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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub 01-Ene-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n191633 

Resenhas

Lesbianidade na Antiguidade?

Lesbianism in Antiquity?

¿Lesbianismo en la Antigüedad?

Letticia Batista Rodrigues Leite1 
http://orcid.org/0000-0001-5045-3364

1Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Metafísica, Brasília, DF, Brasil. 70910-900 - metafisica@unb.br

BOEHRINGER, Sandra. Homossexualidade feminina na Antiguidade grega e romana. Poleti, Iraci. São Paulo: Editora Unifesp, 2022.


Passados 15 anos de sua publicação original em francês (Sandra BOEHRINGER, 2007) e cerca de um ano depois de sua publicação em língua inglesa (BOEHRINGER, 2021), as leitoras e leitores têm agora o prazer de encontrar, traduzido para o português, o primeiro trabalho de fôlego inteiramente dedicado à temática do erotismo entre mulheres na Grécia e Roma antigas. Trata-se de Homossexualidade feminina na Antiguidade grega e romana (BOEHRINGER, 2022), traduzido por Iraci Poleti e publicado pela Editora Unifesp.

A autora, Sandra Boehringer, hoje professora de História grega da Universidade de Estrasburgo, na França, talvez seja ainda pouco conhecida pelo público brasileiro. Contudo, vale ressaltar, ela não apenas participou de alguns eventos promovidos por universidades brasileiras, como também já teve alguns de seus artigos traduzidos e publicados em revistas acadêmicas nacionais (BOEHRINGER, 2016; 2017).

Neste livro, assim como em sua vasta produção bibliográfica, Boehringer reúne um considerável volume de fontes de informações/representações textuais e iconográficas gregas e romanas antigas, que será analisado a partir de perspectivas teóricas e de ferramentas metodológicas eficazes. A autora propõe, assim, análises contextualizadas, aliadas a um diálogo com uma ampla produção bibliográfica. Bibliografia que inclui trabalhos produzidos por pesquisadoras e pesquisadores especialistas nas referidas sociedades, bem como interlocuções com publicações de estudiosas e estudiosos cujas pesquisas colocaram em evidência a historicidade inerente às relações sociais entre os gêneros e às práticas sexuais e valores a elas associados.

Propondo-se a investigar a ‘homossexualidade feminina’ no âmbito das sociedades antigas, a autora, porém, não se desvia de questões como: se aceitamos, como propuseram David Halperin, John Winkler e Froma Zeitlin (1990), que as sociedades gregas e romanas antigas são before sexuality, isto é, anteriores à ideia da existência de uma ‘sexualidade’ e, portanto de uma ‘orientação sexual’, seria possível e pertinente pensar as representações de práticas eróticas antigas valendo-se de categorizações tais como, entre outras, ‘heterossexualidade’, ‘homossexualidade’, ‘bissexualidade’ e, mais especificamente, neste caso, ‘lesbianidade’? Assumindo seu lugar de fala localizado no século XXI, e dialogando com questões e categorias identitárias que pertencem ao nosso presente, tal como afirma David Halperin no prefácio que acompanha o livro, Boehringer não se furta a reconhecer a legitimidade de uma eventual “identificação emocional e política por parte das lésbicas e dos gays com a Antiguidade grega e romana” (BOEHRINGER, 2022, p. 17). Contudo, a autora tampouco deixa de lado o distanciamento crítico e ético que lhe cabe. Consequentemente, se seu olhar e questionamentos pertencem ao presente, fazendo com que, eventualmente, ela recorra a categorias político-identitárias que nos são familiares, as análises dos discursos produzidos no âmbito das sociedades antigas propostas por Boehringer nos convidam a (re)conhecer categorizações outras e próprias aos contextos nos quais emergiram e/ou operaram.

É, pois, a partir de um estudo destemido, cujos resultados foram apresentados nas três grandes partes que compõem este livro, que o trabalho de Sandra Boehringer nos guia em uma viagem pelos discursos em torno do homoerotismo no feminino, produzidos entre os séculos VII a.C. e V d.C., nos espaços aos quais regularmente nos referimos como ‘Grécia’ e ‘Roma’ antigas1.

