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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.2 Florianópolis  2023  Epub 01-Maio-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n286227 

Artigos

Sutilezas do relacionamento afetivo-sexual entre mulheres em Retrato de uma Jovem em Chamas

Subtleties of affective-sexual relationships between women in Portrait of a Lady on Fire

Sutilezas de la relación afectivo-sexual entre mujeres en Retrato de una Mujer en Llamas

Carolina de Souza1  , Concepção, coleta, análise e interpretação dos dados, redação do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-9333-7486

Manoel Antônio dos Santos1  , Concepção, análise e interpretação dos dados, redação do manuscrito, revisão crítica, aprovação da versão final a ser publicada
http://orcid.org/0000-0001-8214-7767

1Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Ribeirão Preto, SP, Brasil. 14040-901 - posgraduacao.psicologia@ffclrp.usp.br


Resumo:

Os discursos normativizantes que oprimem as mulheres lésbicas prescrevem como legítima a heterossexualidade como base de funcionamento da organização social. Para reforçar a heteronormatividade, a existência lésbica é mantida invisibilizada ou desqualificada como sexualidade volúvel. O objetivo deste estudo é analisar as sutilezas do relacionamento afetivo entre mulheres como insurgências frente a esse apagamento. Para tanto, parte-se da leitura do filme Retrato de uma Jovem em Chamas, com base nas teorias feministas de gênero. Tendo como método a etnografia de tela, as análises foram amparadas na descrição de diálogos/cenas extraídos/as da narrativa cinematográfica. Inspiradas na arte, as protagonistas criam soluções criativas para desatar os nós das amarras que as impedem de viverem plenamente a relação. A obra celebra a potência subversiva do amor entre mulheres, não apenas pelo vértice do vínculo amoroso, mas também de diferentes alianças e relações de cumplicidade e sororidade possíveis.

Palavras-chave: lesbianidade; feminismo; heteronormatividade; etnografia de tela

Abstract:

The normativizing discourses that oppress lesbian women prescribe as legitimate heterosexuality as the basis for the functioning of social organization. To reinforce heteronormativity, lesbian existence is kept invisibilized or disqualified as a voluble sexuality. The objective of this study is to analyze the subtleties of the affective relationship between women as insurgencies against this erasure. To do so, it is based on the reading of the film Portrait of a Lady on Fire, based on feminist gender theories. Using screen ethnography as a method, the analyses were based on the description of dialogues/scenes extracted from the cinematographic narrative. Inspired by art, the protagonists create creative solutions to untie the knots of the moorings that prevent them from fully living their relationship. The work celebrates the subversive power of love between women, not only through the apex of the love bond, but also through different alliances and relationships of complicity and sorority.

Keywords: Lesbianity; Feminism; Heteronormativity; Screen Ethnography

Resumen:

Los discursos normativos que oprimen a las mujeres lesbianas prescriben la heterosexualidad como legítima base del funcionamiento de la organización social. Para reforzar la heteronormatividad, la existencia lésbica se mantiene invisibilizada o descalificada como una sexualidad voluble. El objetivo de este estudio es analizar las sutilezas de la relación afectiva entre las mujeres como insurgencias contra este borrado. Para ello, se basa en la lectura de la película Retrato de una Mujer en Llamas, a partir de las teorías feministas de género. Utilizando la etnografía de pantalla como método, los análisis se basaron en la descripción de diálogos/escenas extraídos/as de la narración cinematográfica. Inspirándose en el arte, las protagonistas crean soluciones creativas para desatar los nudos de las ataduras que les impiden vivir plenamente su relación. La obra celebra el poder subversivo del amor entre mujeres, no sólo a través del vértice del vínculo amoroso, sino también a través de diferentes alianzas y relaciones de complicidad y sororidad.

Palabras clave: lesbianidad; feminismo; heteronormatividad; etnografía de la pantalla

Introdução

Segundo Linda Nicholson (2000), os indivíduos diferem em termos das expectativas sociais que supõem que devem cumprir a respeito do pensar, sentir e agir, bem como na maneira como cada um entende o próprio corpo. Assim, as diferenças construídas socialmente entre masculino e feminino não estão ligadas apenas aos fenômenos limitados que muitas vezes são associados ao “gênero”, como estereótipos culturais de comportamento, temperamento e personalidade, mas também repercutem maneiras culturalmente diversificadas de se compreender o corpo e os desejos que o atravessam em cada organização social e período histórico.

Teresa de Lauretis (1994) chamou a atenção para a necessidade de se ter cuidado com o conceito de gênero, para que não seja baseado apenas na diferença sexual a ponto de ser confundido com ela. Nessa concepção crítica, o corpo se torna uma variável constantemente presente na maneira como a distinção entre masculino e feminino se mantém ativa e atuante em todas as sociedades (LAURETIS, 1994; NICHOLSON, 2000). De acordo com María Lugones (2020), a biologia é uma interpretação e, portanto, o sexo biológico é socialmente construído. De fato, segundo Joan Scott (1995), desde a sua formulação clássica o gênero

[...] é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre à mudança nas representações de poder, mas a direção da mudança não segue necessariamente um sentido único [...] (SCOTT, 1995, p. 21).

As teóricas dos estudos de gênero argumentam que existe um controle social ou acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos, o que faz com que o gênero também esteja implicado à concepção e construção do poder em si (NICHOLSON, 2000; SCOTT, 1995). As mulheres são tradicionalmente controladas por instituições mediante diversas estratégias de subjugação, como a maternidade, o modelo de família nuclear, a exploração econômica do trabalho doméstico não remunerado, a heterossexualidade compulsória, entre outras forças sociais que têm ganhado robustez pela via da legislação, da mídia e da censura (Adrienne RICH, 1980; Monique WITTIG, 1992).

É importante demarcar que não é possível refletir sobre gênero sem considerar a interseccionalidade e, nesse contexto e pensando na questão racial, Lélia Gonzalez (2020) argumenta que as mulheres não brancas foram “faladas”, definidas e classificadas por um sistema de dominação que as coloca em um lugar de inferioridade na hierarquia social. Esse sistema nega às mulheres não brancas o direito de serem sujeitos de seus próprios discursos e de escreverem suas próprias histórias, o que faz com que a própria humanidade dessas mulheres seja suprimida. Um outro eixo do sistema de poder, de acordo com Lugones (2020), é a colonialidade. A autora entende que tal conceito não está relacionado apenas à classificação racial, mas também ao gênero, à sexualidade, à classe social e ao controle do sexo, do trabalho, da subjetividade e da legitimação da autoridade. As teorias alienadas produzidas na Europa e nos Estados Unidos muitas vezes colocam o pensamento produzido por pessoas de descendência africana e por mulheres indígenas e lésbicas em um local de suspeição e subalternidade (Ochy CURIEL, 2009; GONZALEZ, 2020).

