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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n385854 

Artigos

Discursos que pesam: realismo agencial e processos de materialização corporal

Discourses that matter: agential realism and processes of bodily materialization

Discursos que pesan: realismo agencial y procesos de materialización corporal

Caynnã de Camargo Santos1 
http://orcid.org/0000-0003-4069-1363

1Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Portugal. 3000-995 - ces@ces.uc.pt


Resumo:

O artigo propõe um esforço de tensionamento dos argumentos feministas pós-estruturalistas sobre as relações estabelecidas entre práticas discursivas e a materialidade dos corpos. O fio condutor do texto é uma entrevista realizada com uma mulher que vivencia uma forma rara de malformação congênita do aparelho reprodutor. Interpelamos, primeiramente a partir das perspectivas pós-estruturalistas e, em seguida, com base no realismo agencial de Karen Barad, a narrativa da entrevistada sobre os processos de diagnóstico e tratamento da condição de agenesia vaginal. Concluímos que o advento do realismo agencial permite superar os limites epistêmicos das teorizações construtivistas acerca dos processos de materialização corporal, garantindo uma fundamental complementação materialista a tais posições e evidenciando a eficácia produtiva do poder disciplinar em toda sua dimensão empírica.

Palavras-chave: corpo; materialização; práticas discursivas; realismo agencial; agenesia vaginal

Abstract:

The article proposes an effort of tensioning of poststructuralist feminist arguments about the relations established between discursive practices and the materiality of bodies. The text’s guiding thread is an interview with a woman who experiences a rare form of congenital malformation of the reproductive system. We interpellate, first through post-structuralist perspectives and then, based on Karen Barad’s agential realism, the interviewee's narrative about the processes of diagnosis and treatment of the condition of vaginal agenesis. We conclude that the advent of agential realism allows us to overcome the epistemic limits of constructivist theories about the processes of bodily materialization, ensuring a fundamental materialist complementation to such positions and evidencing the productive effectiveness of disciplinary power in all its empirical dimension.

Keywords: Body; Materialization; Discursive practices; Agential realism; Vaginal agenesis

Resumen:

El artículo propone un esfuerzo de tensionamiento de los argumentos feministas postestructuralistas sobre las relaciones que se establecen entre las prácticas discursivas y la materialidad corporal. El hilo conductor del texto es una entrevista con una mujer que vivencia una rara forma de malformación congénita del sistema reproductivo. Interpelamos, primero desde perspectivas postestructuralistas y luego, a partir del realismo agencial de Karen Barad, la narrativa de la entrevistada sobre los procesos de diagnóstico y tratamiento de la condición de agenesia vaginal. Concluimos que el adviento del realismo agencial permite superar los límites epistémicos de las teorías constructivistas sobre los procesos de materialización corporal, asegurando una complementación materialista fundamental a tales posiciones y evidenciando la eficacia productiva del poder disciplinario en toda su dimensión empírica.

Palabras clave: cuerpo; materialización; prácticas discursivas; realismo agencial; agenesia vaginal

Introdução

Não há nada de abstrato acerca do poder que as ciências e as teorias têm de agir materialmente e verdadeiramente sobre os nossos corpos e as nossas mentes.

(Monique WITTIG, 1990, p. 53, tradução nossa)1

No seu seminal Bodies that Matter, Judith Butler (1993) argumenta que normas regulatórias e práticas discursivas estão associadas não apenas a processos de formação subjetiva - estes, abordados anteriormente pela autora em Gender Trouble a partir de sua teoria da performatividade de gênero -, mas também à produção da própria materialidade dos corpos. Pautada na ênfase foucaultiana na faceta positiva/produtiva das dinâmicas de poder-saber que tomam parte na modernidade, Butler (1993) afirma que o corpo e as diferenças sexuais devem ser compreendidos como resultados de processos historicamente contingentes e ideologicamente investidos de materialização, em detrimento das habituais compreensões naturalistas que os identificam como facticidades biológicas dadas e pré-discursivas.

Entretanto, no decorrer de sua argumentação, observamos que a noção de “materialização” proposta pela autora e os potenciais constitutivos atribuídos por ela às práticas discursivas são majoritariamente circunscritos aos domínios da linguagem, dos sentidos e das estruturas de inteligibilidade, ênfase que enseja uma subteorização do corpo físico e das dimensões materiais das práticas regulatórias através das quais corpos são performados (Vicki KIRBY, 2006; Stacy ALAIMO; Susan HEKMAN, 2008; Noela DAVIS, 2010; Kathleen LENNON; Rachel ALSOP, 2020). De fato, em meio à teoria butleriana da “materialização” corporal, as noções de “produção” discursiva e produção material são por vezes concebidas como equivalentes, de tal maneira que a ideia de “construção” se vê, em alguns momentos, reduzida a sinônimo de “significação” (Caynnã SANTOS, 2021, p. 61-64). Em outras palavras, “Butler não está falando de substância física quando fala de matéria e de materialização” (DAVIS, 2010, p. 159, tradução nossa),2 mas das maneiras como corpos são variavelmente interpretados e adquirem sentidos na/pela linguagem.

Por exemplo, quando afirma, já nas primeiras páginas de Bodies that Matter, que normas regulatórias atuam de modo a materializar o sexo do corpo segundo um imperativo heterossexual (BUTLER, 1993, p. 1-2), a autora está, de fato, pontuando que nossas percepções acerca daquilo que conta como natural, normal e “real” se dão sempre internamente a determinados regimes políticos de verdade, sendo que estruturas de inteligibilidade impregnadas por ideais heteronormativos cumprem condicionar nossos entendimentos dos corpos, garantindo que diferenças sexuais binárias sejam percebidas enquanto “realidades naturais” e autoevidentes. Ou seja, após atentarmos para os reais sentidos que determinados termos adquirem em meio às proposições butlerianas (nomeadamente, noções como “constituir”, “produzir” e “materializar”), uma afirmação que, prima facie, parece dotada de teor materialista contundente - “as normas regulatórias do ‘sexo’ trabalham de forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo” (BUTLER, 1993, p. 2, tradução nossa)3 -, ganha contornos metafóricos. As teorizações que a sustentam, afinal, se restringem ao âmbito das problemáticas de “produção” (as aspas são aqui fundamentais) simbólica e epistemológica, falhando em explicitar como as normas regulatórias e os discursos poderiam literalmente produzir a materialidade somática em toda sua irredutível carnalidade ontológica.

