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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.3 Florianópolis  2022  Epub 01-Set-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n379909 

Artigos Temáticos Mulheres em Pesquisas

Protagonismo feminino frente à pandemia de Coronavírus no Rio de Janeiro

Female protagonism facing the Coronavirus pandemic in Rio de Janeiro

Protagonismo femenino ante la pandemia de Coronavirus en Rio de Janeiro

Taísa de Oliveira Amendola Sanches1  , concepção, , coleta e análise de dados, , redação, , elaboração de manuscrito, , discussão de resultados
http://orcid.org/0000-0002-7372-8321

Theófilo Codeço Machado Rodrigues2  , concepção, , análise de dados, , redação, , elaboração de manuscrito, , discussão de resultados
http://orcid.org/0000-0003-1709-1546

Larissa de Andrade Verdier2  , análise de dados, , redação, , discussão resultados
http://orcid.org/0000-0003-2283-5802

1Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21941-901 - direcao@ippur.ufrj.br

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20943-000 - ppcis.uerj@gmail.com


Resumo:

O presente artigo analisa os impactos da pandemia de Coronavírus e a agência das mulheres na sociedade civil e política em seu enfrentamento na cidade do Rio de Janeiro. O artigo está estruturado em três seções. A primeira analisa o impacto da pandemia às mulheres e apresenta dados específicos sobre o Rio de Janeiro. A segunda seção investiga os impactos específicos às mulheres faveladas e apresenta ações de enfrentamento na sociedade civil. Por fim, a terceira seção avalia a ação das parlamentares na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Foram utilizados dados referentes à produção legislativa e entrevistas com lideranças de favelas da cidade. Conclui-se que, num cenário em que o Poder Executivo esteve muitas vezes ausente, coube às mulheres na sociedade civil e no parlamento, as principais iniciativas de combate aos efeitos perversos da pandemia.

Palavras-chave: pandemia; gênero; sociedade civil

Abstract:

This article analyzes the impacts of the coronavirus pandemic and women's agency on civil and political society in their confrontation in the city of Rio de Janeiro. The article is structured in three sections. The first one analyzes the impacts of the pandemic on women and presents specific data about Rio de Janeiro. The second section investigates the specific impacts on women in the slums and presents actions to confront civil society. Finally, the third section evaluates the action of state deputies in the Legislative Assembly of the State of Rio de Janeiro and in the City Council of Rio de Janeiro. Data on legislative production in both houses and interviews with favela leaders in the city were used. It is concluded that, in a scenario where the Executive Power was often absent, women in civil society and in parliament lead the main initiatives to combat the perverse effects of the pandemic.

Keywords: Pandemics; Gender; Civil Society

Resumen:

Este artículo analiza los impactos de la pandemia de coronavirus y la agencia de las mujeres desde la sociedad civil y política en su enfrentamiento en la ciudad de Río de Janeiro. El artículo está estructurado en tres apartados. El primero analiza el impacto de la pandemia en las mujeres y presenta datos específicos sobre Río de Janeiro. La segunda sección investiga los impactos específicos sobre las mujeres de los barrios marginales y presenta acciones de enfrentamiento desde la sociedad civil. Finalmente, el tercer apartado evalúa la actuación de los diputados estatales en la Asamblea Legislativa del Estado de Rio de Janeiro y en el Ayuntamiento de Rio de Janeiro. Se utilizaron datos sobre la producción legislativa en ambas cámaras y entrevistas con líderes de favelas de la ciudad. Se concluye que, en un escenario donde el Poder Ejecutivo estuvo a menudo ausente, las acciones de mujeres en la sociedad civil y en el parlamento fueron las principales iniciativas para combatir los efectos perversos de la pandemia.

Palabras clave: pandemia; género; sociedad civil

Introdução

Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão. Como que acaba com isso? O cara quer trabalhar, meu Deus do céu, é crime agora isso? (Talita FERNANDES; Fábio PUPO, 2020)

A grosseira e, no mínimo, insensível frase do presidente Jair Bolsonaro reproduzida acima, revela indiretamente como a pandemia do novo Coronavírus fez transparecer em um grau elevado no Brasil um aspecto próprio de nossa sociedade: a assimetria de gênero. Conforme a literatura vem apontando com certo consenso, as mulheres foram as principais prejudicadas pelo avanço da doença no país e no mundo (Luana PINHEIRO; Carolina TOKARSKI; Marcia VASCONCELOS, 2020), seja pelo aumento da violência doméstica (PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2020), seja pelas mulheres representarem maioria dentre profissionais de cuidados - assistentes sociais, enfermeiras - e de trabalhadoras domésticas - profissão de seis milhões de trabalhadoras no Brasil (IPEA; ONU Mulheres, 2020).

Outro eixo da vulnerabilidade feminina refere-se à lacuna de políticas públicas específicas de proteção. No caso do Rio de Janeiro, especificamente, os efeitos foram ainda mais graves em consequência da falta de gestão do Poder Executivo em suas três instâncias, municipal, estadual e federal. Os conflitos políticos entre o governador e o presidente da República, além da eleição municipal em meio ao caos social, foram algumas das variveis que tornaram um desastre a gerência da crise sanitária. Basta dizer que o Rio de Janeiro foi a capital com a maior taxa de letalidade por infecção pelo novo Coronavírus no país (Tatiana ALVES, 2020). Assim, coube à sociedade civil e ao Poder Legislativo as principais iniciativas de combate aos efeitos da pandemia.

