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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub 01-Ene-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n191578 

Resenhas

Lutar pela prole: insubmissão e agência de mulheres escravizadas

Fight for the offspring: insubmission and agency of enslaved women

Luchar por la prole: insumisión y agencia de las mujeres esclavizadas

Elisângela da Silva Santos1 
http://orcid.org/0000-0003-2401-9999

1Universidade Federal de Jataí, Jataí, GO, Brasil. 75804-068 - uaeducacao@ufj.edu.br

MACHADO, Maria Helena. P. T.; BRITO, Luciana Cruz; VIANA, Iamara Silva; GOMES, Flávio dos Santos. Ventres Livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021.


Aceitar que eu e você tínhamos sido separados para sempre, como acontecia com quase todos os pretos. A exceção era a família conseguir ficar junta, como eu queria, não o contrário. (Ana Maria GONÇALVES, 2006, p. 721).

O livro Ventres Livres? Gênero, maternidade e legislação foi organizado por experientes pesquisadoras brasileiras do campo da história da escravidão no Brasil e nas Américas. Constituído por 24 capítulos, também escritos por investigadoras advindas de diversas instituições nacionais e internacionais, o volume confere a visibilidade necessária a esta robusta produção acadêmica sobre as vidas de mulheres e crianças profundamente violentadas pelo sistema escravista.

A obra foi publicada em 2021, em comemoração aos 150 anos da promulgação da Lei n. 2.040 (de setembro de 1871), mais conhecida como a Lei do Ventre Livre. Suas organizadoras lançam como desafio a reflexão “para além dos resultados diretos da lei”, enfocando “violência física, sexual, psicológica, simbólica e afetiva que recaíam especificamente sobre a mulher escravizada e sua prole” (Maria Helena P.T MACHADO; Luciana da Cruz BRITO; Iamara da Silva VIANA; Flávio dos Santos GOMES, 2021, p. 9).

Os debates da coletânea atualizam o assunto ao trazer a centralidade do gênero (é válido ressaltar que a grande maioria dos capítulos é de autoria de mulheres) e, mais ainda, dão relevo à perspectiva de encarar a maternidade não apenas como condição individual, mas também como status coletivo, ao ser o fundamento de ação política. Conforme as organizadoras ressaltam na introdução, para as escravizadas, a escravidão significou um controle de seus corpos, de suas funções biológicas e reprodutivas. Essa é uma das grandes contribuições da obra, que propõe uma análise alternativa à historiografia tradicional, que reconheceu apenas a figura genérica do escravo, ignorando as peculiaridades provenientes do gênero.

As autoras problematizam a representação construída a partir do imaginário social e acadêmico no qual as crianças negras e suas mães sempre são retratadas e reconhecidas como escravizadas. A obra parte da perspectiva do reconhecimento do papel social e cultural das mulheres na sociedade escravista, uma visão imprescindível para superar os pontos de vista tradicionais que insistiam na reificação do cativo e em sua vitimização. Ao interrelacionar as histórias de países marcados pelo processo da escravidão e suas consequências às mães e seus ventres, o livro atenta-se à perspectiva transnacional, já que os temas mobilizados não são necessariamente nacionais, estanques ou autorreferenciados. Ventres Livres? está dividido em cinco partes, sendo a primeira um estudo sobre os ventres em disputa: mulheres e crianças, gênero e violência na escravidão e no pós-abolição, totalizando sete capítulos. As autoras e autores deste bloco apontam os seguintes aspectos: a articulação política e o intenso movimento legislativo em torno dos projetos de libertação do ventre não se fizeram sem sobressaltos. De forma inventiva, a historiografia dedicada ao tema traz as implicações entre escravidão e gênero, apontando os desafios ao livre exercício da maternidade. Nos informam sobre o papel das mães e das amas de leite. Ressaltam as narrativas médicas sobre os corpos das mulheres escravizadas - tema de grande intensidade em periódicos médicos da Corte do Rio de Janeiro entre as décadas de 1830 a 1870. Analisam a emergência de um discurso racional sobre as expectativas de vida e tratamentos de cura de doenças das africanas e africanos diante das mortalidades do tráfico. Apontam narrativas que procuravam interferir e normatizar corpos, principalmente o de mulheres e crianças. Trazem as histórias de muitas mães durante a escravidão, que não puderam conviver com suas filhas e filhos. Abordam iniciativas e projetos de estadistas para a paulatina substituição do trabalho escravo para trabalho livre, o que certamente passava pelo ventre da mulher. Analisam as ações de reconhecimento de paternidade no início do século XX, que auxiliaram no entendimento da evolução da ideia de família no pós-abolição. Além da emergência de personagens como a da mãe preta e da preta velha que foram romantizadas pelo imaginário brasileiro.

