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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n386106 

Artigos

Construindo uma epistemologia feminista decolonial

Developing a decolonial feminist epistemology

Construyendo una epistemología feminista descolonial

Mariana Garcia Tabuchi1  , Conceitualização, investigação, coleta de dados, análise de dados, discussão dos resultados, elaboração do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-0188-2028

Amélia do Carmo Sampaio Rossi1  , Conceitualização, concepção, administração do projeto, discussão dos resultados, supervisão, revisão
http://orcid.org/0000-0003-2199-9805

1Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, PR, Brasil. 80215-901


Resumo:

Busca-se, no presente trabalho, identificar elementos para a construção de uma epistemologia feminista decolonial. A pesquisa, de caráter bibliográfico e qualitativo, revisita as teorias trazidas pelos feminismos hegemônicos e, em especial, as críticas a ele formuladas por teóricas negras, terceiro-mundistas e decoloniais. Averiguando as possibilidades de produção de conhecimento que não ignorem as dinâmicas racistas e coloniais da modernidade, bem como que atendam às demandas de mulheres racializadas, periféricas e situadas em territórios colonizados, aponta-se para outros métodos de produção de saber, como a interseccionalidade, as experiências coletivas e as lutas sociais.

Palavras-chave: epistemologia; feminismo; decolonialidade

Abstract:

This paper aims to identify elements for the development of a decolonial feminist epistemology. The research, in its bibliographic and qualitative methodology, revisits the theories brought by hegemonic feminisms and, in particular, the criticism towards them as formulated by third world, decolonial and black women theorists. By examining the possibilities for the production of knowledge, which not only recognize the racist and colonial dynamics of modernity, but also satisfy the demands of racialized and peripheral women who are situated in colonized territories, it enables a look into other forms of knowledge making, such as intersectionality, collective experiences and social struggles.

Keywords: Epistemology; Feminism; Decoloniality

Resumen:

Este artículo busca identificar elementos para la construcción de una epistemología feminista descolonial. La investigación, bibliográfica y cualitativa, revisita las teorías aportadas por los feminismos hegemónicos y, en particular, las críticas formuladas por teóricos negros, tercermundistas y decoloniales. Evaluando las posibilidades de producción de conocimiento que no desconozcan las dinámicas racistas y coloniales de la modernidad, así como que atiendan las demandas de mujeres racializadas, periféricas y ubicadas en territorios colonizados, apuntamos a otros métodos de producción de conocimiento, como la interseccionalidad, la colectividad. experiencias y luchas sociales.

Palabras clave: epistemologia; feminismo; descolonialidad

1. Introdução

As teorias feministas construíram, nas últimas décadas, fundamentais reflexões no campo epistemológico. Apontando o caráter sexista das ciências modernas e da conformação dos saberes, indicaram caminhos para a consolidação de outros conhecimentos, compromissados com uma igualdade de gênero. Todavia, vislumbra-se, nessa seara, ainda um quadro limitado pela ideia abstrata de uma mulher universal e pela branquitude das autoras que predominam o debate.

De outro lado, a decolonialidade (como política, teoria, prática e campo de lutas) contribuiu, em muito, para a identificação do caráter eurocêntrico das metodologias científicas modernas, indicando a violência epistêmica existente no processo de produção do conhecimento. Porém, ainda se demanda, no interior dos debates decoloniais, avanços consideráveis na discussão de gênero e na produção de outras epistemologias.

Dito isso, o que se busca no presente trabalho é justamente rumar para um ponto convergente entre tais contribuições, no intuito de recolher elementos para a construção de outros processos de produção e validação do conhecimento. O objetivo do trabalho, portanto, é identificar categorias para uma epistemologia feminista decolonial.

Por meio de pesquisa qualitativa e bibliográfica, buscam-se ferramentas para permitir novos estudos e legitimar outros saberes. Realizando-se um levantamento do estado da arte da produção teórica do feminismo acerca das epistemologias e da decolonialidade a respeito do assunto, procura-se estabelecer um balanço e desvendar possibilidades na temática.

Para tanto, em um primeiro momento, retornar-se-á às formulações embrionárias do feminismo acerca das epistemologias e os avanços perpetrados no último período. Na sequência, buscar-se-á traçar críticas acerca dos feminismos hegemônicos, em especial a partir do feminismo negro e latino-americano. Por fim, utilizando-se das ferramentas teóricas trazidas por autoras feministas decoloniais, averiguar-se-á os principais elementos para a construção de uma epistemologia feminista decolonial.

2. Epistemologias feministas

A epistemologia, como teoria abrangente do conhecimento, investiga de que modo e os motivos pelos quais se admite que algo é verdadeiro ou não. Longe de se apresentar como um estudo apolítico, se preocupa em averiguar de que forma e por que as relações de poder determinam no que as pessoas acreditam (COLLINS, 2019, p. 402).

Diferentemente dos “paradigmas” e das “metodologias”, as epistemologias definem quais perguntas merecem atenção e investigação, quais referenciais interpretativos são úteis para a análise de descobertas e, ainda, para que servem e a que se destinam os conhecimentos descobertos nesses processos (COLLINS, 2019, p. 403).

As teorias do conhecimento são, via de consequência, fundamentais para o questionamento de quem controla as estruturas de validação dos saberes, os paradigmas, os temas importantes e os assuntos não dignos de atenção das ciências. É no cerne do debate epistemológico que se verifica quem está autorizado a elaborar conhecimento e quem está autorizado a ser sujeito cognoscente.

Sobre tais questões é que as feministas, sobretudo a partir do que se denominou Segunda Onda,1 se debruçaram. Ao forjarem teorias de questionamento à diferenciação sexual, passaram a questionar os próprios pressupostos e bases do conhecimento científico moderno.

Em que pese tal movimento - emergido nas décadas de 70 e 80 - tenha sido primordialmente político, pois buscava transformar as condições e a realidade das mulheres, um “projeto intelectual” emergiu de novas concepções e práxis políticas: “a teoria feminista” (Evelyn Fox KELLER, 2006, p. 15).

A teoria feminista foi em geral entendida, pelo menos por suas primeiras autoras, como em si mesma uma forma de política - isto é, como “política por outros meios”. Pretendia facilitar a mudança no mundo da vida cotidiana analisando - e expondo - o papel que as ideologias de gênero desempenham (e têm desempenhado) no esquema abstrato subjacente a nossos modos de organização. Isso significava reexaminar nossas suposições básicas em todos os campos tradicionais do trabalho acadêmico - história, literatura, ciência política, antropologia, sociologia, etc. (KELLER, 2006, p. 15).

Assim, no campo da ciência, as feministas da Segunda Onda passaram a desvelar o caráter androcêntrico que constituía as teorias tradicionais. Constataram que a ciência oficial se baseava na completa exclusão e invisibilidade das mulheres, além de representá-las de forma distorcida (Cecília Maria Bacellar SARDENBERG, 2001, p. 3).

Ao ocuparem os espaços acadêmicos, expuseram que as mulheres foram tratadas como objetos pelos discursos científicos, sendo que lhes foi negada a autoridade do saber. Questionaram, dessa maneira, o monopólio do conhecimento que foi conferido aos homens e ressaltaram o papel determinante das relações de gênero na construção da cultura da ciência e nos conteúdos por esta produzidos.