Os discursos normativizantes estabelecem como correto e legítimo que a base de funcionamento harmônico de qualquer sociedade é a heterossexualidade. Configuram um conjunto de retóricas prescritivas que declaram que a verdade que proclamam, definida nos termos das normatividades de gênero e sexualidade impostas como naturais, situa-se em um campo que seria apolítico, como se a existência da homossexualidade fosse um signo politicamente insignificante (Adriana AZEVEDO, 2020; WITTIG, 1992). Um dos muitos meios de reforço da heteronormatividade como retórica hegemônica é manter a existência lésbica como uma (im)possibilidade invisibilizada, ou como uma sexualidade volúvel, que aparece de tempos em tempos de maneira relutante e fragmentada, para depois desaparecer novamente (RICH, 1980). Mirando a questão da imposição de um regime de verdade sobre a orientação sexual e sua relação com o gênero, Jules Falquet (2009) propõe uma definição que procura contemplar um olhar ampliado sobre as lesbianidades:

Além de poder ser utilizado ou reivindicado para descrever práticas individuais de mulheres, o termo “lesbianidade” se refere também a um conjunto de abordagens teóricas e movimentos sociais que problematizam essas práticas. Globalmente, no sentido político, a lesbianidade pode ser considerada uma crítica em atos e um questionamento do sistema heterossexual compulsório de organização social. Este se baseia na estrita divisão da humanidade em dois sexos, fundamentos de dois gêneros obrigados a manter relações desiguais de “complementaridade” no contexto de uma rígida divisão sexual do trabalho (FALQUET, 2009, p. 123).

Dessa forma, se a lésbica não dissimula sua orientação, acaba enfrentando discriminação quando procura emprego ou um imóvel de aluguel, ou está sujeita a sofrer perseguição e violência nas ruas. Mesmo no âmbito recôndito de um abrigo para mulheres em situação de violência, em programas acadêmicos voltados para a promoção do empoderamento feminino e nos serviços de saúde que deveriam acolher suas usuárias, as lésbicas assumidas podem ser desprestigiadas e até demitidas, enquanto outras vão se sentir pressionadas a não se assumirem (RICH, 1980; Carolina SOUZA et al., 2021).

A sociedade foi ensinada a reagir com medo e ódio frente as diferenças humanas, e uma das maneiras de lidar com essas diferenças, caso elas sejam consideradas subordinadas, é destruí-las (Audre LORDE, 2019). Pensando especificamente na violência de gênero, entende-se que este termo indica que os atos violentos contra as mulheres são perpetrados em âmbitos e desenhos relacionais e, portanto, espaços interpessoais, a partir de cenários sociais e históricos que não são invariáveis. As diversas formas de violências (físicas, sexuais, psicológicas, patrimoniais ou morais) atingem a mulher tanto no contexto privado familiar como nos âmbitos de trabalho e espaços públicos. Isso não significa assumir uma postura vitimizadora em relação à mulher, mas evidenciar que a “expressiva concentração desse tipo de violência se impõe historicamente sobre os corpos femininos e que as relações violentas existem porque as relações assimétricas de poder permeiam o cotidiano das pessoas” (Lourdes BANDEIRA, 2019, p. 319-320).

Criar disfarces para preservar sua orientação e refugiar-se no semelhante acaba se tornando a resposta mais passiva e debilitante que se pode articular face ao clima sombrio de coerção e repressão política, insegurança econômica e a sempre revigorada “caça” às diferenças, percebidas como ameaçadoras para a manutenção das vantagens e privilégios masculinos (RICH, 1980). Nesses casos, pode-se observar a naturalização da opressão que acompanha o “pensamento hétero”, que busca transformar seus conceitos em leis universais, reafirmando a falácia essencialista e generalizante de que elas são reproduzidas em todas as sociedades, em todas as épocas e por todos os indivíduos (WITTIG, 1992).

Pelo viés da heterossexualidade compulsória, a experiência lésbica é medida por uma escala que vai do desviante ao odioso, ou simplesmente é ignorada e dada como convenientemente invisível (RICH, 1980). Qualquer teorização que considere a existência lésbica como uma simples “preferência sexual”, um fenômeno marginal, uma aberração antinatural, o oposto de uma relação heterossexual ou de uma relação homossexual masculina, seria extremamente frágil, mesmo que trouxesse alguma contribuição (RICH, 1980). Todas essas pseudoteorias, segundo Wittig (1992), eliminam a possibilidade de as mulheres lésbicas criarem suas próprias categorias, além de serem silenciadas, invisibilizadas e estigmatizadas em diversos ambientes, inclusive no meio acadêmico e dentro do próprio movimento LGBTQIA+ (Norma MOGROVEJO, 2020).

Um entrave teórico-político para o feminismo é a naturalização da suposição de que a maior parte das mulheres são heterossexuais de modo inerente. Tal proposição se sustenta por conta do apagamento da existência lésbica, por ela ser vista como doença e por ser tratada como algo excepcional, mais do que intrínseco. Entretanto, esta suposição de que se trata de um desvio que pode ser reparado também se revigora porque se reconhece que a heterossexualidade não seria uma “preferência” de muitas mulheres, mas algo imposto e mantido com base na força, administrado, escrutinado, organizado e divulgado (RICH, 1980; WITTIG, 1992). Há um longo caminho a ser percorrido pelas pessoas que se consideram livremente heterossexuais “de forma inata”. Os discursos heteronormativos oprimem as mulheres lésbicas ao impedi-las de se pronunciarem livremente, a não ser que se expressem por meio do discurso dominante (WITTIG, 1992).

Uma das barreiras ao entendimento de que uma mulher não só pode como tem pleno direito de obter satisfação afetiva e sexual com outra, é o fato historicamente determinado de que a mulher não é vista como sujeito e sim “satisfeita” por um. Por essa concepção sexista/machista, legado intangível do patriarcado, a mulher é o objeto, e o homem, o sujeito. Dessa forma, não há espaço para acolher as manifestações divergentes e as lesbianidades se tornam impensáveis (Livia TOLEDO; Fernando TEIXEIRA FILHO, 2010). As lésbicas não se relacionam com qualquer imagem legitimada de mulher na sociedade heteronormativizada: a mulher é vista como objeto para satisfazer o homem ou o homem é o sujeito capacitado e competente para aplacar seus desejos sexuais. Por sua natureza volúvel de “ser incompleto”, caberia ao homem a edificante missão de “completá-la”. A relação entre duas mulheres joga por terra essa proposição, ao fazer com que sujeito e objeto de satisfação coincidam, isto é, que estejam presentes ao mesmo tempo e na mesma pessoa - a mulher - rompendo com a perspectiva comentada anteriormente, o que faz com que as lesbianidades sejam descredibilizadas (SOUZA; André LIMA-SANTOS; Manoel SANTOS, 2021).

Ao considerar o termo “lesbianismo” inadequado, dada sua conotação patológica, Adrienne Rich (1980) cria dois outros termos potentes: existência lésbica e continuum lésbico. A existência lésbica se refere tanto à presença histórica de lésbicas quanto à criação constante de sentidos dessa mesma existência. Ela involucra uma negação: a quebra de um tabu, a rejeição de um modo coercitivo de vida, e ao mesmo tempo sustenta uma afirmação: uma investida sensível contra o direito masculino de ter acesso às mulheres como objetos de usufruto dos homens, uma recusa ao triunfo do patriarcado, um ato de resistência à opressão masculina. Para Rich (1980), a heterossexualidade compulsória também tenta se impor às mulheres ao destruir registros, aniquilar memórias e suprimir cartas e livros que documentam a existência lésbica. O apagamento sistemático dos rastros e reminiscências que dão testemunho dessa existência impede a reconstrução de percursos vitais, recalcando a inscrição simbólica de trajetórias de luta e resistência. Sem direito de acesso às suas memórias, as lésbicas não estão livres para escreverem sua própria história.

Ao formular o conceito de continuum lésbico, Rich (1980) abarca um conjunto:

[...] de experiências de identificação da mulher, não simplesmente o fato de que uma mulher tivesse alguma vez tido ou conscientemente tivesse desejado uma experiência sexual genital com outra mulher. Se nós ampliamos isso a fim de abarcar muito mais formas de intensidade primária entre mulheres, inclusive o compartilhamento de uma vida interior mais rica, um vínculo contra a tirania masculina, o dar e receber de apoio prático e político [...] (RICH, 1980, p. 35-36).

