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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.2 Florianópolis maio/ago 2022  Epub 01-Maio-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n284481 

Resenhas

Repensando as relações entre gênero e capitalismo: discussão sobre trabalho e salário

Rethinking the relations between gender and capitalism: a discussion about work and wages

Repensando la relación entre género y capitalismo: discusión sobre trabajo y salarios

Camila Carolina Hildebrand Galetti1 
http://orcid.org/0000-0003-2364-2519

1Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Brasília, DF, Brasil. 70910-900 - pgsol@unb.br

FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário. Candiani, Heci Regina. São Paulo: Boitempo, 2021. 208pp.


Nascida em Parma, Itália, em 1942, Silvia Federici mudou-se para os Estados Unidos em 1967 onde estudou filosofia na Universidade de Buffalo, Nova York. No ano de 1972 a filósofa participou da fundação do Coletivo Feminista Internacional (International Feminist Colletctive), uma organização que impulsionou a campanha que pauta o salário para o trabalho doméstico. Juntamente com outras ativistas e intelectuais como Mariarosa Dalla Costa, Selma James, Maria Mies e Vandana Shiva, Federici tem se debruçado a pensar teoricamente a reprodução sexual, o trabalho reprodutivo e de cuidado, como fio condutor das relações de classe e as dominações.

Publicado em 2021 no Brasil, o livro O patriarcado do salário, escrito por Silvia Federici, nos dá subsídios para pensarmos a relação entre feminismo e marxismo a partir da discussão da reprodução social. O volume é composto por sete ensaios escritos entre os anos de 1975 a 2008, nos quais a autora retoma importantes discussões feitas por Karl Marx e Friedrich Engels sobre a questão do trabalho, articulando-a à luz da teoria feminista.

Partindo da premissa de que o machismo é o elemento estrutural do desenvolvimento capitalista, Federici busca repensar as relações entre gênero e capitalismo a partir das atividades que reproduzem a vida como o trabalho reprodutivo, afetivo e doméstico, os quais são desempenhados majoritariamente por mulheres. Essas que não foram discutidas com a atenção necessária, tendo em vista que tais atividades são essenciais na condição de instrumento de acumulação capitalista, e devem ser consideradas ao se pensar o conceito de emancipação tão discutido por Marx e pela tradição marxista. Afinal, de Lênin a Gramsci, toda a tradição da esquerda concordou com a “marginalidade” do trabalho doméstico para a reprodução do capital e com a marginalidade da dona de casa para a luta revolucionária (Silvia FEDERICI, 2021, p. 25).

Como anuncia o título do livro, o salário é um conceito fundamental na discussão proposta, principalmente pelo fato de que a remuneração do trabalho doméstico, de cuidado e reprodutivo aparece nas diversas obras da filósofa com frequência, sendo basilar na problematização das relações desiguais de gênero. Cabe mencionar que o salário é a forma pela qual é medido o trabalho produtivo, e, além disso, esconde todo trabalho não pago que se transforma em lucro. Ou seja, quando Federici traz ao debate a remuneração do trabalho doméstico, é a partir do ideário de que isso seja uma estratégia para dar visibilidade a ele. Com isso, a finalidade do debate proposto é redefinir o que é trabalho sob uma ótica feminista, principalmente por essas atividades serem consideradas trabalho oculto, improdutivo, mesmo sendo uma das bases de sustentação da sociedade capitalista.

Federici pontua, desde o início da sua análise, o seu incômodo que repousa no questionamento: por que Marx ignorou as atividades que reproduzem a vida? Com isso, no primeiro capítulo, “Planejamento contra-estratégico na cozinha” (1975), a autora critica o fato de o trabalho doméstico, realizado majoritariamente por mulheres, ter sido reduzido e marginalizado ou até mesmo ocultado nos escritos de Karl Marx. A partir do questionamento se o trabalho doméstico é externo ao capital, é discutido o quanto por trás de cada fábrica, escola, escritório existe um trabalho oculto de inúmeras mulheres que proporciona as condições para que haja produção capitalista.

Ainda nesse capítulo, a filósofa problematiza o papel da família nessa cartografia, afirmando que a essência da ideologia capitalista é glorificar a família como “esfera privada”, a última fronteira na qual homens e mulheres mantêm viva a alma (FEDERICI, 2021, p. 36). Sobre esse aspecto, Engels (2019 [1884]), em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, desnaturaliza a família patriarcal e monogâmica, mostrando sua origem histórica e o quanto essa concepção de família ocidental é uma invenção do capital para o capital. Esse modelo de família é glorificado principalmente porque o patriarcado pavimentou a ideia de que o espaço privado e, com ele, o trabalho doméstico não remunerado, é destinado ao feminino.

