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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub 01-Ene-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n183266 

Artigos

Cisgeneridade: um operador analítico no transfeminismo brasileiro

Cisgenderness: an analytical category in Brazilian transfeminism

Cisgeneridad: una categoría analítica en el transfeminismo brasileño

Ana Paula Silva Hining1  , concepção, levantamento bibliográfico, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados
http://orcid.org/0000-0003-2125-9401

Maria Juracy Filgueiras Toneli1  , concepção, discussão dos resultados, revisão do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-9311-5020

1Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-970 - ppgp@contato.ufsc.br


Resumo:

A noção de cisgeneridade, da maneira como é tematizada pelo transfeminismo brasileiro, mais do que marcar os sujeitos cuja identidade de gênero coincide com o sexo designado no nascimento, permite colocar sob análise crítica o funcionamento das normas que produzem a ideia de um sexo natural e estável. Assim, trata-se, sobretudo, de problematizar as formas por meio das quais a cisgeneridade funciona como norma, projetando-se como expressão verdadeira do sexo e organizando o domínio de inteligibilidade do gênero. Neste artigo, veremos como o pensamento transfeminista brasileiro utiliza a cisgeneridade como categoria analítica para discutir os modos como o sexo/gênero são produzidos mediante uma matriz normativa que segmenta as posições de gênero em modalidades dicotômicas de real/artificial, natural/construído.

Palavras-chave: cisgeneridade; cisnorma; transfeminismo; gênero; cisgênero

Abstract:

The notion of cisgenderness, as addressed by Brazilian transfeminism, more than marking subjects whose gender identity coincides with the sex assigned at birth, enables us to submit to critical analysis the functioning of the norms that produce the idea of a natural and stable sex. Thus, it is primarily a question of addressing the ways in which cisgenderness works as a norm, projecting itself as the true expression of sex and organizing the domain of gender intelligibility. This article will aproach how Brazilian transfeminist thinking uses cisgenderness as an analytical category to discuss the ways in which sex/gender are produced through a normative matrix that segregates gender positions into real/artificial, natural/constructed dichotomous modalities.

Keywords: Cisgenderness; Cisnormativity; Transfeminism; Gender; Cisgender

Resumén:

La noción de cisgeneridad, tematizada por el transfeminismo brasileño, más que marcar sujetos cuya identidad de género coincide con el sexo designado al nacer, permite un análisis crítico del funcionamiento de las normas que producen la idea de un natural y estable. Así, se trata sobre todo de problematizar las formas en las que la cisgeneridad funciona como norma, proyectándose como la verdadera expresión del sexo y organizando el dominio de la inteligibilidad de género. En este artículo, veremos cómo el pensamiento transfeminista brasileño utiliza la cisgeneridad como categoría analítica para discutir el modo como el sexo/género son producidos a través de una matriz normativa que segmenta las posiciones de género en modalidades dicotómicas real/artificial, natural/construido.

Palavras-clave: Cisgeneridad; Cisnorma; Transfeminismo; Género; Cisgénero

Introdução

A proposição transfeminista sobre a noção de cisgeneridade como operador analítico se insere em um amplo contexto de décadas de discussão no âmbito das teorias feministas e queer que colocaram em questão as noções de sexo, gênero, corpo, bem como questionaram o sujeito do feminismo e a estabilidade da categoria “mulheres”. Diversas críticas internas ao próprio movimento feminista - sobretudo por parte de mulheres negras, lésbicas, trans, pobres, periféricas na geopolítica - mostraram que, sob a pretensa universalidade da categoria “mulher”, escondem-se processos de exclusão e abjeção.

O transfeminismo, herdeiro desses movimentos de contestação do sujeito do feminismo, mostra como a cisgeneridade é uma construção social presumida cujo efeito é o apagamento das pessoas trans e a naturalização do gênero das pessoas cisgêneras. Há certas versões de feminilidade e masculinidade que são consideradas mais naturais e verdadeiras que outras, e o transfeminismo, ao usar a cisgeneridade como operador analítico, tem por objetivo problematizar a ontologia de gênero que fundamenta a naturalização das categorias “mulher” e “homem”, uma vez que essas não são autoevidentes, mas ficções normativas cujo modo de funcionar deve ser colocado sob análise.

O entendimento de que o sujeito (e o gênero) é construído socialmente tem se tornado cada vez mais aceito dentro das humanidades; o que significa essa construção social do sujeito, entretanto, e como ela se dá, permanecem um terreno de dissenso. Nos estudos de gênero, mais especificamente, essa aceitação talvez se expresse na célebre frase de Simone de Beauvoir (1967): “não se nasce mulher, torna-se”. Essa é uma máxima que permanece em disputa no campo feminista. Há, por exemplo, aquelas que advogam que o sujeito que se torna mulher é necessariamente portador de um “sexo feminino”; contudo, como apontou Judith Butler, Beauvoir nunca disse que esse sujeito que se torna mulher era “biologicamente fêmea” (2002, p. 12). E, como observou a transfeminista brasileira Amara Rodovalho (2017), quando pensada relativamente ao gênero das pessoas trans, a asserção da filósofa francesa apresenta ainda uma singularidade: “o ‘não se nasce, torna-se’ de Beauvoir assume um sentido todo particular em se tratando dessa categoria [trans], pois não existe a opção ‘nascer’ para nós, mas tão somente a opção ‘tornar-se’” (RODOVALHO, 2017, p. 370).

O que a máxima de Beauvoir quer dizer, parece-nos, é que todo gênero passa por um processo de construção social. Releituras feministas mais contemporâneas desse postulado, entre elas o transfeminismo, vêm insistindo na necessidade de radicalizar essa ideia em detrimento de um conceito de “construção social” que ainda ressoe um fundo de natureza que resiste a ser escrutinado. Se uma das tarefas da política feminista é encontrar linguagens que auxiliem a compreender os processos de construção do gênero, como a noção de cisgeneridade, tão cara ao transfeminismo brasileiro, pode contribuir para esse esforço? Quais concepções de sexo, corpo e gênero são invocadas e articuladas por este conceito?

Neste artigo, nossa proposta é apresentar a discussão sobre a noção de cisgeneridade sob a perspectiva do pensamento transfeminista brasileiro, explorando o uso da categoria como operador analítico para refletir sobre as políticas e práticas de produção do gênero. Abordaremos de que forma o transfeminismo brasileiro conceitua cisgeneridade e quais questionamentos mobilizam sua problematização; os aspectos que a caracterizam; a forma como o (cis)gênero é produzido por meio de práticas de autonaturalização e invisibilização de processos performativos; suas intersecções com a heteronorma e, por fim, sua implicação na noção normativa de humano.

O que é cisgeneridade ou como ela opera

Comumente, define-se cisgeneridade como a categoria que se refere à pessoa que se identifica com o gênero atribuído no nascimento, isto é, categoria que determina a qualidade de ser cisgênero. A pessoa cisgênera seria, então, aquela cujo sentimento de ser de um gênero coincide com o sexo designado no nascimento. Embora não seja incorreta, trata-se de uma definição redutora e restringir-se a ela seria admitir uma simplificação grosseira do conceito. É preciso olhar para o termo para além de sua faceta “descritiva”, na sua potencialidade em interrogar quais as operações de poder e regulações normativas que naturalizam as noções de “ser homem” e “ser mulher”. É possível definir a cisgeneridade sem questionar os discursos que a estabilizam e instituem?

