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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.2 Florianópolis  2023  Epub 01-Mayo-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n291543 

Resenhas

Por um mundo queer: práticas discursivas como performances identitárias

For a queer world: discursive practices as identity performances

Por un mundo queer: prácticas discursivas como performances identitarias

José Augusto Simões de Miranda1 
http://orcid.org/0000-0002-0057-1685

1Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Inglês, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900 - ppgi@contato.ufsc.br

MOITA LOPES, Luiz Paulo; GONZALES, Clarissa Rodrigues; MELO, Glenda Cristina Valim; GUIMARÃES, Thayse Figueira. Estudos queer em linguística aplicada indisciplinar: gênero, sexualidade, raça e classe social. São Paulo: Parábola, 2022.


Estudos queer em linguística aplicada indisciplinar: gênero, sexualidade, raça e classe social é um livro que nos apresenta discussões ancoradas em teorizações queer - na área da língua(gem), mais precisamente em linguística aplicada indisciplinar -, que interseccionam gênero, sexualidade, raça e classe. A obra foi escrita por um autor e três autoras. Luiz Paulo de Moita Lopes é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e inaugurou a linguística aplicada indisciplinar com a publicação de Por uma linguística aplicada INdisciplinar (Luiz Paulo MOITA LOPES, 2006). Clarissa Rodrigues Gonzales é doutora pela Universidad Complutense de Madrid e pesquisa violência semiótica no cenário político-midiático em contextos onlineoffline. Glenda Cristina Valim de Melo é professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e suas pesquisas recentes versam a performatividade de raça e interseccionalidades em contextos onlineoffline. Thayse Figueira Guimaraes é professora adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e suas pesquisas recentes incluem performatividade de gênero/sexualidade e raça.

A primeira parte é comporta por dois capítulos. No primeiro, Thayse Figueira Guimaraes e Luiz Paulo de Moita Lopes discutem a circulação de um texto publicado no YouTube por uma travesti, que alcança diferentes espaços, dentre eles uma escola pública no Estado do Rio de Janeiro. Por meio de um estudo etnográfico, as autoras investigam as performances identitárias de Luan, um estudante negro, gay e de uma classe social desprivilegiada - como ele faz uso daquele texto e recontextualiza em suas interações on-line e na sala de aula dessa escola pública, assim como a recepção de colegas são observadas. Os resultados apontam, de um lado, a tentativa de uma estratégia essencialista - branca e heteronormativa -, assim como o uso de discursos racistas e homofóbicos advindos dos interlocutores. E de outro, as resistências de Luan com esses discursos, em que destrói a posição hegemônica dos colegas.

No segundo capítulo, as autoras dão sequência à pesquisa etnográfica - tanto on-line, como em sala de aula. A análise do estudo foca em como Luan negocia significados sobre corporalidade negra, beleza, padrões heteronormativos, estereótipos sociais, assim como a marginalização dessas questões em suas interações. Aqui, vê-se que o jovem resiste aos significados hegemônicos sobre beleza, assim como a tentativa de colegas de estigmatizar suas performances identitárias - de gênero, de sexualidade e de raça. Ao contestar e desafiar significados essencialistas - por meio de práticas de afirmação racial, por exemplo -, Luan recontextualiza discursos, se posiciona criativamente e se torna um agente de mudança a fim de (re)construir outras possibilidades identitárias.

Na segunda parte do volume há três capítulos. No primeiro, Glenda Christina Valim de Melo e Luiz Paulo de Moita Lopes analisam a trajetória textual do elogio/ofensa “Você é uma morena muito bonita”, registrado no blog Blogueiras Negras e no site Pragmatismo Político. Por meio de um estudo etnográfico virtual, as autoras buscam compreender os efeitos semânticos do enunciado através das diferentes reações dos participantes. Elas apontam três tipos de reações. A primeira é do elogio como ofensa, a segunda é da aceitação do elogio e a terceira reação (encontrada somente no site Pragmatismo Político) há o inverso, em que os participantes afirmam que o problema estaria nas pessoas que se sentiram ofendidas, pois seriam racistas, mentalmente doentes e mal resolvidas com suas raças. Vê-se que essa inversão de culpa está enraizada em um ideal normalizador que silencia a contestação de uma ordem de discurso hegemônica e causadora do sofrimento humano e, como argumentado pelas autoras, as teorizações queer se fazem presentes a fim de desnormalizar discursos essencialistas, como o discurso de democracia racial e de racismo velado.