A partir desses primeiros questionamentos é que diversas correntes foram construídas, cujas divergências não podem ser subestimadas. Conforme expõe Sardenberg (2002), as críticas feministas à ciência flutuaram desde a mera denúncia da exclusão e invisibilidade feminina nas estruturas científicas até o questionamento dos próprios pressupostos da Ciência Moderna, sendo impossível falar, portanto, em epistemologia feminista no singular.

Nesse sentido, aliás, é que Keller (1996), em uma das primeiras tentativas de situar esse debate, posicionou as diferentes correntes feministas em graus de “radicalidade” na crítica à ciência.

Segundo a autora (1996, p. 28), a “crítica liberal” estaria mais ao centro desse espectro, uma vez que não problematiza os pressupostos tradicionais da Ciência Moderna. A denúncia formulada por esta corrente se centraliza, sobretudo, nas práticas discriminatórias em relação à inserção das mulheres na ciência, sem questionar a neutralidade como princípio basilar dos métodos científicos. Assim, o feminismo liberal busca efetivar políticas que garantam a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Por sua vez, a “crítica radical” - que estaria mais à esquerda no espectro de Keller - teria uma posição mais dura em relação às teorias tradicionais, pondo em xeque os próprios pressupostos de objetividade e neutralidade. Esta corrente aponta para a necessidade de enxergar a ciência para além do processo cognitivo, isto é, como produto social moldado por contextos sociais e políticos.

Keller (1996, p. 31) afirma, contudo, os perigos trazidos pelos olhares radicais, posto que, ao posicionar a ciência como resultado de um processo puramente social, poderia dissolvê-la apenas em ideologia. Isto poderia, segundo a autora, influenciar as feministas a abandonarem a busca por sua representação na cultura científica e, via de consequência, retornarem a uma subjetividade puramente “feminina”.

Nesses termos é que Keller se afasta de posturas relativistas e não abandona por completo a racionalidade como forma de apreensão do mundo. A sua proposta, ao contrário, é a desconstrução da dicotomia objetividade (masculina) e subjetividade (feminina) (KELLER, 1991, p. 149).

Mi visión de una ciencia sin género no es una yuxtaposición o complementaridad de perspectivas masculinas y femeninas, ni tampoco la substitución de una forma de estrechez mental por otra. Se basa, más bien, en una transformación de las categorias mismas de masculino y feminino y, en correspondencia con ello, de las de mente y naturaliza (KELLER, 1991, p. 152-153).

Helen Longino (1993) converge ao posicionamento de Evelyn Fox Keller na conclusão de que o conhecimento é produto de interações sociais e de que não existe posição pura ou incondicionada do sujeito cognoscente, propondo, desse modo, uma objetividade revisada, a qual deveria “no sólo reconcebir las relaciones de los individuos con el mundo que buscan conocer, sino articular apropiadas estructuras y relaciones sociales para los contextos de investigación dentro de los cuales se persigue el conocimiento” (Diana MAFFIA, 2007, p. 114).

Keller e Longino, por conseguinte, ao lado de outras teóricas, incorporam uma crítica epistemológica feminista, mas sem descartar integralmente a objetividade como critério científico, propondo uma ressignificação desse conceito. Situam-se, dessa maneira, entre o feminismo liberal e as posturas mais relativistas.

De outro vértice, Sandra Harding (1986) traz outras preocupações para a relação entre gênero e a produção do conhecimento. Esta autora se preocupa, mais do que com a incoerência das teorias tradicionais, em identificar estratégias que possam constituir uma produção feminista de um conhecimento politizado.

Para tanto, Harding (1986), em The Science Question in Feminism, categoriza três correntes feministas e o modo como se posicionam em relação a esta discussão. Para a autora, enquanto o “feminismo empiricista” ainda busca suporte nos princípios da ciência oficial, apenas denunciando e combatendo o seu caráter androcêntrico, o “feminismo perspectivista” defende um saber alicerçado no ponto de vista das mulheres. Por outro lado, o “feminismo pós-moderno” critica as outras duas visões pelo anseio fundamentalista em que se baseiam (SARDENBERG, 2002, p. 14).

A partir dessa classificação, Harding aponta a virtude de todas elas ao indicar as incoerências dos discursos não feministas. Todavia, sublinha que apenas as duas últimas se perguntam, acertadamente, em que medida é possível utilizar, para fins emancipatórios, uma ciência tão profundamente alicerçada em dinâmicas sexistas (SARDENBERG, 2002, p. 14).

Harding se situa, dessa forma, mais fortemente no perspectivismo, acreditando que este pode contribuir com uma luta política e intelectual, tendo em vista que enfrenta as epistemologias empiricistas e, por outro lado, não se baseia em mero interpretacionismo como o feminismo pós-moderno.

Nancy Hartsock (1997) explica que o feminismo perspectivista encontra raízes na teoria marxista, pelo que busca uma estratégia epistemológica mais politizada. O pressuposto que permeia essa corrente é de que inexiste conhecimento neutro, sendo que sempre refletirá posicionamentos sociais, históricos e culturais, e não a “verdade”.

Assim, as desigualdades de gênero também aparecem como determinantes na produção científica. E, como são oprimidas, as mulheres desenvolvem experiências distintas daquelas vivenciadas por homens, o que possibilita uma vantagem epistêmica. Note-se que não se fala em uma qualidade “essencial” do feminino, mas de condições materiais que produzem essa diferenciação. Diante disso, o perspectivismo defende uma epistemologia que parta da experiência das mulheres, “enraizada nas desigualdades de gênero que se quer erradicar” (SARDENBERG, 2002, p. 17).

Sandra Harding (2001) considera, por outro lado, que a corrente perspectivista se orienta por investigações que partem da base, que refletem a vida cotidiana das pessoas oprimidas, buscando-se identificar as raízes dessa opressão. Ainda segundo a teórica, várias tradições se inserem dentro do perspectivismo - como a fenomenológica e a marxista -, ressaltando que nenhuma delas pode oferecer, sozinha, uma análise da vida das mulheres. Porém, em conjunto, podem proporcionar pontos de vista mais lúcidos.

Partindo, portanto, da convicção de que a estrutura social sexista da ciência produz padrões de conhecimento e de ignorância das ciências modernas - seja pela ausência de igualdade de gênero nas instituições, seja pela aplicação de tecnologias sexistas e androcêntricas, seja pelos resultados das pesquisas que privam cada vez mais mulheres de direitos ou, ainda, pelas taxas mais altas de analfabetismo entre a população feminina - é que Harding (2007) escreve acerca da necessidade do que denominou de objetividade forte.

Para ela, é necessário maximizar a objetividade, em contraposição à “objetividade fraca” das ciências tradicionais. Formula acerca da existência dessa fraqueza basicamente por meio de três pontos. O primeiro trata da validade dos resultados, que são obviamente moldados quando se trabalha com premissas sexistas e androcêntricas. O segundo diz respeito aos métodos da ciência oficial de identificação de valores e interesses sociais, que se dão por meio da repetição. Ainda que sejam eficazes para identificar interesses diferenciados, não conseguem detectar aqueles valores arraigados e compartilhados socialmente. Nas suas palavras:

Opiniões sexistas e racistas não são invenções de indivíduos ou grupos de pesquisa; são suposições amplamente sustentadas por instituições e pela sociedade como um todo que, antes do surgimento de feminismos e anti-racismos, pareciam perfeitamente naturais para quase todo mundo (HARDING, 2007, p. 165).

