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Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026XOn-line version ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub Jan 01, 2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n190482 

Resenhas

Para que o céu não caia: mulheres indígenas frente às mudanças climáticas

So the sky doesn't fall: indigenous women facing climate change

Para que el cielo no caiga: mujeres indígenas frente al cambio climático

1Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900 - ppgas@contato.ufsc.br

SANTISTEBAN, Rocío Silva. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. 222pp.


O livro Mujeres indígenas frente al cambio climático nos convida a pensar sobre os diversos contextos vividos nos países da América do Sul em que os povos indígenas se veem ameaçados, não somente por práticas ilícitas de garimpo, como vislumbram a possibilidade de regulamentação da mineração, produção de petróleo, gás e geração de energia elétrica em seus territórios. A obra, organizada por Rocío Silva Santisteban1 e publicada pela Editora do IWGIA, reúne oito capítulos e duas entrevistas produzidos pelos pesquisadores do Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas (IWGIA).

A partir de diferentes perspectivas teóricas e etnográficas, as autoras e autores refletem sobre uma questão comum: o sobressalente protagonismo das mulheres indígenas frente às mudanças climáticas em diversos países da América do Sul. É nesta direção que irão problematizar a política moderna como um acontecimento histórico fundado no acordo homogeneizador da separação entre natureza e cultura (Marisol DE LA CADENA, 2019). Semelhante ao que observa Ailton Krenak em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, nós, “embalados com a história de que somos a humanidade”, nos alienamos de um organismo de que somos parte, a Terra, “e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade” (Ailton KRENAK, 2019, p. 16).

Para a organizadora do volume Rocío Silva Santisteban (2019, p. 10), as mudanças climáticas são produtos dessa “cultura” que busca o “controle da natureza” a partir de práticas de desmatamento e extração com fins utilitários. As quais foram estimuladas pelos empreendimentos coloniais através da incorporação de valores como a “valentia” e o “desbravamento”, para que os colonos, em sua maioria homens, se considerassem parte do processo desenvolvimentista.

No texto que abre a coletânea, o economista equatoriano Alberto Acosta afirma que “a essência do antropocentrismo se expressa intensamente desde o androcentrismo e da colonialidade, raízes congênitas da civilização capitalista” (Alberto ACOSTA, 2019, p. 19). E foi assim que o extrativismo, carregado pela promessa de progresso e desenvolvimento, se impôs violentamente sobre os territórios, os corpos e as subjetividades. Dentro de um contexto em que as mulheres se tornavam vítimas constantes do sistema, intrinsecamente, marcado pelo racismo e pelo machismo. Ao mesmo tempo que essas mulheres lideravam (e lideram) os movimentos de resistência, pois desde cedo perceberam os efeitos de tamanha violência.

E é resistindo junto aos indígenas à violência das mineradoras e do Estado Neoliberal que a antropóloga peruana Marisol de La Cadena inicia o capítulo intitulado “Protestando desde lo incomún” no qual descreve uma passeata realizada em Cusco, em que as pessoas protestavam contra as investidas de uma mineradora em Ausangate, um ser-terra, que também é uma montanha, portanto, uma reserva de minerais. Trata-se de um conflito antigo, pois desde o século XVI os seres-terra foram perseguidos pelos extirpadores coloniais de idolatrias.2 E, após quinhentos anos, configuram-se como um problema aos novos extirpadores que os traduzem como montanha e os reduzem a uma fonte de riqueza.

A maior diferença em relação aos seus homólogos coloniais é que as empresas e o Estado possuem o poder e os instrumentos capazes de destruir montanhas. E uma das formas de fazê-lo é através da negação da existência, tal como fez Allan Garcia, ex-presidente do Peru, ao afirmar que os seres-terra não existiam. Cientes disso, os manifestantes optaram por subordinar a defesa do ser-terra à defesa do meio-ambiente, e foram bem-sucedidos, pois conseguiram conter os avanços da mineração. Por outro lado, nota-se que este enquadre, no sentido butleriano (Judith BUTLER, 2015), desvela não somente o racismo e a intolerância por parte do Estado, mas também o seu poder ontológico em definir aquilo que é real ou não (DE LA CADENA, 2019).

Compreendendo estes embates como disputas ontológicas, Marisol de la Cadena descreve etnograficamente a resistência de Máxima Acunã de Chaupe, que se recusa a abandonar ou vender a sua propriedade a uma empresa de mineração, a qual ocupou todo o envolto de sua residência e a pressiona duramente. A questão é que ela resiste não apenas pela manutenção da casa, mas pela relação intrínseca que mantém com aquele território, e seus aquíferos, bosques e pedras. Ou seja, para ser aquilo que ela é (DE LA CADENA, 2019).

O contraste é apresentado pelo pesquisador Uruguaio Eduardo Gudynas a partir da experiência de algumas mulheres bolivianas, as quais se identificavam como feministas e compreendiam que a melhor maneira para garantir direitos e assegurar suas autonomias estava na criação de uma cooperativa de mineração. Assim, elas reforçam as suas identidades fazendo aquilo que, na maioria das vezes, é banido às mulheres: trabalham na mineração (Eduardo GUDYNAS, 2019). Do outro lado, Fabiola Yeckting Vilela (2019) argumenta que as mulheres contribuem menos para as mudanças climáticas do que os homens, e ainda oferecem estratégias alternativas de adaptação e sobrevivência.