Haveria, porém, alguma forma de literalizarmos as alegações pós-estruturalistas de que os corpos são produzidos discursivamente? Seria realmente possível que o poder e as normas regulatórias construam corpos para além do nível conceitual? Se sim, como isso se daria? Ainda, quais seriam as modificações a serem feitas nos entendimentos que habitualmente nutrimos acerca da natureza das “práticas discursivas” (Michel FOUCAULT, 2008), que nos permitiriam realizar essa superação dos limites linguísticos e epistêmicos que marcam posições construtivistas sobre os corpos?

No presente artigo, buscamos demonstrar que as recentes contribuições dos chamados neomaterialismos feministas - e, especialmente, a modalidade de neomaterialismo proposta pela física e feminista estadunidense Karen Barad (1996; 2001;2003; 2007), nomeada de realismo agencial (BARAD, 2007) - podem iluminar nossos entendimentos sobre as relações estabelecidas entre práticas discursivas e a materialidade dos corpos, no sentido de tensionar, ao ponto de munir de literalidade, a máxima pós-estruturalista de que os discursos “formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2008, p. 55).

Descrita como “uma das mais influentes e importantes representantes dos estudos materialistas contemporâneos” (Thomas LEMKE, 2014, p. 5, tradução nossa),4 Barad edifica seu realismo agencial a partir da combinação de teorizações pós-estruturalistas (em especial as contribuições de Michel Foucault e Judith Butler) e o quadro epistemológico desenvolvido por Niels Bohr, físico dinamarquês laureado com o prêmio Nobel e um dos principais responsáveis, ao lado de Werner Heisenberg, pela formulação dos fundamentos da chamada Interpretação de Copenhague da mecânica quântica. Mais especificamente, o realismo agencial se baseia na combinação do entendimento de Bohr dos aparatos de medição mobilizados em contextos experimentais enquanto arranjos físico-conceituais que são produtivos (e parte dos) phenomena que estudam, a noção foucaultiana de dispositivo - dispositif, por vezes traduzida como “aparatos discursivos” - enquanto tecnologias de subjetivação mediante as quais o poder opera e a teoria butleriana da performatividade de gênero, que vincula os processos iterativos e contingentes de formação subjetiva à materialização dos corpos sexuados (BARAD, 2001, p. 86). Sendo o realismo agencial um edifício teórico extremamente rico e multifacetado, o presente artigo evoca uma de suas contribuições específicas, nomeadamente, sua promoção de uma visada onto-epistemológica atenta à articulação mútua e inseparabilidade de matéria e discurso, sedimentada na ênfase dada por Barad, assente nas proposições de Bohr, no caráter materialmente incorporado de conceitos e epistemes.

O material empírico que anima nossas discussões e análises neste artigo é uma entrevista concedida no âmbito de uma pesquisa de doutorado cujo objetivo principal foi interpelar, a partir de uma perspectiva sociológica informada pelos neomaterialismos feministas, as vivências de mulheres com Síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser (MRKH). A literatura médica define a MRKH como uma forma rara de malformação do aparelho reprodutor feminino, caracterizada pela ausência do útero e encurtamento do canal vaginal (presença de 1/3 do canal) devido à falha no desenvolvimento dos ductos de Müller na fase embrionária (Daniela RABELO, 2018). A etapa empírica da referida pesquisa envolveu a realização de entrevistas semiestruturadas com mulheres com MRKH de três diferentes nacionalidades (brasileira, portuguesa e espanhola) e residentes em quatro países (Brasil, Portugal, Inglaterra e França), recrutadas a partir de grupos e páginas sobre a síndrome em redes sociais. As entrevistas foram conduzidas pelo autor por meio virtual, com recurso a videochamadas, entre os meses de maio e setembro de 2020. A opção pela realização das entrevistas via videochamadas se deu com base em critérios de conveniência, assim como respondeu ao imperativo de isolamento social imposto pela situação epidemiológica instaurada, a nível mundial, pela pandemia de COVID-19.

Nossa opção por abordar as vivências de mulheres com MRKH decorreu do fato de entendermos que estas convidam-nos a reconhecer que o corpo não pode ser reduzido a uma mera posição discursiva, demonstrando que qualquer consideração sobre o tema deve abarcar sua concretude física, dimensão por vezes subteorizada por visadas construtivistas. Todavia, o corpo que se faz presente nos relatos de mulheres com MRKH e neles ocupa posição de centralidade, apesar de irredutivelmente material, não se trata de uma entidade estritamente biológica, estática e ensimesmada, que poderia servir de base para essencialismos antifeministas. As complexas interações - ou, mais propriamente, “intra-ações” (BARAD, 2007) - que permeiam as trajetórias encarnadas destas mulheres garantem um caráter processual, dinâmico e contestado aos corpos, de modo a pôr em xeque habituais compreensões que definem como fundamentalmente incompatíveis posições construtivistas e realistas.

A entrevista eleita enquanto “fio condutor” do artigo, concedida pela participante Jéssica (nome fictício), sintetiza exemplarmente vivências comuns a muitas mulheres com MRKH. As falas aqui convocadas têm como foco particular um dos aspectos associados à síndrome, a agenesia vaginal - ausência ou hipoplasia severa dos dois terços superiores do canal vaginal (Inês COUTINHO, 2011) -, incidindo especificamente sobre os processos de diagnóstico e tratamento da condição. Estas falas chamam a atenção não apenas por seu valor de síntese, mas também por articularem de maneira clara os complexos entrelaçamentos material-discursivos inerentes às vivências de mulheres com MRKH em suas interações com o saber e a prática biomédicos. Neste sentido, acreditamos que a entrevista selecionada nos proporciona uma importante oportunidade de repensar, a partir de uma posição atenta à materialidade de actantes humanos e não humanos, os modos como as perspectivas pós-estruturalistas têm habitualmente abordado os processos de materialização corporal.

