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Revista Estudos Feministas

Print version ISSN 0104-026XOn-line version ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub Jan 01, 2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n190799 

Resenhas

Por uma performatividade dos discursos de ódio

Toward the performativity of hate speech

Por la performatividad del discurso del odio

Raisa Duarte da Silva Ribeiro1 
http://orcid.org/0000-0003-2339-3903

1Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Políticas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22270-000 - ccjp@unirio.br

BUTLER, Judith. Discurso de ódio - uma política do performativo. ., Viscardi, Roberta Fabbri. São Paulo: Editora Unesp, 2021.


Mais de duas décadas após lançamento de Excitable Speech: A Politics of the Performative, o livro é traduzido para o português. Nessa obra, Judith Butler (2021) aprofunda suas reflexões sobre a construção do sujeito a partir da linguagem, defendendo o potencial de reapropriação dos discursos de ódio.

Com uma linguagem menos obscura que as antecedentes.1Discurso de ódio - uma política do performativo exige, para melhor compreensão dos seus argumentos, o conhecimento prévio das teorias filosóficas mencionadas e do contexto histórico dos embates feministas da época.

O pensamento butleriano é profundamente influenciado por teorias pós-estruturalistas, em particular psicanalíticas, feministas e marxistas, e caracteriza-se por reflexões sobre a formação das identidades e subjetividades.2 Nessa obra permanece vigorando o estilo de escrita formado por digressões, pautadas em uma noção hegeliana de dialética, e são utilizados como ponto de partida para as reflexões as teorias da performatividade da linguagem de J. L. Austin, sobre eficácia da interpelação de Althusser e as foucaultianas sobre o sexo.

A obra foi elaborada após o esfriamento dos embates das chamadas guerras do sexo, ocorridas no decorrer das décadas de 1970 e 1980 nos EUA, nas quais ativistas e teóricas feministas se fragmentaram em torno de dois movimentos opostos: antipornografia e pró-pornografia. Estruturada em quatro capítulos, aborda manifestações de discurso de ódio, a autoexpressão homossexual e dirige críticas, em especial, às representações pornográficas e obscenas e à censura. Desde a introdução, Butler se debruça sobre a vulnerabilidade linguística, afirmando que todo ato de fala possui temporalidade (decorrente de um intervalo entre o contexto de origem ou a intenção que anima o enunciado e os efeitos produzidos) e historicidade (que consiste na história interna dos atos de fala, que constitui o seu significado contemporâneo, a sedimentação de seus usos, e que irá consubstanciar a sua força).

Nesse cenário, a autora analisa a teoria dos atos de fala de J. L. Austin, que revolucionou os estudos sobre a filosofia da linguagem ao superar a dicotomia estanque entre os atos de fala perlocucionários (ou constatativos) dos ilocucionários (ou performativos). Tradicionalmente, os atos de fala perlocucionários eram caracterizados pelo caráter descritivo, por relatarem algum fato ou circunstância, de forma que poderiam produzir, como consequência, certos efeitos; enquanto os ilocucionários eram encarados como aqueles que, ao dizer algo, faziam o que diziam e quando diziam, isto é, o dizer seria fazer, não havendo lapso temporal entre a fala e o seu impacto (John AUSTIN, 1962).

Austin sustentava que essa classificação era inadequada, na medida que os atos perlocucionários também possuíam uma dimensão performativa (isto é, a descrição pode ser bem ou malsucedida, o que é uma característica dos atos performativos) e os atos performativos, uma dimensão constatativa (isto é, o fazer alguma coisa por meio da fala também pressupõe também uma relação com um fato, o que é uma característica dos atos constatativos). A partir de Austin, todos os atos de fala passaram a possuir uma dimensão ilocucionária, na medida em que a linguagem é constitutiva, em maior ou menor medida, da realidade social (J. L. AUSTIN, 1990).

Inspirada pela teoria austiniana e destinando-lhe críticas, Butler sustenta que todo discurso, inclusive o discurso de ódio, deveria ser encarado como perlocucionário, por sempre existir um lapso temporal entre a fala e o seu efeito. Em sua visão, “o discurso está sempre, de alguma forma, fora do nosso controle” (Judith BUTLER, 2021, p. 34).