Encerrando a primeira parte do livro com o tema dos ventres em disputa, o último capítulo analisa a violência sofrida por mulheres e crianças nos momentos que antecederam a promulgação da Lei, problematizando a historiografia acostumada a enfocar a passividade da mulher escravizada e seu consentimento ao sexo aos seus proprietários, o que abriu espaço para versões do cotidiano comprometidas com uma narrativa nacionalista “heteronormativa e patriarcal” (Luciana da Cruz BRITO, 2021, p. 163).

A segunda parte realiza uma análise sobre os Ventres Livres em perspectiva Atlântica. O capítulo intitulado “As primeiras experiências do ventre livre no mundo atlântico: Norte dos Estados Unidos e da América Latina (1780-1842)” aborda as primeiras experiências do ventre livre no Norte dos Estados Unidos e América Latina entre 1780 e 1842, ambas ligadas às guerras coloniais e ao surgimento de sociedades independentes. Para a autora, o desmonte da instituição escravista ocorreu por meio de leis que interferiram diretamente no corpo de mulheres escravizadas e em seus filhos e filhas, o que não seria um mero acaso. Com isso, ressalta a importância do gênero neste processo.

Seguindo a reflexão a partir da perspectiva transnacional e comparativa, o capítulo “Mulheres escravizadas, ventre livre: Havana e Rio de Janeiro, 1870-1888” demarca as experiências de mulheres escravizadas e ventres livres em Havana e no Rio de Janeiro, entre 1870 e 1888. Foi o princípio do “ventre livre”, segundo a autora, que marcou o debate nestas cidades não apenas no mundo do direito, mas também em discussões sociais mais amplas. As mulheres urbanas participaram em proporções altas de uma longa tradição de busca da liberdade através de meios oficiais: desde autocompras e manumissões, até demandas legais e petições oficiais, motivo pelo qual examinar as redes de comunicação e sociabilidade das mulheres urbanas revela como suas iniciativas legais eram moldadas.

O capítulo “Resgates em família? Escravidão, gênero e liberdade (Senegal - século XIX)” enfoca os resgates em família no Senegal, durante o século XIX. Em 1836, uma ordenança real foi publicada no Senegal regulando o chamado “resgate forçado dos escravos” (Juliana Barreto FARIAS, 2021, p. 209), ou seja, o direito do cativo de comprar a sua própria liberdade e também a de seus pais, filhas, filhos ou cônjuges, mediante pagamento em dinheiro.

O capítulo “O ventre entre a escravidão e a emancipação: Projeto Passy e a abolição gradual no mundo atlântico francês (Século XIX)” avalia o projeto de emancipação gradual do mundo atlântico francês no século XIX, atentando-se a como gênero e maternidade atravessaram as disputas políticas em torno da escravidão. Ao enfocar o papel das mulheres escravizadas nos debates de emancipação e nas ações abolicionistas no período final do escravismo nas colônias francesas, a autora demonstra como as mulheres negras e seus corpos se tornaram centrais não apenas para a manutenção dos sistemas escravistas nas Américas, devido à exploração de seu trabalho produtivo, mas também como foram imbricadas nas complexas disputas acerca da emancipação das escravas e escravos nas Américas.