Iniciamos nossa trajetória analítico-argumentativa convocando as falas de Jéssica, que remetem ao momento em que ela foi primeiramente informada do diagnóstico de agenesia vaginal. Em um diálogo direto com as contribuições da tradição pós-estruturalista, abordamos tal relato de modo a desvelar algumas das premissas que subjazem à definição biomédica do que seria uma vagina “normal”, evidenciando assim como entendimentos científicos da anatomia feminina (em particular, os critérios médicos que embasam a identificação de determinadas conformações genitais como patológicas), pretensamente objetivos e alheios a relações de poder, são estruturados por normas regulatórias e discursos sociopolíticos específicos. Esse momento inicial de nossa análise - no qual, em termos mais propriamente foucaultianos, elucidamos como o poder (falocêntrico e heteronormativo) produz e opera através do saber (médico-anatômico) - visa ilustrar brevemente os potenciais e os limites das teorizações pós-estruturalistas acerca dos processos de materialização corporal.

Em seguida, informados pela radical reformulação materialista da noção de “discurso” promovida pelo realismo agencial, nos debruçamos sobre os tratamentos da agenesia vaginal indicados a mulheres com MRKH. Argumentamos que tais intervenções médico-terapêuticas figuram enquanto loci privilegiados para que possamos vislumbrar como o poder e as normas regulatórias operam localmente seus potenciais produtivos e disciplinares sobre os corpos a nível ontológico, físico e carnal, e não apenas epistêmico, garantindo assim um lastro materialista às posições construtivistas de inspiração pós-estruturalista apresentadas anteriormente.

Genitália Política: afinal, que vaginas “importam”?

Jéssica, participante portuguesa com 33 anos na época da entrevista, relembra um acontecimento que, em suas palavras, a “fez questionar tudo”: o momento em que, quando tinha 17 anos, recebeu o diagnóstico de agenesia vaginal associado à MRKH. Jéssica relata que foram as diversas tentativas frustradas de ter relações sexuais envolvendo penetração vaginal que a motivaram a consultar-se, pela primeira vez, com uma ginecologista:

Depois de tantas tentativas para ter relações e todas sem sucesso, pensei que alguma coisa não estava bem […] Foi quando fui à consulta e a médica tentou introduzir [no canal vaginal] um “cotonete” - um cotonete assim, muito grande -, não conseguiu e disse-me: “A Jéssica não tem vagina!”. Esse foi o primeiro baque. A nível psicológico, foi muito doloroso. Porque não se diz um diagnóstico assim […]. Porque a mulher que entrou não seria a mesma que ia sair daquele consultório, em um espaço de 15 minutos (Jéssica, 30/05/2020).

Reconhecendo de antemão a multiplicidade de problemáticas passíveis de serem abordadas a partir da fala de Jéssica, debruçamo-nos especificamente sobre o peculiar enunciado proferido pela ginecologista: “A Jéssica não tem vagina!”. Notemos, inicialmente, que tal colocação é, em seguida, contestada pela entrevistada, que sublinha o fato de as malformações associadas à MRKH não acometerem a totalidade do órgão genital, mas serem restritas a parte do canal vaginal:

A vagina está lá e, ao olho nu, é perfeitamente normal. Com os lábios maiores, menores, uretra… Estão lá - é tudo igual (Jéssica, 30/05/2020).

Cabe, portanto, indagarmos: qual é a definição marcadamente restrita de “vagina” a qual a profissional médica se reporta para identificar contrastivamente a genitália de Jéssica - que, excetuando-se os dois terços superiores do canal vaginal, se mostra “perfeitamente normal” e “igual” às genitálias de demais mulheres - como uma “não-vagina”? Quais são os parâmetros de normalidade vaginal que sustentam a significação da anatomia genital da participante como uma variação patológica que requer tratamento/ “correção”? Em suma: o que “conta” como uma vagina e que vaginas “importam” (matter)?5

Um breve resgate etimológico e histórico pode nos oferecer algumas pistas iniciais. Advinda do latim, a palavra vagina significava originalmente bainha ou um suporte para o gladius, espada romana cujo nome era popularmente utilizado para se referir ao pênis (Geraldo FERNANDES, 1999). Neste sentido, o próprio termo, ao “representar a vagina como um receptáculo passivo que aguarda penetração da mesma forma que uma bainha aguarda uma espada” (Sheila KITZINGER, 1983, p. 38, tradução nossa),6 estabelece algumas associações simbólicas que se pretendem essenciais ao órgão que nomeia (passividade, disponibilidade, receptividade ao falo etc.), assim como afirma determinada complementaridade “natural” entre pênis e vagina. Este entendimento da genitália feminina como sendo, fundamentalmente, um mero “buraco-envelope” para o órgão masculino (Luce IRIGARAY, 2018, p. 61) se faz presente na história da medicina desde Galeno, para quem a vagina se tratava de um pênis voltado para dentro (Thomas LAQUEUR, 2001, p. 16). A trajetória do desenvolvimento do saber científico anatômico atesta o poder e a longevidade da visada galênica sobre o corpo feminino: “por séculos, desenhos anatômicos da genitália interna das mulheres apresentariam uma semelhança perturbadora [uncanny] com a genitália externa do homem” (Nancy TUANA, 1988, p. 42, tradução nossa).7 De fato, a iconografia anatômica renascentista da vagina é caracterizada por retratar o órgão como sendo “projetado” para ter um pênis em seu interior (LAQUEUR, 2001).

Apesar do declínio do modelo de sexo único a partir do século XVIII e das grandes mudanças que se seguiram no tocante aos entendimentos da anatomia genital feminina (LAQUEUR, 2001), a compreensão da vagina como se tratando de, primordialmente, um receptáculo passivo para o pênis, continuará permeando o saber biomédico e o senso comum modernos. Como nos mostra Virginia Braun (2000, p. 26-27), uma ampla variedade de textos contemporâneos, que se estendem da literatura médica e ginecológica a dicionários, define a vagina a partir de sua imaginada “função natural” (ou, mais propriamente, função normativa): ser penetrada por um pênis durante o coito. A autora sublinha que, em meio aos entendimentos hegemônicos sobre o órgão, “a prática heterossexual penetrativa não é uma atividade potencial da qual a vagina de uma mulher poderia fazer parte, mas a atividade central que ela deve realizar” (BRAUN, 2000, p. 143, tradução nossa).8 Desse modo, vemos que as definições científicas e populares sobre o que uma vagina “é” parecem já ser marcadas por um esforço sociopolítico implícito de delimitação de suas funções e de seus usos “normais”.

