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Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026XOn-line version ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub Jan 01, 2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n189763 

Resenhas

A força da mulher sapatão

The power of dyke women

La fuerza las mujeres lesbianas

Meg Saiara Silva Ribeiro de Macedo1 
http://orcid.org/0000-0003-3292-2715

1Universidade Federal da Bahia, Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Salvador, BA, Brasil. 40170-115 - culturas@ufba.br

ALVES, Bárbara Elcimar dos Reis; FERNANDES, Felipe Bruno Martins. Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2021. 537pp. http://generoesexualidade.ffch.ufba.br/wikigira/e-book-pensamento-lesbico-contemporaneo, Acesso em 21 abr. 2021,


Uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida

Gloria Anzaldúa (2000, p. 234)

O livro Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes (Bárbara ALVES; Felipe FERNANDES, 2021) é uma publicação oriunda das discussões realizadas durante a I Jornada do Pensamento Lésbico Contemporâneo, promovido pela Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismos (PPGNEIM), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, no mês de novembro de 2017. Foi organizado por Bárbara Elcimar dos Reis Alves, graduada em Administração com Habilitação em Marketing pela Fundação Visconde de Cairu (2005), pesquisadora do Grupo Enlace, da Universidade do Estado da Bahia, e do GIRA - Grupo de Estudos Feministas em Política e Educação da UFBA, e por Felipe Bruno Martins Fernandes, professor da Universidade Federal da Bahia, no Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade e coordenador do GIRA - Grupo de Estudos Feministas em Política e Educação.

O volume foi escrito por lésbicas e para lésbicas, versa sobre o pensamento lésbico e as lesbianidades. O livro é composto por oito capítulos e consiste em um ato político que une o ativismo e a academia, de modo a ratificar o papel fundamental que a universidade pública possui ao combater as violências que oprimem os grupos de dissidências sexuais, neste caso em específico, as mulheres lésbicas.

A apresentação do livro é assinada pela antropóloga Fátima Lima, feminista alinhada ao feminismo negro, decolonial e anticolonial. É doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/IMS/UERJ e professora da UFRJ campus de Macaé. Já o prefácio conta com a contribuição da socióloga Tanya L. Saunders, pesquisadora do Centro de Estudos Latino-Americano e do Centro de Gênero, Sexualidade e Mulheres, da Universidade da Flórida, Gainesville, Florida.

O projeto editorial possui como intuito realizar uma partilha de conhecimentos teóricos e de vivências em conjunto com as mulheres que amam mulheres, para o fortalecimento de seus laços. Além disso, pretende tornar acessível os saberes da própria história dessas mulheres, já que é negada nos livros didáticos e oficiais da educação brasileira.

Seguramente, a decisão ética de uma escrita feita por mulheres lésbicas para mulheres lésbicas corrobora com o rompimento das velhas estruturas conservadoras que cercam não somente a sociedade, mas, também, se estende para o campo acadêmico. Os oito capítulos do livro, as referências de mulheres lésbicas escritoras, acadêmicas, ativistas e artistas, se desenharam como novos horizontes, com novas perspectivas e epistemologias. O Pensamento Lésbico Contemporâneo é, como afirma Cheryl Clarke, um ato de resistência: “La lesbiana ha descolonizado su cuerpo. Ella ha rechazado una vida de servidumbre que es implicita en las relaciones heterosexistas/heterosexuales occidentales” (Cheryl CLARKE, 1988, p. 99).

Dificilmente se encontra nos conteúdos didáticos escritoras mulheres, mais abstruso ainda autoras lésbicas. Esse campo sempre foi inóspito para as mulheres que subvertem a norma e quando se fazem presente é por meio, majoritariamente, do olhar masculino. O sentimento é para além de solidão, mas de falta de conhecimento da própria história. Mas isso é fruto do sistema patriarcal, para que, sem referências, as mulheres lésbicas não se reconheçam como tal.

Históricamente, la cultura occidental ha llegado a identificar a las lesbianas como mujeres que, a través del tempo, tienen una serie y variedad de relaciones sexuales/sentimentales con mujeres. Yo misma identifico a una mujer como lesbiana cuando ella dice que es lesbiana. El lesbianismo es un reconocimiento, un despertar, un redespertar de la pasión de las mujeres por las mujeres. Las mujeres, a través de las épocas, han peleado y han muerto antes que negar esa pasión. (CLARKE, 1988, p. 99).

Há nos cânones da historiografia um apagamento e silenciamento atrozes sobre a existência lésbica, como se as mulheres lésbicas nunca existiram. Adrienne Rich (2010) afirma que a heterossexualidade é compulsória, ou seja, obrigatória para as mulheres: “as mulheres têm sido convencidas de que o casamento e a orientação sexual voltada aos homens são vistos como inevitáveis componentes de suas vidas - mesmo se opressivos e não satisfatórios” (RICH, 2010, p. 26). Monique Wittig (1992) também coaduna com este pensamento, uma vez que: “The discourses which particularly oppress all of us, lesbians, women, and homosexual men, are those which take for granted that what founds society, any society, is heterosexuality.” (WITTIG, 1992, p. 24). Ochy Curiel, ao abordar sobre esse assunto em La Nación Heterosexual, diz que se trata de uma antropologia da dominação: “que consiste em revelar as formas, maneiras, estratégias, discursos que definem certos grupos sociais como ‘outros’ e ‘outras’ desde lugares de poder e dominação”1 (CURIEL, 2013, p. 28).