Ao se definir um continuum lésbico, o conceito de existência lésbica também é ampliado e aprofundado, sendo possível perceber que o erótico não está confinado a qualquer parte do corpo, tampouco se reduz ao corpóreo em si. Considerando a probabilidade de que todas as mulheres existam ao longo de um continuum lésbico - pode-se pensar até mesmo na mulher idosa que está morrendo e sendo cuidada, tocada e amparada por outras mulheres - observa-se a possibilidade de se mover para dentro ou para fora desse continuum, mesmo que nem todas as mulheres se identifiquem como lésbicas. É possível conectar os aspectos de identificação entre as mulheres, como as relações de amizade, as associações de mulheres, as organizações comunitárias, entre muitas outras maneiras de produzir o laço social de intimidade (RICH, 1980).

Uma visão complementar do conceito de gênero é oferecida por Lauretis (1994), para quem tal construto não pode ser substantivado e visto como um dado a priori, isto é, que precede à humanidade, nem como uma propriedade de corpos. Gênero é, sobretudo, produto e processo de uma série de tecnologias sociais ou aparelhos biomédicos. Gênero, percebido nessa perspectiva como representação e autorrepresentação, é criação de diversas tecnologias sociais, como a fotografia, o cinema, as artes plásticas e as mídias, tais como o rádio, a televisão, a imprensa e as redes sociais. É forjado pelas epistemologias, pronunciamentos e práticas críticas institucionalizadas, regulado pelos discursos da ciência e da religião, e sedimentado pelas práticas e hábitos da vida ordinária (LAURETIS, 1994).

Desse modo, considerando a relação existente entre gênero e mídias, o objetivo deste estudo é analisar as sutilezas do relacionamento afetivo-sexual entre mulheres, entendendo-as como insurgências frente ao apagamento estrutural das lesbianidades. Para tanto, entende-se que as produções artísticas podem contribuir para estimular mudanças nos padrões de família e nas configurações das relações de gênero e da sexualidade ao retratarem a luta por visibilidade de segmentos historicamente marginalizados (Eduardo RISK; Manoel SANTOS, 2021). Neste percurso nos guiamos pelas possibilidades de leitura das relações entre mulheres retratadas no filme Retrato de uma Jovem em Chamas (Bénédicte COUVREUR; Céline SCIAMMA, 2019), com base nas teorias feministas de gênero. Essa produção artística foi escolhida por expor a complexidade envolvida nas relações socioafetivas entre mulheres em suas múltiplas facetas: entre companheiras, familiares, amigas, serviçais, na Europa da segunda metade do século XVIII.

Metodologia

Trata-se de um estudo de caráter qualitativo, fundamentado metodologicamente na etnografia de tela que, de acordo com Carmen Rial (2005):

[...] É uma metodologia que transporta para o estudo do texto da mídia procedimentos próprios da pesquisa antropológica, como a longa imersão do pesquisador no campo, a observação sistemática, registro em caderno de campo, etc., e outras próprias da crítica cinematográfica (análise de planos, de movimentos de câmera, de opções de montagem, enfim, da linguagem cinematográfica e suas significações) (RIAL, 2005, p. 120-121).

Uma metodologia etnográfica demanda investimento e tempo, bem como a necessidade de se olhar a tela cada vez mais e de diferentes ângulos. A tela é onipresente, está em todos os lugares e, por isso, entende-se que os modos de olhar são modificados por ela e pela posição assumida pelo olhar da pesquisadora. Também importa a lente que se utiliza para instrumentar esse olhar. Olha-se sempre a partir de um vértice, de um determinado lugar e com um olhar mediado, seja pela tecnologia audiovisual (no caso, colocada a serviço da composição cinematográfica), seja pelo aparato conceitual proporcionado pela abordagem teórica utilizada (RISK; SANTOS, 2021). Entretanto, não existe uma separação nítida entre a tela e a vida real, o que é visto na primeira é tão real quanto o que acontece na segunda (Patrícia BALESTRIN; Rosângela SOARES, 2014).

Mais do que anteparo, a tela é tida como uma teia de discursos que faz com que as realidades existam, persistam, resistam e se modifiquem de acordo com as múltiplas possibilidades de sentido engendradas pela combinação dos signos, em fecunda interação com os olhares que interpelam a obra. A tela representa uma possibilidade concreta de construir e “(re)apresentar” uma realidade. Sendo assim, um campo fértil para ser analisado dentro desta abordagem é o cinema, que exemplifica, em seus efeitos de enquadramentos e telas, diversos processos de significação que estão entrelaçados com a construção, desconstrução ou manutenção de determinados discursos (BALESTRIN; SOARES, 2014).

O cinema codifica uma forma específica de linguagem, que é capaz de interrogar, desestabilizar e transformar certas construções sociais preexistentes, graças à manipulação dos recursos de cinematografia, montagem e decupagem. Não é possível saber os efeitos que um filme pode eliciar no espectador, ou vice-versa. É apenas na relação dinâmica estabelecida com a imagem em movimento que se sabe o que pode ou não acontecer no espaço intersticial entre espectador e película. Dessa forma, tem-se que a análise de filmes é ao mesmo tempo múltipla e singular e, por isso, é necessário reconhecer de que lugar o filme é assistido e como ele afeta o espectador (BALESTRIN; SOARES, 2014).

Para a realização da etnografia de tela foram percorridos os seguintes passos: (1) longo período de contato com o campo, ou seja, a tela; (2) observação sistemática e variada, assistindo ao filme de diversas maneiras e perspectivas (com ou sem pausas, alterando sequências, vendo os extras, etc.); (3) registro no caderno de campo de cenas do filme, questões e tópicos que pareçam relevantes para a análise; (4) escolha das cenas para a análise (BALESTRIN; SOARES, 2014).

Os filmes e mídias em geral são compostos por elementos diversos e heterogêneos (vídeo, áudio, texto, cenografia, figurino, iluminação) e, portanto, é importante que a coleta de material e composição do corpus sejam feitas de acordo com regras bem definidas pela pesquisadora. A análise dos dados deve levar em conta as matrizes históricas, sociais e culturais presentes no corpus, e os procedimentos para tal análise precisam considerar “o rigor e o enquadre metodológico de pesquisas qualitativas sobre mídias e suas intrincadas ressonâncias subjetivas e sociais” (RISK; SANTOS, 2021, p. 14).

Para organização do corpus deste estudo, foi selecionado um filme francês, intitulado Retrato de uma Jovem em Chamas (COUVREUR; SCIAMMA, 2019), como materialidade mediadora a ser tomada em consideração e analisada com base nas teorias feministas de gênero (LAURETIS, 1994; NICHOLSON, 2000; RICH, 1980; SCOTT, 1995; WITTIG, 1992). A escolha dessa obra se deve ao fato de que nela o relacionamento entre mulheres é representado com o protagonismo, complexidade e requintes de sensibilidade que o tema solicita. Um dos eixos norteadores desta obra é colocar em exame a situação da mulher na França pré-revolucionária de 1770, explorando as perspectivas de diferentes estratos sociais.

Para alcançar a proposta que estimulou a elaboração deste estudo, as análises serão amparadas na descrição de ações e alguns excertos de diálogos extraídos do filme, para que o leitor possa ter uma compreensão contextualizada. A discussão será dividida em quatro categorias de análise que identificamos no filme (trabalho, heterossexualidade compulsória, continuum lésbico e existência lésbica), a partir das unidades de significado que recortamos e que nos pareceram relevantes para instigar reflexões sobre a presença da mulher na sociedade do final do século XVIII, inclusive por sua potencial contribuição para elucidar temas candentes no contemporâneo, com o máximo de parcimônia e cuidado para evitarmos qualquer laivo de anacronismo.