Tal “imperativo penetrativo” que marca os entendimentos acerca da genitália feminina se expressa claramente nos atuais procedimentos cirúrgicos de reconstrução vaginal aos quais crianças nascidas com genitália externa e/ou interna que não pode ser facilmente classificada segundo o rígido regime binário masculino/feminino - identificadas pelo saber biomédico como intersexo - são submetidas. Como nos mostra Suzanne Kessler (1998) ao analisar os critérios mobilizados por profissionais de saúde para aferir os níveis de sucesso dessas intervenções, uma vagina de bom tamanho é tipicamente definida como aquela capaz de acomodar um pênis “normal”. Lógica semelhante governa as cirurgias de transgenitalização realizadas por algumas mulheres transexuais. O procedimento mais comumente utilizado, conhecido como vaginoplastia de inversão peniana (Larissa SILVA, 2021) - que consiste em um verdadeiro processo de “invaginação do pênis” (Paul B. PRECIADO, 2014, p. 125), na medida em que o tecido fálico é invertido e internalizado para formar uma neocavidade vaginal -, presume a universalidade de expectativas funcionais acerca do órgão pautadas em sua penetrabilidade, desconsiderando as preferências e desejos afetivo-sexuais particulares do indivíduo operado. Em outras palavras, a construção de uma vagina se torna, em ambos os casos mencionados, sinônimo de construção cirúrgica de um orifício penetrável; adequação e “normalidade anatômica” se convertem, aos olhos da biomedicina, em funções da capacidade ou incapacidade do órgão tomar parte em práticas heterossexuais centradas no coito.

Podemos afirmar, portanto, que concepções biomédicas acerca da anatomia sexual feminina, longe de caracterizarem saberes científicos plenamente desinteressados e alheios a dinâmicas de poder, figuram enquanto dispositivos discursivos de regulação anátomo-política (FOUCAULT, 1999) saturados de compreensões falocêntricas e heteronormativas. Ao definirem a vagina como “única e exclusivamente aquele orifício que pode receber um pênis adulto” (PRECIADO, 2014, p. 135), tais discursos promulgam um inquebrantável vínculo de dependência e subordinação da genitália feminina em relação ao órgão sexual masculino que, entre outros efeitos, cumpre elidir qualquer possibilidade de consideração da vagina em sua singularidade. Ainda, essas definições são erigidas a partir de um quadro que claramente presume a heterossexualidade como norma (afinal, o que caracteriza uma genitália feminina “normal” é, em última instância, sua capacidade de ser penetrada pelo pênis), de modo a “construírem” a vagina como “um objeto heterossexual” (BRAUN, 2000, p. 157).

É a partir dessa leitura que podemos lançar luz sobre a célebre resposta dada por Monique Wittig a uma indagação sobre sua genitália. Alain Touraine, em entrevista, narra o famoso acontecimento:

Monique Wittig visitou uma faculdade na Nova Inglaterra, deu uma conferência e no final alguém, uma mulher, perguntou: “Sra. Wittig, você tem vagina?”. Ela respondeu: “É óbvio que não. Sou lésbica. […]” (Miriam ADELMAN, 2004, p. 172).

Em Gender Trouble, ao comentar algumas das críticas feitas por Wittig à acentuada valorização das especificidades anatômicas femininas nas teorizações de Irigaray, Judith Butler menciona brevemente um acontecimento similar: “Numa conferência no Vassar College, perguntaram a Wittig se ela tinha uma vagina, e ela respondeu que não” (BUTLER, 2003, p. 221).

O que Wittig busca evidenciar com tais provocações é que, analogamente ao modo como, em sua compreensão, lésbicas não são mulheres, devido ao fato da noção de “mulher” não se reportar a uma mera categoria biológica, mas nomear uma classe política definida pelas relações de servidão simbólica, econômica e política que estabelece com homens - relações opressivas das quais “lésbicas escapam quando rejeitam tornar-se ou seguir sendo heterossexuais” (WITTIG, 1993, p. 108, tradução nossa),9 - lésbicas também não podem ter vagina. Isto se daria pois a vagina não se tratade um autoevidente órgão biológico, mas diz respeito a uma entidade anatômico-política definida por uma relação sociossexual específica com o pênis, relação esta, igualmente rejeitada por aquelas que quebram o “contrato heterossexual” (WITTIG, 1990).

A proximidade entre a colocação de Wittig “as lésbicas não têm vagina” (PRECIADO, 2014, p. 135) e a fala da ginecologista “a Jéssica não tem vagina” se deve exatamente ao fato de ambas evocarem - visando a objetivos marcadamente diferentes e produzindo efeitos praticamente opostos - o fundamento falocêntrico e heteronormativo do entendimento hegemônico da genitália feminina: uma “vagina” que não é/não pode ser penetrada por um pênis (seja devido a uma negação deliberada das práticas penetrativas heterossexuais, seja por conta do encurtamento congênito do canal vaginal) não é, propriamente, uma vagina - ou, em termos butlerianos, não é uma vagina que “importe” (matter).

Como coloca Preciado (2014), a heteronormatividade e o falocentrismo operam seus potenciais disciplinares sobre corpos e práticas sexuais (também) mediante a produção de uma “ordem anatômico-política” referendada pelo discurso biomédico. Nesta, corpos “normais” são definidos como aqueles cuja conformação anatômica os habilita a tomar parte em relações heterossexuais específicas - nomeadamente, relações penetrativas entre vagina e pênis.

