elabora uma crítica à ciência disciplinar mobilizada por um constrangimento vivido na academia - quando ouviu de um intelectual branco que ele era mais preto que ela por ter escrito um trabalho sobre religião afro-brasileira, enquanto ela não usava cabelo afro nem frequentava candomblé. Por ser sujeito e objeto da própria escrita, abordou com tanta propriedade o tema “A mulher negra no mercado de trabalho”, em texto publicado em 1976, antecipando uma problematização análoga à elaborada por Anne Mcclintock em Couro Imperial. Mesmo que nesse momento ainda não se possa identificar a abertura à interface da psicanálise em suas análises, se discute com destreza o cruzamento entre raça, classe e sexo6 a partir da constatação da mulher negra como o elemento no qual mais se cristaliza a estrutura de dominação, e de como essa mulher ainda ocupa papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão.

Indiscutivelmente, a republicação dessa coleção de escritos serve para fazer notar a relevância dos feminismos negros brasileiros em sua capacidade de antecipar abordagens hoje indispensáveis à produção de um pensamento histórico crítico. Ainda, é por ter ocupado esse lugar de destaque na militância antirracista, ser a mulher negra que lidou com os efeitos de uma herança escravista dentro e fora da academia, por trazer à tona outras formas de conhecer, por resgatar uma mobilização subjetiva e emotiva de saberes corporificados em sua produção - que é sobretudo política -, que o legado de Beatriz Nascimento deve ser revisitado.

Referências

CARNEIRO, Sueli. Prefácio. In: NASCIMENTO, Beatriz; RATTS, Alex (Org.). Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza & Imprensa Oficial, 2006, p. 11-13. [ Links ]

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984. [ Links ]

NASCIMENTO , Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. [ Links ]

1Palavras direcionadas a Beatriz Nascimento, por Sueli Carneiro, em consideração à emblemática fala de Beatriz Nascimento na Quinzena do Negro na USP em 1977. O trecho foi destacado do prefácio do livro: Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, também organizado por Alex Ratts (2006).

2No ano de 2016, a biblioteca principal do Arquivo Nacional é nomeada Biblioteca Maria Beatriz Nascimento em reconhecimento à sua contribuição singular ao pensamento social brasileiro.

3Além do material doado para o Arquivo Nacional já mencionado, outro conjunto de escritos resultantes da pesquisa realizada para o documentário Orí fora doado, em 1993, para o Centro de Estudos Africanos da USP pela cineasta Raquel Gerber, diretora do filme que viria a ser a mais representativa obra ligada ao nome de Beatriz, sua narradora e roteirista.

4É válido lembrar da participação do antropólogo na organização, juntamente com Flavia Rios, do livroLélia Gonzalez, publicado no ano de 2010 pelo Selo Negro.

5Referência ao termo cunhado por Lélia Gonzalez na comunicação “Racismo e sexismo na cultura brasileira” apresentado no Grupo de Trabalho Temas e Problemas da População Negra no Brasil, da associação Brasileira de Pós-Graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais (Anpocs), mesmo espaço onde Beatriz apresentou o trabalho “O movimento de Antônio Conselheiro e o abolicionismo: Uma visão da história regional” no início dos anos 1980.

6Destaca-se aqui a utilização dos termos raça, classe e sexoempregados da mesma maneira em que se apresentam nos escritos originais de Beatriz por antecederem a utilização das noções de gênero e de interseccionalidade dentre os estudos de orientação feminista das ciências sociais.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SILVA, Luiza de Melo. “Quando se é sujeito e objeto da própria escrita”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e83946, 2022.

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 17 de Setembro de 2021; Aceito: 07 de Dezembro de 2021

luizademelosilva@gmail.com

Luiza de Melo Silva (luizademelosilva@gmail.com) é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2010-2016). Atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU) pela Universidade Federal de Pernambuco, onde pesquisa a festa de rua (apropriações urbanas em sentido de festa) como expressão de uma tensão estética-discursiva das formas do viver urbano e suas lutas à luz da teoria do direito à cidade de Henri Lefebvre.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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