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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.3 Florianópolis  2022  Epub 01-Set-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n385986 

Resenhas

Mulheres curdas, corpos-territórios em luta

Kurdish Women, struggling cuerpos-territorios

Mujeres Kurdas, cuerpos-territorios en lucha

Maria Florencia Guarche Ribeiro1 
http://orcid.org/0000-0001-5296-4387

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Porto Alegre, RS, Brasil. 90650-001 - atendimento-ppgifch@ufrgs.br

MAHMOUD, Houzan. Kurdish Women’s Stories. London: Pluto Press, 2021.


Embora pouco conhecido no Brasil, o povo curdo é um dos maiores povos sem Estado do mundo. Formado por aproximadamente 40 milhões de indivíduos, essa comunidade étnica encontra-se dividida entre os Estados da Síria, da Turquia, do Irã e do Iraque; além das mais de cinco milhões de pessoas dispersas na diáspora - sobretudo nos Estados Unidos e em países da Europa central, como a França, Alemanha, Bélgica e Holanda.

Apesar dos diversos levantes nacionalistas e da autonomia relativa conquistada nos territórios no Iraque, o Curdistão jamais conseguiu se unificar e se tornar independente. Diante disso, as populações curdas, autóctones dessa região, foram sendo violentamente assimiladas e sistematicamente negadas pelos processos de formação dos Estados-nação que ocupam o seu território.

Recentemente, os curdos - e sobretudo as mulheres curdas - tornaram-se conhecidas pela sua heroica atuação no combate a grupos extremistas islâmicos tais como o ISIS1 no Iraque e na Síria. As unidades de proteção femininas e seu protagonismo no enfrentamento aos terroristas islâmicos em meio à guerra civil síria chamou a atenção do mundo ocidental que, rapidamente, estampou em diversas capas de jornais a beleza e a bravura dessas mulheres com retratos de lindas jovens portando suas Kalachnikovs e usando lenços floridos típicos.

Contudo, para além dos estereótipos homogeneizantes e por vezes fetichistas de mulheres duronas2 (Dilar DIRIK, 2014) e destemidas, as mulheres curdas desenvolvem uma potente resistência que avança em direção a um projeto revolucionário de autodefesa e de libertação.

É no contexto dessas resistências cotidianas, nem sempre armadas ou publicizadas, que o livro Kurdish Women’s Stories (Houzan MAHMOUD, 2021) reúne histórias de um povo em luta. Histórias de Mulheres Curdas, em tradução livre, propõe uma jornada através das múltiplas e diversas experiências de resistência protagonizadas por mulheres comuns.

Além dos estereótipos que são impostos sobre suas identidades e resistências, Houzan Mahmoud nos convida a fazer contato com mulheres de cinco gerações, nascidas em diferentes partes dos territórios que compõem o Curdistão. Vivendo na Turquia, na Síria, no Irã ou no Iraque (países que cobrem territórios curdos); ou até mesmo migrantes na diáspora (Alemanha, França, Suécia, Noruega, Reino Unido, Holanda, Estados Unidos e Suíça), 25 mulheres apresentam parte dos resultados adquiridos em um poderoso processo de autorreflexão.

O que é uma mulher? Qual é o significado de se reconhecer como uma mulher curda? Em busca de respostas para essas perguntas, Houzan Mahmoud coordenou um projeto de “escrita de si” que convidou mulheres de diversas partes do Curdistão para escreverem sobre suas experiências de vida. Dessa forma, a trama do livro é tecida a partir de uma densa trama que mistura vivências individuais e coletivas. Cada história apresentada no livro transmite o relato de experiências pessoais que também falam sobre uma realidade compartilhada por milhões de mulheres dessa minoria marginalizada e sistematicamente violada em sua existência: o povo curdo. São histórias que versam sobre vivências - e sobrevivências - de habitar corpos e territórios atravessados pelo conflito e pela desapropriação.