Em seu capítulo, a antropóloga dá visibilidade ao trabalho e à problemática das organizações de mulheres no cuidado, conservação e defesa das florestas de polylepis e/ou nubladas, características do ecossistema de páramos, em Pariamarca Alta, alto dos Andes. Sobretudo, a partir da experiência da Asociación de Mujeres Protectoras de los Páramos (AMUPPA), de Ñangali, e do Comité de Conservación del Bosque De Polylepis, de Pariamarca Alta, constituído por vinte e cinco mulheres residentes no envolto (YECKTING VILELA, 2019).

Conforme aponta, as florestas nubladas e os páramos andinos configuram um complexo ecossistema que conforma três bacias hidrográficas, as quais beneficiam todas as regiões do país. Como a vegetação é capaz de reter porções extras de água, cria-se um ambiente de umidade natural e densa nebulosidade, combinação perfeita para reprodução de outras espécies. Há de se imaginar que tal biodiversidade atrai, também, os empreendimentos extrativistas, o que gera inúmeros conflitos com os moradores locais, que acusam os governos regionais de facilitarem o ingresso de projetos com fins estritamente econômicos, deixando de lado qualquer alternativa produtiva viável (YECKTING VILELA, 2019).

As mulheres, como a maior parte da população, tampouco se beneficiam com os projetos em toda a sua extensão. E é por isso que Fabiola Yeckting Vilela defende que as relações de gênero sejam consideradas no plano institucional pelos mecanismos de financiamento; e reivindica a atenção dos governos regionais e do Estado na construção e ampliação de políticas públicas. Da mesma forma, elas lutam pela igualdade de condições de acesso aos recursos e pela paridade de representação cidadã das mulheres campesinas junto às instâncias governamentais. Porque, apesar das dificuldades, reconhecem a importância de suas atuações nos processos de mitigação e defesa do bioma.

Situações semelhantes são experienciadas pelas mulheres indígenas awajún e wampis, na Amazônia peruana. No contexto atual, repleto de riscos associados à expansão do capital extrativista e colonizador, são elas que tomam a frente na conservação da agrobiodiversidade florestal e na defesa de seus territórios ancestrais (Marlene CASTILLO FERNÁNDEZ, 2019). A engenheira agrônoma Marlene Castillo Fernández conta que elas expressam orgulho por serem detentoras dos saberes deixados por Nugkui, um ser feminino mítico que entregou às senhoras awajún e wampis diversos tipos de sementes, para que elas pudessem cultivar e produzir alimentos, e assim evitassem que as futuras gerações morressem de fome. Então, portadoras desses conhecimentos, as mulheres circulam pelas roças de seus clãs familiares e trocam sementes, plantas e tecnologias relacionadas aos seus usos. Estratégia chave para a conservação da floresta e de sua alta biodiversidade (CASTILLO FERNÁNDEZ, 2019).

É importante salientar que, por muito tempo, a literatura referenciou este conhecimento etnobotânico como masculino. Invisibilidade que perpassa espaços acadêmicos e/ou institucionais, indígenas e não indígenas. Fato é que, as sábias awajún y wampis não tiveram as suas qualidades como conservadoras da agrobiodiversidade devidamente reconhecidas em nenhuma das ocasiões. Tampouco foram ou são convidadas a participar dos espaços oficiais de decisão das políticas de mitigação e adaptação das mudanças climáticas; as quais, quando existem, não possuem enfoque de gênero (CASTILLO FERNÁNDEZ, 2019).

Olhando para estas lacunas, a educadora e investigadora social Majandra Rodríguez Acha (2019) irá argumentar que as mudanças climáticas não podem ser pensadas a partir das modificações de nossas estruturas econômicas, sociais e políticas, sem que se faça o reconhecimento a priori de que o sistema é tanto capitalista como patriarcal. Por isso defende uma perspectiva interseccional, já que considera impossível traçar uma imagem completa da crise sistêmica que estamos vivendo, sem a compreensão dos sistemas estruturais e históricos de poder em suas dimensões de raça, etnia, classe, gênero e sexualidade.

Esse caminho também é seguido pela antropóloga peruana Luisa Elvira Belaunde (2019) ao analisar os impactos do desmatamento sobre as relações de gênero entre os povos indígenas da Amazônia peruana. Em seu capítulo, a autora revisita estudos das áreas de ecologia, botânica e arqueologia para demonstrar que, diferente do que se costuma imaginar, a Amazônia, em grande parte, é uma floresta antropogênica, ou seja, historicamente gerada a partir de intervenção humana. Assim como as relações entre homens e mulheres, que se conectam diretamente com os manejos da floresta e estão em constantes transformações.