Quando a Universidade Federal da Bahia em parceria com outras instituições de pesquisa e ensino organizam um curso de extensão com embasamento teórico alicerçado em grandes nomes de pensadoras lésbicas, bem como, posteriormente, replica esses novos conhecimentos, na produção de um livro, se percebe que há pessoas comprometidas com um mundo sem desigualdades seja de gênero, sexualidade, étnico-raciais e/ou sociais.

Em uma sociedade democrática, fortalecer as pluralidades de existências, vivências e as várias subjetividades, igualmente contribui para um projeto de manutenção da democracia. O silenciar nunca foi a melhor opção para fazer do mundo um lugar melhor, como expressou Audre Lorde (2012, p. 25): “mas se esperamos em silêncio que chegue a coragem, o peso do silêncio vai nos afogar.”

Vale ressaltar, também, que por muitos anos as mulheres lésbicas foram consideradas apêndices dos homens homossexuais, principalmente, quando insurgiu o movimento gay no Brasil, na década de 1970, com o Grupo Somos, em São Paulo. Para o movimento lésbico ter sua própria autonomia foram décadas de luta e, mesmo assim, é uma batalha contínua, pois ainda as mulheres lésbicas são invisibilizadas dentro do movimento. Em razão disso, quando se reformulou o movimento LGBT por meio das siglas para representar os grupos de dissidências sexuais, o L se pôs na frente do G, e passou a ser movimento LGBT, com o objetivo de evidenciar as lésbicas que são historicamente apagadas. Sobre isso Irina Karla Bacci (2016) explana, que:

A necessidade de se autoafirmar feministas em contraponto à agenda majoritariamente gay dentro do movimento LGBT é marcada desde a fundação do movimento de lésbicas, quando do rompimento no grupo Somos, e permanece até os dias atuais (BACCI, 2016, p. 58).

É aqui que se enxerga a força da mulher sapatão, o livro Pensamento Lésbico Contemporâneo não é sobre uma pessoa ou você, é sobre todas as mulheres lésbicas, sobre todo o sangue derramado dessas mulheres que ousaram amar outras mulheres e lutaram para que esse livro pudesse ser escrito. É sobre Rosely Roth; é sobre Stormé DeLarverie; Thays Gierdry Borges dos Santos degolada em praça pública em Campo Grande (MS); Thaylanne Costa Santos que foi espancada e desfigurada por três homens em Goiás, Marielle e todas as mulheres que sofreram estupro corretivo. De acordo com o Dossiê sobre o lesbocídio no Brasil (Milena PERES; Suane SOARES; Maria Clara DIAS, 2018), no Brasil seis mulheres são estupradas por dia, apenas pelo fato de serem lésbicas, e a expectativa de vida das lésbicas que não performam a feminilidade é de até 24 anos. Quando há intersecção de outros marcadores sociais como classe e cor, as mortes são mais frequentes em jovens abaixo dessa idade. É sobre todas essas mulheres que, ao saírem de casa seja para o trabalho ou lazer, enfrentam o medo de serem agredidas e violentadas. É sobre todas as mulheres lésbicas que são espancadas por andarem de mãos dadas nas ruas; é sobre todas as mulheres lésbicas que são silenciadas ao longo das suas vidas.

É importante destacar uma característica do livro, como ele resultou da realização da I Jornada do Pensamento Lésbico Contemporâneo, um curso nacional sobre lesbianidades, possibilitou a participação de mulheres lésbicas de vários estados brasileiros. Com isso, proporcionou uma troca generosa de conhecimentos, vivências e experiências lésbicas das mais diversas e fortaleceu a potência das existências sapatônicas. Uma obra escrita por mulheres lésbicas e para mulheres lésbicas e que vai muito mais além dessa categoria universal do gênero feminino - um livro que evidencia o desejo de uma mulher por outra, que mulheres podem amar umas às outras e que o protagonismo do enredo é em torno das lesbianidades. Foram quantos séculos de solidão lésbica na academia e na literatura? Dentre todas as impressões, a mais forte e mais marcante é a de que as mulheres lésbicas não estão sozinhas, é possível o aquilombamento2 lésbico.

O livro Pensamento Lésbico Contemporâneo, para além da produção de conhecimentos, de novos paradigmas intelectuais, de novas perspectivas epistemológicas, tem essa função social da visibilidade lésbica, tão urgente e necessária. Há quantos anos os homens escreveram sobre as mulheres lésbicas? As mulheres lésbicas estão disputando por narrativas, tomando as rédeas das suas próprias histórias. Ainda que seja muito difícil produzir conhecimento, principalmente, em tempos sombrios, em que o governo anterior nega o acesso às condições básicas, negou vacina, negou a vida e condena as pessoas à morte. Mas há resistência, ninguém irá desistir, os aquilombamentos lésbicos serão antídotos. A escrita é antídoto! Esse livro é antídoto!

