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Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026XOn-line version ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub Oct 03, 2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n193286 

Dossiê Saúde mental e gênero: por uma agenda de pesquisa latino-americana

Gênero e saúde mental em questão

Género y salud mental en cuestión

Gender and mental health at issue

1Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900

2Universidad de Buenos Aires, Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), Argentina. C1114AAD - info@conicet.gov.ar; iigg@sociales.uba.ar; gesfyd@gmail.com


Uma literatura de peso tem tratado, há algumas décadas, do tema da medicalização, biomedicalização e farmacologização da sociedade. Com diferentes ênfases, esses estudos interrogam os processos pelos quais problemas não médicos são transformados em problemas médicos ou transtornos. Ao mesmo tempo, e com nuances analíticas diversas, todas as perspectivas convergem em pesquisas de abordagem geralmente crítica à saúde mental (Phyllis CHESLER, 2018). Vale apontar como a urgência de estudos que abordam a medicalização da Sociedade incorpora dimensões sócio-históricas, éticas e políticas. Uma dessas dimensões que urge tratar interseccionalmente (Avtar BRAH, 2011) é a dimensão de gênero a partir das especificidades latino-americanas.

Este é o tema proposto nesse Dossiê: Saúde mental e gênero pensando as singularidades da região. Para fazer isso, apontamos duas coordenadas que são exploradas nos artigos:

1- As intersecções entre gênero e saúde mental como espaço transdisciplinar dotado de caráter complexo, em tensão e na construção permanente de atores sociais, saberes, dispositivos, tecnologias, moralidades, práticas, regulações, experiências, tempos e espaços.

2- A América Latina como região em que os processos de medicalização, biomedicalização e farmacologização são expressivos das desigualdades da população. Delineia-se uma gama de situações múltiplas, cujos extremos abrangem amplos setores com acesso limitado a serviços, cuidados e medicamentos básicos. Esse processo atinge o direito à saúde mental; e, ao mesmo tempo, há um uso excessivo de psicofármacos e serviços nos setores socioeconômicos mais favorecidos.

Este Dossiê inclui trabalhos que exploram linhas de estudo que integram as coordenadas supracitadas, considerando que ainda existe uma lacuna importante em torno da pesquisa e análise do problema da medicalização, biomedicalização, diagnósticos e medicamentos em saúde mental com uma perspectiva de gênero.

Além disso, o conjunto de trabalhos aqui apresentados permiter efletir sobre a disseminação e a transferência de diferentes saberes, trajetórias e instâncias de formação em busca de interesses que demandam integrações, tensões e efeitos sociais sobre essas questões. Neste sentido, assume-se que o Dossiê contribuirá para a reunião de investigações, com equipes e linhas de investigação diversas. Esperamos, também, que este Dossiê possa servir como subsídio para aquelas que, seja a partir da academia, dos ativismos e movimentos sociais, como espertas por experiência ou como organizadoras de políticas públicas, tenham genuíno interesse nos temas aqui discutidos.

Os artigos reunidos em este Dossiê apresentam pesquisas realizadas no Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.

O primeiro artigo, “Cambiar para que todo siga igual: mujeres y psicofármacos en Uruguay”, foi elaborado por Andrea Clara Bielli Pallela, María Pilar Bacci Mañaricua, Gabriela Lilián Bruno Cámares, Nancy Beatriz Calisto Slobodjan, da Universidad Nacional de la República, a partir da experiencia do Uruguai. O artigo parte de três estudos realizados no Uruguai entre 2013 e 2019, fazendo um balanço do tema da prescrição e consumo de psicotrópicos entre mulheres em Montevideo. As autoras refletem sobre as razões pelas quais as mulheres seguem sendo consideradas pacientes típicas nos serviços de saúde. Para as autoras, a perspectiva biomédica, com seus estudos sobre hábitos de prescrição e epidemiologia, contribui no destaque das diferenças de gênero, porém suas abordagens são limitadas na hora de explicar as razões. As autoras apontam como a perspectiva epidemiológica, com ênfase nas decisões e comportamentos particulares dos sujeitos, transforma processos eminentemente sociais em questões individuais e a-históricas. O sexo, por constituir uma das muitas variáveis ​​sociodemográficas, faz com que as desigualdades de gênero percam o valor explicativo, deixando em um segundo plano o papel que os diferentes atores sociais e instituições desempenham na feminização do consumo de psicotrópicos. Indo de encontro aos dados da literatura, as autoras concluem como expectativas relacionadas a gênero, mais especificamente os estereótipos junto com situações econômicas adversas, levam à naturalização do uso de psicotrópicos por mulheres.