Hailey Kaas (2012), autora transfeminista brasileira, em O que é cissexismo?, um dos primeiros textos transfeministas a ser publicado sobre a temática da cisgeneridade no Brasil, em 2012, abre a discussão com a seguinte definição:

Uma pessoa cis é uma pessoa na qual o sexo designado ao nascer + sentimento interno/subjetivo de sexo + gênero designado ao nascer + sentimento interno/subjetivo de gênero, estão “alinhados” (...) Uma pessoa cis é aquela que politicamente mantém um status de privilégio em detrimento das pessoas trans*, dentro da cisnorma. Ou seja, ela é politicamente vista como “alinhada” dentro de seu corpo e de seu gênero. (...) O alinhamento cis envolve um sentimento interno de congruência entre seu corpo (morfologia) e seu gênero, dentro de uma lógica onde o conjunto de performances é percebido como coerente. Em suma, é a pessoa que foi designada “homem” ou “mulher”, se sente bem com isso e é percebida e tratada socialmente (medicamente, juridicamente, politicamente) como tal (KAAS, 2012).

Neste trecho, Kaas enfatiza dois aspectos que caracterizam a cisgeneridade: para além do aspecto subjetivo da identificação do sujeito com as categorias de “mulher” e “homem”, sublinha a importância da forma como a pessoa é percebida socialmente. Para a autora (bem como para as demais transfeministas brasileiras que compõem a fundamentação teórica deste artigo), a cisgeneridade é uma “condição sobretudo política” cujo efeito de naturalização produz privilégios (KAAS, 2012). O objetivo transfeminista com o uso do termo não é, portanto, fixar a cisgeneridade como uma posição ontológica, mas, sim, nas palavras de Kaas, “evidenciar o caráter ilusório da naturalidade da categoria cis” (2012). Tal afirmação é importante pois mostra que, com o uso do conceito, não se adere ingenuamente a uma concepção essencialista de gênero. Esperamos, ao longo do texto, explicitar melhor o que quer dizer essa “condição política” de que fala Kaas.

Ainda neste trecho, Kaas (2012) define a pessoa cisgênera como aquela cujo sentimento de ser de um gênero é coerente e alinhado com o sexo assignado, mas logo faz uma ressalva: as categorias de gênero são instáveis e não é possível medir cisgeneridade, assim como não é possível medir transgeneridade. Desse modo, nem todas as pessoas cis se sentem plenamente alinhadas ou confortáveis com as categorias de homem ou mulher. Isso não quer dizer, porém, que sejam trans. Pessoas cis são aquelas que, a despeito da estabilidade do sentimento subjetivo de ser homem ou mulher, são percebidas e reconhecidas socialmente (medicamente, juridicamente, politicamente) como cisgêneras, guardando privilégios como tal (KAAS, 2012).

Yuretta Sant’Anna (2017) afirma que tanto pessoas cis quanto pessoas trans tensionam as noções de homem e mulher. A impossibilidade de identificação plena com essas categorias sugere que o processo de identificação é sempre um jogo de aceitação e rejeição na negociação com as normas, variando apenas na intensidade. Dessa forma, pessoas cisgêneras não são aquelas que habitam as categorias de homem e mulher sem contradições, inconformidades e/ou descontentamentos; são aquelas cujo reconhecimento como homens e mulheres é assegurado pelas normas de gênero que circunscrevem a inteligibilidade dos sujeitos (Beatriz BAGAGLI, 2018; SANT’ANNA, 2017). A noção de cisgeneridade, assim concebida, não descreve meramente a condição de um sujeito cuja convicção subjetiva de pertencer a um gênero vai ao encontro do sexo com o qual foi assignado (embora isso possa ocorrer). Como observou Rodovalho (2017), limitar o conceito ao processo subjetivo de autoidentificação retira a discussão do âmbito político das negociações coletivas acerca do gênero, como originalmente propõe o transfeminismo.

O que se busca expor mediante o uso dessa categoria de análise é que todos os corpos - cis ou trans - são lidos e regulados a partir de códigos de reconhecimento que os antecedem e lhes são exteriores, e, uma vez submetidos ao juízo dos olhares externos, são categorizados e hierarquizados a partir da régua da cisnorma, ou seja, da cisgeneridade presumida como a condição de normalidade e naturalidade a partir da qual todos os corpos são posicionados no campo social. Não se trata, pois, de expandir as estratégias de confinamento das possibilidades de existência como sujeitos generificados no mundo; demarcar a posição da cisgeneridade no campo do gênero diz respeito, sobretudo, ao aparato de verificação da normalidade e da verdade sexual que segmenta a população em normais/anormais, humanos/não humanos (ou menos humanos), e, em última análise, põe em evidência uma assimetria de poder.

O uso da palavra cis é também parte do esforço transfeminista em abandonar/recusar expressões problemáticas como “mulher/homem biológica/o”, “mulher/homem cromossômica/o”, “mulher/homem de verdade”, “mulher/homem normal”, “mulher/homem nascida/o”, dentre outras tão habitualmente usadas para se referir às pessoas que não são trans. Essas formas de nomeação se sustentam em um ideal de sexo pré-discursivo e, como efeito, naturalizam a posição da cisgeneridade. Esses termos são mobilizados pelo que a pesquisadora transfeminista viviane vergueiro1 chamou de “hierarquias de autenticidade” (2015, p. 47), pois têm por premissa a ideia de que o gênero cis seria inerentemente mais verdadeiro e natural que o trans, esse último lido como uma cópia da feminilidade e masculinidade verdadeiras e naturalmente intrínsecas às pessoas consideradas homens e mulheres biológicos. Para vergueiro, o uso do termo cisgeneridade pode permitir que se “desloque essa posição naturalizada da sua hierarquia superiorizada, hierarquia posta nesse patamar superior em relação com as identidades trans, por exemplo” (2014). No entanto, seria equivocado tomar o termo cisgeneridade como sinônimo ou mero substitutivo para qualquer um dos termos supracitados. Sua função não é oferecer um novo revestimento mais “politicamente correto”, mas sim uma nova linguagem que possibilite colocar em questão o próprio regime de verdade do sexo.

Conforme observa Raíssa Grimm (2016), a definição de homens e mulheres como “biológicos”, “naturais”, “verdadeiros” em contraposição à suposta “artificialidade” das pessoas trans, invisibiliza o processo de produção de gênero pelo qual todos sujeitos passam, pois presume que pessoas cisgêneras são naturalmente e espontaneamente seu próprio gênero. Nesse sentido, o uso da cisgeneridade como categoria de análise implica

mudar a forma como percebemos pessoas trans, mas mudar também a forma como percebemos e entendemos pessoas cisgêneras. Implica entender que a construção do seu sexo, do seu gênero são tão artificiais e fictícias quanto as nossas. (...) Mas, os lugares políticos dessas ficções e tecnologias são diferentes. É a partir desse entendimento que falarmos de “mulheres com pênis”, “homens com vagina” ganha sentido: não estamos buscando nos adequar aos seus conceitos sobre o que é ser mulher ou homem, estamos buscando transformar seus conceitos sobre o que significa ser “uma verdadeira mulher” ou “um verdadeiro homem”, para entendermos que essa verdade é algo que não existe para nenhuma de nós, a não ser no espaço da construção política das nossas narrativas (GRIMM, 2016, grifos da autora).

Portanto, o termo cis permite abandonar denominações como mulher e homem “verdadeiros” ou “biológicos” porque a nomeação desse padrão de existência expõe o mecanismo normativo que encobre a produção discursiva do gênero tido como natural. Insistir nessas denominações supostamente empíricas “sob o argumento de que há uma facticidade inquestionável, é reiterar performativamente a própria rigidez associada ao que se entende como corpo” (Felipe DEMETRI, 2018, p. 55). A designação “cisgeneridade” abre espaço para outro fluxo de inteligibilidade no qual corpos cis e trans diferem tão somente em termos de legitimidade política e não em termos ontológicos. E a caracterização de uma pessoa como “verdadeira” ou “biológica” perde o sentido, na medida em que todas as pessoas são verdadeiras e biológicas, afinal, todos existimos e somos feitos de substrato biológico (BAGAGLI, 2014e). Em outras palavras, formulações como “mulher/homem biológica/o, verdadeira/o, nascida/o” não são sinônimos da formulação “mulher/homem cisgênera/o”. Enquanto as primeiras são reiterações performativas de uma ontologia essencialista que localiza o sexo fora do discurso, a segunda expõe a forma como a norma oculta sua própria operação discursiva, cujo efeito é a aparência de um sexo natural, e evidencia que as categorias “homem” e “mulher” só adquirem coerência mediante um processo de (auto)naturalização.

