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Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026XOn-line version ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub Jan 01, 2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n190366 

Resenhas

Um farol entre ondas e marés. Ecos de Simone de Beauvoir no Cone Sul

Un faro entre olas y mareas. Ecos de Simone de Beauvoir en el Cono Sur.

A lighthouse between waves and tides. Echoes of Simone de Beauvoir in the Southern Cone.

1Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20940-040 - ppgas@mn.ufrj.br

BELLUCCI, Mabel; SMALDONE, Mariana. El segundo sexo en el Río de la Plata. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial Marea SRL, 2021.


Parte significativa dos esforços de pensamento e ação dos feminismos contemporâneos tem se orientado a traçar uma genealogia própria, documentando de forma paciente e meticulosa nomes e eventos desapercebidos porque carecem de história, identificando as diferentes cenas em que mulheres e dissidências jogaram diferentes papéis, definindo inclusive o ponto de sua ausência, o momento em que não tiveram lugar (Michel FOUCAULT, 1992). Assim como o movimento que o empreende, trata-se de um esforço plural e com múltiplas direções, dentro e fora do mundo acadêmico, documentado em comunicações escritas e orais, muitas das quais saem a luz em nossos dias, pela primeira vez.

Nas ciências sociais, campo onde nos situamos para realizar esta reflexão, um dos caminhos seguidos para traçar essas linhagens é o de recuperar os elos de pensamento de mulheres que foram excluídas do cânone no ensino tradicional de nossas disciplinas (Raewyn CONNELL, 2019; Verônica TOSTE; Bila SORJ, 2021). Não se trata somente de resgatar nomes e temas omitidos devido à dinâmica das relações de poder ao interior do campo científico no seu período formativo, e que, em muitos aspectos, continuam vigentes até hoje. A tarefa permite questionar as fronteiras que conferem “determinada identidade à comunidade de cientistas sociais fundamentada em um ato de exclusão de todo um domínio de investigação ligado às questões de gênero” (TOSTE; SORJ, 2021, p. 12).

O trabalho de recuperação, transcrição, revisão e análise levado a cabo por Mabel Bellucci e Mariana Smaldone (2021), em El segundo sexo em el Río de la Plata, deve ser lido em sintonia com esse movimento, que vai atrás das pisadas da publicação da intelectual francesa em nossa região, cuja cena social e cultural particular determinou uma recepção com características próprias. Interdisciplinar em seu percurso e organização, o livro foi concebido como um ensaio de história das ideias e literário-filosófico, cuja matéria prima são documentos produzidos desde finais da década de 1990 - dentre os quais testemunhos de militantes feministas, revistas, programas de eventos, correspondência e trabalhos acadêmicos - sobre os debates produzidos em torno a Le Deuxième Sexe (Simone de BEAUVOIR, 1949) na região do Rio da Prata.

O livro está organizado em três partes, além do prefácio. As duas primeiras partes, quantitativamente maiores, são compostas dos trabalhos apresentados em jornadas realizadas nas cidades de Buenos Aires e Montevidéu em ocasião dos aniversários de cinquenta e setenta anos da publicação original de Le Deuxième Sexe. Na primeira parte, organizada em quatro mesas, Bellucci e Smaldone recuperam uma série de textos apresentados nas Jornadas en Homenaje a Simone de Beauvoir, organizadas pelo Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género da Universidad de Buenos Aires, em agosto de 1999, que até então nunca haviam sido publicados. Depois de dois textos introdutórios que descrevem a dinâmica dos eventos1, os textos desenvolvidos para a mesa “História e política” abrem a seção com a contribuição de Marcela Nari que reflete sobre as primeiras leituras de Le Deuxième Sexe em Buenos Aires2 como uma trama difusa e sinuosa de um debate latente e esquivo, reconstruída a través de publicações de importantes revistas culturais e literárias, e do depoimento de intelectuais e militantes. Nari observa que o livro não é muito citado nos debates que envolvem a condição da mulher nas décadas de 1950 e 60, mas a lembrança de sua leitura é forte nos relatos analisados, de mulheres que se tornariam feministas somente na década de 1970, muitas durante o exílio. A autora aventura a hipótese de que a repercussão pública inicial do livro não reflete a dimensão privada, na qual a repercussão é ativa no pensamento e na compreensão de si.