O segundo artigo, “Diagnósticos, fármacos y mujeres internadas en un hospital neuropsiquiátrico. Estudio en la provincia de Buenos Aires, Argentina (2010-2019)” foi escrito por Eugenia Bianchi (Universidad de Buenos Aires e CONICET) e Macarena Sabin Paz (Centro de Estudios Legales y Sociales, e Universidad Nacional de Lanús), de Argentina. O artigo aborda um tema atual, relevante e urgente, permitindo trazer para o domínio público um problema social que tem sido largamente silenciado. O artigo mostra, a partir de uma cuidadosa análise de um contexto específico, características marcadas pela crueldade no tratamento de saúde mental dispensado às mulheres em um Hospital neuropsiquiátrico da província de Buenos Aires, em Argentina.

O artigo aborda a violação de direitos sofrida pelas mulheres internadas no Hospital estudado, dialogando com uma ampla literatura interdisciplinar, estabelecendo, particularmente, um diálogo fluido com a literatura feminista. O texto destaca a existência de estereótipos de gênero presentes na formação dos profissionais de saúde, reproduzindo estigmas e preconceitos. Vemos que esses estereótipos de gênero estão presentes nos motivos que levaram à internação dessas mulheres, na definição de diagnósticos e na escolha das terapias psicofarmacológicas utilizadas. Esses elementos podem ser observados tanto nas entrevistas quanto nas histórias clínicas analisadas neste artigo.

O terceiro artigo intitula-se “El sesgo de género en el discurso y en las intervenciones psiquiátricas”, de autoria de Sandra Caponi, Jesús Martínez Sevilla, Leticia Hummel do Amaral, da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. O artigo elabora um exercício de revisão de perspectivas feministas, as quais colocam em evidência o viés de gênero que perpassa a história da psiquiatria (CAPLAN; POLAND, 2004), assim como as críticas feministas à psiquiatria atual. Ao final, traz uma narrativa em primeira pessoa, resultado de uma entrevista com uma usuária de um Centro de Atenção psicossocial (CAPS) de Florianópolis, Brasil.

As autoras e o autor destacam, com seus resultados de pesquisa, a persistência dos mesmos abusos contra mulheres sofridos desde os primórdios - como eletrochoques, antipsicóticos e antidepressivos que produzem dependência, assim como a atribuição de uma multiplicidade de diagnósticos que se superpõem. O artigo contribui, igualmente, a tematizar possíveis linhas de resistência e formas de reconstrução da subjetividade.

O quarto artigo do Dossiê, “Reforzando prejuicios de género: la psiquis femenina desde la biotipología endocrinológica (Argentina, 1930-1945)”, de autoria de Marisa Adriana Miranda, da Universidad Nacional de La Plata e do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de Argentina, apresenta um estudo realizado em perspectiva histórica, abordando especificamente o período de 1930 a 1945 (período de consolidação do campo eugênico biotipológico na Argentina) e centrando a análise no caso de Argentina. Esse momento histórico revela-se fundamental para entender os discursos pretensamente dotados de cientificidade que tomaram como objeto o corpo da mulher. Entre esses discursos, a biotipologia e a endocrinologia ocuparam um lugar central para falar das loucuras femininas, fundamentalmente por sua estreita vinculação com as teorias eugênicas que predefiniam um papel social único e exclusivo para a mulher: boa mãe e boa esposa. A autora mostra que a psique feminina foi concebida a partir de uma versão biotipológica da eugenia, que teve um grande impacto na Argentina a partir dos anos 30, e que estava diretamente influenciada por duas figuras que o artigo analisa em detalhe, os renomados endocrinologistas europeus Nicola Pende, da Itália, e Gregorio Marañón, da Espanha.