Acerca da reflexão desse problema, Harding aponta como outras perspectivas, não insertas nos padrões dominantes, podem colaborar na produção do conhecimento, uma vez que poderiam desvelar esses valores compartilhados e dados como naturais. Ela continua:

Mais uma vez, iniciar a pesquisa por estruturas conceituais diferentes das dominantes traz novas perspectivas para abordar opiniões comuns de uma cultura. É claro que ninguém pode jamais ficar completamente fora de uma cultura. No entanto, simplesmente uma pequena liberdade relativa às opiniões prevalecentes pode proporcionar uma perspectiva válida, como enfatizaram cientistas sociais ao relatarem a maior objetividade possível para quem está fora de uma cultura (HARDING, 2007, p. 165).

Assim é que ela entra no terceiro problema da objetividade fraca, pela qual não é possível distinguir os tipos de valores e interesses que aumentam ou os que atrasam o crescimento do conhecimento. Diante desse desafio, Harding argumenta que posições antidemocráticas atrapalham a produção científica e, por outro lado, “valores e interesses da democracia dão a essas perspectivas visibilidade geral e, assim, ampliam as oportunidades para maximizar a objetividade dos processos de pesquisa” (HARDING, 2007, p. 165).

Defende Harding (2007), portanto, que o aumento da confiabilidade das pesquisas está relacionado com a diversidade nos interesses e valores sociais. A partir disso, busca formular uma metodologia que não só produza resultados válidos, mas também que responda às questões que mais importam para o grupo oprimido.

Desta feita, a proposta da “objetividade forte” emerge justamente do reconhecimento da forma como a ciência é usualmente praticada, rejeitando o ideal de neutralidade dos valores (HARDING, 2019, p. 148). Além disso, aposta em partidas que se encontram fora dos quadros conceituais dominantes e promovem uma “lógica do questionamento” (HARDING, 2019, p. 151).

Importante ressaltar que a própria Sandra Harding (2019) reconhece desafios e limitações na sua proposta, indagando-se, por exemplo, se a objetividade forte não parte de uma perspectiva branca e ocidental ou, ainda, se promove ou não uma política de identidade. Tais questões se mostram essenciais para a construção de uma epistemologia feminista que vise à emancipação de todas as mulheres, sendo que se atentará a elas mais tarde.

De qualquer forma, ainda que existam críticas que não podem ser ignoradas ao trabalho realizado por Harding, ressalta-se, aqui, a importância de sua obra e, em especial, da perspectiva de se partir de baixo, da experiência de mulheres, bem como das pesquisas que se inserem em uma lógica de questionamento.

Prosseguindo, o conceito de objetividade também foi trabalhado por Donna Haraway (1995), que pretendeu conciliá-la à perspectiva do sujeito cognoscente, formulando, assim, uma doutrina feminista da objetividade. Procurando superar a dicotomia estabelecida entre relativismo/construcionismo social, Haraway vai ao encontro de Harding, afirmando ser necessária a existência de um critério real, de objetividade mais forte.

Nesse sentido, sustenta que todos os saberes são “situados”, razão pela qual os conhecimentos científicos e feministas serão sempre parciais e incompletos. A produção desse conhecimento situado deve ser resultado de uma conversa “não inocente”, sensível às relações de poder, o que permitiria tornar a ciência aberta a contestações.

Contrapõe-se, dessa maneira, a “visão de lugar nenhum” sustentada pela Ciência Moderna, para insistir na parcialidade da visão e, em especial, na sua “corporalidade”. Segundo a autora, a visão tem natureza corpórea e não pode ser utilizada para fora de um corpo marcado. O olhar não marcado, transcendental, não é outro senão do homem branco (HARAWAY, 1995, p. 18).

Assim, de modo não muito perverso, a objetividade revela-se como algo que diz respeito à corporificação específica e particular e não, definitivamente, como algo a respeito da falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades. A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, e não fecha, a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais (HARAWAY, 1995, p. 21).

Nesse sentido, uma objetividade feminista trata de uma localização limitada, de conhecimentos situados. Deve se afastar, via de consequência, da divisão estabelecida pelo positivismo entre sujeito e objeto, responsabilizando os sujeitos cognoscentes pelo que aprendem a ver (HARAWAY, 1995, p. 21).

A partir dessas acepções é que Haraway (1995, p. 23) enxerga valor na possibilidade em se ver a partir dos subjugados, das periferias e abismos. Os subjugados, argumenta, são privilegiados porque têm menor chance de negar o “núcleo crítico e interpretativo de todo o conhecimento”. Ressalta, entretanto, que é fundamental não cair na armadilha de se romantizar essa postura, sendo que as posições dos oprimidos não são inocentes, não estão isentas de críticas e de desconstrução.

Assim, na defesa de saberes localizáveis, parciais e críticos, Haraway (1995, p. 24) rejeita tanto o relativismo quanto a totalização do conhecimento. Para ela, a “visão de toda a parte” e a “visão de lugar nenhum” se configuram em truques comuns na retórica da ciência.

Essa postura de Haraway foi criticada por algumas feministas. Em artigo intitulado “Quem pode falar, onde e como? Uma conversa ‘não inocente’ com Donna Haraway”, Maria Cecília MacDowell dos Santos (1995) questiona dois aspectos de sua proposta. Indaga, primeiramente, a desconsideração, pela norte-americana, da “identidade” na produção cognitiva. O segundo questionamento, por sua vez, se refere à “tradução”, haja vista que Haraway não apresenta em quais linguagens a tradução de um conhecimento científico e feminista pode ocorrer, deixando a desejar no que tange à democratização do saber. Nesse sentido, Santos questiona, no interior da teoria desenvolvida por Haraway, quem tem o poder para falar.

Ao definir que apenas o sujeito dividido, contraditório, crítico e apaixonadamente distanciado pode falar objetiva e confiavelmente, deixa brechas ao não conseguir indicar quando alguém se torna esse sujeito (SANTOS, 1995, p. 53). Assim, em que pese defenda conhecimentos parciais e construa uma política de diferença, Haraway não define de modo satisfatório e contextualizado os dominadores e subjugados, “e acaba incluindo todas as mulheres na mesma posição social de subjugadas. Ao mesmo tempo, nega-lhes a condição igualitária de falarem por si de sua própria posição” (SANTOS, 1995, p. 56).

Há que se ressaltar, ainda, a crítica formulada pelas teorias feministas denominadas “pós-modernas” acerca da prática cientificizada que buscavam as demais teorias feministas.

Conforme aponta Sardenberg (2002), embora as feministas da Segunda Onda tenham tentado incluir as mulheres e os temas relativos a elas como objetos legítimos de investigação, ainda se forjavam nos mesmos conceitos, pressupostos e métodos da Ciência Moderna.

Ademais, apesar das significativas diferenças entre essas problemáticas e, portanto, entre as três principais correntes de pensamento feminista que então se constituíram - feminismo liberal, socialista e radical -, as questões postas eram semelhantes, ainda que fraseadas distintamente. Essas correntes eram, por assim dizer, filhas do mesmo impulso modernista e igualmente engajadas em formular uma prática política “cientifizada” (SARDENBERG, 2002, p. 4).