As mulheres - talvez por serem as mais afetadas ou por representarem as populações mais afetadas - concebem papel fundamental no enfrentamento à pandemia. Neste artigo, pretende-se analisar tanto os impactos específicos da crise à vida das mulheres, quanto seu protagonismo no enfrentamento ao vírus. Para tanto, o texto está estruturado em três seções, que procuram lançar luz às distintas camadas onde as mulheres foram as mais afetadas e protagonizaram a luta contra a pandemia, relacionando tal realidade a uma ampla abordagem teórica. A primeira analisa o impacto da pandemia no Rio de Janeiro e as consequências na vida das mulheres. Em articulação com a teoria feminista e democrática, demonstramos como as mulheres são as que mais sofreram com a pandemia. As duas seções seguintes apontam como as mulheres foram protagonistas no combate às consequências sociais da pandemia. A segunda seção investiga a ação das mulheres na sociedade civil, a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas com lideranças comunitárias1 e acompanhamento de suas ações sociais via web durante o ano de 2020, tais como as Rodas de Conversa promovidas pelo Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio (Eliana SILVA; Alan PINHEIRO; Sarah TELLES, 2020; Maria da Penha MACENA; Cosme FELIPPSEN; Taísa SANCHES, 2020). Por fim, a terceira seção, avalia a ação das deputadas estaduais na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, ALERJ, e na Câmara Municipal de Vereadores do Rio de Janeiro. Foram utilizadas informações referentes à produção legislativa nas duas casas, levantadas a partir de base pública de dados em janeiro de 2021, referentes aos projetos de lei propostos e aprovados até a data, disponíveis na web (BRASIL/ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2021). Conclui-se que, num cenário em que o Poder Executivo esteve muitas vezes ausente, coube às mulheres na sociedade civil e no parlamento as principais iniciativas de combate aos efeitos perversos da pandemia.

A crise do Coronavírus e seus impactos às mulheres

No Rio de Janeiro, a primeira morte por COVID-19 registrada foi a de uma trabalhadora doméstica negra (seu nome era Cleonice e morreu com 63 anos). Este dado diz muito sobre a realidade não só do estado, mas do país como um todo. Segundo relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (PINHEIRO; TOKARSKI; VASCONCELOS, 2020), mulheres e crianças são as mais afetadas pela pandemia do Coronavírus. Isso porque, a situação de vulnerabilidade das famílias se agravou durante o período, ao passo que os níveis de desemprego são maiores entre as mulheres, que chefiam a maioria dos lares no Brasil. Reportagem de Thais Carrança publicada no jornal Folha de São Paulo em setembro de 2020, mostra que o índice de desemprego de mulheres no país estava em 16,9%, enquanto os homens representavam 11,8% (Thais CARRANÇA, 2020). Uma matéria do Estado de São Paulo (Juliana DYNIEWICZ, 2020) informou que a participação feminina no mercado de trabalho (índice de mulheres com mais de 14 anos que estão empregadas ou procurando emprego) chegou a 46,3%, o menor número dos últimos 30 anos.

No Brasil, o número de famílias brasileiras chefiadas por mulheres cresceu 105% entre 2001 e 2015 (Sandra CAVENAGHI, 2018). No entanto, dados mostram que o rendimento mensal das mulheres é equivalente a 76% do ganho masculino (eles ganham 24% a mais), e elas gastam quase o dobro de horas semanais com afazeres domésticos (10,5 horas é a média masculina, enquanto 18,1 é a feminina). Colocados em conjunto, esses dados revelam a precariedade de vida das mulheres no país. Além de estarem em situação econômica pior, dependem mais da rede de apoio, ausente durante a pandemia. Como explica Lena Lavinas,

No caso das assimetrias de gênero, a coisa funciona mais ou menos assim: os homens dependem das mulheres para dispor de bem-estar e qualidade de vida, enquanto as mulheres precisam de serviços públicos acessíveis e a custos razoáveis para não serem as únicas provedoras responsáveis por assegurar, para além de suas capacidades, recursos e vontade, condições satisfatórias de reprodução da vida. Na ausência da provisão pública adequada, a carga repousa quase que exclusivamente sobre as mulheres, sobre o trabalho não remunerado e invisibilizado das mulheres (2016, p. 624)

A ausência de serviços públicos que garantem as condições satisfatórias de vida se mostrava uma realidade antes da pandemia, e o ano de 2020 exigiu das mulheres - as mães, em especial - uma dose extra de resiliência. Em março, a exemplo do que já acontecia em outros países, escolas públicas e privadas do Brasil suspenderam as aulas na tentativa de interromper o avanço da pandemia da Covid-19. Os efeitos negativos da suspensão prolongada das atividades em escolas e creches na vida das mulheres mães, sobretudo as de menor poder aquisitivo, são enormes. A separação absoluta entre o que seria digno de consideração pública e o que pertence ao domínio do privado - o cuidado com os filhos, neste caso -, é determinante para manter invisível o trabalho desempenhado pelas mulheres dentro de casa, e a consequente precarização dessas vidas.

Em média, no Brasil, as mulheres com filhos empregam 30,7 horas semanais nas tarefas domésticas, enquanto os homens dedicam 13 horas (Clara ARAÚJO; Felícia PICANÇO; Ignácio CANO; Alinne VEIGA, 2018) - isso em condições não pandêmicas. Esse desequilíbrio não é resultado de uma habilidade natural das mulheres em cuidar, cozinhar e limpar. A divisão de papéis - homem provedor, mulher cuidadora - foi forjada por meio da força, ao longo de centenas de anos de controle dos corpos femininos, o que deu origem a “uma nova divisão sexual do trabalho que confina as mulheres ao trabalho reprodutivo” (Silvia FEDERICI, 2017, p.30). Tal divisão extrai das mulheres, a custo zero, um trabalho determinante para a manutenção do sistema capitalista. Alimentar, cuidar, gerar, cozinhar, lavar, ou seja, quase todas as tarefas que sustentam a vida humana, que demandam tempo e dedicação, são gratuitas e invisibilizadas.