O quinto artigo do dossiê, “Psicotrópico se declina no feminino: saúde mental e mundo digital em questão”, foi elaborado por Marcia da Silva Mazon, Barbara Michele Amorim, Fabíola Stolf Brzozowski, da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. A temática abordada é o aumento do consumo de psicotrópicos por mulheres dentro da faixa etária de 40 até 50 anos. A partir de uma leitura que cruza as reflexões de Bourdieu, Foucault e os estudos sociais dos fármacos, as autoras retomam o tema da medicalização numa perspectiva de gênero abordando a questão do mundo digital. O espaço digital, que é povoado pela noção de empreendedorismo feminino e bem-estar, serve como correlato da invisibilização e produz esvaziamento dos espaços de solidariedade. Esse fenômeno reforça o sofrimento psíquico e contribui com os processos de medicalização. Essas reflexões, ao tempo em que se conectam de forma incontestável com uma leitura interseccional situada, evidenciam as múltiplas dimensões que se vinculam aos estudos de gênero, e que ao mesmo tempo que os tornam mais complexos, os colocam em diálogo com problemas transversais como aqueles derivados dos efeitos do neoliberalismo em nossa região

Referências

BRAH, Avtar. Cartografías de la diáspora. Identidades en cuestión. Madrid: Traficantes de Sueños, 2011. [ Links ]

CAPLAN, Paula; POLAND, Jeffrey. “The Deep Structure of Bias in Psychiatric Diagnosis”. In: CAPLAN, Paula; CROSGROVE, Lisa (Orgs.). Bias In Psychiatric Diagnosis. Maryland: Jason Aronson Book, 2004. [ Links ]

CHESLER, Phyllis. “Prefacio a la edición de 2005”. In: CHESLER, Phyllis. Women and Madness. Chicago: Lawrence Hill Books, 2018. [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: CAPONI, Sandra; MAZON, Marcia da Silva; BIANCHI, Eugenia. “Gênero e saúde mental em questão”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e93286, 2023.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 07 de Março de 2023; Revisado: 07 de Março de 2023; Aceito: 07 de Março de 2023

sandracaponi@gmail.com

marcia.mazon@ufsc.br; marciadasilvamazon@yahoo.com.br

eugenia.bianchi@gmail.com

Sandra Caponi (sandracaponi@gmail.com) é professora titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da mesma instituição. É Doutora em Filosofia pela UNICAMP. Pesquisadora do CNPq. Pesquisadora del Medical Anthropology Research Centre (MARC) - Departamento de Antropología, Filosofía y Trabajo Social (DAFITS) - Universitat Rovira i Virgili (Espanha). Coordenadora do projeto Capes-Cofecub 2019-2022. Coordenadora do Núcleo NESFhIS

Marcia da Silva Mazon (marcia.mazon@ufsc.br; marciadasilvamazon@yahoo.com.br) é professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política e do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui Graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Mestrado e Doutorado em Sociologia Política pela UFSC e estágio pós-doutoral no Instituto Gino Germani, na Universidade de Buenos Aires (UBA), Argentina. É coordenadora do NUSEC - Núcleo de Sociologia Econômica. Atua nas áreas de Sociologia dos Mercados e Sociologia da Saúde

Eugenia Bianchi (eugenia.bianchi@gmail.com) tiene posdoctorado en Saúde Coletiva (Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ); Doutorado en Ciencias Sociales (Universidade de Buenos Aires - UBA); Maestría en Investigación en Ciencias Sociales (UBA); Graduación en Sociología (UBA). Investigadora Adjunta CONICET, con sede de trabajo en el Instituto de Investigaciones Gino Germani (Facultad de Ciencias Sociales, UBA). Docente regular en Faculta de Ciencias Sociales, Universidad de Buenos Aires. Coordinadora Grupo de Estudios Sociales sobre Fármacos y Diagnósticos (GESFyD-IIGG)

Contribuição de autoria: As autoras contribuíram igualmente

Conflito de interesses: Não se aplica

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