Resultados e Discussão

Construção da narrativa: obra escolhida, personagens e enredo

O filme selecionado, cujo título original é Portrait de la Jeune Fille en Feu, é uma produção francesa de 2019, realizada sob a direção de Sciamma e produção de Couvreur. O longa-metragem se passa na França do século XVIII. No início do filme, Marianne, interpretada por Noémie Merlant, está ministrando aulas de pintura. Uma de suas alunas parece estar intrigada e lhe pergunta sobre um quadro, pintado pela própria Marianne, que o nomeou de “Retrato de uma jovem em chamas”. A partir desse mote, a trama retrocede no tempo e o espectador é levado a revisitar, pelo fio da memória da pintora, os acontecimentos que estavam relacionados às condições de produção daquele quadro.

Anos antes, enfrentando as turbulências de uma viagem marítima, Marianne chega a uma ilha isolada na Bretanha. Havia sido encarregada de pintar um retrato sob encomenda de uma jovem chamada Héloïse, personagem de Adèle Haenel. Tudo o que ela sabe é que a moça estava prometida em casamento para um nobre de Milão. Marianne é informada de que Héloïse já havia se recusado a posar para outros retratos, pois rejeitava a ideia de se casar. Ela vivia em um convento antes do suicídio de sua irmã mais velha, para onde fora enviada para manter preservada sua virgindade. O trágico desfecho da vida da irmã exigiu seu retorno inesperado à vida mundana e forjou seu noivado, que logo se revela um martírio para a jovem.

Marianne atua como “acompanhante” contratada de Héloïse para poder pintá-la em segredo. Para cumprir sua missão secreta, a jovem pintora a acompanha em passeios diários pela praia. Com seu senso de dever aflorado, Marianne tenta memorizar os traços de Héloïse à luz do dia para poder reproduzi-los durante a noite. Revela-se uma sensível e exímia retratista e, como tal, se apaixona pelo objeto estético que cria. A artista destrói a representação que cria para provar sua lealdade à modelo por quem se apaixona durante a jornada.

Quando Marianne finalmente conclui o retrato, se vê incapaz de trair a confiança de Héloïse e decide revelar a verdadeira razão de sua estada na ilha. Depois que Héloïse critica o quadro, que parece não retratar sua verdadeira natureza, Marianne é tomada por um impulso incontido e destrói a obra. A mãe de Héloïse, que no filme é designada apenas como Condessa (Valeria Golino), fica irritada ao descobrir que a artista contratada não havia cumprido com o prometido. Contudo, Héloïse avisa à mãe que está disposta a posar voluntariamente para Marianne durante os próximos dias, o que deixa a Condessa surpresa. Ela então parte para a Itália para dar andamento à negociação do casamento.

Nesse ínterim, a ligação amorosa de Héloïse e Marianne se torna mais intensa. Uma noite, elas releram a história de Orfeu e Eurídice enquanto debatiam a verdadeira razão pela qual Orfeu, transgredindo conscientemente uma interdição, virou-se no final do mito para olhar pela última vez para sua amada Eurídice. Outras relações de solidariedade selam o pacto entre mulheres. Héloïse e Marianne ajudam Sophie (Luàna Bajrami), a jovem criada solteira, a fazer um aborto. As três saem à noite e vão congregar com outras mulheres, que cantam e dançam em volta de uma fogueira a céu aberto. Durante esse ritual, o vestido de Héloïse se incendeia. Algumas cenas adiante, Marianne é assombrada por visões de Héloïse com um vestido de noiva.

No dia seguinte, Marianne e Héloïse vão a uma caverna e compartilham seu primeiro beijo. Apaixonadas, vivem sua primeira relação sexual naquela noite. Nos dias seguintes, o romance se fortalece. No entanto, o relacionamento é interceptado pelo inevitável retorno da mãe de Héloïse. Em clima de despedida, Marianne mostra a Héloïse os esboços que fez de cada uma delas para que elas possam se lembrar uma da outra. Quando Marianne sai apressada da casa, ela ouve Héloïse dizer, do alto da escada: “Vire-se”, remetendo obviamente ao mito de Orfeu e Eurídice. Marianne se vira e vê Héloïse, no alto da escada, trajando seu vestido de noiva, materializando exatamente a imagem que estava prefigurada nas alucinações que assombraram Marianne anteriormente.

Um novo corte temporal e a história é transportada novamente ao presente. Marianne revela que viu Héloïse mais duas vezes. A primeira vez foi em uma galeria onde Marianne estava exibindo algumas de suas pinturas. Ela vê um retrato, pintado por outro(a) pintor(a), no qual Héloïse é retratada com uma criança, que aparenta ser sua filha. Marianne percebe que, na pintura, Héloïse está segurando um livro, mostrando apenas a borda da página 28, o que evoca um episódio do passado, em que Héloïse havia pedido à Marianne que fizesse um autorretrato para que ela, Héloïse, guardasse de lembrança. A imagem de Marianne ficou registrada naquela página com a qual Héloïse se deixou pintar, anos depois. A comunicação não podia ser mais cristalina, embora a mensagem cifrada do quadro só pudesse ser clara e decodificada pela amada, depois de tantos anos de separação. A pintura, que tem como suporte material a tela, evoca simbolicamente a tela do cinema, acrescentando uma nova camada de significado, em metalinguagem, como a imagem em espelho do quadro de Héloïse apontando à página 28.

A segunda vez em que Marianne se depara casualmente com Héloïse ocorre durante um concerto de música clássica, que tem lugar em um suntuoso teatro. Por obra do destino, Héloïse e Marianne se sentaram em frente uma da outra. Já não se trata de um encontro, como o que se deu na exposição, mediado pela representação; agora ambas estavam em presença uma da outra, dividindo o mesmo recinto, embora mantidas à distância. Héloïse aparentemente não se deu conta da presença de Marianne, mas esta a reconheceu e ficou emocionada quando a orquestra tocou o Presto de “Verão”, um dos concertos que compõem a peça As quatro estações de Vivaldi, que Marianne já havia tocado para ela em um cravo naqueles dias de felicidade mútua que haviam compartilhado na ilha.

Análise das personagens femininas

Entendendo que a arte e a cultura ocidental são um registro da história da construção da representação do gênero, é pertinente tentar evidenciar nessas instâncias o protagonismo das mulheres (LAURETIS, 1994). É esse protagonismo que vemos aflorar na obra escolhida para análise. O elenco completo do filme é composto por 10 pessoas, sendo oito atrizes e dois atores. Praticamente todas as cenas do filme são encenadas por mulheres e os dois homens que aparecem são figurantes e sequer têm nomes próprios, sendo chamados de “O homem da sala” e “O barqueiro”. Não só o elenco é majoritariamente feminino como todas as protagonistas são mulheres e a diretora e a produtora do filme também são mulheres. Em Retrato de uma Jovem em Chamas, observa-se que os homens não são imprescindíveis para que a história se desenvolva, pois o enredo não depende de sua presença concreta em nenhum momento. Um terceiro homem, que só aparece por meio de evocação fortuita na trama, é o nobre de Milão, representando o domínio masculino e a relação de poder que objetifica e precifica o corpo feminino.