Cabe, antes de prosseguir, questionarmos o que significa utilizar a cisgeneridade como operador conceitual do ponto de vista da ontologia do gênero. No Brasil, muitos pesquisadores e intelectuais (sobretudo cisgêneros) foram críticos ao termo, argumentando que ele pressupõe aderência a uma perspectiva essencialista, identitária e binária de gênero. Talvez o exemplo mais conhecido deste conjunto de textos críticos seja o da professora Carla Rodrigues (2014), “O (cis)gênero não existe”, em que a autora afirma que usar a cisgeneridade como categoria analítica apenas reforça a dicotomização entre sexo e gênero. Seguindo esse raciocínio, alguém poderia argumentar que a mobilização teórica da categoria de cisgeneridade mantém as noções de sexo e gênero em campos diametralmente opostos de natureza e cultura, respectivamente. Se se toma por pressuposto a teoria butleriana - segundo a qual todo sexo é produzido, pois é efeito da repetição coercitiva de normas que agem de modo a materializar o sexo no corpo (BUTLER, 1993a) - não seria contraproducente, então, afirmar a cisgeneridade? Seu uso como operador analítico não correria o risco de reforçar a ideia de que há um gênero que é distinto do sexo, porém derivado e definido em função dele, e, logo, reanimar a lógica dicotômica que o fundamenta? Fazer uso da cisgeneridade como categoria analítica não acabaria por atualizar a própria política essencialista a que o transfeminismo se opõe? É possível que haja tais riscos, mas somente se o conceito de cisgeneridade for operado de maneira superficial e redutora. Embora não seja possível esgotar tais questões no escopo de um artigo, buscaremos mostrar os caminhos teóricos percorridos pelo transfeminismo brasileiro para contornar essas apropriações superficiais.

Talvez seja necessário, então, modificar os termos do debate. Parece-nos que a polêmica em torno do termo cis situa a problemática como se a questão primordial fosse “o que é cisgeneridade?” e, de fato, em um certo sentido, é. Mas a questão, assim posta, prefigura uma resposta cujo resultado seria a descrição de uma identidade substantiva. Perguntar “o que é?”, em certa medida, contradiz os pressupostos sobre os quais o transfeminismo se fundamenta, pois o uso do verbo “ser” sugere que há uma substância ou atributos intrínsecos à cisgeneridade a serem buscados, insinuando, implicitamente, ser o gênero ele mesmo portador de uma realidade substantiva ou identidade essencial. Assim, “o que é a cisgeneridade?” se revela uma falsa questão, na medida em que o debate que o transfeminismo incita desloca a questão da metafísica tradicional para pensar os aspectos produtivos e de funcionamento do gênero. Analisando o conjunto teórico transfeminista brasileiro, vê-se que a pergunta ganha outros contornos e se desdobra em outra mais bem colocada: “o que é cisgeneridade?” transforma-se, genericamente, em “como a cisgeneridade funciona como matriz normativa?”, ou, mais especificamente, como as práticas reguladoras da produção do gênero produzem a identidade e o efeito de coerência interna da cisgeneridade? Sob que condições políticas e discursivas a cisgeneridade foi produzida como a expressão verdadeira do sexo?

Quando se estuda a produção teórica transfeminista brasileira o que se encontra é a problematização da economia discursiva da verdade sobre o sexo para a qual certas configurações de gênero aparecem como mais legítimas e autênticas que outras. vergueiro (2015), em seus trabalhos, por exemplo, questiona como as hierarquias de autenticidade são mobilizadas pela cisgeneridade. Bagagli (2014b; 2014e; 2015), por sua vez, se debruça sobre a forma como a cisgeneridade estrutura o campo de inteligibilidade e baliza os sentidos que atribuímos às noções de “ser mulher” e “ser homem”. Helena Vieira2 interroga-se como os discursos da verdade sobre o sexo instituem as relações de poder entre os sujeitos no mundo (BAGAGLI; VIEIRA, 2018). Assim, de diferentes maneiras, as autoras transfeministas brasileiras, como as mencionadas, usam a cisgeneridade como operador analítico para problematizar o domínio de inteligibilidade do gênero e o regime de verdade que oblitera a possibilidade de certos sujeitos terem seus gêneros reconhecidos como legítimos.

Pré-discursividade, binariedade e permanência: os três eixos da cisgeneridade

vergueiro (2015), em sua dissertação de mestrado intitulada “Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade”,3 sistematiza três traços interdependentes que caracterizam a cisgeneridade: a pré-discursividade, a binariedade e a permanência dos gêneros. Para a pesquisadora, “a construção discursiva destes traços como constituintes dos gêneros naturais, normais, verdadeiros e ideais - com a consequente estigmatização, marginalização e desumanização de gêneros inconformes” (vergueiro, 2015, p. 61), são o que caracteriza a atuação da cisgeneridade como norma, ou, a cisnormatividade. Com essa sistematização, a pesquisadora oferece um quadro conceitual abrangente que permite ver como a cisgeneridade naturaliza a si mesma e atua como norma produtora de um campo de inteligibilidade e coerência para os corpos.

A pré-discursividade, conforme argumenta vergueiro (2015), pode ser compreendida como o entendimento sociocultural de que o sexo e o gênero de um sujeito podem ser definidos de maneira objetiva, a despeito do contexto interseccional e sociocultural em que se encontram. A leitura do sexo como um dado inequívoco e factível, como realidade empírica - “macho ou fêmea”, “masculino ou feminino” -, situa-o em um domínio pré-discursivo, como se fosse possível recorrer a um sexo que se localiza aquém ou além das relações de poder e da economia discursiva que constitui o gênero (vergueiro, 2015). Pensar o corpo e o sexo dentro dos limites do discurso, em vez de considerá-los atributos pré-discursivos, não significa desconsiderar sua dimensão material, mas sim entender que o corpo só pode ser pensado segundo uma matriz de inteligibilidade cultural dentro e a partir da qual ele é significado (BUTLER, 1993a).

Para analisar como a pré-discursividade constitui um aspecto fundamental da cisgeneridade, vergueiro afirma ser necessário problematizar isso que entendemos por “sexo”. Para a pesquisadora, a “sustentação desta verdade supostamente natural - apesar da impossibilidade objetiva de sua definição - evidencia como esta atribuição de sexos é inserida em um projeto colonial pensado para a manutenção de instituições e valores como ‘família’ e ‘reprodutibilidade’” (vergueiro, 2015, p. 62). Uma das formas de produção da cisgeneridade como norma é precisamente pela naturalização da noção de sexo “biológico” em oposição ao gênero “cultural”. No entanto, como argumenta Butler (1993a), a quem a autora faz referência, sexo não é uma superfície neutra anterior ao discurso sobre a qual o gênero imprime sua marca; a noção de sexo como pré-discursivo é, na verdade, um efeito do próprio discurso. Nesse sentido, para vergueiro (2015, p. 63),

a necessidade cistêmica de defender a categoria de “sexo” corresponde, assim, à defesa da “naturalidade”, da “materialidade” verificável da pré-discursividade da cisgeneridade, que é também a defesa de certas leituras e valores ocidentais e eurocêntricos. Seja como uma diferenciação pênis-vagina supostamente científica ou como uma análise complexa da morfologia, níveis hormonais e carga cromossômica de uma pessoa, a pré-discursividade cisnormativa localiza em certas partes do corpo uma determinada verdade sobre corpos humanos.