Por trás das divergências existentes entre essas teorias feministas, ainda assim todas buscavam, de algum modo, estabelecer os fundamentos da causalidade social (Michèle BARRETT; Anne PHILLIPS, 1992, p. 4). Porém, tornava-se evidente que “não seria possível simplesmente incluir as mulheres nas teorias nas quais elas foram antes excluídas, já que esta exclusão era um princípio estruturador fundamental e um pressuposto chave dos discursos patriarcais” (Elizabeth GROSZ, 1995, p. 86).

Assim é que se deve destacar que a Segunda Onda incorporou a ideia de uma mulher universal, o que carrega em sua gênese uma noção excludente de identidade. Isto porque a posicionalidade de quem enuncia é importante, haja vista que encobrir o sujeito que fala, sua nacionalidade, raça, classe, enfim, sua corporeidade, assegura justamente o mito da neutralidade (Angela FIGUEIREDO, 2020, p. 8).

Ou seja, mesmo que a sua tentativa fosse incluir as mulheres como sujeitas, não se tratava de incluir qualquer mulher. Mulheres não hegemônicas - negras, latinas, islâmicas, indígenas - não entraram nesses discursos e suas pautas foram ignoradas por esse processo político (Núbia Regina MOREIRA; Nadila Jardim EVANGELISTA; João Paulo Lopes dos SANTOS, 2019, p. 120).

Cabe aqui dizer que aquelas que estão posicionadas nas margens, nas fronteiras, nas periferias simbólicas e práticas, acabam por construir posições hegemônicas de autorrepresentação, lugares em que o imperativo da “identidade” é impossível de completar as particularidades das opressões que os sujeitos carregam (MOREIRA; EVANGELISTA; SANTOS, 2019, p. 120).

Não se pode ignorar, dessa forma, as críticas formuladas pelo movimento negro em relação às “ondas”, tendo em vista que as feministas brancas, nas fases por elas denominadas, não incluíram a contribuição do feminismo negro (FIGUEIREDO, 2020, p. 4).

Esse ponto - sobre quem é o sujeito legítimo do feminismo - também é levantado pelo feminismo pós-estruturalista. Tem-se em vista, pois, que esta corrente compartilha de um profundo descrédito às noções totalizantes de verdade, poder, racionalidade, história e sujeito, questionando-se se é possível estabelecer uma noção estável sobre o que é “feminino”.

Argumenta Judith Butler (2003) que é tarefa da crítica feminista explorar as afirmações totalizantes da economia significante masculinista, contudo, deve se ter cautela em relação a gestos totalizantes dentro do feminismo.

Será possível identificar a economia masculinista monolítica e também monológica que atravessa toda a coleção de contextos culturais e históricos em que ocorre a diferença sexual? Será o fracasso em reconhecer as operações culturais específicas da própria opressão de gênero uma espécie de imperialismo epistemológico, imperialismo esse que não se atenua pela elaboração pura e simples das diferenças culturais como “exemplos” do mesmíssimo falocentrismo? O esforço de incluir “Outras” culturas como ampliações diversificadas de um falocentrismo global constitui um ato de apropriação que corre o risco de repetir o gesto autoengrandecedor do falocentrismo, colonizando sob o signo do mesmo diferenças que, de outro modo, poderiam questionar esse conceito totalizante (BUTLER, 2003, p. 37).

Ao categorizar as “mulheres” em um gesto globalizante, algumas teorias feministas rejeitaram a multiplicidade de intersecções culturais e dimensões marcadas pela classe e pela raça, reposicionando a identidade feminina em determinado essencialismo e universalidade que não existem (BUTLER, 2003, p. 38-39). A categoria “mulher”, assim, tem sido marcada pelos feminismos por noções excludentes e por limites bastante restritos de quem está dentro e de quem está fora dela.

Além disso, indica Butler que algumas correntes se sentiram atraídas por buscar uma “origem” da opressão de gênero em algo homogêneo e reificado. “A própria noção de ‘patriarcado’ andou ameaçando tornar-se um conceito universalizante, capaz de anular ou reduzir expressões diversas da assimetria do gênero em diferentes contextos culturais” (BUTLER, 2003, p. 72).

Desta feita, a autora aponta a importância em resistir a uma estratégia epistemológica colonizadora, já que tais entendimentos podem negligenciar e apagar diferentes configurações de dominações ou, ainda, reduzi-los a um só signo transcultural de patriarcado (BUTLER, 2003, p. 72). Aponta, ainda, a importância de não cair na armadilha de uma “feminilidade original ou genuína”, que vai de encontro a uma abordagem do gênero como uma construção cultural complexa (BUTLER, 2003, p. 73).

Note-se, destarte, que as teorias pós-estruturalistas têm apontado caminhos importantes na construção dos feminismos, alavancando saberes que possibilitem a abertura de olhares para além de categorias fechadas e delimitadas por fronteiras excludentes.

De qualquer forma, o que se denota, neste primeiro momento de análise, dessas teorias brevemente revisitadas, é tanto uma pluralidade de correntes que buscaram construir uma epistemologia feminista, quanto a abertura de novos questionamentos, desafios e limitações por elas próprias forjadas.

E, ainda que seja impossível falar em uma única epistemologia feminista, conclui-se que as teorias que se dedicaram a construí-la, todas elas, se preocuparam, em alguma medida, em “historicizar” a ciência e “informar” como as categorias de gênero influenciam os conceitos do conhecimento, no sujeito cognoscente, nas justificativas e práticas de investigação.

Conforme aponta Margareth Rago (1998), as teóricas feministas propuseram que o sujeito deixasse de ser tomado apenas como ponto de partida e que fosse considerado também como efeito de determinações sociais e culturais. Disso resultaram importantes avanços, entre eles, uma incorporação das questões feministas nos diversos campos do saber, a provocação de rupturas com os modelos hierárquicos de funcionamento da ciência e o estabelecimento de uma nova relação entre a teoria e a prática.

Por isso é que, de certa forma, reivindica-se as epistemologias feministas forjadas na Segunda Onda, reafirmando-se aqui a necessidade de desvelar o caráter androcêntrico das ciências modernas e demonstrar a falibilidade dos pressupostos do positivismo e da neutralidade. Além disso, mostra-se importante apropriar-se destas teorias para construir pesquisas assumidamente (na dicção de Haraway) parciais e limitadas, que pretendam partir de olhares situados, que podem, justamente por isso, auxiliar em uma lógica de questionamento dos padrões comumente aceitos.

Diz-se “de certa forma”, contudo, porque os feminismos que construíram essas primeiras teorias se basearam em conceitos segregatórios e até mesmo colonizadores acerca dos sujeitos femininos, sendo insuficientes para análise de processos de opressão fora do seu próprio lócus. A acepção universalista, ao defender a existência de uma mulher universal, não só recaiu em determinado “essencialismo” do que seja o “feminino”, mas também traçou linhas demarcatórias e excludentes para aquelas que não se enquadravam no padrão antes estabelecido. É o que se verá a seguir.

3. Na contra-hegemonia

Os feminismos negros e os feminismos do “Terceiro Mundo” formularam críticas fundamentais ao conceito de “Mulher” trazido pelas teorias feministas hegemônicas. bell hooks (2015) explica que o pensamento feminista moderno tem se baseado em um preceito central de que todas as mulheres são oprimidas, e dessa forma sugere, equivocadamente, que existe uma mesma sina para o gênero feminino, descartando experiências diferenciadas que também são forjadas por fatores como raça, sexualidade, classe, religião etc.