Na segunda mesa, “Autobiografia e subjetividade”, composta por textos de María G. Mizraje, Graciela Torrecillas e María M. Uzín que analisam a obra autobiográfica, ficcional e filosófica de Beauvoir, sublinhando o papel da literatura e da escrita como modo de permanecer no mundo, e o constante exercício reflexivo dessa que é uma “vida indissolúvel do pensamento” (Graciela TORRECILLAS, 2021, p. 74). Presta-se atenção também ao papel do existencialismo, da relação com Sartre e o impacto de outras obras, como a de Marx e Merleau-Ponty. Em “Leituras de O Segundo Sexo” encontramos textos de Omar Acha, Pablo Bem, María I. García Gossio e Marcela Lagarde que abordam a crítica à psicanálise empreendida pela filósofa francesa, a partir de uma posição antiessencialista da relação entre os sexos que, ainda assim, desliza alguns supostos sobre a natureza do corpo feminino. Mesmo assim, a visão alternativa à interpretação hegemônica da sexologia na época implicou questionar as teorias da evolução, da genética, da fisiologia e da neurologia, demostrando a falácia do naturalismo legitimador da desigualdade entre mulheres e homens. Nessa terceira mesa são levadas em conta, também, as considerações sobre o lesbianismo realizadas em O Segundo Sexo ao longo de todo um capítulo, que implicaram uma ruptura com o silêncio ao respeito do tema nas universidades, na esquerda e no feminismo. Por fim, em “Corpo e compromisso”, Karina Fellitti, María L. Puppo e Piera Oria refletem sobre o impacto do livro em questões como a maternidade (e a relação da própria Simone com sua mãe), os afetos e o feminismo como força coletiva. A primeira parte do livro encerra com a apresentação realizada pela escritora Tununa Mercado à edição publicada por Siglo Veinte, em 1987.

Vinte anos depois, o 70° aniversário da publicação foi homenageado com uma mesa nas Jornadas de Investigación y Extensión da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, em Montevidéu. Essas jornadas são recuperadas na segunda parte do livro, apresentada por Graciela Sapriza e Susana Rostagnol, com textos de Mariana Smaldone e Elisa P. Buchelli, Elena G. Garayalde, Mabel Bellucci, Graciela Sapriza, Karen W. Díaz e Lucía Campanella. Indo atrás das pisadas de Simone de Beauvoir nas rebeldias próprias, as autoras trazem detalhes sobre as primeiras traduções de Le Deuxième Sexe - considerando os equívocos e mutilações que o texto sofreu -, o papel do feminismo e das organizações de mulheres por direitos civis, assim como dos exiliados, na circulação da obra na região3, marcada por intercâmbios fluidos entre Buenos Aires e Montevidéu. São considerados os contrastes entre a militância local e as organizações internacionais, principalmente em uma década como a de 1970, na qual encontramos mulheres participando do conflito armado. Nessa direção, rótulos como o de segunda onda são criticados pelo seu viés colonial e eurocêntrico, que leva a englobar movimentos muito diversos, atravessados em nossa região pela repressão levada a cabo pelos governos ditatoriais.

O processo de transição democrática no Uruguai é analisado considerando o contexto internacional e o regional, marcado mais diretamente por eventos como a Revolução Cubana e a transformação da Igreja Católica a partir do Concílio Vaticano II. Resultam instigantes as considerações sobre as ambiguidades e tensões derivadas da participação de mulheres nas organizações revolucionárias, onde as discussões sobre as desigualdades de gênero “acabavam quando se levantava o conceito da ‘contradição principal’” (Marcela SAPRIZA, 2021, p. 247). Os últimos dois textos colocam importantes questões para o debate teórico e político contemporâneo. Por um lado, temos a leitura realizada por Judith Butler do corpo como situação a partir de O Segundo Sexo, assim como as críticas endereçadas ao binarismo sexo/gênero suposto na obra, reivindicando a má citação como uma prática de dissidência acadêmica que permite proliferar, hibridar, devorar e travestir (Karen DÍAZ, 2021). Por fim, propondo um diálogo entre Simone de Beauvoir e a escritora francesa Annie Ernaux, Campanella vai apontar o papel de recursos como o uso da primeira pessoa e da materialidade das práticas cotidianas em uma releitura de O Segundo Sexo como ferramenta de emancipação, também no mundo contemporâneo.

Os dois textos finais apontam para “Mais leituras e debates” (terceira parte): o prefácio da escritora e jornalista María Moreno à edição de Sudamericana de 1999; e “Simone de Beauvoir e o feminismo hoje”, leitura de Nora Dominguez na 34° Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. Instigando uma leitura paradoxal da própria vida, ao mesmo tempo escolha e profecia, inclusive repulsa frente à segurança de sua filósofa, o “Livro Vermelho” da nova feminidade (María MORENO, 2021, p. 288) acaba por conquistar a “identificação perdida” (Nora DOMÍNGUEZ, 2021, p. 305) de suas leitoras, até os dias atuais.

Como aquelas torres altas com uma luz na parte superior que servem de sinal aos navegantes, há mais de setenta anos O Segundo Sexo funciona como um indicador a partir do qual cada navio traça seu próprio percurso. Contra leituras únicas e restritivas, os textos organizados por Bellucci e Smaldone iluminam a diversidade de perguntas, interpretações e problemas levantados pela obra de Simone de Beauvoir, matizados pela geografia política e social da região do Rio da Prata nos anos 1960, 1970 e depois. Em um contexto como o atual, marcado por importantes e díspares desafios dos movimentos feministas em nossas latitudes, conhecer as ressignificações e tensões das leituras gestadas em torno desse clássico dos estudos de gênero é fundamental para continuar ampliando os debates e interpelando nossa militância.