A ideia de “desígnio de gênero/sexo” em contraponto à ideia de “sexo biológico” é outra importante ferramenta conceitual do transfeminismo para retirar o sexo do domínio pré-discursivo. Conforme Kaas (2012), o desígnio é “o conjunto de práticas que envolvem a generificação de sujeitos por meio da nomeação de morfologias e a expectativa de gênero atrelada ao nascituro”. Afirmar que as pessoas têm seu gênero/sexo designado, em vez de afirmar que nascem com um sexo, é entender que existem práticas sociais e discursos que regulam a inteligibilidade deste novo corpo que nasce, e que seu sexo não é um dado meramente constatável, mas sim um ideal regulatório que se constitui mediante tais práticas e discursos (sobretudo biomédicos). Bagagli afirma que “a cisgeneridade interpela o sujeito em seu desígnio de sexo” (2014d). Para Bagagli, a designação do sexo é naturalizada ou vista como inexistente porque a cisgeneridade atua como produtora de evidências sobre o sexo, ou seja, é ela quem confere ao sexo o efeito de pré-discursivo. Por meio do discurso biomédico, a cisgeneridade mobiliza o desígnio de gênero como evidência de que os sujeitos são, inequivocamente, ou do sexo feminino, ou do sexo masculino (BAGAGLI, 2017). O fato de que esse desígnio não seja percebido como desígnio, mas como constatação de uma verdade inequívoca, demonstra como o sexo concebido como pré-discursivo representa a naturalização do destino da cisgeneridade (BAGAGLI, 2017).

O segundo traço que caracteriza a cisgeneridade, segundo vergueiro (2015), é a binariedade. Esse aspecto garante o enquadramento binário dentro e a partir do qual os corpos serão lidos. Isto é, pressupõe-se que há, objetivamente, dois sexos/gêneros possíveis que existem naturalmente em oposição e complementaridade um ao outro: macho/homem e fêmea/mulher. A concepção dimórfica do sexo opera, conforme argumenta a autora, a partir de um alinhamento com um modo eurocêntrico de pensamento - caracterizado por dualismos e pares opositores - que encerra a diversidade corporal dentro de um esquema binário e oculta as relações de poder que o engendram (vergueiro, 2015).

Se por um lado aqueles que não são inteligíveis tensionam e expõem os limites desse sistema binário, por outro lado, esses mesmos sujeitos se veem mais expostos à violência cisnormativa que disciplina seus corpos de forma a manter as divisões rígidas de gênero (vergueiro, 2015). Kaas (2012) chama atenção para o modo como a norma cisgênera binária perpassa o aparato psi - psicologia e psiquiatria - ao qual pessoas trans devem se submeter para acessar serviços e direitos como hormonioterapia, cirurgias e alteração de registro civil. Conforme a autora, para conseguir o laudo psiquiátrico que atesta a “transexualidade verdadeira”, mulheres e homens trans devem corresponder às expectativas caricaturais e cisheteronormativas do que é uma mulher ou um homem. Ou seja, para obter o laudo psiquiátrico, pessoas trans precisam estar em conformidade precisamente com aquelas normas binárias às quais elas já não haviam se adequado, normas essas que as colocaram sob signo do desvio e da patologia, e a serem tuteladas pelos saberes médico e psi. A ironia da cena explicita a forma paradoxal como as normas funcionam: estar excluído da norma não faz com que se deixe de ser definido em relação a ela (BUTLER, 2004).

O terceiro e último traço que caracteriza a cisgeneridade, segundo vergueiro (2015, p. 65-66), é a permanência:

A premissa de que corpos “normais”, “ideais” ou “padrão” apresentam uma certa coerência fisiológica e psicológica em termos de seus pertencimentos a uma ou outra categoria de “sexo biológico”, e que tal coerência se manifeste nas expressões e identificações vistas como “adequadas” para cada corpo de maneira consistente através da vida de uma pessoa.

A permanência remete à fantasia cisnormativa de imutabilidade e estabilidade do gênero, como se esse derivasse de um núcleo interno, preestabelecido e contínuo. Se um corpo é designado mulher ao nascer, esse desígnio se torna a verdade de seu sexo, e essa verdade, do ponto de vista da cisgeneridade, é imutável. vergueiro afirma que o imperativo de permanência e estabilidade atravessa a noção de “desvio” atribuída às identidades inconformes, e produz interdições no acesso a direitos de pessoas trans, como alteração de documentos e cirurgias. Bagagli (2014b), por sua vez, argumentaria que mais do que acesso a direitos, esse imperativo cisnormativo de permanência produz interdições à própria legitimação do status ontológico da pessoa trans.

O entendimento do gênero como um atributo permanente de um sujeito reforça implicitamente uma concepção essencialista e substantiva do gênero. vergueiro novamente dialoga com Butler, e contrapõe esse entendimento rígido com a noção de performatividade de gênero da filósofa. Para Butler (2002), dizer que o gênero é performativo significa dizer que ele não é a expressão de uma realidade ontológica predeterminada ou de um núcleo original de um sujeito, senão que é efeito da repetição ritualística de normas que, por meio da imitação convincente de um ideal normativo, cria a ilusão de um núcleo fundador, original. Gênero não é algo que alguém possui ou uma verdade interior que se expressa, mas um processo complexo de repetição performativa que se dá na superfície, no gesto, no ato, na pele; gênero não é, portanto, algo que alguém “é”, mas sim algo que se produz performativamente mediante práticas imitativas e repetitivas no curso do tempo (BUTLER, 1993b).

Se o gênero é performativo, então o aparente núcleo interno que garantiria a permanência do gênero é, na verdade, não a causa, mas o efeito da reiteração performativa de normas. Nesse sentido, vergueiro (2015) argumenta que, se não há núcleo original, então a verdade imutável da cisgeneridade é somente uma ficção, uma fantasia de permanência que atua como dispositivo de poder regulador que extermina, controla e cerceia as diversidades corporais e de gênero.

Estes três traços que compõem a cisgeneridade - a presunção da pré-discursividade do sexo, o esquema binário de interpretação do sexo/gênero e a ficção de permanência ou núcleo substantivo - produzem-na como uma norma que governa a inteligibilidade do gênero em que sujeitos cisgêneros são lidos como os portadores da verdade legítima do sexo, e aqueles cujo sexo/gênero é inconforme são lançados em zonas de abjeção onde se veem interditados de status ontológico. A tematização da cisgeneridade a partir destes três traços, elaborada por vergueiro (2015), é importante não só do ponto de vista teórico - afinal, a autora elucida alguns pressupostos com os quais o transfeminismo trabalha para desenvolver o conceito -, mas também do ponto de vista da disputa sobre o termo. Como vimos, as críticas mais frequentes destinadas ao conceito afirmam que ele pressupõe uma concepção essencialista e binária de gênero. vergueiro (2014), então, toma estas críticas e faz delas os eixos de fundamentação do conceito, no intento de demonstrar como a noção de cisgeneridade é elaborada precisamente a partir de críticas à ideia de sexo pré-discursivo, binário e estável.