Considerando que o gênero também é criação de várias tecnologias sociais, como o cinema (LAURETIS, 1994), é importante que os filmes mostrem personagens femininas que se distanciem dos estereótipos de gênero e considerem outras maneiras de ser e existir para as mulheres. O filme escolhido para análise mostra mulheres que trabalham fora de casa (como a pintora e a criada) e que escolhem não se casar, como é o caso de Marianne. Também dá voz a mulheres silenciadas, que questionam a ideia de que seu destino se resume a cumprir o destino traçado à sua revelia, de conferir realidade a uma união heterossexual compulsória sacramentada pelo casamento arranjado, como sugere a atitude inicial de Héloïse ao resistir tenazmente a posar para a pintora.

Antes de passarmos para as categorias de análise é importante destacar que as personagens do filme são todas mulheres brancas e europeias e que essas características eurocentradas, ainda que as classes sociais sejam distintas, posicionam essas mulheres dentro da sociedade em um local diferente do ocupado pelas mulheres não brancas e não europeias. As mulheres brancas, dentro do movimento feminista, ao focarem sua atenção em suas próprias experiências de opressão acabam se esquecendo das diferenças de classe, raça, idade/geração e orientação sexual que se reproduzem no próprio movimento, e esquecem que há outras discriminações para além da motivada por orientação sexual divergente. Dessa forma, elas desconsideram seu privilégio natural de brancura e ignoram o fato de que essa lógica coloca as mulheres de cor no lugar de “outras”, isto é, de “exóticas” (GONZALES, 2020; LORDE, 2019).

O filme selecionado para análise retrata apenas mulheres brancas e suas diversas formas de relacionamento e de possibilidades de vida, mas sem considerar as questões raciais, a colonialidade e os privilégios relacionados à cor da pele (branca) e à nacionalidade (europeia) das personagens. Desse modo, não é possível sustentar a suposição de que as análises realizadas neste estudo contemplam todas as formas de relacionamento entre mulheres.

A etnografia de tela permitiu a construção de quatro categorias de análise: (1) Trabalho, (2) Heterossexualidade compulsória, (3) Continuum lésbico, (4) Existência lésbica.

Categoria 1: Trabalho

Para discutirmos essa temática, selecionamos dois excertos do filme, os quais serão transcritos na sequência:

Trecho 1:

Héloïse (H): Pinta modelos nus, também?

Marianne (M): Mulheres, sim.

H: Por que não homens?

M: Não tenho direito.

H: Por quê?

M: Porque sou mulher.

H: É questão de pudor?

M: É principalmente um modo de nos impedir de fazer a grande arte. Sem ter noção da anatomia masculina, toda a gama de grandes temas nos é suprimida. (COUVREUR; SCIAMMA, 2019).

Trecho 2:

[Marianne se encontra em uma exposição de arte, em pé, em frente a alguns quadros]

Homem (H): Está tomando conta?

Marianne (M): Observo as reações.

H: Quer a minha? Esse Orfeu é muito bom. Seu pai está em boa forma.

M: O quadro é meu, me inscrevi usando o nome dele. (COUVREUR; SCIAMMA, 2019).

No primeiro trecho observamos como mulheres e homens têm acesso diferenciado aos recursos materiais e simbólicos que demarcam lugares de poder na hierarquia social (NICHOLSON, 2000; SCOTT, 1995). Marianne tem acesso restrito aos recursos para aprimorar suas habilidades como pintora; ela não pode pintar homens nus, não conhece a anatomia masculina em detalhes para poder recriá-los esteticamente de forma mais verossímil. A personagem explica que isso não está relacionado a uma questão de pudor, e sim de poder. É uma tecnologia utilizada para privar as mulheres, de modo que elas não consigam avançar em suas carreiras dentro da “grande arte”. Isso mostra como o gênero e, mais especificamente no trecho selecionado, o acesso diferencial aos recursos implicam a construção do poder em si (NICHOLSON, 2000; SCOTT, 1995). Se as mulheres têm menos possibilidades de emprego, por terem aprendido menos “técnicas” de pintura, é provável que elas angariarão menos prestígio e recursos financeiros com os frutos de seu trabalho, o que também influencia a configuração das relações de poder.

No segundo trecho, vemos mais nitidamente como as relações de poder são construídas de maneira diferenciada entre homens e mulheres. Marianne inscreve em uma exposição de arte um quadro que havia pintado como se fora de autoria de seu pai, pois não seria aceita uma obra assinada por uma mulher. O próprio crítico que se aproxima dela não cogita que ela possa ser autora da obra, tanto que pergunta se ela está “tomando conta” dos quadros. Ele elogia as obras, relacionando-as automaticamente com o trabalho de um homem. É como se fosse inconcebível a ideia de que uma mulher pudesse pintar de maneira tão competente a ponto de ter uma tela selecionada para ser exibida conjuntamente a de outros pintores homens. Lembremos que a história se passa na véspera da Revolução Francesa, isto é, no umbral de um novo tempo da história da humanidade, marcado, pela primeira vez, pela questão da igualdade e, portanto, do acesso universal aos direitos e à cidadania. As mulheres ainda não existiam como sujeitos de direitos. A jovem e talentosa pintora usa de um artifício (mascarar seu nome próprio, ou seja, abdicar de sua identidade) para driblar os privilégios masculinos naturalizados e, assim, ingressar, ainda que clandestinamente, em um ambiente reservado exclusivamente aos homens (NICHOLSON, 2000; SCOTT, 1995).

Além disso, entende-se que a categoria “trabalho” emerge como intimamente articulada à relação amorosa estabelecida pelas protagonistas. O lugar simbólico diferenciado que elas ocupam no contexto do trabalho fornece pistas valiosas para a discussão de como são tramadas certas sutilezas do relacionamento afetivo-sexual entre elas. É por conta do trabalho de Marianne, que ela e Héloïse têm a oportunidade de se conhecerem e de passarem um tempo considerável juntas sem grandes restrições e vigilância. Também é devido ao seu trabalho que Marianne pôde ver, em uma das cenas finais do filme, a pintura de Héloïse com o livro aberto na página 28. Não por acaso, podemos perceber, na cena descrita na categoria seguinte, que Héloïse pontua para Marianne que o fato de ela trabalhar, de ter uma condição socioeconômica subalterna, lhe concede a liberdade de poder escolher não se casar, ou seja, de poder não “cumprir” com um dos scripts da heterossexualidade compulsória (RICH, 1980), conceito que será melhor destrinchado na próxima categoria.

Categoria 2: Heterossexualidade compulsória

Trecho 3:

Condessa (C): Reconhece esse quadro?

Marianne (M): Foi pintado pelo meu pai.

C: Um dos primeiros dele. Foi em Milão, antes do meu casamento. O pretendente da minha filha é milanês. Irá levá-la para lá se o retrato agradá-lo.

M: A senhora irá embora?

C: É preciso que saiba de uma coisa... Ela já extenuou um pintor antes de você com uma atitude simples. Recusou-se a posar. Ele [o pretendente] nunca viu o rosto dela.

M: Por que ela se recusa a ser retratada?

C: Porque recusa este casamento.

[...]

C: Aquele quadro chegou aqui antes de mim. Quando entrei nesta sala pela primeira vez, encontrei-me frente a minha imagem pendurada na parede. Ela me esperava. (COUVREUR; SCIAMMA, 2019).

Trecho 4:

Héloïse (H): O que sabe do meu futuro casamento?

Marianne (M): Sei que está prometida a um milanês, só isso.

H: É tudo o que sei, também. Entende que isso me inquieta?

[...]

M: Teria preferido ficar no convento?