Nancy Fraser e José Ivan Rodrigues de Sousa Filho (2020) argumentam que o capitalismo tem, na realidade, “parasitado” as atividades de cuidado. Ao associar o trabalho reprodutivo ao amor ou à natureza feminina, o capitalismo rouba o trabalho das mulheres e as mantém numa relação de subordinação ao homem. A reprodução é condicionante para a produção, mas se a economia não lhes atribui qualquer valor monetizado, trata-se de trabalho invisível (FRASER; SOUSA FILHO, 2020, p.264). No entanto, o sistema que parasita o trabalho reprodutivo também recruta as mulheres para o mercado de trabalho e promove a redução do investimento estatal em bem-estar social. Vivemos uma crise do cuidado. Eis a contradição de nossos tempos:

Expelindo de si o trabalho de cuidado e lançando-o sobre as famílias e as comunidades, ele diminui, simultaneamente, as capacidades de que elas dispõem para desempenhar esse trabalho. O resultado, em meio à desigualdade crescente, é uma organização dualizada da reprodução social, mercadorizada para quem pode pagar para dela usufruir, privatizada para quem não o pode - tudo lustrado pelo ideal ainda mais moderno da “família de dois ganhadores de dinheiro” (FRASER; SOUSA FILHO, 2020, p.268).

Fraser e Sousa Filho apontam ainda para o fato de que, além de reduzir os investimentos em bem-estar social, o neoliberalismo reduz salários e direitos, forçando o trabalhador a dedicar mais horas ao trabalho pago. Para permanecer neste mercado de trabalho, as mulheres privilegiadas acabam por contratar outras mulheres em situação de desvantagem socioeconômica, a fim de transferir essa atribuição e preencher a lacuna do cuidado. As trabalhadoras pobres, por sua vez, delegam o cuidado de sua família a parentes ou mulheres em situação ainda mais precária. É uma corrente que exclui a atuação do Estado e, em geral, exclui também a participação do homem, como apontou Lavinas (2016). A responsabilidade pelo cuidado passa a ser dever exclusivo da família e, na ausência de políticas públicas, o poder aquisitivo é determinante para definir arranjos.

O modelo da família de dois ganhadores de dinheiro é frequente e crescente nos países da América Latina. Ainda assim, o Brasil permanece um dos países mais deficientes em políticas públicas de suporte à conciliação entre família e trabalho. Por aqui, predominam os arranjos familistas de cuidado, nos quais os parentes consistem na principal rede de apoio a casais com crianças (ARAÚJO Et al., 2018). Isso não significa, porém, que a suspensão das atividades em escolas e creches durante a pandemia não tenha qualquer impacto na vida das mulheres mães.

A responsabilização das famílias - e, em última instância, das mulheres - pela provisão de cuidado adquire forma ainda mais acentuada como parte do projeto neoliberal. Wendy Brown (2019, p.22) argumenta que as normas da família patriarcal estão longe de atuar em um papel secundário na implantação desse projeto, já que as famílias, em vez do Estado, passam a ser responsabilizadas pelos diversos aspectos do bem-estar social, em especial os cuidados com crianças, idosos e deficientes. E toda política social que visa equilibrar desigualdades de gênero, raça e classe é vista, no contexto neoliberal, como um ataque à liberdade.

Por si só, a pandemia do Coronavírus já teria efeitos devastadores. Mas o cenário arquitetado antes da crise torna a situação ainda mais difícil para as mulheres, em especial para as mulheres desprovidas de privilégios de raça e classe. Se o trabalho doméstico fosse desempenhado de forma equilibrada entre homens e mulheres, é muito provável que a provisão de cuidados se tornasse um tema de debate público. Mas, conforme observa Anne Phillips (2011), a democracia liberal insiste na divisão total entre o público e o privado (ou o público e o doméstico), e assim legitima a desigualdade. A divisão do trabalho se impõe como preocupação básica de quem se coloca a favor da igualdade de gêneros. E não se trata de um problema apenas social, mas também político. O desequilíbrio na carga de trabalho tem influência direta no envolvimento político das mulheres, e a baixa representação feminina na política, por sua vez, tem consequência imediata na vida delas. Uma redistribuição do trabalho doméstico não é apenas uma questão da ordem da vida privada, mas um “imperativo para a democracia”, diz Phillips. “Na medida em que a divisão do trabalho entre homens e mulheres tem consequências políticas, ela tem que fazer parte do debate político.” (PHILLIPS, 2011, p.350)

Em uma crítica à democracia liberal, Phillips argumenta que o fato de as mulheres terem direito ao voto não torna o sistema plenamente democrático:

Nas condições aparentemente mais iguais, as desigualdades continuadas da divisão do trabalho ainda condenam as mulheres a um papel político menor. Frequentemente excluídas pela falta de tempo ou de confiança, elas não têm o mesmo peso que os homens (PHILLIPS, 2011, p.349).

A ideia de que todos os indivíduos são iguais, diz a autora, pressupõe indivíduos masculinos, e é impossível abandonar nossas identidades para atuar como corpos neutros no jogo democrático. Nesse sentido, a aparente igualdade pode reforçar privilégios, ao passo que a democracia acaba por incluir as mulheres como indivíduos, e não como grupos. E, quando um grupo é subrepresentado, isso significa que outro ocupa parcela maior de espaço do que lhe corresponderia.