Referências

BEAUVOIR, Simone de. Le Deuxième Sexe. París: Gallimard, 1949. [ Links ]

BELLUCCI, Mabel; SMALDONE, Mariana (orgs). El segundo sexo en el Río de la Plata. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Editorial Marea SRL, 2021. [ Links ]

CONNELL, Raewyn. “Canons and colonies: the global trajectory of sociology”. Estudos Históricos, v. 32, n. 67, p. 349-367, 2019. [ Links ]

DÍAZ, Karen Wild. “La mala cita. Judith Butler […] ‘Simone de Beauvoir’”. In: BELLUCCI, Mabel; SMALDONE, Mariana (orgs.). El segundo sexo en el Río de la Plata . Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Editorial Marea SRL, 2021. p. 51-62. [ Links ]

DOMÍNGUEZ, Nora. “Simone de Beauvoir y el feminismo hoy”. In: BELLUCCI, Mabel; SMALDONE, Mariana (orgs.). El segundo sexo en el Río de la Plata. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial Marea SRL, 2021. p. 295-305. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Microfísica del poder. Madrid: La piqueta, 1992. [ Links ]

MORENO, María. “El Segundo sexo”. In: BELLUCCI, Mabel; SMALDONE, Mariana (orgs). El segundo sexo en el Río de la Plata. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial Marea SRL, 2021. p. 287-194. [ Links ]

SAPRIZA, Graciela. “Primeras lecturas feministas. Adolescencias revolucionarias en el 68 uruguayo”. In: BELLUCCI, Mabel; SMALDONE, Mariana (orgs.). El segundo sexo en el Río de la Plata. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial Marea SRL, 2021. p. 235-250. [ Links ]

TORRECILLAS, Graciela. “Vidas filosóficas. Simone de Beauvoir. La soberanía de la palabra”. In: BELLUCCI, Mabel; SMALDONE, Mariana (orgs.). El segundo sexo en el Río de la Plata. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Editorial Marea SRL, 2021. p. 73-87. [ Links ]

TOSTE, Verônica D.; SORJ, Bila. Clássicas do pensamento social: Mulheres e feminismos no século XIX. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021. [ Links ]

1 Embora se realize uma recuperação mais densa das jornadas organizadas pelo IIEGE, uma dessas introduções é dedicada à Jornada sobre Simone de Beauvoir en la Biblioteca Popular José Ingenieros, realizada em 11 de junho de 1999, em Buenos Aires, por iniciativa do coletivo anarquista Mujeres Libres junto à Comisión por el Derecho al Aborto. Com o subtítulo “Para a mulher a liberdade começa pelo ventre”, introduz-se uma breve memória do evento, dos oradores e oradoras e seus testemunhos, nos quais as mulheres frequentemente se posicionam falando do momento em que se chamaram feministas, sobre quando e onde tiveram contato pela primeira vez com a obra de Simone de Beauvoir e sobre suas experiências de militância previa em organizações políticas de esquerda.

2Segundo a autora, a obra circulou em Buenos Aires logo depois de sua publicação, primeiro em francês, até 1954, quando foi distribuída por Siglo Veinte a tradução de Pablo Palant para a editora Psique.

3Elena Garayalde menciona a primeira tradução realizada no Brasil, em 1961, assim como a viagem da filósofa francesa com Sartre ao país e a entrevista concedida para O Metropolitano, reeditada pela Folha de São Paulo em 2014. Destaca, no texto, a pesquisa realizada por Joana Vieira Borges (2007) com militantes feministas, para sua dissertação de mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina. BORGES, Joana Vieira. Para além do “tornar-se”: resonancias das leituras feministas de O Segundo Sexo no Brasil. 2007. Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil, 2007.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: CASTELLITTI, Carolina. “Um farol entre ondas e marés. Ecos de Simone de Beauvoir no Cone Sul”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e90366, 2023

Financiamento: Bolsa de Pós-doutorado “Nota 10” da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ)

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 01 de Agosto de 2022; Aceito: 29 de Novembro de 2022

castellittic@gmail.com

Carolina Castellitti (castellittic@gmail.com) é pós-doutoranda no PPGAS, Museu Nacional (UFRJ) e bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Doutora em Antropologia Social pela mesma instituição e graduada em sociologia pela Universidad Nacional del Litoral (Santa Fe, Argentina). Pesquisa temas relativos a gênero, trabalho, memória e emoções. Autora do livro Anfitriãs do céu. Carreira, crise e desilusão a bordo da Varig (Rio de Janeiro: Telha, 2021)

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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