H: É uma existência que tem suas vantagens. Há uma biblioteca. Pode-se cantar e ouvir música. Além disso, viver a igualdade é um sentimento bom. [...] E você mesma, como irá se casar?

M: Não sei se irei me casar.

H: Não é obrigada?

M: Não. Sucederei meu pai, ele tem um comércio.

H: Como você pode escolher, não consegue me entender. (COUVREUR; SCIAMMA, 2019).

No excerto número 3 vemos que a mãe de Héloïse parece bastante determinada em casar a filha, como se não houvesse outras possibilidades de futuro para Héloïse que não fosse a união permanente com um homem e alguém pertencente à nobreza. A cena transmite a ideia de que a mãe também foi submetida a um processo de casamento “arranjado”, o que a faz, no presente, se encarregar da missão de perpetuar essa tradição, reproduzindo com a filha o que sua mãe fez com ela quando jovem. Por experiência própria, a Condessa tinha convicção de que a filha acabaria por se resignar com seu destino.

O marido da Condessa também viu o quadro da noiva antes de confirmar o casamento, o que nos faz pensar que a decisão pelo matrimônio é prerrogativa exclusiva do homem. É ele quem decide se o casamento vai ocorrer ou não, quando e como, enquanto a mulher não recebe praticamente qualquer informação sobre o suposto noivo, como Héloïse comenta no trecho 4. Nesse trecho também, Héloïse se mostra surpresa quando fica sabendo que Marianne não precisa se resignar a se casar, o que indica que a primeira provavelmente também tinha a crença de que o casamento é destino inelutável e compulsório para as mulheres, um legado transmitido de geração para geração pelas mulheres que passaram pelo mesmo processo (RICH, 1980). Os requisitos do heteropatriarcado, como menciona Bernedette Muthien (2020), mantêm as mulheres lésbicas e heterossexuais presas às amarras inconscientes de uma sexualidade binária. Todavia, um elemento “novo” nesse movimento de reprodução inercial da opressão das mulheres é o fato de que o quadro da jovem é pintado por uma outra mulher.

Esses elementos selecionados remetem à ideia da heterossexualidade compulsória, ou seja, a crença de que as mulheres teriam uma preferência inata para se relacionarem com homens e que a orientação delas seria indubitavelmente heterossexual (RICH, 1980). Essas noções atávicas, herdadas e depois transmitidas de forma acrítica, oprimem as mulheres, impedindo que elas se libertem das imagens sociais que são construídas/pintadas e dos scripts que elas não controlam. Historicamente, elas não podem escolher livremente com quem desejam se relacionar, ou mesmo se desejam se relacionar, o que faz com que tal escolha fique completamente a critério dos homens. São eles que recebem os quadros, que controlam as imagens produzidas do feminino, e que confirmam se haverá ou não o casamento para a produção de sua descendência e continuidade de sua estirpe - e, junto com ela, a perpetuação das relações desiguais de poder.

Por outro lado, também observamos nos trechos selecionados algumas estratégias de resistência, por meio das quais as protagonistas tentam romper com esse “pensamento hétero” (WITTIG, 1992). A mulher lésbica, enquanto desertora da heterossexualidade compulsória, evidencia a artificialidade da divisão natural dos sexos e mostra como tal divisão é um feito político. Entende-se, assim, que “a posição estratégica de fugitiva da classe mulher leva a lésbica a destruir o sistema heterossexual” (MOGROVEJO, 2020, p. 42). A princípio, Héloïse esboça um ato de resistência frente a ser objetificada por sua mãe. Tenta não se submeter ao casamento arranjado, impedindo que o primeiro pintor contratado a veja e, consequentemente, que seu suposto noivo pudesse também vislumbrar sua aparência por meio do quadro, de modo que pudesse confirmar o interesse por tomar posse dela pela via do contrato de união conjugal.

Já Marianne explica que a possibilidade de futuramente administrar um pequeno negócio, um comércio herdado do pai, garantirá seu sustento material, o que faz com que ela não se sinta obrigada a casar para existir socialmente, além do fato de ela mesma já ser uma profissional autônoma, como professora de pintura. As protagonistas nos ajudam a pensar na artificialidade da heterossexualidade e em como o casamento não é uma lei universal que pode ser reproduzida em todas as sociedades, em todas as épocas e por todos os indivíduos, mostrando que existem brechas e possibilidades, ainda que limitadas, de subverter as normas e resistir, mantendo acesa a “chama” de seu desejo transgressor.

Categoria 3: Continuum lésbico

Optamos por descrever as próximas cenas em vez de transcrevê-las, porque são excertos nos quais o potencial está sugerido sobretudo nas imagens, com grande economia de falas. As cenas escolhidas são momentos em que Marianne, Héloïse e Sophie estão fazendo algo juntas. Depois que a Condessa vai viajar, percebemos que as três personagens começam a interagir com maior frequência. Há vários momentos de descontração em que elas estão cozinhando juntas, fazendo refeições juntas, conversando, rindo, bebendo vinho juntas, lendo e debatendo histórias, jogando cartas. Sophie, inclusive, acaba contando para Marianne e Héloïse que sua menstruação está atrasada e que ela provavelmente está grávida, mas que não gostaria de ter um filho.

Em um clima de compreensão e acolhimento, as duas começam a ajudar Sophie a praticar um aborto. Elas a acompanham em exercícios físicos intensos e saem em busca de plantas com propriedades abortivas. Contudo, esses métodos caseiros não funcionaram e Sophie agenda uma consulta com uma mulher que realiza abortos. No dia da consulta, Marianne e Héloïse escolhem acompanhar Sophie até a casa da mulher. No caminho, elas encontram um grande grupo composto apenas por mulheres, que dançam e cantam ao redor de uma fogueira, enquanto celebram, conversam, murmuram, comem e bebem juntas. Em seguida, vemos Marianne e Héloïse na casa da mulher, junto com Sophie, durante a realização do aborto. As duas a amparam e continuam cuidando dela depois do procedimento. Durante a cena da fogueira, a barra do vestido de Héloïse acaba pegando fogo e há um corte rápido na cena. A história nos transporta para o momento em que Marianne e Héloïse dão seu primeiro beijo. Estabelece-se, assim, uma conexão entre o fogo e o erotismo que inflama o corpo virginal da jovem que tem seu desejo despertado pelo corpo de outra mulher. As mulheres em torno da fogueira se aquecem enquanto reproduzem um ritual iniciático. Fogo é o símbolo milenar da transformação, no caso, a passagem do corpo virginal a um corpo de mulher que finalmente conhece o gozo.

Entendendo que o continuum lésbico abrange um conjunto de experiências de identificação entre mulheres e não apenas o desejo romântico ou sexual por outra mulher (RICH, 1980), e que adotar uma definição linear e invariável do que é ser lésbica pode excluir as diversas possibilidades de expressar sexualidades (MUTHIEN, 2020), podemos considerar que as três personagens femininas são parte desse continuum. As cenas descritas mostram mulheres desfrutando da companhia de outras mulheres, podendo se ajudar mutuamente por meio do desempenho de tarefas concretas e sentindo-se aparentemente confortáveis para conversarem umas com as outras a respeito dos mais diversos assuntos, longe do olhar controlador do poder dominante.

Observamos como Marianne e Héloïse, em pleno gozo de sua liberdade provisória, não recriminam o fato de Sophie ter optado pelo aborto, visto como uma solução natural e um exercício do direito de autonomia da mulher sobre o próprio corpo. Por isso as duas ajudam Sophie a enfrentar esse processo doloroso, ainda que necessário naquelas circunstâncias. Juntas, elas buscam maneiras de induzir o aborto e, quando há necessidade de Sophie se submeter a um procedimento com uma mulher com expertise, Marianne e Héloïse decidem acompanhá-la e continuam cuidando dela durante a sua recuperação.