A autora considera crucial para a igualdade de gêneros e para a plena democracia que a esfera doméstica seja descortinada e passe a ser entendida de forma articulada com a esfera pública: “Argumentos que desprezam a relevância política da esfera privada estão contribuindo para manter as coisas como estão, pois nos encorajam a considerar que tudo vai bem a despeito do que deveria ser considerado como grandes contradições” (PHILLIPS, 2011, p. 349).

As desigualdades entre os homens e as mulheres na política, no mercado de trabalho e nas relações de poder estão ligadas aos desequilíbrios domésticos e, por outro lado, as desigualdades nas dinâmicas familiares também se relacionam com o domínio público (Susan OKIN, 2008). É uma via de mão dupla. A concepção liberal do público e do privado naturaliza os papéis atribuídos a homens e mulheres na sociedade, como se a maternidade, o cuidado e a domesticidade fossem próprios da natureza feminina. Já os homens seriam naturalmente aptos à vida pública, à atuação profissional e política. Esses papéis são socialmente construídos, portanto têm relevância política. Segundo Okin:

Nós não podemos entender as esferas “públicas” - o estado do mundo do trabalho ou do mercado - sem levar em conta o fato de que são generificadas, o fato de que foram construídas sob a afirmação da superioridade e da dominação masculinas e de que elas pressupõem a responsabilidade feminina pela esfera doméstica. É preciso perguntar: as práticas nos locais de trabalho, no mercado ou no parlamento seriam as mesmas se elas tivessem se desenvolvido pressupondo que seus participantes teriam de acomodar-se às necessidades de dar à luz, educar um filho, e às responsabilidades da vida doméstica? As políticas e seus resultados seriam os mesmos se aqueles que nelas estão engajados fossem pessoas que também tivessem responsabilidades cotidianas significativas voltadas para os cuidados dos outros, ao invés de serem aqueles que menos probabilidade têm, em toda a sociedade, de ter essa experiência? (OKIN, 2008, p.320).

Se as mulheres tivessem participação igualitária na atuação pública ou, por outro lado, se os homens fossem responsabilizados pelo trabalho doméstico tanto quanto elas, a política certamente apresentaria outros resultados. Somente por meio de uma mudança radical na organização do trabalho - pago e não pago - as mulheres teriam condições de se fazer ouvir, de fato (PHILLIPS, 2011, p. 355).

Se fazer ouvir não significa, no entanto, que as mulheres sejam as únicas a falar na arena pública sobre temas caros a elas, tais como aborto e a provisão de cuidados. Phillips chama atenção para o risco que isso representa. Se as únicas vozes ouvidas nesses debates forem as femininas, sob o argumento de que são as únicas com experiência que as habilita a opinar nessa área, há o risco do esvaziamento. “O requisito fundamental é a presença política das mulheres: o que não quer dizer que só as mulheres podem falar das questões “das mulheres”, que elas devem falar apenas como sexo.” (PHILLIPS, 2011, p. 360)

Tal desigualdade de participação também é verificada no interior das famílias. Quando Okin reitera que o pessoal é, sim, político, ela não rejeita, no entanto, o valor da privacidade na vida dos indivíduos. A autora pontua que é na vida privada que cultivamos a liberdade necessária para desenvolver a criatividade, a capacidade intelectual, é onde deixamos nossos papéis públicos de lado e onde criamos relações pessoais de intimidade. O problema se apresenta quando olhamos para esses argumentos pela perspectiva de gênero.

A crise do Coronavírus expôs as desigualdades a que estão submetidas as mulheres nas esferas privada e pública, deixando claras as influências da vida privada na participação pública e política feminina. Conforme demonstra Okin (2008, p.314), somente com um alto grau de igualdade na vida familiar é possível conceber uma "esfera privada consistente com a privacidade e a segurança socioeconômica de mulheres e crianças". Com creches e escolas fechadas e o apagamento das fronteiras geográficas entre o trabalho profissional e a casa, a sobrecarga alcançou níveis extenuantes. Ficaram ainda mais reduzidas as possibilidades de ‘descansar’ do papel público ou de preservar a solidão criativa. Além disso, a violência contra as mulheres no Brasil durante a pandemia aumentou. No Rio de Janeiro, a Cejuvida (Central Judiciária de Acolhimento da Mulher Vítima de Violência Doméstica) registrou número recorde de atendimentos: 1500 de janeiro a julho de 2020. Para comparação, no ano anterior inteiro foram 1963 atendimentos. Nos parece improvável construir relações íntimas de afeto quando uma das partes é subjugada pela força. A privacidade, tão valorizada pelos teóricos da democracia liberal como meio de desenvolver personalidade, criatividade e capacidades intelectuais, foi excluída da vida de grande parte das mulheres.

Pode-se afirmar, a partir do exposto, que a crise do Coronavírus expõe o trabalho de cuidado e a sobrecarga feminina. São as mulheres as mais afetadas pela pobreza, pelo desemprego, pela falta de tempo. Nos questionamos, a partir do demonstrado, se não seriam elas também as protagonistas no enfrentamento da pandemia, tanto na sociedade civil quanto na política. Para responder a este questionamento, nas próximas seções apresentamos exemplos de enfrentamento na cidade do Rio de Janeiro.