O capítulo seguinte “Maternidades negras antes e depois do Regulamento para a Educação e o Exercício dos Libertos de 1813 (Buenos Aires entre o final do século XVIII e o Instituto do Liberto)” analisa as maternidades negras antes e depois do regulamento para a educação e exercício dos libertos de 1813, em Buenos Aires. A autora aponta que o pater familias não perdeu notoriedade a partir dos novos arranjos sociais emergentes após 1813, os nascidos livres ficavam sob a ambígua jurisdição de seus patronos. Com isso, as mães escravizadas antes e depois da legislação de ventres livres foram tuteladas no exercício da maternidade.

O capítulo “Mulheres escravizadas, alforrias e tuteladas: os difíceis caminhos para a plena liberdade” analisa o árduo caminho de mulheres escravizadas para o pleno gozo de suas liberdades, pois a Lei de 1871 não surge de repente, mas de um amplo debate em diferentes âmbitos da sociedade e da tensão entre o interesse em conciliar a preservação da propriedade escrava com uma perspectiva de emancipação gradual, cujas rédeas fossem controladas pela ordem escravista. A autora aponta que a imersão no cotidiano das mulheres, principalmente, demonstra suas diversas formas de resistência, e as ações mostram a insegurança a que elas estavam submetidas.

A terceira parte da obra volta sua ênfase para a família na aquisição da liberdade e é composta por dois capítulos, examina crianças ingênuas, suas famílias e a disputa por liberdade, na Paraíba do Norte entre 1871 e 1888. O primeiro texto adverte que muitas escravizadas e escravizados tentaram reconstruir vínculos afetivos familiares, ou romper com o cativeiro por meio de fuga; são variados casos de fugas de mães com filhas e filhos que buscaram o reestabelecimento de laços afetivos.

O capítulo seguinte ressalta as extensas discussões envolvendo as relações familiares que colocaram no centro dos debates a maternidade e a infância. Moralmente, era vital que as ingênuas e ingênuos se reunissem em família e sua estabilidade era importante, e isso conduziu a manifestações contrárias ao ventre livre, pois haveria a quebra de laços entre mães e filhas e filhos. Se fosse concedida a liberdade às mulheres, e a manutenção dos homens no cativeiro, seria algo considerado injusto para os homens.

A parte IV do livro ressalta as narrativas de resistências em Manaus e no Grão Pará. Interessante apontar que as autoras do capítulo “Ventres livres da Amazônia: debates e caminhos da liberdade e da escravidão (Manaus, 1869-1888)” trazem uma novidade ao tratar da temática numa região tradicionalmente vista como alijada das políticas e práticas escravistas. Os casos presentes nos arquivos de justiça da região demonstram que, apesar dos objetivos da Lei, por mais que fossem conservadores, não foram plenamente alcançados, mas a repercussão marcou os jornais da capital, as vidas de homens, mulheres e crianças, que, através dela, alcançaram a liberdade.

No capítulo “Mais que um ventre livre: escravas, libertas e cidadania no Grão-Pará” a ênfase recai sobre o papel de escravizadas e libertas nos discursos abolicionistas no Grão Pará ao longo de 1870 e 1880. “A alusão à maternidade” ganhou “conotações e forças argumentativas” (José Maria Bezerra NETO; Marcelo Ferreira LOBO, 2021, p. 368) em ações movidas pelas mulheres. A Lei marcou a construção de noções de direitos relativos aos escravos e libertos. Esta situação, segundo os autores, demarcou o lugar das mulheres para além das margens do modelo de cidadania oitocentista, marcado pelas hierarquias raciais e de gênero.

O capítulo seguinte aponta as disputas pelos significados da liberdade do ventre escravizado após a Lei do Ventre Livre, devido à complexidade da reconfiguração das relações sociais que ainda envolveriam o proprietário e o Estado nas disputas pelo destino das crianças nascidas depois de 1871. A hipótese da autora é que as fugas agenciadas pelas mulheres escravizadas eram “motivadas pela precarização de sua maternagem” (Lucimar Felisberto dos SANTOS, 2021, p. 391).