A produção da cisgeneridade

A noção de cisgeneridade, segundo o transfeminismo, tem por objetivo desmontar a ideia de que pessoas cis simplesmente são o seu gênero (Beatriz GUIMARÃES, 2013). Um dos pontos-chave do conceito consiste em equiparar as formas de ser homem e ser mulher no mundo, colocando ênfase no processo discursivo, técnico e performativo de produção de todas as apresentações de gênero, mesmo aquelas consideradas “normais” ou “naturais” (BAGAGLI; VIEIRA, 2018). Assim, uma implicação fundamental do conceito é de que todas as pessoas produzem seu gênero, inclusive aquelas posições de gênero cujo processo de produção é invisibilizado e o sujeito não reconhece os meios discursivos e tecnológicos de sua constituição.

A noção de cisgeneridade opera, no campo da linguagem, um primeiro corte-denúncia: o gênero, tomado por normal, é também construído, portanto, as pessoas não trans, assim como as trans, se identificam com o gênero que professam. Dizer “eu sou homem” ou “eu sou mulher” não é mais uma simples constatação de um dado da natureza, mas uma sentença que indica “me sinto confortável em algum nível com essa identidade, ainda que eu recuse os estereótipos que se produzem sobre ela” (BAGAGLI; VIEIRA, 2018, p. 360).

Isso envolve compreender que há uma certa visibilidade seletiva operando no gênero. Só se vê a marca do gênero nas identidades consideradas desviantes, nas quais a percepção social vê artificialidade e negação da sua verdade proveniente. Na configuração cisgênera, o gênero se dissimula de natureza e encobre o processo de sua produção e identificação. Bagagli (2015) afirma que é somente a partir dos supostos trânsitos de gênero - isto é, posições e identidades trans - que o gênero se torna visível; na posição cisgênera, o gênero é invisibilizado e transparente, apreendido como o “estado natural das coisas”. Vale ressaltar que outros autores como Butler (1993a; 1993b; 2002; 2004) e Paul Preciado (2018b) já denunciavam a artificialidade dos processos de produção de gênero, ainda que não operassem com a categoria cisgeneridade, incorporando, em suas análises, também, outros desvios das normas de gênero para além das identidades trans. É a inserção da terminologia cis neste quadro conceitual e, por consequência, uma nova perspectiva de análise, a contribuição do pensamento transfeminista.

Com a cisgeneridade como categoria de análise, busca-se problematizar essa economia de visibilidade do gênero, destacando o processo de construção de toda identidade, e denunciando, sobretudo, os efeitos de naturalização que constituem a cisgeneridade. Kaas (2014), remetendo-se à máxima beauvoiriana, escreve: “Tornar-se transgênero é categoria nosológica, tornar-se cisgênero é natureza. Tornar-se transgênero é a pedra no caminho, tornar-se cisgênero é o próprio caminho”.

A invisibilização da produção do gênero na cisgeneridade acaba por projetar sobre a transexualidade imagens de desvio, trânsito e transgressão, ideias essas a partir das quais a transexualidade foi amplamente debatida, e que fizeram dela, em certas leituras, o exemplo paradigmático de fluidez do gênero. Ao projetar essas imagens sobre as experiências trans, porém, corre-se o risco de reiterar a suposta fixidez da cisgeneridade e, implicitamente, fixar o sexo como dado pré-discursivo. Lucas Besen (2018), em sua tese, transcreve a fala de Eric, um homem trans, em um evento sobre transmasculinidades, onde ele diz:

Eu estou cansado de ver pesquisadores pensando as pessoas trans como o local do fluído. Ok, entendemos. Contudo, quando é que vamos parar para pesquisar a fixidez das pessoas cis? Afinal de contas, o que é um pênis? O que comporia uma masculinidade sem pênis se não a fixidez cis que determina o que é um pênis? Eu não tenho um pênis? (Eric apud Lucas BESEN, 2018, p. 32).

A incorporação da noção de cisgeneridade (usualmente ausente nos estudos sobre transexualidade) permite deslocar as questões que norteiam as pesquisas sobre o tema, pois fratura a estrutura epistemológica que até então tomava somente a transexualidade como objeto de análise. Besen (2018), interpelado pela fala de Eric, observa que é a não problematização do estatuto de fixidez da cisgeneridade como uma condição naturalizada que imprime sobre a transexualidade a ideia de fluidez, e que essa estrutura que posiciona a cisgeneridade como identidade coerente e estável é a mesma que impede essa identificação para uma pessoa trans. Isto é, é a própria integridade e legitimidade da identidade trans que se vê interditada por uma estrutura que segmenta as posições de gênero em modalidades dicotômicas de fixo/fluido, real/artificial, natural/construído.

Eric coloca em questão a forma como a cisgeneridade regula a inteligibilidade da materialidade do sexo, determinando o que é ou não um pênis, e o que é, portanto, legítimo ou não como masculinidade. Se a masculinidade trans é definida em termos de ausência (do pênis), é porque os critérios que estão em funcionamento estão vinculados a um quadro referencial cisgênero. A fala de Eric remete à inversão efetuada por Preciado (2018a), que afirma que o pênis é um dildo de carne, e não o contrário. O que Eric quer dizer, parece-nos, é que, na significação da transexualidade como local da fluidez, subjaz a significação da cisgeneridade como local da fixidez, e isso é problemático, pois faz circular uma série de pressupostos que materializam a norma cisgênera nos corpos, e desautorizam a masculinidade trans como masculinidade legítima.4

As análises sobre o gênero que tomam como ponto de partida a “fluidez” das trans e travestilidades acabam, portanto, correndo risco de reinscrever a cisgeneridade no local de origem, como se houvesse um estado bruto no qual se permanece ou do qual se desloca, reforçando uma certa ideia de verdade ou natureza do sexo. O argumento transfeminista sugere que tanto o lugar de origem quanto o trânsito são ficções cissexistas. Aqui reside uma das justificativas da necessidade de nomear a cisgeneridade. Conforme Bagagli (2014c), quando não se nomeia esse lugar fictício de origem, a transexualidade segue sendo remetida como Outro de algo, cujo nome está recalcado, e cuja força produtiva deriva precisamente desse recalcamento. Bagagli (2014e) argumenta que o significante cis é muito produtivo justamente na sua ausência - denominações como “mulher biológica/nascida/verdadeira” são maneiras como o significante cis produz sentidos por meio do próprio recalcamento. A nomeação da cisgeneridade é, desse modo, estratégica, pois coloca em questão aquilo que até o momento “funcionava pelo próprio mascaramento”, isto é, aquilo que até então era lido como “‘natural’ e ‘normal’ e, portanto, intocável epistemologicamente’” (BAGAGLI, 2018).

Uma das dificuldades em se reconhecer o gênero das pessoas trans como legítimo, segundo Vieira, está relacionada com a dicotomia natural/artificial (BAGAGLI; VIEIRA, 2018). A autora mostra como essa hierarquia condiciona os juízos sobre a mulheridade de mulheres trans, e traz como exemplo alguns comentários bastante comuns em sua experiência: de que não importa quantas cirurgias uma mulher trans faça, quantos hormônios ela tome, ou até mesmo o quanto ela “se pareça com uma mulher”, ela nunca será uma mulher de verdade. A noção de verdadeiro é remetida ao campo da natureza, daquilo que existe supostamente sem interferência humana e tecnológica, ao passo que o gênero da mulher trans é lido como falsificação, artificialidade (BAGAGLI; VIEIRA, 2018). A noção de cisgeneridade serviria, portanto, para denunciar que não somente o gênero da mulher trans é construído por meio de processos performativos e tecnologias sociais; o gênero da mulher “nascida mulher” também é uma construção que se inscreve no mundo como uma “ficção política encarnada” (BAGAGLI; VIEIRA, 2018, p. 359). Ou seja, não é que a cisgeneridade seja mais verdadeira, natural ou menos artificial que a transgeneridade, senão que ela é investida de uma ideia ilusória de natureza. A cisgeneridade é uma produção performativa mascarada de natureza. Isso leva Vieira a concluir, em um sentido reminiscente a Preciado, que “a produção de todo corpo é tecnológica. As identidades são tecnologias sociais que operam sobre os corpos para a manutenção deste ou daquele sistema de mundo” (BAGAGLI; VIEIRA, 2018, p. 362).