A aparente sinédoque que marca a afirmação da ginecologista ao diagnosticar Jéssica - o modo como a malformação de uma parte específica do órgão genital (dois terços superiores do canal vaginal) enseja a afirmação da ausência do órgão como um todo - revela a sutil pervasividade desses discursos normativos em meio às compreensões e ao olhar biomédicos. A parte privilegiada pela profissional e por ela selecionada para representar o todo é exatamente aquela que viabilizaria, em condições “normais”, a penetração peniana-vaginal, e não, por exemplo, o clitóris, parte que não tem qualquer outra função além do prazer da mulher (BRAUN, 2000, p. 19). Neste quadro, a contestação de Jéssica ao diagnóstico pode ser compreendida como, em determinado sentido, um ato de resistência em relação às interpelações normativas do biopoder e do “imperativo penetrativo”. Ao contrariar a afirmação da profissional e sublinhar que sua genitália, mesmo não sendo penetrável, ‘é uma vagina’, a entrevistada está promovendo um radical deslocamento dos tradicionais critérios subjacentes às definições hegemônicas do que “conta” como uma vagina, de modo a atribuir a outros traços, que não aqueles delimitados por parâmetros heterossexistas e falocêntricos, o estatuto de elementos definidores do órgão genital feminino.

Em suma, é um regime epistemológico historicamente contingente e pautado em critérios heterossociais normativos (o “imperativo penetrativo”) que forma a percepção sobre os corpos e faz com que os discursos biomédicos considerem os órgãos genitais de Jéssica e de demais mulheres com MRKH como não se tratando de expressões normais e legítimas da variabilidade anatômica feminina, mas exceções patológicas que demandam “correção”. Nesse sentido, na esteira de uma leitura butleriana, seria possível afirmar que o enunciado proferido pela ginecologista após examinar a participante ilustra exemplarmente como o poder e os discursos operam de maneira performativa suas capacidades produtivas sobre os corpos: mais que uma mera constatação objetiva de uma verdade biológica pré-discursiva, a declaração “a Jéssica não tem vagina” caracteriza um ato de fala performativo que, investido de teor normativo e a serviço de objetivos regulatórios do biopoder, “produz” o corpo da participante como “anormal”.

Eis que, neste ponto, vislumbramos uma espécie de limite das perspectivas construtivistas de inspiração pós-estruturalista. Desvelado o caráter normativo e ideologicamente investido das práticas linguístico-discursivas que significam os corpos, nos confrontamos com o fato de que tal análise ainda parece conceber determinada exterioridade entre “práticas discursivas” e “carne”, não esclarecendo como as primeiras poderiam ‘literalmente’ construir a última. Sem dúvida, a conformação genital de Jéssica não é essencialmente dotada de um caráter patológico per se e as estruturas de inteligibilidade sócio-historicamente situadas por meio das quais sua anatomia nos é dada condicionam nossos entendimentos pretensamente mais elementares e imunes a injunções regulatórias sobre sua materialidade corporal. Todavia, seriam tais fatores o bastante para justificar a categórica afirmação butleriana de que discursos normativos ‘materializam’ os corpos? De fato, a teoria da “materialização” corporal proposta por Butler parece não responder a uma indagação fundamental: através de que mecanismos e mediante que processos situados, as definições culturais do que seria uma anatomia genital feminina “normal” realmente performam ou constituem o corpo em toda sua irredutível tangibilidade física?

A seguir, buscamos ilustrar, mediante análise do relato de Jéssica acerca dos procedimentos terapêuticos aos quais foi submetida para tratamento da agenesia vaginal associada à MRKH, como o realismo agencial de Barad pode contribuir para o esforço de adjetivação material das colocações pós-estruturalistas sobre os potenciais produtivos dos discursos e do poder regulatório, de modo a nos apresentar caminhos para a edificação de um quadro político-teórico no qual “constructedness does not deny materiality” (BARAD, 1996, p. 181).

Do verbo à carne

Em uma breve passagem de sua famosa obra Os Monólogos da Vagina, Eve Ensler (2001) relata um encontro com uma “bela jovem garota em Oklahoma”.10 Esta lhe contou como descobriu, aos 14 anos, sofrer de agenesia vaginal associada à MRKH:

Ela estava brincando com a amiga. Elas compararam seus órgãos genitais e ela percebeu que os dela eram diferentes, algo estava errado. Ela foi ao ginecologista com seu pai, de quem era próxima, e o médico descobriu que na verdade ela não tinha vagina ou útero. Seu pai estava com o coração partido, tentando reprimir suas lágrimas e tristeza para que sua filha não se sentisse mal. No caminho do médico para casa, em uma nobre tentativa de confortá-la, ele disse: “Não se preocupe, querida. Tudo vai ficar bem. Na verdade, tudo vai ficar ótimo. Nós vamos comprar a melhor vagina caseira [homemade pussy] da América. E quando você conhecer seu marido, ele saberá que mandamos fazer especialmente para ele” (ENSLER, 2001, p. 99-100, ênfase e tradução nossas).11

A fala do pai evidencia um fato curioso: as modificações corporais às quais a menina seria submetida, como forma de tratamento de sua recém-descoberta malformação genital, teriam como meta principal satisfazer não necessariamente a própria garota, mas um vindouro marido; de fato, conforme colocado ao final do trecho, a “nova vagina” seria construída “especialmente para ele”. Ou seja, a “solução” preconizada pelo pai consiste, em última instância, na realização de procedimentos que habilitarão o órgão genital de sua filha a ser futuramente penetrado por um pênis durante o coito. Vemos, portanto, que a longeva ênfase cultural no papel receptivo da vagina e o teor falocêntrico e heteronormativo que permeia as definições biomédicas e populares do órgão estruturam, no trecho, os entendimentos sobre procedimentos indicados para o tratamento da garota.