O capítulo “Do tempo e da lei: 1871 e a experiência do Maranhão” é dedicado às experiências da Lei de 1871 no Maranhão. A autora e o autor apontam que a região vivenciava uma conturbada crise política, econômica e social desde a década de 1840. Não havia consenso em torno das proposições da Lei, e os protagonistas do debate publicavam suas concepções em jornais filiados à sua perspectiva ideológica. Em sua dimensão social, essa lei emancipou alguns poucos escravos e escravas, no plano cultural não promoveu nenhuma mudança substancial ao se considerar que a cultura escravista se manteve ao longo do século XIX.

A última parte do livro, composta por cinco capítulos, aponta as arenas jurídicas de direitos do cativeiro e gozo da liberdade. Os temas abordam as mudanças ocorridas na arena dos tribunais. Remonta-se algumas estratégias de mulheres escravizadas para obter alforrias e a pedagogia da liberdade. Ressalta a importância das redes de sociabilidade na construção de melhores possibilidades de vida entre a comunidade de escravizados e libertos.

Relembra-se a participação do jurista Luiz Gama para a implementação da Lei do Ventre Livre. Ele tentou consolidar redes de solidariedade com as escravizadas, utilizando-se das mais variadas estratégias e argumentações jurídicas, e constituiu em torno de si várias redes de apoio. Abordam as contendas entre mães ex-escravizadas e patronas pelos serviços de menores ingênuos e livres, entre 1825-1890.

O livro encerra com uma reflexão sobre as escolas noturnas da Bahia no final do século XIX. Muitas instituições estavam presentes nas pautas de prevenção, correção ou contenção da vadiagem. Para tanto, valores morais e modos de conduta eram ensinados, o que poderia ser visto como um diferencial considerável para perspectivas de modernização da sociedade.

Como se pode observar, o livro, com suas mais de 500 páginas, aprofunda o significado da Lei do Ventre Livre, principalmente para as mulheres e seus filhos e filhas, que surgem como personagens protagonistas, possuem nomes, são localizadas histórica e geograficamente. As fontes utilizadas pelos autores e autoras atestam a atuação e a capilaridade das mulheres que tiveram em seus ventres a possibilidade de liberdade, mas também, como consequência, sua maternagem comprometida.

As pesquisadoras e pesquisadores estabeleceram como perspectiva enxergar a maternidade muito além de uma esfera privada e homogênea. As estratégias empregadas por aquelas mães, tanto ao criarem e cuidarem de suas filhas e filhos, foram diversas, e a instituição escravista impediu muitas de exercerem este direito, portanto, o livro é fundamental para a compreensão da reavaliação do sentido da maternidade na sociedade brasileira, pois localiza política, econômica e historicamente as condições de ser mãe, numa sociedade brutamente desigual.

Referências

FARIAS, Juliana Barreto. “Resgates em família? Escravidão, gênero e liberdade (Senegal - século XIX)”. In: MACHADO, Maria Helena. P. T.; BRITO, Luciana Cruz; VIANA, Iamara Silva; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Ventres Livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021. p. 209-231. [ Links ]

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. São Paulo: Record, 2006. [ Links ]

MACHADO, Maria Helena. P. T.; BRITO, Luciana Cruz; VIANA, Iamara Silva; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Ventres Livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021. [ Links ]

NETO, José Maria Bezerra ; LOBO, Marcelo Ferreira. “Mais que um ventre livre: escravas, libertas e cidadania no Grão-Pará”. In: MACHADO, Maria Helena. P. T.; BRITO, Luciana Cruz; VIANA, Iamara Silva; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Ventres Livres? Gênero, maternidade e legislação. São Paulo: Editora Unesp, 2021. p. 365-404. [ Links ]

1Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SANTOS, Elisângela da Silva. “Lutar pela prole: insubmissão e agência de mulheres escravizadas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e91578, 2023.

2Financiamento: Não se aplica.

3Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 28 de Outubro de 2022; Aceito: 29 de Novembro de 2022

elisangelasilva@ufj.edu.br; licass20@gmail.com

Elisângela da Silva Santos (elisangelasilva@ufj.edu.br, licass20@gmail.com) possui Doutorado em Ciências Sociais, pela Unesp/Marília, realiza pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), é professora de Sociologia e Fundamentos da Universidade Federal de Jataí

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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