Em nenhuma dessas cenas vemos qualquer crítica ou ressalva à escolha de Sophie, o que nos faz pensar que todas priorizam dar e receber apoio prático. Marianne e Héloïse cuidam de Sophie, assim como Sophie cuida da alimentação e do conforto das duas. Também vemos outras mulheres cuidarem de Héloïse quando seu vestido pega fogo. Percebemos o continuum lésbico nesse compartilhamento de experiências entre as mulheres, sem julgamentos, recriminações ou proibições. O que vemos prevalecer é o apoio mútuo entre elas, selando pactos pela vida, gerando centelhas de vida. Além disso, o filme mostra de maneira sensível o relacionamento afetivo-sexual entre duas mulheres que se descobrem apaixonadas e encarnadas, embora tenham consciência da efemeridade de seu convívio e o claro limite de sua liberdade (RICH, 1980), uma chama destinada a se extinguir em breve, mas que guarda a beleza do caráter transitório da existência - uma centelha fadada a se apagar um dia.

Categoria 4: Existência lésbica

Nessa temática optamos por evocar uma cena literal e descrever as demais, que são mais visuais do que verbais.

Trecho 5:

[Marianne está terminando o esboço de um desenho do busto de Héloïse]

Héloïse (H): Para quem é?

Marianne (M): Para mim.

H: Agora você consegue reproduzir essa imagem infinitamente.

M: É.

H: Daqui a algum tempo... É ela que você verá... Quando pensar em mim. E eu não terei mais imagens de você.

M: Quer uma imagem minha?

H: Quero.

[...]

M: Me dê seu livro. Diga um número.

H: 28.

[Marianne faz um autorretrato na página indicada]. (COUVREUR; SCIAMMA, 2019).

Outras cenas que gostaríamos de evocar para análise pertencem aos momentos finais do filme. São duas cenas, as quais já aludimos brevemente. A primeira delas é de quando o quadro de Marianne é aprovado pela Condessa e entendemos que a pintora logo irá embora, tendo em vista que sua missão havia sido concluída a contento. Ela e Héloïse se despedem com um abraço rápido e Marianne se retira apressadamente da casa. Quando ela está abrindo a porta, Héloïse fala: “Vire-se”, como o apelo de Eurídice a Orfeu, e Marianne se vira para olhá-la antes da cena se encerrar. A cena seguinte é a sequência na qual Marianne está expondo pela primeira vez suas obras de arte. Ao andar pela exposição coletiva, ela se depara com um quadro de Héloïse e percebe que, na pintura, a amada está segurando um livro discretamente aberto na página 28, na qual se encontra o autorretrato de Marianne.

A existência lésbica (RICH, 1980) diz respeito à presença histórica de mulheres lésbicas e à criação de sentidos em torno dessa existência. A heterossexualidade compulsória se insurge contra o reconhecimento dessa existência e tenta se impor a todas as mulheres ao apagar registros, cartas, quadros, memórias, destruindo documentos que evoquem a permanência e re-existência lésbica ao longo da história. Uma presença reiteradamente silenciada e apagada. Assim, podemos pensar que os desenhos feitos por Marianne, tanto de si mesma quanto da amada Héloïse, são vestígios de existência lésbica, registros de um relacionamento intenso e proibido entre mulheres que se amam e que não puderam viver esse amor em plenitude na continuidade de seu viver. A despeito desse recalcamento, o rastro luminoso permaneceu conservado graças à arte. Um ato de resistência.

Anos depois de ter conhecido Héloïse, Marianne pôde reconhecer que, no quadro, a agora mãe e senhora Héloïse está segurando um livro justamente na página que contém o autorretrato que ela presenteara à amada como símbolo da perenidade de seu amor. A cena da despedida das duas também nos remete à existência lésbica. Quando Héloïse roga que Marianne se vire antes de ir embora do casarão, temos a impressão de que a primeira quer que a amada retenha na memória os momentos de felicidade que elas compartilharam, mesmo que jamais voltassem a se ver. Vestida de noiva, naquela fração de segundos, o enlace eterno entre as duas foi celebrado. A função sublime da arte faz esse compromisso sutil se eternizar; a história do romance perpetua-se na página marcada, inscrição simbólica contra o esquecimento.

A relação entre duas mulheres tem a especificidade de fazer com que sujeito e objeto de satisfação coincidam, isto é, estejam presentificados na mesma pessoa e ao mesmo tempo, ou seja, presentes exclusivamente na mulher, o que rompe com a ideia androcêntrica (TOLEDO; TEIXEIRA FILHO, 2010). Por isso o sexo lésbico, enquanto potência sexual e de prazer, pode ser visto como disruptivo, uma ameaça ao status falocêntrico do sexo, pois apresenta uma outra perspectiva de mundo diferente da concepção hegemônica (AZEVEDO, 2020). É por essa razão que há tentativas de apagamento, que buscam fazer com que as lesbianidades sejam desacreditadas e invisibilizadas. Daí a importância de que as protagonistas possam conservar vestígios e registros de suas vivências amorosas, tanto em termos de reminiscências, como de memórias encarnadas em objetos concretos (papéis, pinturas, telas, livros), para que o relacionamento entre mulheres possa ser reconhecido como uma possibilidade de resistir ao esquecimento (RICH, 1980; TOLEDO; TEIXEIRA FILHO, 2010). Portanto, como uma forma de se manterem vivas e eternizadas nas páginas da memória compartilhada por ambas, assim como a grande arte.

Conclusões

O filme tematiza a relação amorosa entre mulheres em um momento histórico muito especial, que é a iminência da passagem do Antigo Regime para um novo sistema de regulação social que se avizinha, mas do qual a humanidade ainda nada sabe. Talvez seja o ponto mais original da trama a ideia de fazer essa revisão crítica daquele período de transição, um dos mais singulares na história do mundo ocidental por ser marco introdutório da modernidade, a partir do olhar de três mulheres oriundas de estratos sociais distintos. Assim, são dissecadas as relações sociais entre as protagonistas, que não por acaso se encontram isoladas em uma ilha praticamente deserta, como se vivessem em um mundo em suspensão, território à parte e prestes à extinção. O cerne da narrativa se detém no tensionamento entre as funções que cada uma das mulheres ocupa no tecido social: a jovem noiva aristocrata, a profissional liberal/artista e a empregada, problematizando a maneira como todos os arranjos importantes dentro da trama se dão por meio do protagonismo delas.

Em um mundo governado pelos homens e pelo poder econômico, que então mudava de mãos - da aristocracia para a nova classe burguesa ascendente (comerciantes, como o pretendente da jovem aristocrata), as mulheres reinventam formas de resistência sob o signo da sexualidade e da sororidade. As diferenças de classe entre Marianne, Héloïse e Sophie não impedem que as três mulheres possam estabelecer vínculos afetivos entre si, sejam vínculos românticos e/ou de amizade, e possam oferecer e receber apoio em momentos de dificuldade. Apesar das diferenças econômicas, as três personagens compartilham do “ser mulher” (branca e europeia) e, portanto, algumas de suas vivências são semelhantes, o que pode contribuir para que haja uma identificação entre elas. Essa conexão entre as mulheres nos remete ao continuum lésbico (RICH, 1980).