É interessante notar que, apesar da linguagem não especializada, a fala do pai retrata com fidelidade os pressupostos e os objetivos gerais que pautam os procedimentos terapêuticos conduzidos por profissionais médicos em casos de MRKH. De fato, o saber biomédico é inequívoco ao estabelecer o que seria o “tratamento” indicado para a agenesia vaginal associada à síndrome: construir, mediante métodos cirúrgicos ou não cirúrgicos, uma “vagina funcional”, entendida como uma cavidade cuja profundidade e largura permitam a penetração durante o coito (Morten HERLIN et al., 2018, p. 746).12 Esther Leidolf (2006), ao discorrer sobre sua vivência enquanto uma mulher lésbica com MRKH que, na adolescência, foi submetida compulsoriamente a uma vaginoplastia, evidencia tais critérios de normalidade funcional que pautam os processos terapêuticos de construção de um novo canal vaginal: “como tenho sido repetidamente informada pelos meus médicos ao longo dos anos, uma vagina funcional é aquela ‘que será capaz de aceitar um pênis de tamanho normal’” (LEIDOLF, 2006, p. 80, tradução nossa).13

Podemos observar, portanto, que o regime epistemológico anteriormente nomeado de “imperativo penetrativo” (um conjunto de entendimentos sobre a anatomia genital feminina estruturado por parâmetros de normalidade falocêntricos e que presumem a heterossexualidade) parece, aqui, transcender a esfera abstrata dos sentidos e da inteligibilidade cultural, alcançando determinado “suporte” no plano objetivo, na forma de práticas materiais que cumprem ‘literalmente’ construir os corpos segundo ideais anátomo-políticos específicos.

Neste ponto, para explorarmos mais detidamente as relações estabelecidas entre o discursivo e o material em meio aos tratamentos aos quais mulheres com MRKH são submetidas, cabe convocarmos, mediante uma leitura sucinta e orientada - portanto, destituída de qualquer pretensão exaustiva -, algumas das proposições de Barad.

No quadro epistemológico desenvolvido por Niels Bohr, ao qual Barad recorre para edificar os pilares do seu realismo agencial, conceitos teóricos não são vistos como elementos puramente ideacionais, mas consistem em arranjos materiais específicos (BARAD, 2007, p. 196). Bohr formula tal entendimento com base em suas análises de experimentos dedicados à observação de partículas. O físico dinamarquês demonstra, por exemplo, que a impossibilidade de determinação simultânea dos valores das variáveis complementares “posição” e “momento” de uma partícula se deve ao fato de cada uma delas exigir, para sua mensuração, a mobilização de aparatos observacionais mutuamente excludentes: a definição do valor de “posição” requer um aparato observacional rígido e detentor de partes fixas, ao passo que a definição do valor de “momento” depende do uso de um arranjo experimental dotado de partes móveis (Niels BOHR, 1949). Ou seja, as noções de “posição” e “momento” apenas alcançam sentido em contexto laboratorial quando aparatos materiais particulares (e incompatíveis entre si) são mobilizados, o que desautoriza o habitual entendimento de ambas enquanto conceitos puramente abstratos e portadores de sentidos determinados independentemente das especificidades da prática experimental concreta (BARAD, 2003, p. 814).14

Informada pela ênfase bohriana dada à natureza intrinsecamente material dos conceitos, Karen Barad (2007) busca complementar as teorizações pós-estruturalistas sobre as relações estabelecidas entre poder e materialidade corporal sublinhando as dimensões materiais das práticas discursivas. Para a autora, da mesma forma que conceitos físicos são incorporados em arranjos experimentais particulares (aparatos) que lhes garantem sentido, “o discurso é possibilitado por práticas materiais específicas” (BARAD, 2007, p. 148, tradução nossa).15 Desse modo, Barad propõe que aspectos aparentemente abstratos do mundo tais como normas sociais, epistemes e assimetrias de poder (racismo, sexismo etc.), longe de serem meras formulações linguísticas ideacionais que estabelecem relação de exterioridade com o “real”, consistem em práticas materiais situadas e que geram efeitos concretos - são, remetendo à categoria inicialmente proposta por Donna Haraway (1995, p. 39), ‘aparatos de produção corporal’ detentores de presença física. No quadro realista agencial, práticas discursivas são redefinidas como “específicas (re)configurações materiais do mundo mediante as quais a determinação de fronteiras, propriedades e sentidos é diferencialmente performada” (BARAD, 2007, p. 148, tradução nossa).16 Ou seja, Barad reformula a noção foucaultiana de “práticas discursivas” à luz da ênfase dada por Niels Bohr à natureza materialmente incorporada dos conceitos, de modo a acentuar como o poder-saber detém uma dimensão de existência concreta - “an ontological thereness” (BARAD, 2007, p. 210) - na forma de práticas material-discursivas (ou “aparatos de produção corporal”). Podemos, portanto, afirmar que a visada baradiana, assente na compreensão de Niels Bohr de que conceitos não são entidades ideacionais, mas arranjos físicos, proporciona o vínculo entre o conceitual e o material de que as leituras construtivistas de inspiração pós-estruturalista tanto carecem.

Observemos como esta atenção baradiana às dimensões materiais do poder regulatório podem iluminar nossas compreensões dos tratamentos conduzidos no caso de Jéssica. A participante relata que, poucos meses após ter recebido o diagnóstico de agenesia vaginal associado à MRKH, foi submetida a um procedimento cirúrgico para construção de um novo canal vaginal. No caso específico de Jéssica, o profissional médico responsável por seu tratamento optou por mobilizar uma técnica cirúrgica conhecida como vaginoplastia de Wilflingseder. Esta envolve a dissecção do espaço vésico-retal e introdução de um molde vaginal de formato fálico revestido de tecido retirado do intestino delgado da paciente (Refaat B. KARIM et al., 1995). A entrevistada relembra que se seguiu à operação um período de 13 dias de repouso, no qual ela teve que permanecer no hospital, deitada e imóvel, com a prótese vaginal introduzida na cavidade recém-construída. Após o doloroso período pós-operatório no hospital, Jéssica pôde dar continuidade ao tratamento em casa. Ela relata que essa etapa envolveu a utilização de moldes que deveriam ser introduzidos na neocavidade vaginal com frequência variável, objetivando consolidar a profundidade e a largura criadas cirurgicamente. Um desses moldes - o qual, nas palavras da entrevistada, além de ser desconfortável, causou “um certo impacto psicológico” devido à sua forma “realista” - chama atenção:

[…] Nós temos que usar isto [Jéssica apresenta o “molde” - um dildo que imita fielmente um pênis], porque não há nenhum recurso ajustado. Tu estás a passar por um processo de Rokitansky, no qual ainda nem começastes a ter relações sexuais, e tens que pôr [na neocavidade vaginal] uma “pilinha” [gíria portuguesa para “pequeno pênis”] de silicone, que vais comprar numa sex-shop!