Para Butler, “quando uma apresentação de gênero se considera autêntica e outra uma falsificação, pode-se chegar à conclusão de que uma certa ontologia de gênero está condicionando esses juízos”5 (2004, p. 214, tradução nossa). No entanto, ressalva a autora, na sequência, a própria performatividade pode fazer com que essa ontologia entre em crise e que esses juízos se tornem inviáveis (BUTLER, 2004). A crítica transfeminista parece perturbar algumas certezas que permeiam o horizonte ontológico do gênero, e seus argumentos têm consequências e implicações para além das identidades trans. Não se trata, na perspectiva transfeminista, de incorporar os gêneros inconformes em uma ontologia exclusivista, mas, sim, de alterar os termos do regime de verdade que condicionam os enquadramentos dessa ontologia. Isso implica recusar aquelas modalidades de reconhecimento precário e frágil das identidades trans que justificam esse reconhecimento por meio de argumentações que recorrem ao mesmo regime de verdade do sexo que se busca contestar. Como exemplo disso, poderíamos pensar naquelas concepções de transexualidade que, por meio da disjunção corpo/mente, compreendem-na como uma realidade psíquica do sujeito que se opõe à verdade do seu sexo, ou então aquelas que afirmam que uma mulher trans é aquela que “se sente” uma mulher, mas não “é” efetivamente uma, com a força do verbo ser. Nesses raciocínios, a premissa é de que, apesar das suas “identidades psíquicas”, pessoas trans são uma espécie de falsificação pois “não são capazes de sustentar seus gêneros através de seus corpos” (BAGAGLI, 2014f). Tais concepções podem até oferecer alguma forma de legitimidade, e, com efeito, ocasionalmente, é com base nelas que se promovem alguns direitos, como hormonioterapia e cirurgias. No entanto, elas seguem aprisionadas à “epistemologia da cisgeneridade” (BAGAGLI, 2014c), e o reconhecimento que oferecem é, em razão disso, precário e limitado (se não ilusório).

A centralidade da noção de cisgeneridade nas reivindicações teóricas e políticas transfeministas reside justamente na necessidade de mostrar de que maneira ela atua como princípio organizador do domínio de inteligibilidade de gênero; e que não é suficiente (e não é oportuno, principalmente) encontrar formas de adequar pessoas trans a esquemas de inteligibilidade já dados de antemão (GRIMM, 2016). O exercício crítico do transfeminismo nos convoca, sobretudo, a subverter os termos que determinam os limites desse domínio de inteligibilidade, os limites do que é considerado um gênero real ou irreal, legítimo ou ilegítimo. A questão de quem é considerado real e verdadeiro é uma questão de poder: “mostrar a ‘verdade’ e a ‘realidade’ é uma prerrogativa enormemente poderosa dentro do mundo social, uma forma pela qual o poder se dissimula como ontologia” (BUTLER, 2004, p. 215, tradução nossa).6 Nesse sentido, são os próprios pressupostos ontológicos que instituem o gênero e as relações de poder por ele engendradas que são interpelados pela crítica transfeminista. A problematização da cisgeneridade sugere que as premissas ontológicas que organizam o mundo gendrado estão suscetíveis à transformação; e se toda realidade de gênero é engendrada por tecnologias de produção, práticas sociais de identificação e processos performativos, então, a rigor, não há distinção ontológica entre cis e trans (GRIMM, 2015; GUIMARÃES, 2013; vergueiro, 2015). A hierarquia de autenticidade que atravessa essas duas categorias é tão somente o resultado de uma assimetria de poder. Assim, é o (cis)gênero que não sai ileso da crítica transfeminista. Vieira resume da seguinte forma:

Como as verdades sobre o gênero e o corpo estabilizam as relações de poder no mundo? Produzindo para as desigualdades uma natureza e uma ontologia e tirando delas, portanto, sua relação com a produção social e a agência humana. O transfeminismo, nesse contexto, borra o gênero, o sustentáculo das relações de poder. Portanto, o transfeminismo é uma emergência político-epistemológica para além das demandas das pessoas trans, colaborando para a construção de uma nova forma de estar no mundo, novas relações com o desejo, o corpo, as identidades e as categorias de intelecção com o real (BAGAGLI; VIEIRA, 2018, p. 366, grifo nosso).

Toda cisgeneridade é a mesma? Articulações entre hetero e cisnorma

Helena Vieira é autora de um texto curto intitulado “Toda cisgeneridade é a mesma? Subalternidade nas experiências normativas”. Nele, a autora nos convida a uma reflexão em que propõe examinar a cisgeneridade em suas nuances, nas suas articulações com a heterossexualidade. Afinal, como observa Vieira (2015), a separação entre orientação sexual e identidade de gênero, apesar de necessária e didática, não deve limitar o enquadramento de nossas análises, uma vez que nenhuma pessoa se apresenta ora desde sua orientação sexual, ora desde sua identidade de gênero; esses vetores (e outros mais) se conjugam em sua multiplicidade na conformação da identidade do sujeito. Nesse sentido, a autora argumenta que é necessário incluir os componentes da cisgeneridade no quadro de análise (os signos da heterossexualidade, por exemplo), caso contrário, a ausência desses elementos ameaça fragilizar o conceito, tornando homogênea uma experiência que, com frequência, é atravessada pela subalternidade (VIEIRA, 2015).

Para ilustrar a problematização, Vieira traz como exemplo duas cantoras brasileiras, Maria Gadú e Zélia Duncan que, apesar de cisgêneras, por conta de suas apresentações masculinizadas, são vistas como versões subalternas da mulheridade. Ainda que se identifiquem como mulheres e com a designação sexual atribuída no nascimento, Vieira (2015) aponta que elas são consideradas “rascunhos do modelo vigente que são impedidas de acessar”, ou seja, a cisgeneridade que elas acessam é uma cisgeneridade precária. Desse modo, é necessário

pensar a cisgeneridade não apenas no âmbito da identificação com o gênero ao qual o sujeito é designado ao nascer, (...) mas pensar a cisgeneridade enquanto conceito, enquanto possibilidade de interpretação do real. Pensá-la em relação a si mesma, nas diversas possibilidades de acesso a esta categoria. Quando falo de acesso à cisgeneridade, o faço porque os sujeitos que são cisgêneros, ou seja, que se identificam com o gênero ao qual foram designados no nascimento, são múltiplos, e a cisgeneridade, como paradigma normativo de gênero, possui sua dimensão utópica, estabelecendo o que é ótimo para um homem e para uma mulher. Neste sentido, a cisgeneridade não pode ser entendida como um monolito, mas como um espectro hierarquizado em relação a si mesmo (VIEIRA, 2015, grifo nosso).

Mulheres cisgêneras masculinizadas e homens cisgêneros afeminados são, portanto, remetidos a esse espectro hierarquizado em relação a si mesmo da cisnorma, e, uma vez que são lidos como “menos mulheres” ou “menos homens”, alcançam uma condição de cisgeneridade fragilizada (VIEIRA, 2015). Parece-nos que o que Vieira quer dizer, é que os efeitos regulatórios da cisgeneridade não incidem somente sobre corpos trans (como talvez alguns possam ser levados a interpretar quando leem sobre o tema). Pessoas cisgêneras também dependem de um sistema de reconhecimento de signos estéticos e corporais que lhes abrem ou lhes restringem o acesso às categorias homem ou mulher; e, como sugeriu Butler (2015), mesmo aqueles que se conformam bem a esses ideais normativos, talvez o façam com um alto custo psíquico. De todo modo, Vieira (2015) adverte que ainda que haja pessoas que acessem precariamente a cisgeneridade, não por isso elas deixam de ser cisgêneras. Embora suas performances sejam inferiores aos olhos da cisnorma, elas ainda mantêm privilégios em comparação às vivências trans, como o reconhecimento de sua existência do ponto de vista da identidade de gênero e de seu nome, direitos esses dos quais pessoas trans se veem sistematicamente privadas (VIEIRA, 2015).