É nesse sentido que o conceito e as metodologias do cuerpo-territorio trazido pelas feministas-comunitárias de Abya-Yala (Julieta PAREDES, 2010; Lorena CABNAL, 2010) ecoam além-mares e tecem diálogos com as mulheres do Curdistão. Em uma unidade ontológica, esses corpos-territórios se levantam em um ato de resistência rebelde que nomeia angústias, dores e lutas. Corpos em movimento que se reinventam e se tornam espaços possíveis de vida e liberdade. Corpos migrantes, guerrilheiros, que resistem e se impõem como as montanhas que emergem em seus territórios. São corpos e são territórios atravessados por conflitos, que se constituem como espaços de re-existência, representando a experiência vivida pelo povo curdo em mais de 100 anos de conflitos e genocídios.

Histórias de Mulheres Curdas (Kurdish Women’s Stories) são tecidas em uma complexa trama que as interliga com as histórias de um povo e de um território em luta cotidiana contra as forças assimilacionistas dos Estados-nação. Suas lutas, assim como aquelas travadas pelas mulheres indígenas nos territórios do Abya-Yala, são brechas que se impõem nas paredes do silêncio frente ao genocídio. São fissuras que se abrem e que nos convidam a observar lutas que estão além dos muros da negação e que nos apresentam a resistência de milhões de mulheres que à sua maneira, em seus tempos e espaços, constroem caminhos da luta feminista e antipatriarcal em meio à guerra.

Suas narrativas nos falam sobre coragem e resiliência, elementos fundadores das ações de resistência travadas por elas diante dos vários regimes políticos repressivos e autoritários que governam os corpos-territórios do Curdistão (Ba’ath na Síria e no Iraque, a República Islâmica no Irã e a presença do autoproclamado Estado Islâmico em Rojava3). Sua autodefinição e autorreconhecimento de se perceberem enquanto mulheres curdas sustenta a reivindicação de seus direitos como povo originário, habitante do território do Curdistão.

O livro é um convite que nos leva a refletir sobre o significado e os desafios relacionados com o ser mulher no coração do Oriente Médio. É o que nos diz Dashne Nariman, uma ativista política e escritora de Sulaymaniah (sul do Curdistão) quando expressa que “gostaria de falar sobre minha vida a partir do momento em que meu gênero se torna parte da minha identidade”4 (Dashne NARIMAN, 2021, p. 197). Com isso ela traz à tona a centralidade desse entendimento para sua vida.

Entendimento este que pode ser marcado pela ausência de autonomia e direitos, como nos revelam Bayan Saeed e Khanda Hameed através de seus relatos sobre as violências sofridas por elas quando meninas. Suas histórias expõem a realidade compartilhada por milhões de meninas e mulheres que têm seus corpos mutilados e seus destinos despojados por seus parentes. Seja como vítimas de casamentos forçados, de crimes de honra e/ou sofrendo mutilações genitais, essas mulheres se reinventam e resistem através de sua atuação política ou sendo ativistas em suas comunidades. Nesse sentido, Khanda Hameed expressa a importância de tornar o sofrimento das mulheres conhecidos a partir de suas próprias vozes. Segundo ela, essa é uma maneira de transformar a dor e mobilizá-la para uma direção positiva, onde todos nós podemos avançar em direção à nossa libertação.

Para além dos estereótipos orientalistas presentes nas narrativas hegemônicas sobre as mulheres curdas que as reduzem a simples vítimas ou a heroínas-guerrilheiras, essas histórias expressam a multiplicidade das experiências vividas a partir do território do Curdistão. Entre migrações forçadas, perseguições políticas, revoltas populares e guerras civis, suas vidas são atravessadas por inúmeros processos de resistência que se fundem em suas identidades, tanto como mulheres quanto enquanto curdas. Por essa razão se destaca a agência política das mulheres curdas em todas as histórias. Nota-se uma forte presença de militantes, ativistas, e organizações políticas. Exemplo dessa agência política são as histórias de Susan, Dashne, Farah, Nahiya, Nasrin, Khanda e Nafia, todas militantes e políticas de diferentes organizações curdas.