Entrevistador: Este “molde” foi comprado por você, em uma sex-shop?

Sim. E fui comprar com outra rapariga Rokitansky, que já tinha sido operada […] Éramos eu e ela na sex-shop a comprar uma “pilinha” (Jéssica, 30/05/2020).17

O trecho é revelador da indissociabilidade das práticas médico-terapêuticas às quais mulheres com MRKH são submetidas e discursos falocêntricos e heteronormativos que definem a vagina enquanto um mero “ʽabrigoʼ do sexo masculino” (IRIGARAY, 2018, p. 61). De fato, o uso de um dildo “realista” - isto é, que imita fielmente seu referente anatômico (o pênis) - como instrumento para conformação da anatomia genital de Jéssica torna claro que tais tratamentos, longe de serem procedimentos voltados à produção desinteressada de um órgão, caracterizam esforços dedicados a moldar corpos para que estes se adequem a práticas sexuais normativas - nomeadamente, práticas heterossexuais penetrativas entre pênis e vagina. Como afirma Leidolf (2006), desvelando os entrelaçamentos material-discursivos estruturantes das terapêuticas indicadas a mulheres com MRKH: “nós somos literalmente moldadas para nos adequar a valores sociais” (LEIDOLF, 2006, p. 58, tradução nossa).18

Neste quadro, o dildo pode ser compreendido como um aparato material-discursivo de produção corporal (BARAD, 2007), cujo funcionamento cumpre em presentificar, na carne, uma norma regulatória anteriormente concebida como restrita às esferas abstratas da linguagem e das ideias: o imperativo penetrativo. Mais que um simples objeto, ele é uma espécie de vetor material-semiótico, uma sedimentação local de um processo de gestão anátomo-política dos corpos femininos pautado em ideais falocêntricos e heteronormativos. O dildo marca a instância física mediante a qual enunciados biomédicos que definem a vagina enquanto um órgão naturalmente “projetado para receber o pênis” (Lisa J. MOORE; Adele E. CLARKE, 1995, p. 285, tradução nossa)19 operam seus efeitos performativos (literalmente produzem aquilo que declaram) e ‘materializam’ corpos segundo demandas culturais normativas. A eficácia constitutiva e materializadora do poder disciplinar é, aqui, observável em toda sua dimensão empírica.

É importante salientar que, analogamente ao entendimento butleriano de performatividade enquanto “a prática reiterativa e citacional por meio da qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia” (BUTLER, 1993, p. 2, tradução nossa),20 o efeito substancializador dos aparatos material-discursivos em funcionamento no caso de Jéssica não deriva de um “ato ou evento singular”, mas depende de determinada “repetição estilizada de atos” (BUTLER, 2003, p. 200). Como relatado pela entrevistada, o procedimento cirúrgico é apenas o início de um longo processo de “manutenção” do canal vaginal, marcado pela necessidade de uso contínuo ou intermitente do dildo. Bruno Carvalho et al. (2007) afirmam que, em casos de MRKH, a “manutenção da cavidade neovaginal adequada” depende da “adesão da paciente às recomendações quanto ao uso do molde vaginal pós-operatório” e da “prática de exercícios com o mesmo” (Bruno CARVALHO et al., 2007, p. 622). Nesse sentido, compreendendo o dildo como um aparato material-discursivo que instancia localmente demandas culturais normativas/normalizadoras, seu uso terapêutico reiterado se mostra como um modo de “inculcar repetidamente uma norma” (BUTLER, 1993, p. 8). Portanto, vemos que, nos casos de mulheres com MRKH, o processo performativo de materialização de um corpo “normal” e “adequado” não é redutível à reiteração de atos de fala, como parecem promulgar os usos butlerianos da noção de performatividade em meio a seus debates sobre materialização (evidenciando, assim, os limites linguístico-discursivos que marcam muitas das apropriações pós-estruturalistas do conceito). Essa envolve, também, a repetição de práticas materiais situadas, voltadas para a estabilização da conformação anatômica segundo um modelo específico de normalidade genital heterossexualmente definida. Em outras palavras, a “normalidade anatômica” é performada mediante a reiteração continuada de práticas material-discursivas.

Considerações finais

O advento da perspectiva realista agencial garante uma fundamental complementação materialista às visadas construtivistas de inspiração pós-estruturalista, sublinhando o fato de que qualquer teoria da materialização corporal estará fatalmente limitada caso não reconheça os mecanismos materiais a partir dos quais o poder regulatório opera localmente e as transformações concretas implicadas nos processos de constituição performativa dos corpos. Dito de outra forma, as contribuições baradianas nos permitem reconhecer que processos de materialização corporal nunca são apenas epistêmicos, mas se tratam sempre-já de dinâmicas inextricavelmente material-discursivas.

Ao analisar o caso de Jéssica à luz das proposições de Karen Barad, vislumbramos que o falocentrismo e a heteronormatividade não se restringem a condicionar as interpretações culturais dos corpos de mulheres com MRKH, mas atuam de maneira a constituir tais corpos em toda sua irredutível concretude física. Isso é possível pois, no quadro do realismo agencial, normas culturais não são enunciados linguísticos abstratos, mas consistem em aparatos material-discursivos de produção corporal. As intervenções médicas “corretivas” às quais mulheres com MRKH são tradicionalmente submetidas instanciam e suportam regimes político-epistemológicos particulares, figurando como os mecanismos material-semióticos através dos quais normas e o poder regulatório exercem seus potenciais produtivos e disciplinares sobre os corpos não apenas na esfera dos sentidos, mas no âmbito da materialidade anatômica e carnal.