O enfrentamento da pandemia na sociedade civil

Se a pandemia afeta mais duramente as mulheres, como demonstramos na primeira seção do artigo, podemos supor que aquelas que moram em comunidades faveladas lidam com dificuldades ainda maiores, o que se confirma:

A taxa de mortalidade por covid-19 no município do Rio aponta que as áreas mais pobres da capital são as mais afetadas pelo coronavírus - 50% dos óbitos -, caracterizadas por moradias precarizadas, pouca oferta de serviços públicos e pela falta de políticas públicas de qualidade para a população, ou seja, pela falta de serviços. O mesmo ocorre com a população negra, que representa 48% dos óbitos na cidade do Rio de Janeiro (Priscila RISCADO; Clara FAULHABER, 2021)

Os protocolos e procedimentos de enfrentamento ao vírus disseminados na mídia também se mostram um bom caminho para comprovar tal suposição: “fique em casa” e “lave as mãos com frequência” são dois dos mais divulgados meios para evitar o contágio. No entanto, não dialogam com a realidade das favelas, onde falta saneamento básico e a ocupação dos imóveis dificulta isolamento. Além disso, a vida das mulheres faveladas foi especialmente impactada também por fatores econômicos: muitas precisam sair para trabalhar diariamente para garantir o sustento diário de si e familiar.

Apesar das adversidades, ou por conta delas, as comunidades faveladas da cidade do Rio de Janeiro têm se destacado no enfrentamento do vírus. As iniciativas observadas são formas insurgentes (James HOLSTON, 2013) de confronto e organização comunitária. As lideranças demonstram um amplo conhecimento das necessidades locais e capacidade de responder rapidamente a situações de crise, como a pandêmica. As lideranças femininas, especialmente, têm se preocupado com o fornecimento de alimentos com base em recursos locais (como no caso do Complexo da Maré, exposto abaixo), fato que sinaliza um caminho promissor para formas de governança que podem ser encorajadas na realidade pós-pandemia.

Como mencionado, as comunidades das favelas foram duramente atingidas pela depressão econômica causada pela pandemia. Muitos residentes não podem se dar ao luxo de interromper suas vidas profissionais e dependem do apoio do governo para garantir uma renda mínima em um momento crítico como o atual. A fome é o problema mais dramático enfrentado pelas famílias vulneráveis (Rede de Pesquisa Solidária, 2020) e o acesso a alimentos e produtos de higiene se torna essencial na luta contra a COVID-19. Sem eles, as famílias não podem ficar em casa, pelo menos não para sobreviver.

O contexto da pandemia afeta também os serviços públicos e projetos destinados às favelas, à medida que o mercado mundial entra em colapso e os fundos são direcionados à contenção da doença. O governo estadual do Rio de Janeiro, apesar de ser responsável pelas medidas de confinamento, restringiu consideravelmente o orçamento em meio à pandemia, o que afetou diretamente os gastos sociais relacionados à habitação e educação (FASE, 2020). O Fundo Estadual de Habitação Previdenciária, por exemplo, perdeu 29% de seu orçamento, o que poderia ter sido usado para melhorar as condições de enfrentamento nas favelas. O que é surpreendente é que, com exceção da saúde, o único setor não sujeito a cortes orçamentários foi o de Segurança Pública (Polícia Militar e Civil, Defesa Civil, Bombeiros e o Programa “Polícia Presente”), e as operações militares nas favelas continuaram a acontecer.

Dois casos são exemplares do enfrentamento à pandemia em comunidades faveladas por ilustrar experiências com base em recursos locais, sinalizando caminhos de governança multinível (Renata BICHIR, 2018) promissores ao pensarmos a realidade pós-pandêmica. Com forte protagonismo feminino e atuação centrada no aprendizado de ações sociais desenvolvidas antes da pandemia, podemos afirmar que os casos de Vila Autódromo e do Complexo da Maré são considerados significativos, sendo que os argumentos elencados abaixo iluminam tal afirmação.

No primeiro caso, a luta para enfrentar a atual crise incorporou muito do que foi aprendido durante a luta contra as remoções. Maria da Penha Macena, que é líder da comunidade desde então, considera que sua comunidade está menos necessitada do que seria não fosse um grupo tão pequeno de moradores - que permaneceram após a remoção de cerca de 700 famílias nos anos de preparação da cidade aos Jogos Olímpicos. No entanto, ela observa que o isolamento em que vivem é uma situação que os atormenta há anos. Embora antes da remoção o bairro tivesse mais habitantes, hoje o grupo que permaneceu se encontra sem acesso aos mercados locais e depende exclusivamente de transporte público ou privado para adquirir os produtos de que precisam para satisfazer até as necessidades diárias mais básicas. Além disso, muitos moradores dependem do que ganham com seu trabalho diário para sobreviver. Muitos deles solicitaram apoio de emergência do governo federal. Em uma tentativa de gerenciar sua falta de recursos, os moradores assumiram espaços de onde as famílias haviam sido removidas para plantar hortas que ajudam a evitar a fome. O Projeto “Troque o mato por alimento” começou em abril de 2020 e está firmemente enraizado em noções de coletividade e cuidado. Toda a comunidade apoia o plantio de alimentos, empreendimento que já começou a dar seus primeiros frutos.

Outro exemplo que se destaca é o do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, onde sobressai a atuação da Redes da Maré, uma organização de origem local, que propõe ações a partir das experiências de pessoas que nasceram e viveram na favela, e procura manter essa identidade ao longo dos anos. As ações de enfrentamento à pandemia exemplificam esta marca: o complexo de favelas tem uma população de 140.000 pessoas, e logo no início da crise, em março de 2020, a organização realizou um mapeamento das costureiras moradoras no conjunto de favelas e propôs a produção de trezentas mil máscaras, de forma a doar duas a cada morador e oferecer renda às mulheres. Tal ação vem ao encontro dos dilemas enfrentados pelas comunidades frente à pandemia, mencionadas no início da seção: as formas de mitigação defendidas pelo poder público não dialogam com a realidade dos moradores.