O racismo e a homofobia são as condições reais para todas as nossas vidas nesse espaço e tempo. Eu conclamo cada uma de nós aqui a mergulhar naquele lugar profundo de conhecimento dentro de si mesma, e alcançar o terror e a abominação a qualquer diferença que ali reside. Ver que face veste. Então o pessoal e o político podem começar a iluminar todas as nossas diferenças (LORDE, 2012, p. 06).

O saber é capaz de causar revolução, revolução de afetos, de estética, de paradigmas e perspectivas etc. Essas narrativas sapatônicas destacam essas revoluções, como oportunamente assinalou Audre Lorde, aos termos em mente quem são nossos inimigos e, a partir da educação, nos prepararmos para confrontá-los:

Como pessoa Negra, eu sei quem meus inimigos são, e quando o Ku Klux Klan vai à corte em Detroit e tenta e força o Conselho de Educação de remover livros o Klan acredita “induzir a homossexualidade,” quando eu sei que eu não posso me dar o luxo de lutar apenas uma forma de opressão somente. Eu não tenho como acreditar que liberdade de intolerância é direito de apenas um grupo particular. E eu não posso escolher entre as frentes em que eu devo batalhar essas forças da discriminação, onde quer que elas apareçam pra me destruir. E quando elas aparecem para me destruir, não durará muito para que depois eles aparecerem pra destruir você (LORDE, 2012, p. 31-32).

O volume ecoou como uma grande potência, ao visibilizar as lesbianidades e ter colocado em protagonismo as vozes das sapatões. Além disso, entrecruzou as diferenças dentre as mulheres lésbicas, trouxe a ótica interseccional, abordando questões de gênero, de classe, étnico-raciais, geracionais, de expressões de sexualidades, estéticas, dentre outras. Certamente, foi uma explosão potencializadora não somente das falas sapatões, mas do cotidiano das mulheres lésbicas. O livro Pensamento Lésbico Contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes é a tradução que é possível novas perspectivas de narrativas e das pluralidades de existências e vivências.

Referências

ALVES, Bárbara Elcimar dos Reis; FERNANDES, Felipe Bruno Martins (org.).Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação, política e artes. Florianópolis: Tribo da Ilha, 2021. 537p. Disponível em Disponível em http://generoesexualidade.ffch.ufba.br/wikigira/e-book-pensamento-lesbico-contemporaneo . Acesso em 21 abr. 2021. [ Links ]

ANZALDÚA, Gloria. “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. [ Links ]

BACCI, Irina Karla. Vozes lésbicas no Brasil: a busca e os sentidos da cidadania LGBT. 2016. 117 f. Dissertação (mestrado) - Universidade de Brasília, Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, 2016. [ Links ]

CLARKE, Cheryl. “El lesbianismo: un acto de resistencia”. In: MORAGA, Cherrie; CASTILLO, Ana. Esta puente, mi espalda: voces de las tercermundistas en los Estados Unidos. São Francisco: ISM Press, 1988. p. 98-107. [ Links ]

CURIEL, Ochy. La Nación Heterosexual: análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación. Bogotá: Brecha Lésbica y En La Frontera, 2013. [ Links ]

LORDE, Audre. Textos escolhidos de Audre Lorde. S./l: Herética Difusão: edições lesbofeministas independentes, 2012. [ Links ]

PERES, Milena; SOARES, Suane; DIAS, Maria Clara. Dossiê sobre lesbocídio no Brasil: de 2014 até 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. [ Links ]

RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas, v. 04, n. 05, p. 17-44, 2012. [ Links ]

WITTIG, Monique. The Straight Mind and other Essays. Boston: Beacon, 1992. [ Links ]

1No original: “que consiste en develar las formas, maneras, estrategias, discursos que van definiendo a ciertos grupos sociales como ‘otros’ y ‘otras’ desde lugares de poder y dominación” (CURIEL, 2013, p. 28).

2Esse termo surgiu para se referir às lutas das pessoas negras escravizadas que se reuniam em comunidades quilombolas no período colonial como forma de resistência. Neste contexto, é utilizado como agrupamento de mulheres lésbicas de combate à lesbofobia.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MACEDO, Meg Saiara Silva Ribeiro de. “A força da mulher sapatão”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e89763, 2023

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 23 de Junho de 2022; Aceito: 25 de Outubro de 2022

megmacedo@ufba.br, meg.macedosr@gmail.com

Meg Silva (megmacedo@ufba.br, meg.macedosr@gmail.com) é graduada em Comunicação Social - Jornalismo em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia (2012). Possui mestrado em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa (2021) e cursa o Doutorado do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC/UFBA), da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência nas áreas da Cultura e Comunicação, como também das Artes Cênicas. Profissional que agrega atividades multidisciplinares da área da Comunicação, do Audiovisual, das Artes Cênicas, dos Estudos Culturais, Estudos de Gênero e Teoria Queer, interessando-se assim, por pesquisas interdisciplinares com essas temáticas

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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