No capítulo seguinte, “O capital e a esquerda” (1975), a discussão gira em torno dos embates na esquerda, sobretudo como essa lidou em meados de 1960 com os movimentos feministas, bem como a interpretação do lugar do feminismo na luta de classes. Nesse contexto sobressaiu a polêmica, que à época era comum, se a classe antecede o gênero ou vice-versa. Porém, como Cinzia Arruzza (2019) menciona, a discussão deveria girar em torno de como o gênero e a classe se entrelaçam. Arruzza expõe a dialética entre a perspectiva teórica da relação entre gênero e classe acrescida similarmente de uma perspectiva histórica sobre a relação entre o movimento de emancipação classista e o movimento de mulheres. Com isso, tanto Federici como Arruzza preocupam-se em demonstrar que as lutas das mulheres devem estar em consonância com a luta de classes, afinal, as mulheres compõem as fileiras de indivíduos explorados pelo sistema capitalista e necessitam que suas questões estejam evidenciadas quando o assunto é a emancipação dos indivíduos.

O terceiro capítulo, “Gênero em O capital, de Marx” (2020), evidencia que a análise de Marx sobre o capitalismo nos deu ferramentas para pensar sobre as formas específicas da exploração à qual as mulheres têm sido submetidas na sociedade capitalista (FEDERICI, 2021, p. 62), apesar de o gênero não ter sido objeto de análise crítica de Marx à economia política. Com isso, Federici problematiza que Marx não estava imune ao patriarcado e à sua lógica, que considera o trabalho reprodutivo algo destinado às mulheres, como uma atividade natural, instintiva. Talvez o seu desinteresse em trazer essa discussão para os seus escritos se apoie aí. Sobre essa questão, a filósofa também ressalta que Marx se refere ao trabalho como “atividades livres,” desempenhadas sem qualquer restrição externa (FEDERICI, 2021, p. 76).

Apesar de o trabalho doméstico não estar no horizonte histórico, político e econômico de Marx, como pilar da organização capitalista, um feminismo anticapitalista não pode ignorar suas contribuições e legado. É isso que Federici desenvolve no quarto capítulo, assim como a relevância da constituição dos comuns para este debate. Segundo a autora, os comuns buscam expandir a cooperação social, destruir o controle do mercado e do Estado sobre nossas vidas, promover o compartilhamento de riqueza e, dessa forma, dar fim à acumulação capitalista (FEDERICI, 2021, p. 95).

É interessante o debate acerca dos comuns feito por Federici, pois ela compreende a categoria diferentemente de Antonio Negri e Michael Hardt, intelectuais que se debruçaram a pensar os comuns. A filósofa compreende que as mulheres são historicamente sujeitos primários do trabalho reprodutivo, e, por isso, dependem mais dos recursos comuns. Com isso, a reorganização do trabalho reprodutivo permite às mulheres melhores condições de vida, afetando também as demandas femininas na sociedade.

Já no capítulo subsequente, “A revolução começa em casa: repensando Marx. reprodução e luta de classes” (2018), a autora problematiza o quanto Marx não previu, nem explicou, a reestruturação da família proletária e a constituição de novas relações patriarcais no seio do proletariado (FEDERICI, 2021, p. 130). Conforme o capitalismo ia se modificando, a estrutura familiar também ia abarcando novas nuances.

É interessante ressaltar a regulação de ordem moral e sexual que se potencializa, no sentido de que com a formação da nova família proletária, processo este que ocorreu entre 1860 e a Primeira Guerra Mundial, as mulheres se integrou ao trabalho industrial com mais afinco, porém os cuidados maternos também se sobressaíram. Esses só são mencionados quando se fala da negligência das mulheres da classe trabalhadora em relação às crianças (FEDERICI, 2021, p. 135). Ou seja, é uma visão reducionista que também reafirma a maternidade como algo exclusivamente do feminino.

No sexto capítulo “Origens do trabalho doméstico na Inglaterra: a reconstrução da família proletária, trabalho doméstico e o patriarcado do salário” (2020), a discussão se detém em analisar as consideráveis mudanças oriundas da Segunda Revolução Industrial, principalmente no que diz respeito à dona de casa. Federici aponta os desdobramentos de um novo regime reprodutivo e de um contrato social que separa as mulheres entre donas de casa e prostitutas. Essa discussão perpassa também a dicotomia do espaço privado versus público, a qual consolida uma narrativa de ordem moral e sexual regulatória, no sentido de que estereotipa as mulheres e seus papéis na sociedade.