Desvelada a natureza intrinsecamente material das práticas regulatórias e discursivas, não se faz de modo algum misteriosa a eficácia constitutiva de seu funcionamento, sendo possível afirmar - sem recurso às aspas, à linguagem metafórica ou à redução da ‘soma’ a mera posição discursiva - que, efetivamente, normas culturais atuam performativamente de modo a materializarem corpos

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1 No original: “There is nothing abstract about the power that sciences and theories have, to act materially and actually upon our bodies and our minds […]” (WITTIG, 1990, p. 53).

2No original: “Butler is not talking of physical substance when she speaks of matter and materialization” (DAVIS, 2010, p. 159).

3No original: “the regulatory norms of ‘sex’ work in a performative fashion to constitute the materiality of bodies and, more specifically, to materialize the body’s sex” (BUTLER, 1993, p. 2).

4No original: “one of the most influential and important representatives of contemporary materialist scholarship” (LEMKE, 2014, p. 5).

5No decorrer da presente seção, fazemos repetidas alusões à noção de “importar” como uma das facetas de “matter”, remetendo ao jogo semântico (que não pode ser plenamente vertido ao português) tornado célebre no âmbito dos estudos feministas pelas mãos de Judith Butler. Nesta altura de nossa exposição, nos referimos especificamente à dimensão epistemológica do argumento butleriano, definindo um órgão ou um corpo que “importa” enquanto aquele que se posiciona internamente ao campo da inteligibilidade cultural circunscrito pelos parâmetros hegemônicos de normalidade anatômica.

6No original: “represent the vagina as a passive receptacle awaiting penetration as a scabbard awaits a sword” (KITZINGER, 1983, p. 38).

7No original: “for centuries, anatomical drawings of women’s internal genitalia would bear an uncanny resemblance to man’s external genitalia” (TUANA, 1988, p. 42).

8No original: “penetrative heterosex is not a potential activity a woman’s vagina could be part of, but the central activity that it is meant to do” (BRAUN, 2000, p. 143).

9No original: “lesbians escape by refusing to become or to stay heterosexual” (WITTIG, 1993, p. 108).

10O título da presente seção faz referência a João (1: 14) e tem como objetivo evocar, a partir de uma apropriação marcadamente heterodoxa da referida passagem bíblica, uma das propostas basilares do realismo agencial: (re)pensar as habituais teorizações construtivistas acerca das relações estabelecidas entre o discursivo e o material, em prol de uma nova compreensão materialista atenta à “carnalidade” do discurso.

11No original: “She was playing with her girlfriend. They compared their genitals and she realized hers were different, something was wrong. She went to the gynecologist with her father, the parent she was close to, and the doctor discovered that in fact she did not have a vagina or a uterus. Her father was heartbroken, trying to repress his tears and sadness so his daughter would not feel bad. On the way home from the doctor, in a noble attempt to comfort her, he said, ‘Don’t worry, darlin’. This is all gonna be just fine. As a matter of fact, it’s gonna be great. We’re gonna get you the best homemade pussy in America. And when you meet your husband, he’s gonna know we had it made specially for him’” (ENSLER, 2001, p. 99-100).

12Entre os procedimentos não cirúrgicos, se destaca o método de Frank, considerado na literatura médica como o tratamento de primeira linha. Este consiste em um processo de dilatação mediante o qual a cavidade vaginal rudimentar é distendida e alargada via o uso de dilatadores fálicos de comprimento e diâmetro progressivamente maiores. Entre as técnicas cirúrgicas mais utilizadas, temos a operação de Abbe-McIndoe (técnica que também informa muitos procedimentos de transgenitalização), operação de Wharton-Sheares-George e técnica de Vecchietti. Independentemente da técnica utilizada, a construção cirúrgica de uma neocavidade vaginal implica a utilização, no pós-operatório, de dilatadores vaginais que devem ser manejados pela própria paciente, objetivando evitar o fechamento do canal.

13No original: “as I have been repeatedly told by my various physicians over the years, a functional vagina is one ‘that will be able to accept a normal size penis’” (LEIDOLF, 2006, p. 80).

14Tendo em mente os objetivos do presente artigo, não exploraremos as demais dimensões das teorizações de Niels Bohr e o modo como estas foram apropriadas por Karen Barad. A título de breve registro, cabe mencionar apenas que a indissociabilidade entre arranjos materiais e conceitos teóricos promulgada por Bohr implica também o entendimento de que qualquer medida de “posição” ou “momento” não pode ser interpretada como expressão de um atributo intrínseco a um pretenso objeto independente e detentor de um conjunto de propriedades inatas e não relacionais. Em outras palavras, as contribuições de Bohr e os posteriores desenvolvimentos de Barad põem em xeque os próprios fundamentos da metafísica individualista clássica e o pressuposto de que o mundo é composto de entes autônomos e detentores de propriedades preexistentes a relações.

15No original: “discourse is made possible through specific material practices” (BARAD, 2007, p. 148).

16No original: “specific material (re)configurings of the world through which the determination of boundaries, properties, and meanings is differentially enacted” (BARAD, 2007, p. 148).

17Cabe ressaltar que o uso de um dildo “realista” é prescrito diretamente pelos profissionais médicos. A “outra rapariga Rokitansky” à qual Jéssica faz referência é Alice (nome fictício), também participante da pesquisa. Alice informa que, após ter sido operada, o profissional médico responsável (o mesmo profissional que conduziu o tratamento de Jéssica) a acompanhou até uma sex-shop para realizar a compra do dildo.

18No original: “We are literally molded to fit societal values” (LEIDOLF, 2006, p. 58).

19No original: “designed to fit the penis” (MOORE; CLARKE, 1995, p. 285).

20No original: “the reiterative and citational practice by which discourse produces the effects that it names” (BUTLER, 1993, p. 2).

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: SANTOS, Caynnã de Camargo. “Discursos que pesam: realismo agencial e processos de materialização corporal”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e85844, 2023

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 05 de Fevereiro de 2022; Revisado: 09 de Dezembro de 2022; Aceito: 17 de Julho de 2023

caynnasantos@ces.uc.pt; caynnacs@gmail.com

Caynnã de Camargo Santos (caynnasantos@ces.uc.pt; caynnacs@gmail.com) é doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, no Programa de Estudos Culturais, e bacharel pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde integra o projeto ENGENDER, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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