As mulheres brancas que dominam o discurso feminista - as quais, na maior parte, fazem e formulam a teoria feminista - têm pouca ou nenhuma compreensão da supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua condição política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista (hooks, 2015, p. 196).

Em reflexão semelhante, discorre a caribenha-americana Audre Lorde (2020, p. 145):

Quando as mulheres brancas ignoram os privilégios inerentes à sua branquitude e definem mulher apenas de acordo com suas experiências, as mulheres de cor se tornam “outras”, outsiders cuja experiência e tradição são “alheias” demais para serem compreendidas. Um exemplo disso é a marcante ausência de experiências de mulheres de cor no material das disciplinas de estudos das mulheres. A literatura de mulheres de cor raramente é incluída nos conteúdos de literatura de mulheres, e quase nunca em outras disciplinas de literatura, nem nos estudos das mulheres como um todo.

Contrapondo-se a esta pretensão universalizante, portanto, o feminismo negro auxilia na compreensão de que uma abordagem simples de gênero, sem perceber outras estruturas de poder, se torna limitada, forjando daí a categoria da “interseccionalidade”.

A autora afro-americana Patricia Hill Collins (2017) aponta que, apesar de hoje a perspectiva interseccional ser amplamente utilizada na academia - por muitas vezes de forma problemática -, ela surgiu, em verdade, no seio dos movimentos sociais negros. Como exemplo, a professora cita um manifesto chamado A Black Feminist Statement, distribuído no contexto do ativismo de mulheres negras na década de 1980 nos Estados Unidos. No documento, argumentava-se a necessidade de interconexão entre os sistemas de opressão, posto que todas as categorias em conjunto - raça, gênero, classe social e sexualidade - moldavam a vida de mulheres negras afro-americanas.

Collins (2017) ressalta, dessa forma, que, apesar de a “interseccionalidade” ter sido incorporada nos debates acadêmicos, o foi de maneira distorcida, já que ignoraram sua origem nos movimentos sociais. Reafirma-se, então, que tal categoria foi construída por ativistas em movimento, como uma forma de pesquisa prática e práxis, devendo ser ressaltado, daí, o seu potencial emancipatório.

Acerca das dimensões de um debate interseccional, deve se ter presente as formulações de Angela Yvonne Davis (2016), professora e militante do movimento negro e comunista estadunidense. Na sua obra Mulheres, Raça e Classe, Davis demonstra, a partir de processos históricos e experiências concretas vividas nos Estados Unidos, os nexos causais existentes entre capitalismo, sexismo e racismo.

Ressalta, ainda, como as mulheres negras sofreram processos diferentes de suas irmãs brancas, em diferentes âmbitos e nos diferentes tempos históricos daquele país. Por exemplo, na clivagem provocada entre o ambiente doméstico e o ambiente público trazidos pelo capitalismo industrial, a “mulher” se tornou sinônimo de mãe e dona de casa. Porém, entre as mulheres negras escravizadas esse padrão e vocabulário não se repetia. As relações entre homens e mulheres no interior da comunidade escrava não correspondiam aos padrões da ideologia e das classes dominantes (DAVIS, 2016, p. 25).

Refletindo acerca dessas experiências diferenciadas, é que Collins (2019) se dedicou à construção social do pensamento feminista negro. Além de se debruçar sobre temas como o trabalho, família, política sexual, relações afetivas, maternidade e o ativismo de mulheres negras, a autora afro-americana delineou aspectos importantes acerca de uma “epistemologia feminista negra”. Desvalorizada pelos processos dominantes de validação do conhecimento, Collins apresenta esta epistemologia por meio de alguns elementos.

O primeiro deles é a tratativa da “experiência vivida como critério de significado”. Trata-se de recorrer às experiências dessas mulheres, tanto para selecionar as pesquisas e as metodologias a serem utilizadas, quanto para avaliar reivindicações de conhecimento. As formas de utilização desses modos de saber “permitem o surgimento de uma subjetividade entre o conhecimento e o conhecedor, residem nas próprias mulheres (e não em altas autoridades) e são vivenciadas diretamente no mundo (e não por intermédio de abstrações)” (COLLINS, 2019, p. 414).

O segundo ponto ressaltado é o uso do “diálogo” como critério de adequação metodológica. Esta forma de avaliação de reivindicação de conhecimento tem raízes nas tradições orais de matriz africana, pois, ao fazer as pessoas contarem e recontarem sua versão, os antepassados conseguiam detectar uma mentira e descobriam a verdade dos conflitos. Assim, a utilização da forma “chamamento e resposta”, em que todos os grupos devem participar, é comum entre afro-americanos e demonstra a importância dada ao diálogo. Essa importância também fica ilustrada quando autoras e intelectuais negras fazem referência ao diálogo - e as tradições orais de contação de história - para a escolha de temas de pesquisa. Além disso, as mulheres negras, por ocuparem uma posição central nas famílias, igrejas e outras organizações comunitárias, invocam o diálogo como uma dimensão da epistemologia feminista negra (COLLINS, 2019, p. 416-419).

Por sua vez, o terceiro elemento trazido por Collins (2019, p. 419) é o que denomina de “ética do cuidar”. Esta característica se assenta na importância da “singularidade individual” nas comunidades afro-americanas, isto é, na forma como cada indivíduo é tido como uma expressão única de um espírito. Exemplos disso são a polirritmia da música afro-americana - em que não há uma batida que se destaque mais do que as outras - e a colcha produzida por mulheres negras, na qual as cores e padrões simbolizam as diferenças individuais, que, em conjunto, formam a totalidade da peça. Outro aspecto da ética do cuidar é a valorização das emoções e da expressividade pessoal. O ritmo da voz e a inflexão vocal são formas de transmissão de significados, sendo impossível separar as ideias apresentadas por um falante da própria maneira verbal a que são expostas.

O último aspecto da epistemologia feminista negra, segundo a autora (COLLINS, 2019, p. 423), é a “ética da responsabilidade pessoal”, que se trata da avaliação do comprometimento dos indivíduos em relação às reivindicações que fazem de conhecimento. Considera-se fundamental assumir responsabilidade pessoal pela argumentação para aferir sua validade. Assim, investigar o ponto de vista pessoal do sujeito cognoscente não foge ao escopo da discussão. Como exemplo, Collins (2019, p. 424) explica que a pergunta se Aretha Franklin realmente acredita, quando recita a letra de sua canção Respect, que as mulheres negras devem ser tratadas com respeito é um questionamento válido para a epistemologia feminista negra.

Assim é que Collins, ao trazer para o centro de análise a subjetividade da mulher afro-americana, reconstrói uma epistemologia na articulação do ponto de vista da experiência destas mulheres, rejeitando reivindicações de um conhecimento e de uma mulher universal. Define, em suma, mulheres negras como agentes do conhecimento.

Trazendo o debate para a América Latina, devem ser sublinhadas as contribuições da autora brasileira Lélia Gonzalez (1988), a qual, na análise das experiências de pessoas negras fora do continente africano, lhes confere uma posição central nas investigações sobre as relações raciais.