Antecedida por um prefácio assinado por David Halperin, professor da Universidade de Michigan, e por uma introdução intitulada “Por uma exploração construcionista da sociedade antiga”, a primeira parte do livro, “Mito e poesia lírica arcaica: o homoerotismo no feminino” trata, em um primeiro momento, das possíveis evocações ao homoerotismo feminino feitas, no período arcaico (VII - VI a.C.), em fragmentos das composições de Álcman e de Safo, não sem antes trazer um breve balanço das problemáticas levantadas pelos estudos sobre os rituais de passagem e de iniciação masculina e feminina. Em seguida, a autora se debruça sobre uma composição de Anacreonte e as controversas interpretações a ela relacionadas. Já em um segundo momento, Boehringer analisa os relatos mitológicos e representações iconográficas relativos à personagem Calisto, no âmbito dos quais emerge a temática de uma ligação entre a deusa Ártemis e a referida jovem. A autora mostra assim que, pelo menos desde o chamado período arcaico, os raros testemunhos dos quais dispomos sugerem que as relações entre mulheres não seriam ignoradas e tampouco consideradas como inconcebíveis.

Na segunda parte da obra, intitulada “A Grécia clássica e helenística: do silêncio ao humor”, Boehringer contempla a Grécia dos períodos clássico (V - IV a.C.) e helenístico (IV - I a.C.). Em um primeiro momento, a autora traz uma análise do discurso proferido pela personagem Aristófanes em O Banquete de Platão, que menciona a existência de mulheres que buscam se relacionar com outras mulheres. Em seguida, a autora analisa outro texto platônico, As Leis, no qual há duas menções às práticas eróticas entre mulheres. Nessa segunda parte do livro, abre-se também espaço para a análise de algumas imagens produzidas no período clássico, com destaque para a escassez de representações de possíveis relações sexuais entre mulheres. Quanto ao período helenístico, Boehringer nos apresenta a análise dos poucos traços discursivos que evocam uma relação entre duas mulheres. O epigrama atribuído a Alsclepíades de Samos, que remonta ao século III a.C., é um deles. Com relação aos referidos períodos, não obstante as muitas diferenças relativas ao período precedente, segundo a autora é possível apontar duas constantes que se fazem presentes no conjunto de discursos e imagens analisadas: a ausência de condenação moral relativa às relações entre mulheres, em si, bem como a inexistência de qualquer esforço de distinção de gênero entre as duas parceiras representadas.

Ao longo da época romana, que será objeto de estudo da terceira e última parte do livro intitulada “O período romano: da ficção mítica à sátira”, a autora destacará a produção de importantes mudanças relativas aos discursos sobre as práticas eróticas entre mulheres. Boehringer começa sua análise por passagens encontradas em dois textos atribuídos a Ovídio, produzidos entre o final do século I a.C. e o início do século I d.C. O primeiro, a décima quinta carta da Heroides, traz uma das primeiras menções ao homoerotismo feminino associada à figura da poeta Safo de Lesbos. Em seguida, para além de mencionar outras referências, a autora analisa os relatos presentes nos livros I e IX das Metamorfoses. Em um segundo momento dessa terceira parte, por intermédio da análise de textos atribuídos a Fedro e a Sêneca - Fábulas e Controvérsias, respectivamente -, a autora chama a atenção para as primeiras ocorrências de tribas, termo latino usado para designar aquelas que se relacionam eroticamente com outras mulheres, derivado do grego (τριβάς), e que reapareceria mais tarde estreitamente vinculado a um nome: Filênis, que encontramos, por exemplo, em dois epigramas de autoria de Marcial e nos Amores de Pseudo-Luciano. A autora analisará também uma passagem do Satíricon de Petrônio, das Sátiras de Juvenal e, por fim, proporá uma análise do quinto Diálogos das Cortesãs de Luciano, no qual também há referências a práticas eróticas entre mulheres, em associação à ilha de Lesbos. Boehringer pontua aqui que, a partir do início do século I d.C., é possível identificar a emergência de um discurso depreciativo sobre a temática das relações eróticas entre mulheres, por intermédio da caricatura e da sátira, bem como a manifestação de uma dissimetria no tratamento da questão das relações homoeróticas masculinas e femininas. Antes de passar às suas conclusões, Boehringer fará, ainda, uma breve análise de passagens que aludem ao homoerotismo feminino, presentes em discursos científicos oriundos da onirocricia, da fisiognomonia e da medicina, que vão do século II ao século V d.C.