Ao analisar o discurso de ódio, Butler sustenta que uma das primeiras formas de injúria linguística é ser chamado de algo, mas a interpelação (ser chamado de um nome) também é uma das condições pelas quais o sujeito se constitui na linguagem. Nesse contexto, uma pessoa não está simplesmente restrita ao nome que ela é chamada, podendo esboçar duas reações i) ser menosprezada e humilhada; ou ii) adquirir, paradoxalmente, certa possibilidade de existência social, de forma que se poderia produzir uma resposta inesperada, que oferece possibilidades (BUTLER, 2021). Por ser o discurso injurioso vulnerável ao fracasso, Butler defendia que essa vulnerabilidade precisava ser explorada como resposta para combater a ameaça do discurso de ódio.

No primeiro capítulo, a autora realiza reflexões sobre o risco de atribuir aos tribunais a definição do que é um discurso de ódio. Ao analisar os precedentes R.A.V v. St. Paul (1992) e Wisconsin v. Mitchell (1993), Butler constata que a Suprema Corte estadunidense utilizou de forma estratégica e contraditória a configuração de discurso de ódio para restringir certas manifestações com a finalidade de promover objetivos políticos conservadores e frustrar esforços progressistas. Em suas palavras,

processar judicialmente o discurso de ódio nos tribunais significa correr o risco de conceder aos tribunais a oportunidade de nos impor a sua própria violência. E, se os tribunais começarem a definir o que é ou não é um discurso violento, essa decisão corre o risco de se tornar a mais vinculante das violações (BUTLER, 2021, p. 114-115).

Com base nessas análises jurisprudenciais, Butler, que possui visões anarquistas e não aposta no Direito como uma forma de intervenção apta a proteger mulheres e grupos sexuais minoritários, traz reflexões importantes para a área jurídica. Na esteira do que as teorias feministas vinham fazendo já há algum tempo, a autora explicita as limitações do Direito para a tutela de demandas progressistas, por possuir raízes patriarcais, racistas e classistas. Existe um forte risco do Direito ser utilizado contra os interesses dos grupos minoritários e essa crítica com relação à aplicação das normas jurídicas precisa ser devidamente enfrentada pelos operadores jurídicos.

Ao adentrar nas críticas à pornografia, as suas contribuições se tornam arrevesadas. Na introdução e em três dos quatro capítulos que compõem o volume, Butler destina fortes críticas às visões esboçadas por Catharine MacKinnon, uma das mais conhecidas expoentes do movimento antipornografia estadunidense.

Butler, no entanto, não enfrenta todos os problemas demonstrados por essa ativista, que direcionava suas críticas i) ao contexto das produções pornográficas; ii) à mensagem pornográfica; e iii) ao impacto da mensagem pornográfica na realidade social (Catharine MACKINNON, 1993). Em sua obra, Butler apenas se debruça sobre o conteúdo da mensagem pornográfica.

Desde a década de 1980, MacKinnon destinava críticas à pornografia3 e a tutela jurídica que lhe era destinada.4 Em sua ótica, a pornografia era encarada como uma prática política de dominação masculina, que gerava a subordinação e degradação feminina, tanto em sua produção quanto pelo seu consumo.

Com base nos relatos das vítimas e dados estatísticos, MacKinnon sustentava que a pornografia era uma forma de violência de gênero, que mulheres eram coagidas, violentadas, torturadas e estupradas para que os materiais pornográficos pudessem ser produzidos.

Além disso, a pornografia seria uma propaganda antimulher, que causava uma intrusão mental inconsciente nos seus consumidores, reforçando uma cultura sexista e a normalização de uma cultura de estupro. Em razão de seus impactos, MacKinnon criticava a proteção destinada à pornografia pelo ordenamento jurídico norte-americano, por meio da aplicação da Primeira Emenda (liberdade de expressão), por vislumbrar que tutelar a pornografia era uma forma de se proteger o abuso sexual enquanto discurso.

O argumento de MacKinnon de que a pornografia era constitutiva da realidade social era fundamentado na teoria austiniana dos atos de fala. A pornografia possuiria uma forte dimensão ilocucionária, na medida que produzia impactos significativos na realidade social.

Para Butler, a força ilocucionária atribuída por MacKinnon à pornografia era equivocada, na medida que sempre haveria um intervalo entre o contexto de origem do discurso e os seus impactos, que dariam abertura à possibilidade de reencenação e de ressignificação do enunciado ofensivo. Como as palavras podem assumir outra conotação e o enunciado é incontrolável, apropriável e capaz de assumir diferentes significados para além das intenções em que ele foi proferido, existiria uma possibilidade política de reapropriação do discurso.