Vieira antecipa possíveis críticas a seu texto que argumentariam que essa subalternidade da qual ela fala não seria relativa à cisgeneridade, ou seja, relativa ao âmbito da identidade de gênero, mas, sim, ao âmbito da orientação sexual.7 Para ela, entretanto, a análise transfeminista deve se lançar para além das categorias estanques de orientação sexual e identidade de gênero, visando suas modalidades de intersecção. Ou seja, se se busca colocar em questão as formas de subalternização dos sujeitos sexo-gênero-divergentes, é fundamental pensar “como a cisgeneridade e a heterossexualidade, enquanto regimes sexo-políticos, se articulam” (VIEIRA, 2015). A autora mostra como a homossexualidade pode servir como critério desqualificador da masculinidade de um homem gay, por exemplo, fazendo com que o status político da sua cisgeneridade seja distinto da de um homem hétero.

Essa leitura converge parcialmente com o argumento de Butler (1993b),8 que diz que é somente por meio da heterossexualidade compulsória que as categorias de homem e mulher passam a ter inteligibilidade. Não se trata propriamente de questionar essa proposição de Butler, como observou Bagagli (2014b), mas de mostrar que, sob a perspectiva transfeminista, há uma lacuna nesse recorte analítico, pois a matriz cisgênera acaba subsumida pela matriz heterossexual, ocasionando uma subsunção da identidade de gênero pela orientação sexual. Afirmar que a heterossexualidade viabiliza a inteligibilidade de alguém como homem ou mulher não é, do ponto de vista transfeminista, um equívoco. Porém, o transfeminismo acrescenta camadas a esta afirmação, uma vez que, assim posta, ela atualiza a cisgeneridade como condição presumida, pois a heterossexualidade de que se fala é uma heterossexualidade entre pessoas presumivelmente cisgêneras.9

Desumanização de pessoas trans e travestis

Ser considerado uma cópia ou falsificação da masculinidade ou feminilidade não apenas torna o sujeito ininteligível como “homem” ou “mulher”; é a própria humanidade do sujeito que se vê questionada. Conforme transfeministas brasileiras, uma das formas como a norma cisgênera atua é mediante a desumanização das populações trans e travestis (KAAS, 2012; GRIMM, 2018; 2019; vergueiro, 2015). Nesse sentido, se se busca enfrentar a transfobia e transformar a realidade política do gênero, é necessária uma crítica radical que desconstrua a cisgeneridade como evidência do sexo (BAGAGLI, 2014a), ou, em outras palavras, como forma paradigmática do que é um humano apropriadamente generificado.

vergueiro argumenta que, mais do que simplesmente almejar o acesso à categoria de “humano” - estendida somente a certas frações do corpo populacional, em geral aquelas situadas em intersecções de branquitude, cisgeneridade, heterossexualidade, cristianidade, dentre outras -, “talvez seja necessário, concomitantemente, reconfigurar e enfrentar as próprias estruturas de produção destas categorias, entendendo os interesses que possam permear tais processos produtivos” (vergueiro, 2015, p. 35). Há diversos outros vetores que dão condições de possibilidade de acesso ou não a essa categoria, sendo a cisgeneridade apenas um dos critérios que, a depender das intersecções presentes, permite a um sujeito alçar a condição de humanidade - seja com maior ou menor grau de precariedade.

Conforme mostra vergueiro (2015), o campo do gênero foi colonizado pela cisnorma. Assim como os sujeitos colonizados se veem diante de um sistema de referência que lhes é imposto e lhes desautoriza a existência (Frantz FANON, 2008), a cisgeneridade coloniza corpos e gêneros inconformes também porque se lhes impõe; vê-se isso nitidamente nas intervenções médicas em pessoas intersexuais (vergueiro, 2015). Para vergueiro (2015), a cisgeneridade fabrica o espectro de normalidade desejada desde o qual são colocados os critérios do que é um gênero inteligível, relegando aquilo que lhe é externo a condições de inferioridade, patologização e, mesmo, inumanidade. Além disso, a naturalização da cisgeneridade depende fundamentalmente de epistemologias eurocêntricas que concebem o sexo como pré-discursivo, permanente e binário, como vimos acima.

O “humano” é um ideal construído mediante práticas de repúdio que produzem uma zona de alteridade habitada por sujeitos degradados e desautorizados (BUTLER, 1993a). Bagagli (2015), pensando especificamente no campo do gênero, chama essa zona de “zona do interdito”. Para a autora, analisar as relações de alteridade entre cis e trans fora de um paradigma essencialista envolve compreender como a cisgeneridade necessita da transexualidade como zona de interdição, como o que garante a própria estabilidade e unicidade cis (BAGAGLI, 2015). A produção da coerência e inteligibilidade da cisgeneridade necessita, assim, da transexualidade como Outro, como exterioridade constitutiva da qual se diferencia para se afirmar como norma. A zona de interdição ocupada por pessoas trans aparece como o impossível do gênero, daí a existência de pessoas trans frequentemente ser considerada uma impossibilidade lógica (BAGAGLI, 2015). No entanto, previne Bagagli (2015), ser considerada uma impossibilidade lógica não quer dizer que pessoas trans não existam ou que a formação social lhes seja indiferente, pelo contrário,

a formação social, ao ler uma travesti como sem-sentido do gênero não a coloca numa espécie de pedestal do impossível, tal como se ela nem ao menos existisse. A formação social lê o impossível não como não-existência, mas sim como passível de ser exterminado.

Sendo o humano um construto generificado, a possibilidade de apreensão de uma vida como uma vida que vale a pena está condicionada à viabilidade do seu reconhecimento como humano inteligível dentro da matriz de gênero. Das constrições cisnormativas que estreitam o domínio do que é um gênero possível emerge um contingente de sujeitos cujas vidas não possuem estatuto ontológico. Ser considerado uma impossibilidade lógica, uma irrealidade, mais do que uma forma de controle social, é uma forma de violência desumanizadora (BUTLER, 2004). A cisnormatividade coloniza a noção do que é uma vida inteligível, e a ininteligibilidade converte-se em inumanidade, tornando tais vidas passíveis de extermínio (vergueiro, 2015). Sob tal ótica, afirma Bagagli (2015), vê-se que o extermínio da população trans não se trata meramente de assassinatos isolados, mas de genocídio de um grupo populacional. A própria reivindicação da terminologia genocídio, neste contexto, é uma reivindicação ontológica, uma vez que, para que um grupo tenha seu extermínio reconhecido como tal, primeiro é necessário que tenha sua humanidade reconhecida.

Por meio da crítica à cisgeneridade como norma, é possível interrogar a categoria “humano” naquilo que ela tem de normativo e nas exclusões que são necessárias para seu estabelecimento. O pensamento transfeminista brasileiro sugere que a análise crítica da cisgeneridade é imprescindível para pensar os processos por meio dos quais as pessoas trans são desumanizadas, pois só é possível pensar tais processos levando em conta a relação de alteridade entre cis e trans. Porém, como observou Bagagli (2015), essa relação de alteridade é contingente, estando sujeita, portanto, a reestruturações. Se a coerência da cisgeneridade, que lhe garante seu status ontológico, só se realiza mediante a diferenciação da zona de interdito ocupada pela outridade trans, então ela é passível de ser contestada a partir de suas próprias fraturas.