Na conclusão do seu livro, Boehringer faz uma tentativa de propor algumas diretrizes de reflexão no tocante ao que seriam as categorias ‘pré-homossexuais femininas’, diferenciando-as das categorias ‘pré-homossexuais masculinas’ propostas por Halperin, bem como dos estereótipos contemporâneos vinculados às práticas afetivas e eróticas entre mulheres.

Vale ressaltar, por fim, que esse livro traz contribuições que enriquecem um campo de trabalho que vai além dos estudos sobre as práticas eróticas antigas. Ele traz elementos de reflexão que contribuem para iluminar os complexos sistemas de polarização próprios aos regimes de gênero que operaram nas sociedades antigas, em diferentes momentos, em intersecção com as distinções e as oposições entre os indivíduos, relacionados às suas origens, estatutos sociais, profissões, entre outros.

Espera-se, assim, que a presente obra venha a encontrar um caloroso acolhimento por parte de estudantes e de pesquisadoras e pesquisadores brasileiras/os que já vêm contribuindo com os estudos relacionados às questões de gênero e sexualidades, no âmbito dos chamados Estudos Clássicos e fora dele.

Referências

BOEHRINGER, Sandra. Homosexualité féminine dans l’Antiquité grecque et romaine. Paris: Les Belles Lettres, 2007. [ Links ]

BOEHRINGER, Sandra. Female Homosexuality in Ancient Greece and Rome. London: Routledge, 2021. [ Links ]

BOEHRINGER, Sandra. Homossexualidade feminina na Antiguidade grega e romana. Trad. de Iraci Poleti. São Paulo: Editora Unifesp, 2022. [ Links ]

BOEHRINGER, Sandra. “A sexualidade tem um passado? Do érôs grego à sexualidade contemporânea: questionamentos modernos ao mundo antigo”. Revista Bagoas - Estudos gays: gênero e sexualidade. Natal, v. 10, n. 15, p. 13-32, jul./dez. 2016. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/10538 . Acesso em 14/09/2022. [ Links ]

BOEHRINGER, Sandra. “Eu sou Titono, eu sou Aurora: performance e erotismo no ‘novo’ Fr. 58 de Safo”. Revista Veredas da História, Salvador, v. 10, n. 1, p. 27-54, jul. de 2017. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/rvh/article/view/47955 . Acesso em 14/09/2022. [ Links ]

HALPERIN, David; WINKLER, John; ZEITLIN, Froma (eds.). Before Sexuality: The Construction of Erotic Experience in the Ancient Greek World. Princeton: Princeton University Press, 1990. [ Links ]

1 Quando falamos em “Grécia antiga” englobamos as populações falantes de grego que viveram não apenas na atual Grécia, mas também em parte da costa ocidental da atual Turquia, nas margens do mar Negro, assim como as cidades nos arredores do Mediterrâneo e em territórios conquistados por Alexandre na Ásia. Quando falamos em Roma, por sua vez, englobamos não apenas a cidade da península itálica, mas também o amplo território sob dominação romana nos períodos da República e do Império, um espaço amplo e bastante heterogêneo, onde eram falados vários idiomas.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: LEITE, Letticia Batista Rodrigues. “Lesbianidade na Antiguidade?”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e91633, 2023

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 01 de Novembro de 2022; Aceito: 29 de Novembro de 2022

Letticia Batista Rodrigues Leite (letticiabrl@gmail.com) é doutora em História pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne/ANHIMA. Atualmente é Pesquisadora Colaboradora Plena no Programa de Pós-Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga, investigando principalmente os seguintes temas: poesia (crítica e recepção), memórias, identidades, usos do passado, críticas feministas, lesboerotismo.

Contribuição de autoria:

Não se aplica

Conflito de interesses:

Não se aplica

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