No segundo capítulo dessa parte, as autoras analisam, através de um estudo etnográfico virtual, os posicionamentos de uma mulher negra em seu blog tornando-se preta em um segundo nascimento. A participante relata que até os 20 anos de idade não aceitava ser negra e se identificava de forma depreciativa, como um branco meio sujo, uma morena não tão clara ou ainda uma morena escura. Na pesquisa, as autoras discutem a aceitação - e o renascimento - da participante, aos 20 anos, que remete ao título do blog. A partir desse momento, ela criou o blog e, por meio de suas narrativas, tornou-se se uma militante do movimento racial. Embora as pesquisadoras legitimem a luta política da participante, elas também criticam, por meio das teorizações queer, os discursos essencialistas da negritude observados no blog da participante, que sedimentam dicotomias raciais, fixam identidades e excluem possibilidades outras.

No terceiro capítulo dessa parte, as autoras dão sequência à análise de performances identitárias de mulheres negras. A pesquisa centra-se, por meio de um cunho etnográfico virtual, em uma comunidade de redes sociais a fim de discutir temas sobre a população negra. As pesquisadoras afirmam que após um período de observação na comunidade, eles criaram um fórum com o objetivo de provocar reações das membras, em que há questionamentos sobre os desafios que a mulher negra encontra no mercado de trabalho, assim como sobre seus relacionamentos afetivos. Glenda Melo, coautora deste capítulo, interage com três participantes. Os resultados mostram que, ao longo da interação, as participantes oscilam entre um viés essencialista de negritude, que promove dicotomias raciais e identidades fixas, como discutidas anteriormente, e um viés queer, que intersecciona gênero, raça, classe social, grau de escolaridade, contesta discursos normalizadores e atravessa o limiar racial. Por fim, as autoras ressaltam sobre a importância de interações no universo digital, permitindo engajamentos de ordem social e política e promovendo a reinvenção de performances identitárias.

A terceira e última parte está organizada em três capítulos. No primeiro, Clarissa Rodrigues Gonzalez e Luiz Paulo de Moita Lopes discutem, através de uma análise multimodal (ver Gunther KRESS; Theo VAN LEEUWEN, 2001) e ancorados em teorias queer, como a personagem Agrado, que é transgênera (ver Judith BUTLER, 1990, 1999, 2002, 2004), do filme Tudo sobre minha mãe, se constrói narrativamente - resistindo e ressignificando discursos estereotipados. Durante um monólogo da personagem Agrado, as pesquisadoras perceberam a ampliação de significados que superam um ideal (hetero)normativo em suas interações, que incluem Agrado e as espectadoras do filme. Elas concluem que a identificação de obras como essa corrobora para contribuições sociais a fim de descontruir e desestabilizar discursos que têm o intuito de hierarquizar performances de gênero e sexualidade.

No capítulo seguinte, vê-se uma sequência do estudo anterior. Aqui as autoras analisam o discurso de participantes da rede social Filmow e como se posicionam diante das performances discursivo-identitárias de duas personagens do filme, Lola e Agrado, ambas transgêneras. As participantes, que interagem sobre gênero e sexualidade, têm entre 15 a 43 anos e pertencem às cinco regiões do Brasil. As autoras perceberam que, em termos gerais, as participantes demonstram simpatia pelas duas personagens e se posicionam de maneira favorável, compreendendo as performances de transgeneridade, apesar de, por vezes, reproduzirem discursos de sexualidade hegemônicos. Por fim, as autoras argumentam que tanto o gênero como o cinema operam de maneira similar ao legitimarem determinados discursos e desqualificarem outros. No entanto, sempre há possibilidades outras, pois “onde há poder, há resistências” (Michel FOUCAULT, 2020, p. 104).