Considerações finais

O pensamento transfeminista brasileiro busca, sobretudo, colocar em questão a presunção e a naturalização da cisgeneridade como elementos constitutivos das normas que regulam a inteligibilidade de gênero. A cisgeneridade, sob tal perspectiva, circunscreve as possibilidades de reconhecimento do que é um gênero viável, de tal forma que aqueles sujeitos que não se conformam à sua norma habitam zonas-limite do que é considerado real ou irreal, verdadeiro ou não. Busca-se, com a categoria, expor um regime de verdade implícito nas noções ontológicas que permeiam o campo do gênero, regime este que estabelece a hierarquia de autenticidade constitutiva entre cis/trans. Cis e trans são, portanto, termos que só fazem sentido dentro de uma certa economia discursiva da verdade do sexo, devendo ser pensados a partir da relação (hierárquica) de alteridade em que se constituem mutuamente. De tal argumento é possível extrair uma das premissas fundamentais para o transfeminismo brasileiro: se cis e trans só fazem sentido quando operam em relação um com o outro, então resulta disso que cis e trans são termos vazios de conteúdo ontológico em si mesmos.

A afirmação contundente de Leila Dumaresq (2014) de que “o cisgênero existe” não quer dizer que ele existe como substância ou como expressão de uma essência de gênero. Tal afirmação representa tão somente o reconhecimento de que os sujeitos são marcados politicamente e que essas posições dão mais ou menos condições para uma vida vivível. A noção de cisgeneridade é elaborada pelo transfeminismo precisamente porque se desacredita na substancialidade do gênero e não se valida sua pretensa autenticidade. Suas autoras são taxativas quando dizem que o conceito é elaborado desde uma posição crítica em relação a essa discursividade (BAGAGLI, 2018; vergueiro, 2015). O pressuposto é de que todas as configurações de gênero são efeitos de superfície com mais ou menos legitimidade política, e que essa hierarquização encerra processos de vulnerabilização, exclusão e violência contra pessoas trans. Essa é a “condição política” que caracteriza a cisgeneridade da qual fala Kaas (2012) e que mencionamos no início do texto.

Se recuperamos a noção de crítica de Michel Foucault (1997, p. 32), para quem essa é “o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade”,10 parece-nos correto dizer que a discussão que o transfeminismo inaugura sobre cisgeneridade é um exercício crítico no sentido foucaultiano do termo. Se, como vimos, a questão que mobiliza a problemática é “como a cisgeneridade opera?”, tentamos mostrar que o caminho para essa discussão passa pela exposição da forma como as normas de gênero funcionam mediante uma matriz discursiva cujos efeitos de verdade e poder produzem a cisgeneridade como expressão natural e normal do gênero. A cisgeneridade é, portanto, um operador analítico que permite interrogar os discursos da verdade do sexo. Paradoxalmente, é sua afirmação que coloca em xeque a certeza de sua existência. Se a cisgeneridade existe, o transfeminismo mostra que ela existe tão somente como construção social, como ficção, como produção performativa, uma vez que sua análise crítica expõe o modo como as normas encobrem sua produção discursiva e as relações de poder que a naturalizam e legitimam socialmente.

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1Mantivemos todas as referências à viviane vergueiro com V minúsculo porque é como a autora se refere a si própria.

2Este texto a que fazemos referência de Bagagli e Vieira é escrito em conjunto pelas duas autoras, porém, as partes de cada autora estão separadas. Por isso é possível saber o que foi escrito por Vieira e o que foi escrito por Bagagli, embora nas referências elas apareçam juntas.

3A dissertação de vergueiro é um marco tanto para o transfeminismo brasileiro quanto para a discussão sobre cisgeneridade no país. Foi a primeira publicação acadêmica sobre o tema e até hoje é uma das maiores referências sobre cisgeneridade e decolonialidade no Brasil.

4Aqui, cabe uma ressalva: se há leituras que consideram a transexualidade como o lugar do fluido, há ainda outra interpretação possível (ou complementar): ela pode também ser compreendida como o deslocamento entre dois polos binários, fixos e estáveis (feminino e masculino) e, nesse sentido, deixa de ser uma identidade marcada pela fluidez. Essa é uma forma como a ideia de permanência do imaginário cisnormativo, da qual falávamos antes, pode ser projetada também sobre a transexualidade. A concepção biomédica tradicional que, grosso modo, vê a transexualidade como a condição do sujeito que “nasce num corpo feminino mas psiquicamente sente-se homem (ou o inverso)” ilustra bem essa leitura engessada. Conforme tal compreensão, a transexualidade não seria tão fixa quanto à cisgeneridade, uma vez que há uma transição de um polo a outro, mas subjaz a ela uma certa ideia rígida de essência feminina ou masculina que se expressa “no corpo errado”. Devemos essa observação à Beatriz Bagagli, que gentilmente leu este artigo e fez considerações importantes a partir das quais ajustamos alguns pontos.

5No original: “when one presentation of gender is considered authentic, and another fake, then we can conclude that a certain ontology of gender is conditioning these judgments” (BUTLER, 2004, p. 214).

6No original: “having or bearing “truth” and ‘reality’ is an enormously powerful prerogative within the social world, one way in which power dissimulates as ontology” (BUTLER, 2004, p. 215).

7Vieira não menciona isso, mas parece importante sublinhar que um dos problemas com essa crítica hipotética é que ela presume que toda pessoa cisgênera inconforme não é heterossexual, desconsiderando a existência de mulheres cisgêneras heterossexuais masculinizadas ou homens cisgêneros heterossexuais afeminados. Nesse sentido, a categoria cisgeneridade se mostra pertinente porque põe ênfase sobre um vetor-intragênero de subalternização, sugerindo, como aponta Vieira, que há na cisnorma um espectro de hierarquização em relação a si mesma. E que pode provocar, inclusive, o curioso fenômeno de “pessoas cisgêneras sem passabilidade cis”: não só mulheres cis masculinizadas lidas como homens ou homens cis afeminados lidos como mulheres, mas também mulheres cisgêneras que são lidas como travestis ou mulheres transexuais. Inês Brasil, cantora brasileira, é um exemplo de mulher cisgênera que é frequentemente lida como trans ou travesti.

8Dizemos parcialmente pois a categoria cisgeneridade não está presente no raciocínio de Butler como no de Vieira.

9A sigla LGBT também é um ponto de tensão pela presunção da cisgeneridade e heterossexualidade. Grosso modo, considera-se que LGB são lésbicas, gays e bis, e T são trans, presumindo a cisgeneridade dos primeiros, e a heterossexualidade dos últimos.

10Tradução da versão em inglês: “the movement by which the subject gives himself the right to question truth on its effects of power and question power on its discourses of truth” (FOUCAULT, 1997, p. 32).

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: HINING, Ana Paula Silva; TONELI, Maria Juracy Filgueiras. “Cisgeneridade: um operador analítico no transfeminismo brasileiro”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e83266, 2023

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 09 de Agosto de 2021; Revisado: 26 de Maio de 2022; Aceito: 30 de Maio de 2022

anahining@gmail.com

juracy.toneli@gmail.com

Ana Paula Silva Hining (anahining@gmail.com) é psicóloga e mestre em Psicologia Social e Cultura pela Universidade Federal de Santa Catarina

Maria Juracy Filgueiras Toneli (juracy.toneli@gmail.com) é psicóloga (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG), mestre em Educação (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC), doutora em Psicologia (Universidade de São Paulo - USP), pós-doutoranda (Universidade do Minho - UMinho/PT), professora titular do Departamento de Psicologia da UFSC, onde leciona e orienta na pós-graduação (PPGP), pesquisadora 1A do CNPq

Conflito de interesses: Não se aplica

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