Além das ações mencionadas, a Redes da Maré realizou a distribuição de sete mil cestas básicas aos moradores, e refeições diárias para cerca de 100 pessoas que vivem nas ruas do Complexo de favelas, produzidas na casa das mulheres da Maré, mais uma vez oferecendo renda às cozinheiras e solucionando os problemas localmente. A organização, liderada por Eliana Souza, também tem realizado atividades de conscientização e disponibilizado atendimento via telefone aos moradores com dúvidas sobre a pandemia. Como ação voltada ao distanciamento social, a Redes da Maré organizou um concurso de fotografias das paisagens vistas através das casas da comunidade, denominado “A Maré em casa” (REDES DA MARÉ, 2020).

Ambos os exemplos são baseados no uso de forças e recursos locais - espaços verdes e coletividade, no caso da Vila Autódromo - e organização comunitária e diálogo externo, no caso da Maré. As líderes demonstraram um amplo conhecimento das necessidades locais e capacidade de responder rapidamente em tempos de crise. A liderança feminina em ambas as comunidades tem se preocupado muito com o fornecimento de pontos de venda com base em recursos locais, como visto. O exemplo da Maré já está sendo replicado em outras comunidades e a Vila Autódromo ainda é um exemplo de resistência, algo extremamente importante neste momento.

As duas localidades apresentadas já contavam com lideranças femininas antes da crise do Coronavírus, e sua atuação durante a pandemia vem do conhecimento da complexidade local e do amplo diálogo que estabelecem com a sociedade civil como um todo. As lideranças das favelas acionaram suas redes - universidades, organizações não-governamentais e instituições diversas - no apoio e financiamento das ações que propuseram.

Os casos mencionados, no entanto, devem ser analisados com cautela. Como mencionado desde o início do texto, as mulheres são as mais afetadas pela pandemia - e a literatura apresentada na introdução demonstra de forma abrangente os motivos para que isso ocorra -, mas isso não as alça necessariamente ao protagonismo no enfrentamento. Há ainda muita dificuldade em ocupar espaços de ação pública e decisórios pelas mulheres, e seu protagonismo deve ser compreendido dentro de uma ampla chave interpretativa. Assim como no protagonismo no enfrentamento à pandemia nas comunidades faveladas, as mulheres formam a maioria nos movimentos sociais de luta por moradia, “nos movimentos feministas, nos movimentos populares de luta por melhores condições de vida e trabalho e nas redes e fóruns transversais que ultrapassam as fronteiras nacionais” (Maria da Gloria GOHN, 2007) mas ainda não ocupam a maioria das cadeiras na política.

Maria da Gloria Gohn sugere que as atrizes dos movimentos sociais ainda não se tornaram protagonistas no sistema de representação político porque são invisibilizadas pelo sistema, num processo de inclusão de cima para baixo, exemplificado em sua categorização como beneficiárias de políticas públicas, por exemplo, algo que acaba por estigmatizar o papel das mulheres:

Temas fundamentais como liberdade, igualdade e diferença não são sequer considerados porque as mulheres são incorporadas nesses projetos visando apenas a gerar renda e condições econômicas de sobrevivência dentro de um modelo econômico que não está preocupado com a emancipação das mulheres como seres humanos em suas especificidades, ignorando a opressão e as discriminações a que são submetidas. (GOHN, 2007, p.60)

O reforço do estigma dialoga com a dificuldade exposta no início do artigo, acerca do reforço de privilégios operado pelo neoliberalismo. A pandemia, no entanto, mostrou-se como uma janela de oportunidades para que as mulheres que ocupam os espaços políticos mostrassem sua força. A partir da análise dos projetos de leis apresentados na Assembleia Legislativa da cidade do Rio de Janeiro e das ações propostas na Câmara de Vereadores, pode-se verificar que as mulheres da sociedade política foram protagonistas no combate ao Coronavírus, apontando a fatores similares aos expostos nesta seção, tais como a capacidade dialógica das ações das mulheres durante o período. Este é o tema da próxima seção.

O enfrentamento da pandemia na sociedade política

Como vimos nas seções anteriores, as mulheres foram as maiores prejudicadas com a pandemia. E talvez por essa razão, foram também as principais protagonistas no combate às consequências sociais da doença. O mesmo pode ser constatado quando analisamos as ações da sociedade política no Rio de Janeiro, em particular na ALERJ e na Câmara Municipal de Vereadores da capital.

Bom que se diga, essa análise se dá apenas em relação aos dois poderes legislativos. Afinal, o mesmo não poderia ser dito das três instâncias do Poder Executivo, prefeitura, governo do estado e presidência da República. Dirigidos por homens, os três entes federativos entraram em conflitos permanentes derivados da política eleitoral e que pouco contribuíram para a preservação da saúde da população. Num primeiro plano, o governador Wilson Witzel e o presidente Jair Bolsonaro disputaram publicamente as narrativas em torno do sentido da pandemia. Como pano de fundo do embate entre os dois atores estava o protagonismo para a disputa presidencial de 2022. Em meio ao embate de gigantes, o prefeito Marcelo Crivella, candidato à reeleição em novembro de 2020, optou pelo lado de Bolsonaro em troca de apoio à sua pretensão eleitoral. Bolsonaro e Crivella mantiveram posicionamentos mais próximos de um negacionismo científico, fomentando a falsa dicotomia entre economia e saúde, ao passo que Witzel esteve mais afeito às formulações de especialistas. Contudo, a fragilidade política de Witzel, que acabou submetido à um processo de impeachment na ALERJ, abriu espaço para o discurso negacionista de Crivella e Bolsonaro. O fato do Rio de Janeiro ser o estado com o maior número de mortos por 100 mil habitantes no país não é, portanto, um ato do destino, mas um efeito da gestão pública da crise. Assim, se não havia o que esperar do Poder Executivo, coube ao Poder Legislativo oferecer respostas mais diretas para o combate aos efeitos da pandemia.