No terceiro capítulo dessa parte, Clarissa e Luiz Paulo analisam os comentários de uma postagem no site espanhol Dos Manzanas - voltado para o público LBTQIA+ - sobre o cinema de Almodóvar, que considera o pedagogo da realidade LGBT. Por meio da noção pós-identitária de sujeito, as autoras percebem que as participantes, ao recontextualizarem um texto, reproduzem a visão essencialista da identidade, que a reduz, estereotipa modos de ser, além de não dar margem a reinvenções e possibilidades outras. Elas também discutem a noção de essencialismo estratégico, em que se tem a fixidez de identidades como estratégia de luta política, que grupos marginalizados podem fazer uso, a fim de conquistarem seus direitos. No entanto, em suas análises, as autoras perceberam menos o uso do essencialismo estratégico do que uma visão essencialista de identidade por si só. Por fim, as pesquisadoras argumentam sobre a necessidade de um diálogo profícuo entre a academia (e as teorizações queer) e algumas vertentes do ativismo LBGTQIA+, que reproduzem concepções engessadas de gênero e sexualidade.

No último capítulo, Clarissa e Luiz Paulo fazem a análise de uma videocrítica cinematográfica, produzida pelo youtuber Gabriel Tosto, sobre o filme A pele que habito, do cineasta Almodóvar. As autoras afirmam que a pesquisa é munida de sensibilidade etnográfica pela experiência de uma das pesquisadoras no YouTube e é realizada por meio de um caráter qualitativo-interpretativista. Os resultados demonstram que Gabriel tem um discurso contraditório, pois ao mesmo tempo em que fala de construção de gênero, produz discursos essencializantes e de determinismo biológico ao se direcionar a Vicente/Vera - personagem que tem tanto performances de masculinidade quanto de feminilidade. Assim, as autoras concluem que, diferentemente da proposta do cineasta, que questiona uma essência biologizante, o youtuber parece não compreender o caráter simplista e reducionista de um binarismo generificante.

A obra resenhada, ancorada nos estudos queer e em teorias da linguagem, apresenta propostas que urgem de serem discutidas, pois abrem espaços para grupos marginalizados e para discursos contra-hegemônicos. A interseccionalidade de gênero, sexualidade, raça e classe discutida ao longo do livro nos permite compreender a complexidade e a relação dessas questões que perpassam “modos de ser”. O viés essencialista que regula esses “modos de ser” - provisórios e inacabados - é problematizado pelas autoras do livro, que defendem a não afirmação de identidades fixas por meio de performances discursivo-identitárias, em que um ideal normalizador é contestado e destruído. Recomendo o livro para quaisquer leitoras interessadas nos temas abordados, assim como ressalto que, por ser um livro com pesquisas e abordar diferentes perspectivas teóricas e epistemológicas, a sua leitura é complexa, demanda pausas para reflexões assim como nos convida para outras leituras em função das significativas referências que foram discutidas ao longo da obra.

Referências

BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge, 1990. [ Links ]

BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”. In: LOURO, Guacira L. (org.). O corpo educado: pedagogia da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 151-172. [ Links ]

BUTLER, Judith. “Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler por B. Prins e I.C. Meijer”. Trad. de Susana Bornéo Funck. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 155-167, 2002. [ Links ]

BUTLER, Judith. Undoing Gender. Nova York-London: Routledge, 2004. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Albuquerque. 10. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. [ Links ]

KRESS, Gunther; VAN LEEUWEN, Theo. Multimodal discourse. The modes and the Media of Contemporary Communication. Oxford: OUP, 2001. [ Links ]

MOITA LOPES, Luiz Paulo. Por uma linguística aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. [ Links ]

MOITA LOPES, Luiz Paulo; GONZALES, Clarissa Rodrigues; MELO, Glenda Cristina Valim; GUIMARÃES, Thayse Figueira. Estudos queer em linguística aplicada indisciplinar: gênero, sexualidade, raça e classe social. São Paulo: Parábola, 2022. [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MIRANDA, José Augusto Simões de. “Por um mundo queer: práticas discursivas como performances identitárias”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 2, e91543, 2023.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 26 de Outubro de 2022; Aceito: 29 de Novembro de 2022

José Augusto Simões de Miranda (joseaugustosimoesdemiranda@gmail.com; jose.miranda@posgrad.ufsc.br) é doutorando e mestre em Inglês: Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Letras - Português e Inglês pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). É integrante do Núcleo de Estudos de Gênero Através da Linguagem (NUGAL) da UFSC. Tem experiência na área de Linguística Aplicada, com ênfase em estudos do discurso

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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