Ao começar com a história de Madre Sábria, de 72 anos, e terminar com a reflexão de Zhala, de 27, os 25 capítulos vão sendo tecidos com as experiências de cinco gerações de mulheres que se recusaram a sucumbir ao autoritarismo e que, à sua maneira, constroem uma memória positiva de seu povo. Cada uma, à sua maneira, tornam os lugares comuns e os cotidianos das mulheres em trincheiras de luta. Uma luta que vai além da defesa de si mesmas, mas que vivem seus corpos-territórios como uma extensão do seu Curdistão.

Sem romanizar o sofrimento, mas com o objetivo de reconhecer o poder transformador que a resiliência cultivada por essas mulheres manifesta, Houzan conduz as leitoras através de uma jornada cujo itinerário visita as quatro partes do Curdistão (Turquia, Síria, Irã e Iraque) e que nos conecta com a luta das mulheres de povos originários de diversas partes do mundo. Corpos-territórios em luta que podem ser resumidos pelo clamor de Sábria ao dizer que “transformei minha dor em amor por minha terra5” (MotherSÁBRIA; Amira MOHAMMED, 2021, p. 03).

Referências

CABNAL, Lorena. “Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala”. Momento de paro Tiempo de Rebelión, v. 116, 2010. Disponível em Disponível em https://elizabethruano.com/wp-content/uploads/2019/07/Cabnal-2010-Propuesta-de-Pensamiento-Epistemico-Mujeres-Indigenas.pdf . Acesso em 14/02/2022. [ Links ]

DIRIK, Dilar. “Western fascination with ‘badass’ Kurdish women. The media frenzy over the women fighting ISIL is bizarre, myopic, orientalist and cheapens an import”. Al Jazeera [online], v. 29, n. 10, 2014. Disponível em Disponível em https://www.aljazeera.com/opinions/2014/10/29/western-fascination-with-badass-kurdish-women . Acesso em 28/01/2022. [ Links ]

MAHMOUD, Houzan (Ed.). Kurdish Women’s Stories. London: Pluto Press, 2021. [ Links ]

NARIMAN, Dashne. “I Struggle for Two Types of Liberation: Gender and Human Liberation”. In: MAHMOUD, Houzan (Ed.). Kurdish Women’s Stories. London: Pluto Press, 2021, p. 197-202. [ Links ]

PAREDES, Julieta. “Hilando fino desde el feminismo indígena comunitario”. ESPINOSA, Yuderkys (Coord.). Aproximaciones críticas a las prácticas teóricas políticas del feminismo latinoamericano, v. 1, p. 117-120, 2010. [ Links ]

SÁBRIA, Mother; MOHAMMED, Amira. “Fort the Execution of My Son, I Did Not Cry; There Was Smoke Coming from My Soul”. In: MAHMOUD, Houzan (Ed.). Kurdish Women’s Stories. London: Pluto Press, 2021, p. 1-4. [ Links ]

1 Na sigla em inglês: Islamic State of Iraq and the Levant (Estado Islâmico do Iraque e do Levante).

2A expressão original utilizada por Dilar Dirik é: “‘badass’ Kurdish women”.

3Rojava, em idioma curdo: oeste ou pôr-do-sol. Território que corresponde ao Curdistão sírio, localizado ao norte da República Árabe.

4No original: “I would like to talk about my life from the moment my gender became a part of my identity.”

5No original: “I turned my pain into love for the homeland […]”.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: RIBEIRO, Maria Florencia Guarche. “Mulheres curdas, corpos-territórios em luta”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 3, e85986, 2022

Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 15 de Fevereiro de 2022; Aceito: 12 de Junho de 2022

maria.florencia@ufrgs.br; florenciaguarch@gmail.com

Maria Florencia Guarche Ribeiro (maria.florencia@ufrgs.br, florenciaguarch@gmail.com) é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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