Um mapeamento da produção legislativa da ALERJ no período, realizado a partir do site da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (2020), encontrou, em janeiro de 2021, 154 leis relativas ao enfrentamento da pandemia. Uma análise mais detalhada das ações da ALERJ revela bem o protagonismo das deputadas estaduais nessa agenda em defesa da saúde e do bem-estar da população. A Assembleia Legislativa é composta por 70 deputados, sendo apenas 11 mulheres. Mas, apesar de representarem somente 15,7% da casa, elas foram proporcionalmente mais ativas do que os homens na proposição de leis de enfrentamento ao Covid, sendo as principais autoras de quase 30% das leis. Do ponto de vista do espectro político e ideológico, é interessante notar que o recorte de gênero reconfigura a correlação de forças. Se a esquerda é minoria na totalidade da ALERJ, na bancada feminina, é a maioria. Das onze mulheres, seis estão em partidos de esquerda - PCdoB, PDT, PSOL e PT - e cinco em partidos de direita - MDB, PMB, PSD, PSDB e PSL.

Na ALERJ, um dos principais centros de formulação de ações contra a pandemia foi justamente a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, presidida pela deputada Enfermeira Rejane, do PCdoB. Aliás, das 154 leis aprovadas relativas ao combate da pandemia, 82 contaram com a coautoria da deputada Rejane. Já a vice-presidente da Comissão, a deputada Dani Monteiro, do PSOL, assinou 47 leis. A Comissão é formada ainda por outras três deputadas: Zeidan do PT, Alana Passos do PSL, e Lucinha do PSDB. Lucinha consta como coautora de 96 leis, Alana Passos de 67 e Zeidan de 60 leis. As suplentes na Comissão são as deputadas Martha Rocha do PDT, Marina Rocha do PMB, Franciane Motta do MDB e Renata Souza do PSOL. Martha Rocha foi coautora de 71 leis, Renata Souza de 67, Marina Rocha de 51 e Franciane Motta de 39. As duas deputadas que não fazem parte da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, Monica Francisco do PSOL e Rosane Felix do PSD, aparecem com 2 e com 41 assinaturas, respectivamente.

Alguns projetos de lei que passaram pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher2 merecem maior atenção por representarem, especificamente, as diversas formas que a pandemia atingiu às mulheres. Primeiro, o Projeto de Lei nº 2450/2020 de autoria original da deputada Rejane e que estabelece protocolo de prevenção e acolhimento nos casos de violência doméstica e familiar, contra mulheres e crianças, durante o estado de calamidade decretado em razão da pandemia do COVID-19. Esse projeto foi aprovado na ALERJ, sancionado pelo governador Wilson Witzel e se tornou a Lei 8907/2020. Como já dissemos, o aumento da violência doméstica foi uma das principais consequências para as mulheres no período da pandemia e por isso a importância da lei. Sob esse registro, também devem ser mencionadas a Lei 8950 da deputada Zeidan que autoriza a suspensão temporária de posse, porte e registro de armas de fogo a denunciados, inquiridos e réus em processo de violência doméstica, durante o período de pandemia e a Lei 8967 da deputada Monica Francisco, que dispõe sobre a afixação de cartazes nos condomínios, com informações sobre o atendimento à mulheres em situação de violência durante o período de isolamento social. Por outra via, deve ser ainda destacado o Projeto de Lei 2448/2020, da deputada Rejane, que autoriza o governo estadual a criar uma comissão interdisciplinar para analisar dados do impacto da epidemia do COVID-19 nas mulheres fluminenses. O PL foi aprovado pela ALERJ, mas o governo estadual não chegou a criar tal comissão.

Por óbvio, outro fórum que teve protagonismo foi a Comissão de Saúde que também é liderada por duas mulheres. A presidente da Comissão é a deputada Martha Rocha e sua vice é a deputada Enfermeira Rejane. Também são membros dessa comissão os deputados Rosenverg Reis do MDB, Jair Bittencourt do PP e Dr. Deodalto do DEM, além das já mencionadas Lucinha e Monica Francisco. Rosenverg consta como coautor de 33 leis, Deodalto de 53 e Bittencourt de 8. A ALERJ instituiu ainda uma comissão temporária para acompanhar a situação fiscal e a execução orçamentária e financeira das medidas relacionadas à pandemia. Assim como a de Saúde, essa comissão também foi presidida pela deputada Martha Rocha. Seu vice-presidente foi o deputado Dr. Serginho do PRB, coautor de 11 leis, e que no fim de 2020, foi nomeado Secretário de Ciência e Tecnologia do governo do estado.

Na Câmara Municipal de Vereadores do Rio de Janeiro, encontramos cerca de 130 projetos de lei que de algum modo possuem relação com a pandemia. Na Legislatura 2017-2020, dos 51 vereadores apenas 7 eram mulheres, ou seja, 14%, proporção bem parecida com a da ALERJ. Mas, ao contrário da ALERJ onde a maior parte das deputadas está localizada na esquerda do espectro político, entre as vereadoras apenas Luciana Novaes do PT é considerada de esquerda. Vale lembrar, a outra vereadora de esquerda na Câmara era Marielle Franco, do PSOL, assassinada em 2018.