Observando a diáspora vivenciada e compartilhada por afrodescendentes no continente, Gonzalez propõe o conceito de “amefricanidade” para uma nova compreensão do processo histórico de formação do Brasil e do que chama de “Améfrica Ladina”. A renomeação do espaço territorial pela autora se dá justamente para destacar a importância da influência africana e ameríndia na sua construção (GONZALEZ, 1988, p. 69).

Por sua vez, propõe o termo “pretoguês” para demarcar a africanização da língua falada no Brasil, sublinhando como a presença negra na região modificou a forma de comunicação desenvolvida (GONZALEZ, 1988, p. 70).

O caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da ausência de certas consoantes (como o l ou o r, por exemplo), apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (e isto sem falar dos dialetos “crioulos” do Caribe). Similaridades ainda mais evidentes são constatáveis, se o nosso olhar se volta para as músicas, as danças, os sistemas de crenças etc. Desnecessário dizer o quanto tudo isso é encoberto pelo véu ideológico do branqueamento, é recalcado por classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional” etc., que minimizam a importância da contribuição negra (GONZALEZ, 1988, p. 70).

A proposição do termo “amefricanidade”, portanto, traz consigo a possibilidade de resgatar uma unidade específica, acerca de uma experiência histórica comum entre diferentes sociedades (GONZALEZ, 1988, p. 76).

A visão de Gonzalez é especialmente potente, tendo em vista que propõe uma nova epistemologia para a compreensão do processo de formação histórico do país e do continente, afirmando a particularidade da experiência da América e postulando o abandono de reproduções eurocêntricas e imperialistas da realidade aqui experienciada.

Outra contribuição fundamental trazida pela brasileira (2020) é a reivindicação de um “feminismo afro-latino-americano”. Na sua proposta, Gonzalez traz uma crítica à prática feminista e o seu insistente esquecimento da questão racial, cujas raízes se encontram na visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista da realidade.

Utilizando-se do pensamento lacaniano, a autora expõe a forma como se dá a infantilização e a retirada de “agência” das mulheres não brancas, para quem é negado o direito de falar e de formular suas próprias narrativas. Nas suas palavras:

Da mesma forma, nós mulheres e não brancas fomos “faladas”, definidas e classificadas por um sistema ideológico de dominação que nos infantiliza. Ao nos impor um lugar inferior no interior de sua hierarquia (apoiadas nas nossas condições biológicas de sexo e raça), suprime nossa humanidade justamente porque nos nega o direito de sermos sujeitos não só do nosso próprio discurso, como da nossa própria história (GONZALEZ, 1988, p. 41).

Nesses termos, a autora aponta para a necessidade de o feminismo afro-latino-americano incorporar o caráter multirracial e pluricultural de suas sociedades. Ao tratar, por exemplo, da divisão sexual do trabalho sem articulá-la à questão racial, o feminismo incorre em um racionalismo universal abstrato, comum da narrativa masculina e branca. “Falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não serem brancas” (GONZALEZ, 2020, p. 42).

Não por acaso, mulheres amefricanas e ameríndias conscientizam-se inicialmente da opressão que vivem, antes de qualquer coisa, pela questão racial. Organizam-se e participam muito mais do movimento popular do que do movimento feminista ou político-partidário, já que estão preocupadas com o problema da sobrevivência familiar e com o mercado informal de trabalho (GONZALEZ, 2020, p. 47). Como diz a própria autora, “depois de tudo, sou feminista” (GONZALEZ, 2020, p. 40).

Expondo ainda de maneira mais objetiva essa questão, Françoise Vergès (2020, p. 29) afirma:

Nem sempre é fácil se dizer “feminista”. As traições do feminismo ocidental são um fator de repulsa, assim como seu desejo violento de integrar o mundo capitalista, de ocupar um lugar no mundo dos homens predadores, e sua obsessão com a sexualidade dos homens racializados e com a vitimização das mulheres racializadas.

Conforme também explica a autora brasileira Sueli Carneiro (2003, p. 49), a experiência histórica vivenciada pelas mulheres negras e a diferença existente entre as opressões sofridas são ignoradas pelo discurso clássico.

Além disso, a autora (CARNEIRO, 2002, p. 210) aponta para a existência uma expropriação, realizada pelo Estado brasileiro, da prática política do movimento negro e, via de consequência, a expropriação de sua condição de sujeito. Esse processo é caracterizado pela aparência de uma valorização das pautas do movimento negro e de maior visibilidade à questão racial nas grandes mídias e nas ações afirmativas. Ocorre que, ao mesmo tempo que propaga uma nova “democracia racial”, subtrai dos negros e negras a capacidade de estabelecer em que termos se dará o debate das suas próprias pautas. Exemplo disso são novos produtos editoriais segmentados para a população negra em que se estabelece um “novo padrão estético”. Daí é que a autora questiona: “Isto significa que lutamos por produtos específicos para a nossa população, mas não conseguimos determinar as características destes produtos. É o mercado que o faz” (CARNEIRO, 2002, p. 211).

Sueli Carneiro (2002, p. 212) expõe que essa lógica, denominada por ela como “neo-democracia racial”, atende a dois interesses específicos. O primeiro é o de anestesiar a capacidade reivindicatória desses sujeitos e o segundo é a determinação estabelecida pela lógica do mercado, notadamente um novo mercado consumidor.

É importante ser sublinhada, dessa forma, a existência de um epistemicídio em curso, causado tanto pelas forças estatais quanto pelos movimentos feministas, que se alinham em práticas excludentes e na subtração da agência dessas pessoas nas suas próprias narrativas.

O que se denota, portanto, é que a violência epistêmica reside no interior dos próprios movimentos e teorias feministas. É nesse sentido que as teóricas do feminismo de política decolonial, influenciadas pela tradição iniciada pelo feminismo negro norte-americano, pelo feminismo terceiro-mundista, indígena e de mulheres de cor, questionaram o pensamento feminista clássico e as epistemologias dele decorrentes.

4. Construindo uma epistemologia feminista decolonial

Yuderkys Espinosa-Miñoso (2014) afirma que a corrente feminista hegemônica tem sido produzida por um grupo determinado de mulheres, que gozam do privilégio epistêmico configurado pelas suas origens de classe e raça. Em sentido oposto, o feminismo decolonial propõe elaborar uma genealogia do pensamento produzido nas fronteiras, por mulheres lésbicas, racializadas, marginalizadas, comprometido em desconstruir a matriz da opressão que reside em um ponto de vista eurocentrado (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014, p. 7).

Afirma-se, em suma, que o universalismo na produção teórica feminista não serve para interpretar e analisar a realidade das mulheres racializadas em territórios colonizados. Autoras como Keller, Haraway e Harding preocuparam-se em identificar o androcentrismo das ciências e a exclusão do ponto de vista das mulheres nos processos de conhecimento. Porém, a crítica formulada por elas acabou totalmente alheia à atuação histórica do racismo e da colonialidade como elementos importantes da opressão vivida por outras mulheres, não se articulando, assim, a um projeto de descolonização e desuniversalização do sujeito feminino (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014, p. 9).

Em igual sentido, ensina Ochy Curiel (2020, p. 130):

Não obstante, Harding, no fim das contas, reproduziu a universalização do gênero, assim como seu binarismo. Sua proposta é bastante essencialista quando diz que a metodologia feminista é sobre uma perspectiva das experiências femininas que se contrapõem às experiências masculinas. Essa visão dualista assume que “as mulheres” e “os homens” são todxs iguais, descontextualizados e universais. Ainda que Harding tenha proposto que considerássemos a “raça”, o gênero e a classe de quem pesquisa, ela se limita a entender a metodologia feminista olhando apenas para o gênero.