Sobre esse aspecto, cabe mencionar que isso tem sido resgatado com força atualmente a partir das narrativas antifeministas e de governos atrelados ao espectro ideológico de extrema-direita ao nível global, tendo como uma das finalidades demarcar muito bem os lugares pré-estabelecidos entre os sexos a partir da lógica patriarcal. Ou seja, os discursos essencializantes, o trabalho reprodutivo realizado majoritariamente por mulheres não é algo marginal nem pré-capitalista, mas é basilar para a sustentação da vida.

O último capítulo “Notas sobre Marx e ecologia” (2020), Federici relata que Marx reconheceu a centralidade da natureza para a reprodução da vida e para a acumulação capitalista. Ele também antecipou e condenou muitos dos problemas que estão hoje no centro dos debates e dos ativismos ecológicos, a começar pela insustentabilidade da agricultura capitalista, a insalubre separação entre cidade e campo (FEDERICI, 2021, p. 174).

As consequências de tais desastres ambientais são vivenciadas cotidianamente, porém, não de forma passiva. A filósofa aponta que são as mulheres, sobretudo na América Latina, que hoje lideram a luta por um ambiente ecológico seguro (FEDERICI, 2021, p. 185), contra o envenenamento das águas, contra a expansão do agronegócio, dentre outras inúmeras lutas que abarcam a temática da ecologia.

Silvia Federici, em O patriarcado do salário, nos dá subsídios para ampliar o debate acerca dos conflitos produtivos, a partir de suas preocupações no que tange a negligência da condição das mulheres nas obras marxistas. O fato é: trabalho doméstico e reprodutivo são essenciais para a manutenção cotidiana da vida, porém, é sabido que não há interesse nem do capitalismo, muito menos do patriarcado em rever as relações desiguais de gênero. Até porque o capital sempre encontra uma nova fonte de acumulação, e isso se dá principalmente a partir da exploração de corpos femininos e racializados. Sobre esse aspecto, Françoise Vergès (2020) aponta que as transformações do capitalismo oferecem uma oportunidade decisiva para a explosão de baixos salários e para a precarização, sobretudo por meio da feminização, em escala mundial dos empregos subqualificados nas zonas de abertura econômica e na economia informal (VERGÈS, 2020, p. 70) e essa feminização da pobreza, se concentra principalmente entre as mulheres racializadas.

Com isso, Federici sugere o assalariamento do trabalho doméstico como uma estratégia para dar visibilidade a tal trabalho, compreendendo que isso não emancipará as mulheres, não é um fim em si, mas um meio. Porém, tal reflexão nos permite questionar: será que a estratégia de visibilidade a partir da lógica capitalista pode ser válida ou é uma armadilha? Teríamos outras formas de problematizar o trabalho doméstico buscando outros caminhos de visibilidade?

Por fim, a filósofa e ativista nos oferece uma rica reflexão acerca da amplitude do trabalho reprodutivo, pois ele sai do ambiente doméstico, tem continuidade no espaço público, abarcando também todas as questões do meio ambiente a partir da expansão das relações capitalistas, bem com, as mulheres são as mais afetadas nesse contexto.

Referências

ARRUZZA, Cinzia. Ligações perigosas: casamentos e divórcios entre marxismo e feminismo. Trad. de Nina Jacomini. São Paulo: Editora Usina, 2019. [ Links ]

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. de Leandro Konder. São Paulo: Boitempo, 2019. [ Links ]

FEDERICI, Silvia. O patriarcado do salário. Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2021. [ Links ]

VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Trad. de Jamile Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Editora Ubu, 2020. [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: GALETTI, Camila Carolina Hildebrand. “Repensando as relações entre gênero e capitalismo: discussão sobre trabalho e salário”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 2, e84481, 2022.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 20 de Outubro de 2021; Aceito: 07 de Dezembro de 2021

Camila Carolina Hildebrand Galetti (camilagaletti@hotmail.com) é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), mestra e doutoranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), onde estuda antifeminismos, neoliberalismo, afetos e extrema-direita. Pesquisadora do Projeto Mulheres Eleitas (LAPPCOM/UFRJ), integra o conselho editorial da Revista Espaço Acadêmico (UEM).

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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