Quando comparamos a Comissão de Defesa da Mulher da Câmara de Vereadores com a da ALERJ, percebemos um protagonismo bem menor. A presidente dessa comissão em 2020, Fátima, do Solidariedade, consta como coautora de 11 projetos de lei e sua vice-presidente, Veronica Costa, com 14 projetos. A outra participante da comissão, e que também é presidente da Comissão de Pessoa com Deficiência, Luciana Novaes, consta como coautora em 29 PLs. Presidente da Comissão de Finanças, Orçamento e Fiscalização Financeira, a vereadora Rosa Fernandes assinou 26 projetos. A vereadora Teresa Bergher foi a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos em 2020 e coautora de 25 PLs. Já a presidente da Comissão de Defesa do Consumidor, Vera Lins, foi coautora em 32 PLs. A vice-presidente da Câmara Municipal, Tânia Bastos, apareceu em 11 PLs.

Muitas das leis aprovadas que contaram com a participação de vereadoras dizem respeito à distribuição de equipamentos de proteção individual, os EPIs. É o caso, por exemplo, da Lei 6744 assinada por Luciana Novaes, Vera Lins e Verônica Costa, entre outros, que garante o fornecimento obrigatório de EPIs aos empregados de postos autorizados de revenda de combustíveis e lojas de conveniências durante a pandemia. Outro exemplo é o da Lei 6754, assinada por quase todas as vereadoras, que estabelece a obrigatoriedade de EPIs no município do Rio durante a pandemia, com o fornecimento pelos estabelecimentos públicos e privados.

Não há muitas dúvidas, portanto, de que no parlamento do Rio de Janeiro, seja na Câmara da capital, seja na ALERJ, as mulheres se apresentaram na linha de frente do combate à pandemia. Apesar de minoritárias, seus esforços foram redobrados e, consequentemente, a produtividade legislativa foi proporcionalmente maior do que a dos homens. Talvez por saberem que, sem suas ações, seriam justamente elas, as mulheres, as maiores vítimas da pandemia.

Considerações finais e caminhos de investigação

A pandemia de Coronavírus atingiu as mulheres brasileiras de forma especialmente violenta. As razões para os impactos terem sido tão intensos se deve a diversos fatores, dentre os quais, o papel majoritário das mulheres na chefia das famílias. A teoria apresentada na primeira parte deste artigo mostra como as desigualdades de gênero foram evidenciadas durante a crise provocada pela pandemia, expondo majoritariamente as mulheres, que ocupam lugar de vulnerabilidade na sociedade brasileira.

Por serem as mais impactadas e por ocuparem um lugar histórico de representação na sociedade civil, as mulheres se mostraram protagonistas no enfrentamento à pandemia. Os casos aqui apresentados são exemplares disso. As realidades observadas e pesquisadas na cidade do Rio de Janeiro, demonstram conexão entre o conhecimento das lideranças acerca da realidade local e o com diálogo com instituições parceiras. As ações desenvolvidas nas comunidades apontam a formas de governança, que precisam ser colocadas no centro das análises e pesquisas futuras.

A negligência do poder público institucional, destacando-se a do governo federal brasileiro, deixou de ser um vácuo e foi assumido pela sociedade civil em busca de sobrevivência. A sociedade política, por sua vez, se mostrou também espaço fundamental onde as mulheres têm agido na minimização dos impactos da pandemia.

Os dados e casos apresentados demonstram que futuras investigações precisam ser realizadas, de forma a explorar a liderança feminina na criação de espaços de governança possíveis na realidade brasileira. As práticas de enfrentamento e gerenciamento de crises já são realidade, como vimos, e demonstram um histórico de atuação constante das mulheres, tanto na sociedade civil quanto na política.

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1 As lideranças comunitárias foram entrevistadas durante o ano de 2020, no âmbito da pesquisa de uma das autoras do artigo.

2Os dados específicos referentes a esta Comissão foram solicitados à assessoria da deputada Enfermeira Rejane, que nos enviou a lista com os projetos de lei relativos à pandemia que passaram pela comissão.

3Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SANCHES, Taísa de Oliveira Amendola; RODRIGUES, Theofilo Codeço Machado; VERDIER, Larissa de Andrade. “Protagonismo feminino frente à pandemia de Coronavírus no Rio de Janeiro”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e79909, 2022

4Financiamento: Não se aplica

5Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

6Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 08 de Março de 2021; Revisado: 24 de Maio de 2022; Aceito: 28 de Junho de 2022

taisasanches@gmail.com

theofilomachadorodrigues@gmail.com

lari.verdier@gmail.com

Taísa de Oliveira Amendola Sanches (taisasanches@gmail.com) é pesquisadora de Pós-Doutorado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR- UFRJ), bolsista FAPERJ PDR10. Mestre e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Pesquisadora do Observatório das Metrópoles, núcleo Rio de Janeiro. Mantém interesse nas seguintes áreas: urbanismo, movimentos sociais, habitação, segregação socioespacial

Theófilo Codeço Machado Rodrigues (theofilomachadorodrigues@gmail.com) é doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio e Mestre em Ciência Política pela UFF. Atualmente realiza Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ com bolsa FAPERJ

Larissa de Andrade Verdier (lari.verdier@gmail.com) é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ. Graduada em Jornalismo pela UFF. Pesquisa temas relacionados à divisão sexual do trabalho, gênero e cuidado

Conflito de interesses: Não se aplica

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