Curiel prossegue refletindo também sobre as formulações de Haraway, pois, embora esta tenha proposto a evidenciação do lugar de enunciação, “a reflexividade da visão decolonial não é apenas nos autodefinir na produção de conhecimento, mas também sobre produzir um conhecimento que leve em conta a geopolítica, a ‘raça’, a classe, a sexualidade, o capital social e outros posicionamentos” (CURIEL, 2020, p. 131). Ou seja, a perspectiva decolonial demanda uma investigação sobre para quem e a que servem os conhecimentos, como são produzidos e de acordo com qual projeto político (CURIEL, 2020, p. 131).

Por isso é que Espinosa-Miñoso (2020, p. 110) aponta para o problema da existência de uma “razão feminista universal”, que está configurada pelo compromisso com a modernidade e com a colonialidade e o racismo que a definem. Assevera que as feministas se convenceram de que são detentoras de uma verdade sobre as mulheres e, por conta disso, são as competentes para a definição de um programa libertário. Assim, se comprometem com uma agenda global para a liberação das mulheres de outros países e acabam por cair em um “desejo salvacionista”, que não é outra coisa senão imperialista.

A razão do feminismo corresponde a um gesto prepotente e imperialista da razão moderna, sendo aquela que se autoproclama a única verdadeira razão existente, aquela desenvolvida ao máximo em uma linha evolutiva, ou seja, ela se desenvolve no interior de seu próprio tempo histórico e dentro de um espaço específico: a Europa (ESPINOSA-MIÑOSO, 2020, p. 112).

Em raciocínio semelhante, Vergès (2020) nomeia esse feminismo de “feminismo civilizatório”, isto é, aquele que assume os objetivos da missão civilizatória colonial. É aquele que tomou para si o encargo de levar um pensamento único, universal e ocidentalizado para as mulheres racializadas de outras sociedades, na tentativa de salvá-las do “obscurantismo”. Reforçam, nesse processo, as desigualdades de raça, classe e gênero.

Além disso, Vergès (2020, p. 45) aponta o caráter “branco-burguês” desse movimento, que não é “branco” simplesmente porque é impulsionado por mulheres brancas, mas principalmente pela reivindicação ao seu pertencimento a uma parte do mundo - a Europa - que, por sua vez, foi construída a partir de uma divisão racial do mundo. Além disso, as feministas civilizatórias apresentam uma vontade de ocidentalizar a luta das mulheres, o que corrobora uma estratégia de apagamento das lutas e conhecimentos das mulheres racializadas do Sul, isto é, em verdadeiro epistemicídio (VERGÈS, 2020, p. 105).

Deve se ter presente, desse modo, uma crítica ao universalismo das epistemologias feministas. Por tais perspectivas hegemônicas, o gênero parece operar de forma independente e separada, inerente à problemática de mulheres. Porém, como exposto nas análises feministas decoloniais, esta categoria nunca opera de forma isolada, além de não explicar, por si só, as circunstâncias a que as mulheres não brancas estão submetidas.

Em especial, destaca-se as formulações de María Lugones (2014), que, ao criticar a teoria desenvolvida por Aníbal Quijano (1991) - especialmente o conceito de padrão colonial de poder baseado na construção da ideia de raça -, expõe que também o gênero, ao lado da raça, foi utilizado para o exercício da colonialidade, haja vista tais categorias determinaram quem poderia ser lido ou não como humano.

No marco da decolonialidade, o desfazimento da binariedade humanos/não-humanos se torna essencial e corpo, sexo, gênero e raça são categorias fundamentais para realizar esse procedimento e para, inclusive, ler como atribuímos sentido a homem e mulher não apenas dentro do sistema sexo/gênero, mas em um sistema de colonialidade que articula os três marcadores para dar diferentes sentidos aos corpos que categoriza (Camilla de Magalhães GOMES, 2018, p. 67).

Outro ponto relevante, apontado por Espinosa-Miñoso (2014, p. 10), sobre as epistemologias feministas hegemônicas, é o próprio ocultamento do lugar privilegiado que as investigadoras ocupam. Ainda que façam críticas contundentes acerca do pensamento científico moderno e sobre os sujeitos que são autorizados a produzir conhecimento, essas feministas ignoram os privilégios de classe e raça que lhes possibilitam o fazer. Ademais, a teoria feminista ignora e minimiza as análises do feminismo negro, indígena e de mulheres de cor, “a la par que se hace una proclama de buenas intenciones se logra neutralizar sus efectos sobre el conjunto del armazón conceptual feminista clásico” (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014, p. 11).

Por todo o exposto, verifica-se a necessidade de construção de uma outra epistemologia feminista, de política decolonial, isto é, forjada pela experiência de mulheres subalternizadas, colonizadas e marginalizadas e, sobretudo, a partir de suas lutas. A partir dessa perspectiva é que se busca traçar algumas premissas, a seguir delineadas.

4.1 Interseccionalidade e indissociabilidade dos padrões de poder

Primeiramente, afirma-se a necessidade de observar a “interconexão” profunda entre as estruturas de dominação, em específico o androcentrismo, o racismo, a modernidade e a colonialidade. Esses sistemas não podem ser analisados como categorias separadas ou estanques, já que operacionalizam opressões de maneira conjunta, moldando a realidade de uma multiplicidade de mulheres, em especial em territórios colonizados.

A decolonialidade trouxe a perspectiva de que a raça é um produto da colonialidade europeia na América Latina. Mas, como as teóricas feministas informaram, o gênero também conforma a raça e vice-versa, sendo que ambos são utilizados no padrão de poder colonial. Assim, colonialidade, racismo e sexismo não são apenas fenômenos, mas a própria episteme intrínseca da modernidade (ESPINOSA-MIÑOSO, 2014, p. 12).

Note-se, ademais, que não se trata apenas de articular raça, classe, sexualidade e gênero de forma “aditiva”, como se a soma dos elementos ou a citacionalidade de cada um fosse suficiente para uma análise mais lúcida. Trata-se de ressignificar a lógica da interseccionalidade para perceber como as categorias estão emaranhadas indissociavelmente e atuam no padrão de poder colonial.

Uma posição decolonial feminista significa entender que tanto a raça quanto o gênero, a classe, a heterossexualidade etc. são constitutivos da episteme moderna colonial; elas não são simples eixos de diferenças, são diferenciações produzidas pelas opressões, de maneira imbricada, que produzem o sistema colonial moderno (CURIEL, 2020, p. 133).

Reivindica-se, portanto, uma análise da interseccionalidade que informe a dependência de cada uma das formas de dominação consideradas. A produção de conhecimento que ignore ou separe tais padrões, ou mesmo os categorize de forma aritmética, é insuficiente para uma compreensão integral das experiências multitudinárias vividas por mulheres.

Ademais, entende-se a interseccionalidade também como um instrumento de luta política. A observação da articulação existente entre os paradigmas de opressão possibilita questionar não só a forma como o conhecimento é formulado, mas também as próprias condições sociais em que se situa, razão pela qual a categoria aqui reivindicada também é uma arma política (MOREIRA; Thaís Teixeira CARDOSO, 2020, p. 146).