Além disso, é possível pensar que Marianne só teve a oportunidade de encontrar o quadro de Héloïse marcando a página 28 por conta das posições ocupados por ambas na hierarquia social. Héloïse, enquanto aristocrata, provavelmente teria diversos quadros seus pintados, e Marianne, enquanto pintora (profissional liberal), provavelmente teria acesso, ainda que usando o nome de seu pai, a diversas exposições e salões de arte. Já Sophie não aparece em outros momentos do filme que não seja na casa da Condessa. Pode-se pensar que a continuidade da existência lésbica (RICH, 1980), retratado no filme, tenha sido viabilizada também pela condição socioeconômica das duas protagonistas apaixonadas.

Por fim, é possível aprofundarmos a discussão aproveitando as pistas sensoriais fornecidas pela narrativa, no entrelaçamento de fotografia, direção de arte e edição, analisando o uso apurado das cores em cenas emblemáticas como a da fogueira, que explora o contraste claro-escuro, dia-noite, vigília-sonho e a edição de imagens quase oníricas (vide os “cortes” que a montagem opera nesta cena, em ritmo quase alucinatório). A combinação desses elementos visuais com a banda sonora da película, cujo ápice é a impressionante canção entoada em crescendo pelo coro das mulheres no ritual em torno da fogueira, compõe uma cena com profundas reverberações míticas e de teor arquetípico. Nessa hora mágica, não por acaso situada na vertigem da noite nos confins da floresta, dá-se a comunhão entre as mulheres, ainda que isso se dê por um instante no qual as distinções de classe se evanescem momentaneamente, e o que assume protagonismo é a reunião dos corpos e desejos engendrados, atravessados e fortalecidos por uma força ancestral que os ilumina ao mesmo tempo em que incendeia a vida.

Considerações finais

Durante o lançamento do filme, a diretora declarou que estruturou o romance entre Héloïse e Marianne para refletir sobre o ato de olhar e ser olhado, o enigma da criação artística e a relação entre arte e amor. Por outro lado, há o embate silencioso das duas jovens com as convenções de sua época, em especial a obrigação de honrar com a expectativa do casamento tradicional, dentro do único modelo reconhecido (entre um homem e uma mulher), que para uma das jovens enamoradas é vivido com a carga adicional de um dever de garantir a opulência e bem-estar material da família. Era preciso seguir os sagrados mandamentos: casar e procriar seguindo as leis de Deus, ainda que isso significasse ostentar uma máscara para ocultar o eu verdadeiro com a impostura de uma vida que cala e consente.

A posição social influencia o grau de liberdade que cada protagonista pode usufruir para escolher o rumo que deseja dar para seu futuro. A protagonista que se encontra em uma posição social inferior (a pintora) desfruta de maior liberdade para viver seu desejo, o que está intimamente relacionado ao fato de ter um ofício que lhe permite ganhar a vida por meio do próprio trabalho. A criada, que ocupa uma posição ainda mais subalterna na hierarquia social, diante de uma gravidez indesejada, pode decidir pela realização do aborto. Na relação com a classe subalterna, se sobressai o cuidado recíproco entre mulheres, o que faz aflorar uma cumplicidade insuspeitada entre pessoas submetidas à opressão, fortalecida pela identificação com a posição na qual todas se encontram devido ao gênero, embora a subjugação se expresse em dimensões diferentes, assim como as possibilidades de resistência ao poder patriarcal são condicionadas por circunscritores da posição ocupada por cada uma na hierarquia social.

O filme Retrato de uma Jovem em Chamas nos mostra a potência do relacionamento entre duas mulheres, não apenas pelo vértice do vínculo amoroso, mas também das relações de companheirismo e sororidade que podem ser estabelecidas entre elas. Devido à época e ao preconceito que ainda hoje persiste contra relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, entendemos que as protagonistas se deparam com amarras que as impedem de viver plenamente sua relação. Com Héloïse vemos, inclusive, como se alinhar à sua classe social a obriga a cumprir o script de se casar com um homem poderoso e abastado, de modo a garantir o conforto material e a continuidade dos privilégios conferidos pela posição social de proeminência ocupada pela família na decadente sociedade aristocrática.

Apesar de não ser possível revogar esse contrato de casamento predestinado, porque é parte das leis escritas e não escritas que regulam e perpetuam a desigualdade de gênero, podemos observar como Marianne e Héloïse conseguiram ser sinceras com seus próprios sentimentos e aproveitar o tempo que tiveram juntas para reforçar e perenizar o vínculo amoroso, que continua a ecoar no futuro. Tanto é assim que, nas cenas finais, vemos que as protagonistas, mesmo depois de se separarem na juventude, guardam as memórias do período que passaram na companhia uma da outra. Apesar dos caminhos desencontrados, a chama do desejo não foi extinta. Nunca mais voltariam a se ver, mas a fogueira manteve seu calor e luminosidade.

A sororidade existente entre as personagens permite superar momentaneamente as prescrições de classe. Marianne e Héloïse acompanham Sophie no processo de aborto, oferecendo apoio sem julgamentos ou críticas, e há várias cenas em que as três estão compartilhando vivências, seja cozinhando, lendo, jogando ou conversando, driblando suas diferenças de classe. A cena da fogueira mostra também a cumplicidade existente entre mulheres, um espaço mítico embalado por uma canção mesmerizante, numa hora noturna em que elas se dedicam a alimentar o espírito se expressando, dançando e cantando em estado de transe, porque sabem que nada é mais importante do que a vida de alguém. O cântico ritmado que entoam nesse momento, congregadas ao redor da fogueira, enuncia: “Não temos saída. Eles nos veem com desprezo. Nós ressurgiremos”, o que pode significar, na perspectiva de análise que adotamos, que por mais que tentem invisibilizar a existência lésbica e a potencialidade da união entre mulheres, o genuíno companheirismo vai se impor e as mulheres continuarão resistindo, lutando, gozando e se amando. Mesmo que sejam seguidamente jogadas na fogueira das inquisições medievais, ressurgirão das cinzas do desprezo, até poderem saborear a plenitude de seus direitos como seres humanos livres que lutam, com as armas que dispõem em cada época, por sua emancipação.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio recebido por meio da Bolsa de Doutorado concedida à primeira autora (processo número 2020/09464-3) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, pelo apoio recebido por meio da Bolsa de Produtividade em Pesquisa (nível 1A) concedida ao segundo autor

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Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SOUZA, Carolina; SANTOS, Manoel Antônio dos. “Sutilezas do relacionamento afetivo-sexual entre mulheres em Retrato de uma Jovem em Chamas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e86227, 2023.

Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) por meio da Bolsa de Doutorado concedida à primeira autora (processo número 2020/09464-3) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, por meio da Bolsa de Produtividade em Pesquisa (nível 1A) concedida ao segundo autor.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 26 de Fevereiro de 2022; Revisado: 13 de Novembro de 2022; Aceito: 20 de Abril de 2023

carolina2.souza@usp.br

masantos@ffclrp.usp.br

Carolina de Souza (carolina2.souza@usp.br) é psicóloga e bacharela em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP), mestra e doutoranda em Psicologia pela FFCLRP-USP. Membro do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq) e do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO (FFCLRP-USP).

Manoel Antônio dos Santos (masantos@ffclrp.usp.br) é Professor Titular do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Livre-docente em Psicoterapia Psicanalítica pela FFCLRP-USP. Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS (FFCLRP-USP-CNPq) e do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero - VIDEVERSO (FFCLRP-USP). Membro da Academia Paulista de Psicologia (cadeira 33)

Conflito de interesses: Não se aplica

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