No último capítulo, a ativista e acadêmica Sarah Kerremans (2019) recorda os episódios de derrames de petróleo produzidos pela implantação do Oleoduto Norteperuano. Ela o conceitua como uma veia aberta na Amazônia peruana, que incide diretamente na promoção das mudanças climáticas, apesar de todo o esforço desempenhado pelas mulheres locais para evitá-lo. Organizadas, as mães indígenas dessas zonas afetadas se manifestam frente à contaminação das águas, entre outros temas presentes nas agendas de suas reivindicações que, assim como as demais citadas, estão comprometidas com esta difícil tarefa que é contribuir para que o céu não caia.

Na obra também foram incluídas as entrevistas realizadas com duas importantes lideranças quechuas, Tarcila Rivera e Tania Pariona. As duas mulheres ocupam lugares de destaque no cenário político peruano. Rivera, atualmente é integrante do Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas e Pariona é congressista da República do Peru. Nas páginas que seguem, as experientes ativistas compartilham as suas reflexões sobre a situação da mudança climática no país e a necessidade de implementação de políticas públicas específicas para mitigar os seus efeitos sobre as mulheres indígenas.

Os capítulos que integram o livro Mulheres indígenas frente al cambio climático nos encaminham para um debate urgente e atual. As discussões em torno do clima e das mudanças climáticas não podem ser conduzidas sem o verdadeiro reconhecimento do papel desempenhado pelas mulheres indígenas no enfrentamento e mitigação do processo. Este entendimento é compartilhado entre as autoras e os autores da obra que, a partir de diferentes perspectivas, se aliam à luta coletiva pelo direito e garantia das inúmeras formas de vida.

Referências

ACOSTA, Alberto. “La renovada dependencia extractivista. Violencia sobre cuerpos, territorios y visiones”. In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 17-34. [ Links ]

BELAUNDE, Luisa. “La deforestación en el mosaico de los cambios que afectan las relaciones de género entre los pueblos amazónicos”. In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 91-123. [ Links ]

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. Trad. de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha; rev. de trad. de Marina Vargas; rev. técnica de Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. [ Links ]

CASTILLO FERNÁNDEZ, Marlene. “Casi invisibles, conservando y defendiendo el bosque: mujeres awajún y wampis en el Alto Marañón (Amazonas-Perú). In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 125-147. [ Links ]

DE LA CADENA, Marisol. “Protestando desde lo incomún”. In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 35-48. [ Links ]

GUDYNAS, Eduardo. “Cambio climático, extractivismos y género: crisis entrelazadas dentro del desarrollo”. In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 49-72. [ Links ]

KERREMANS, Sarah. “El Oleoducto Norperuano, vena abierta en la Amazonía peruana”. In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 159-184. [ Links ]

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [ Links ]

RODRÍGUEZ ACHA, Majandra. “La justicia climática debe ser antipatriarcal. Enraizando nuestro activismo en el suelo fértil de nuestras diversidades”. In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 149-157. [ Links ]

SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. 224 p. [ Links ]

YECKTING VILELA, Fabiola. “Mujeres en la protección de los bosques y defensa de los páramos. Adaptación y mitigación del cambio climático en los bosques de polylepis y páramos en Huancabamba”. In: SANTISTEBAN, Rocío Silva et al. Mujeres indígenas frente al cambio climático. Lima: IWGIA, Grupo Internacional de Trabajo sobre Asuntos Indígenas, 2019. p. 73-89. [ Links ]

1Rocío Silva Santisteban Manrique é professora na Universidade Católica do Peru e integrante do Comitê Assessor do Observatório de Direitos da Natureza. Anteriormente, atuou como coordenadora Nacional de Direitos Humanos do Peru (2011-2015); e consultora da OXFAM no programa de gênero e juventude (SANTISTEBAN, 2019).

2A extirpação da Idolatria foi um fenômeno político-religioso ocorrido na América Espanhola a partir do século XVI e acentuado no século XVII. Tinha como objetivo a supressão de objetos, ritos e simbologias consideradas desviantes da fé católica. DE FIGUEIREDO, Bárbara, S. Evangelização no Vice-Reinado do Peru no Século XVII: A edificação da extirpação de idolatria entre o clero secular e as ordens religiosas (1621-1649). Anais do XXVIII Simpósio nacional de História, Florianópolis, 2015. Disponível em http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1427998927_ARQUIVO_EvangelizacaonoViceReinadodoPerunoseculoXVIIaedificacaodaExtirpacaodeIdolatriaentreocleroseculareasordensreligiosas(1621-1649).(1).pdf. Acesso em 09 ago. 2022.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: HAMMERSCHMIDT, Bianca. “Para que o céu não caia: mulheres indígenas frente às mudanças climáticas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e90482, 2023.

Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 10 de Agosto de 2022; Aceito: 29 de Novembro de 2022

bianca.hammerschmidt@posgrad.ufsc.br, bianca.hammer@gmail.com

Bianca Hammerschmidt (bianca.hammerschmidt@posgrad.ufsc.br, bianca.hammer@gmail.com) é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, (UFSC). Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Paraná e graduada em Ciências Sociais, pela mesma Universidade. É pesquisadora associada ao INCT Brasil Plural. Tem experiência na área de Etnologia Indígena, com ênfase em Gênero e Sexualidade

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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