4.2 Experiências de baixo e compartilhadas

Um outro aspecto importante é a centralidade do “ponto de vista” e das “experiências” de mulheres subalternizadas para validação dos processos de conhecimento. Conforme aponta Espinosa-Miñoso, o privilégio epistêmico não pertence a qualquer mulher, mas sim a “uma mulher subalterna, que na América Latina é indígena e afrodescendente, camponesa, desterritorializada ou pobre” (ESPINOSA-MIÑOSO, 2020, p. 108).

A proposta da autora é aqui reproduzida no sentido de priorizar a produção do conhecimento em corpos submetidos sistematicamente a processos de violência, à negação de si mesmos, e de quem foi recusada a capacidade de desenvolver saberes.

Ochy Curiel (2020, p. 134) sintetiza:

Trata-se de identificar conceitos, categorias, teorias, que emergem das experiências subalternizadas, que geralmente são produzidos coletivamente, que têm a possibilidade de generalizar sem universalizar, de explicar realidades diferentes contribuindo com o rompimento da ideia de que esses conhecimentos são locais, individuais e incomunicáveis.

Dialogando com essa ideia, Claudia Pons Cardoso (2018, p. 325) aponta como a experiência de mulheres negras no Brasil as coloca em posição política privilegiada para analisar o quadro social. Além disso, coletivos, grupos, associações e redes se mostram como espaços de mobilização e de construção de projetos de justiça social.

Em decorrência desses aspectos, reivindica-se também as práticas forjadas no tecido social, os processos de coesão encontrados nas coletividades, no comum. Ou seja, é fundamental não só compreender as experiências de baixo, mas também o compartilhamento e o lugar habitual em que se encontram essas vivências, não as isolando como se fossem conhecimentos individuais e divorciados de uma realidade comunitária.

4.3 Lutas e insurgências sociais

Um último aspecto aqui reivindicado é a busca de produção de saberes no seio de manifestações e movimento sociais, no bojo de resistências cotidianas aos processos decorrentes da colonialidade, do capitalismo e do imperialismo. O intuito é resgatar genealogias perdidas, as quais podem possibilitar outras formas de interpretações do mundo e da vida coletiva.

Como informa Catherine Walsh (2007, p. 110), pensar em epistemologias decoloniais significa pôr em evidência conhecimentos considerados não conhecimentos, pensar novos lugares de pensamento que permitam transcender, reconstruir e superar as limitações postas pela ciência e os sistemas de conhecimento da modernidade, o que demanda lógicas e racionalidades diversas.

Observar as lutas coletivas, que buscam formas de melhorar a vida, de dignidade, de transformação, é um importante pilar para a localização de saberes emancipatórios. As investidas e demandas populares são espaços de produção do conhecimento, de partilha de ideias, que devem ser tidos como profícuos no campo epistemológico.

Nilma Lino Gomes (2011), trabalhando acerca da produção de saberes pelo movimento negro, aponta como a luta por ações afirmativas converge para práticas e conhecimentos elaborados pela comunidade negra na sua trajetória histórica. Inclusive, a autora expõe a importância da corporeidade e da produção de saberes estéticos nesse processo.

Os saberes estéticos são pensados, aqui, no que se refere à corporeidade: podemos dizer que as ações afirmativas reeducam os negros, as negras e a sociedade brasileira na sua relação com o corpo. Ao se posicionar politicamente favorável a essa política ou ao participar de um processo de seleção baseado no critério de cotas raciais ou ao se identificar como negro no Brasil, o sujeito participa de um processo de mudança de lógica corporal (GOMES, 2011, p. 150).

Não se trata, aqui, de reivindicar a validação no interior da academia e espaços universitários, mas de justamente legitimar, em sentido amplo, a possibilidade de fazer saber em espaços outros. A par das estruturas que os validam e a par da permissão de quem pode ser sujeito, as coletividades, quando estão em luta, questionam o quadro conceitual dominante e geram novos conhecimentos.

Considerações finais

Não há dúvida de que as feministas da Segunda Onda demonstraram a importância da reflexão sobre a forma de se produzir saber e os pressupostos misóginos das ciências modernas. Revisitar essas teorias se mostra de grande valia, para rejeitar a neutralidade dos valores, rememorar saberes situados e buscar uma lógica de questionamento nos processos de realização de conhecimento.

É necessário, contudo, prosseguir e alimentar os debates para a construção de uma epistemologia (ou diversas) que esteja atenta às demandas de mulheres não representadas pelas vozes dos feminismos hegemônicos. O gesto globalizante, o insistente racismo epistêmico, a imposição de universalidade de um suposto sujeito feminino apresentaram-se, em verdade, como entraves para a percepção da atuação histórica do racismo e da colonialidade na vida das mulheres e, por conseguinte, como obstáculo para um projeto de fato emancipatório para essas pessoas.

Nesses termos, pensar e refletir sobre uma epistemologia que atenda a essas outras demandas, de mulheres racializadas, periféricas, situadas em territórios colonizados, significa validar e incentivar a construção de outras compreensões e conhecimentos do mundo, que possam responder, sobretudo, a essas próprias agentes. Isto é, as ciências e metodologias produzidas por elas para um atendimento de suas próprias necessidades.

Além disso, a busca por uma epistemologia outra (que aqui se tem chamado de feminista decolonial) se revela importante na medida em que não ignora um comprometimento com a desconstituição dos projetos coloniais, misóginos, racistas e imperialistas atuantes.

Por isso, para dar mais um impulso a esse diálogo e a essa construção, observando-se as produções das feministas negras, terceiro-mundistas e decoloniais, é que se aponta a interseccionalidade, as experiências coletivas de baixo e as lutas sociais como instrumentais e métodos válidos de produção do saber.

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1 Enquanto a Primeira Onda do movimento feminista se caracterizou pela luta pelo sufrágio e por direitos legais, a Segunda Onda ampliou o debate para outras questões acerca do gênero, como sexualidade, família, trabalho, direitos reprodutivos etc. Nesse período, foram formuladas as teorias feministas que questionavam, sobretudo, a diferenciação sexual. Importante pontuar que a expressão “ondas” para categorizar os movimentos feministas tem sofrido críticas relevantes e com as quais se compactua neste artigo, tendo em vista que dizem respeito especialmente à história do feminismo no hemisfério norte, o que pode gerar conclusões generalistas sobre a unilinearidade das lutas travadas pelas mulheres.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: TABUCHI, Mariana Garcia; ROSSI, Amélia do Carmo Sampaio. “Construindo uma epistemologia feminista decolonial”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e86106, 2023

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 21 de Fevereiro de 2022; Revisado: 06 de Novembro de 2022; Aceito: 27 de Junho de 2023

mariana.tabuchi@gmail.com

amelia.rossi@pucpr.br; amiwww.com.br@uol.com.br

Mariana Garcia Tabuchi (mariana.tabuchi@gmail.com) é mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), Curitiba, Brasil. Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC), Curitiba, Brasil. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil.

Amélia do Carmo Sampaio Rossi (amelia.rossi@pucpr.br; amiwww.com.br@uol.com.br) é mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil, e doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Brasil. Professora titular de Direito Constitucional da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, Brasil. Professora no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba-PR, Brasil.

Conflito de interesses: Não se aplica

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