A força do discurso de ódio poderia ser desativada por meio de uma utilização de um contradiscurso. Nesse contexto, seria necessária a sua repetição para registrá-las como objeto de outro discurso, que será invertido pela pessoa a quem se dirige, que passa a ter a oportunidade de contestá-lo e de falar a partir dele.

Apesar de concordar que boa parte da pornografia é ofensiva (BUTLER, 2021), Butler duvida que o discurso de ódio decorrente da pornografia seja sempre efetivo, afirmando que “não se trata de minimizar a dor que ele produz, mas de deixar aberta a possibilidade de que seu fracasso seja a condição de uma resposta crítica” (BUTLER, 2021, p. 39).

Butler protagoniza a defesa da utilização do discurso insurrecionário como resposta à linguagem injuriosa, em que pese reconhecer que certos contextos de discurso de ódio são difíceis de serem alterados. Nesse contexto, fica em aberta a seguinte questão: o que fazer nos casos em que esse contradiscurso não conseguir ser utilizado? Devo suportar a ofensa sem qualquer amparo legal?

A autora ainda informa que não se opõe a toda e qualquer regulamentação do discurso de ódio (BUTLER, 2021), mas afirma ser cética com relação à atribuição de um estatuto ilocucionário e a utilização de censura como resposta para essas formas de expressão. Aqui reside outro ponto de ambiguidade: Butler não menciona as hipóteses e as formas de regulamentação jurídica que estaria de acordo.

Não podemos olvidar que, ao explicitar a possibilidade de utilização subversiva do discurso, Butler traz uma grande contribuição para atuação política aos grupos vulneráveis. No entanto, sua teoria é deficiente ao não esclarecer que se trata de um uso mais excepcional que majoritário, que não consegue ser aplicado como regra em todos os casos e que não deve substituir outras formas de intervenção jurídica.

Referências

AUSTIN, John L. How to do things with words. Londres: Oxford University Press, 1962. [ Links ]

BUTLER, Judith . Discurso de ódio - uma política do performativo. Tradução de Roberta Fabbri Viscardi. São Paulo: Editora Unesp, 2021. [ Links ]

MACKINNON, Catharine A. Only Words. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1993. [ Links ]

1Me refiro aqui às obras Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990) e Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex” (1993), que são escritos em uma linguagem mais complexa e contêm maior abertura e falta de clareza em alguns pontos de sua reflexão.

2Sobre as influências de Judith Butler, cf., entre outros, SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Trad. de Guacira Lopes Louro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. p. 09-30.

3A principal obra da autora no tema, Only Words, foi publicada em 1993 e destinava-se a demonstrar que a visão da pornografia não é ‘apenas palavras’, mas que é constitutiva da realidade social. Antes disso, a autora já havia escrito artigos sobre o tema em obras mais gerais. Entre outras obras da autora, cf.: MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvard University Press, 1991. MACKINNON, Catharine A. Feminism Unmodified - Discourses on Life and Law. Cambridge, Massachusetts; London, England: Harvad University Press, 1987.

4Vale a pena destacar que, junto com Andrea Dworkin, Catharine MacKinnon foi responsável pela elaboração do projeto das Ordenações Antipornografia, que consistia em um projeto de ação civil reparatória das pessoas que tivessem sofrido danos em decorrência da pornografia. Apesar de terem sido propostos em várias cidades, como em Mineápolis e Indianópolis, as Ordenações Antipornografia foram julgadas inconstitucionais, sob justificativa de violação da Primeira Emenda (liberdade de expressão). Sobre o tema, cf.: DWORKIN, Andrea; MACKINNON, Catharine A. Pornography and Civil Rights - a New Day for Women’s Equality. Minneapolis: Organizing Against Pornography, 1989.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: RIBEIRO, Raisa Duarte da Silva. “Reflexões sobre o caráter performativo dos discursos de ódio”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e90799, 2023

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 01 de Setembro de 2022; Aceito: 29 de Novembro de 2022

raisa.ribeiro@unirio.br; raisaribeiro@hotmail.com

Raisa Duarte da Silva Ribeiro (raisa.ribeiro@unirio.br, raisaribeiro@hotmail.com) é professora de Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo PPGD-UFRJ, mestra em Direito Constitucional pelo PPGDC-UFF, especializada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Coordenadora dos projetos “Feminismo Literário” e “Feminismo Interamericano” e pesquisadora do NIDH. Advogada feminista com foco em litigância estratégica em direitos humanos.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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