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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Set-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n385005 

Artigos

Feminoabjeções, lgbticídios e mariellecídios: pós-categorias para tensionar realidades

Feminoabjections, lgbticides, and mariellecides: post-categories capable of stressing realities

Feminoabyecciones, lgbticidios y mariellecidios: poscategorías para tensar realidades

Fulvio Cesar Garcia-Severino1 
http://orcid.org/0000-0001-7840-4740

Cinthia de Cassia Catoia2 
http://orcid.org/0000-0002-8006-106X

Érica Aparecida Kawakami3 
http://orcid.org/0000-0001-8675-7861

1Universidade Federal de São Carlos, Programa de Pós-Graduação em Educação, São Carlos, SP, Brasil. 13565-905 - secppge@ufscar.br

2Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Direito, Brasília, DF, Brasil. 70910-900 - fdunb.pos@gmail.com

3Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, São Francisco do Conde, BA, Brasil. 43900-000 - ihlmales@unilab.edu.br


Resumo:

A partir da análise da criminalização da lgbtfobia sob fundamento da legislação antirracismo pelo STF, discutimos as implicações e os efeitos discursivos do entendimento da homotransfobia como espécies de racismo. Propomos refletir sobre as possibilidades que eles produzem por meio da criação de pós-categorias de modo a tensionar as realidades em oposição à lógica categorial fundada na modernidade colonial. Fobia torna-se insuficiente para a totalidade do que precisa abarcar. Destacamos que as pós-categorias lgbticídios e mariellecídios (no plural) denunciariam discursivamente mortes e assassinatos decorrentes de diferentes formas de abjeção e subalternização. Da mesma forma, as feminoabjeções constituem-se em engrenamentos que mantêm os grupos em aliança pelo que os diferencia sem desconsiderar suas différances histórico-políticas.

Palavras-chave: feminoabjeções; lbgticídios; mariellecídios; raça/racismo; homotransfobia

Abstract:

From the analysis of the criminalization of lgbtphobia underpinned the anti-racism legislation by the Brazilian Supreme Court, we discuss the implications and discursive effects of understanding homotransphobia as species of racism. We propose to reflect on the possibilities they produce through the creation of post-categories to tension realities in opposition to the categorical logic founded on colonial modernity. Phobia has become insufficient for the totality that it would demand. We emphasize the post-categories lgbticides and mariellecides (both in the plural) would discursively denounce deaths and assassinations resulting from different forms of abjection and subalternization. Likewise, feminoabjections consist of gear capable of joining groups, which makes them different without disregarding their historical-political différances.

Keywords: Feminoabjections; Lgbticides; Mariellecides; Race/racismo; Homotransphobia

Resumen:

Del análisis de la criminalización de la lgbtfobia según las bases de la ley antirracismo por la Corte Suprema brasileña, discutimos los efectos y el discurso del entendimiento de la homotransfobia como especies de racismo. Proponemos reflexionar sobre las posibilidades que estos producen creando poscategorías de manera a tensar las realidades en oposición a la lógica categorial fundada en la modernidad colonial. Fobia se vuelve insuficiente para la totalidad de lo que necesita abarcar. Destacamos que las poscategorías lgbticidios y mariellecidios (en plural) denunciarían discursivamente muertes y asesinatos resultantes de diferentes formas de abyección y subyugación. Asimismo, las feminoabyecciones se constituyen en interrelaciones que mantienen aliados los grupos por lo que los diferencia considerando sus différances histórico-políticas.

Palabras-clave: feminoabyecciones; lgbticidios; mariellecidios; raza/racismo; homotransfobia

Introdução

A linguagem está aí e é uma grande maravilha e é o que faz de nós seres humanos, mas cuidado! Antes de utilizá-la é preciso ter em conta a possibilidade de que ela nos engane, ou seja, de que estejamos convencidos de que estamos pensando por conta própria e, na realidade, a linguagem está um pouco pensando por nós, usando estereótipos e fórmulas que vêm do fundo do tempo e podem estar completamente podres.

Cortázar apudButler (2020)

Falar é existir absolutamente para o outro. [...] Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização.

Fanon (2008, p. 33)

Em 2013, o Partido Popular Socialista - PPS ajuizou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26/DF contra o Congresso Nacional, na qual se buscou obter a criminalização específica de ofensas, agressões, homicídios e toda forma de discriminação motivada pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vítima. Na decisão, proferida em junho de 2019, o STF enquadrou a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei n.º 7.716/89 [que pune crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor] até que lei específica seja editada pelo Parlamento (BRASIL, 2019).

A partir da análise da criminalização da LGBTfobia sob fundamento da legislação antirracismo pelo STF, discutimos as implicações e os efeitos discursivos do entendimento da homofobia e da transfobia como espécies de racismo. Pensados esses efeitos, propomos refletir sobre as possibilidades que eles produzem por meio da criação de pós-categorias [como mariellecídios, LGBTicícios e feminoabjeções - sempre no plural] de modo a tensionar as realidades em oposição à lógica categorial fundada na modernidade colonial.

O artigo se estrutura em duas seções. Na primeira, propomos uma discussão sobre os limites e as potencialidades das categorias em descrever aquilo de que dizem. Dessa discussão, produzimos um exercício de pensar as categorias como pós-categorias, como forma de potencializar o que definimos como eixos das categorias: performado, forjado e representado - que entendidos como différance, retiram do signo a fixidez que a categoria atribui ao significante e ao significado do que nomeiam. Na segunda, propomos a reflexão sobre o entendimento do conceito “ontológico-constitucional” de racismo, consagrado pelo STF na ADO 26/DF, o qual permitiu o enquadramento de práticas LGBTfóbicas no conceito de raça previsto na Lei n.º 7.716/89. Argumentamos aqui que esse enquadramento só foi possível pela redução de estruturas de poder a simples preconceitos e atos de hierarquização e, sobretudo, pelo encurtamento dos sentidos de raça e de racismo consagrados pelo texto constitucional e pela própria Lei n. 7.716/89. Propomos ainda a discussão sobre os limites da noção de “fobia” para nomear práticas que engendram assassinatos e execuções de LGBTQIA +.

Das categorias ao exercício das pós-categorias como tensão das realidades

Iniciamos esta seção evocando a discussão de Judith Butler e Gayatri Spivak (2018) em Quem canta o Estado-nação?. Embora a discussão das pesquisadoras esteja direcionada para compreender o Estado por meio dos efeitos que representam os sem-Estado, fazemos um desvio na discussão, mas partimos do mesmo acontecimento: em 2006, em Los Angeles, EUA, residentes considerados ilegais foram às ruas exigir seus direitos de cidadão e cantaram o hino nacional estadunidense em espanhol1. Butler destaca a fala do então presidente dos EUA, George W. Bush: “não, o hino nacional só pode ser cantado em inglês”. Ele enuncia a restrição e, ao mesmo tempo em que reconhece a discrepância, também toma ciência de que está fora de seu controle. O hino nacional cantado em espanhol, nas ruas, onde os imigrantes não teriam essa liberdade, mas o fizeram livremente, Butler chama de “contradição performativa”. Há, portanto, aí, assim como em Corpos em aliança, uma mudança e amadurecimento importante no conceito de performatividade, e é a partir desse, e não especialmente do invocado em Problemas de gênero, que tomamos percurso para construir a noção de pós-categoria.

Categoria é uma noção que provém do sistema de pensamento que Michel Foucault (2011) chamou de Era Clássica (sécs. XVII e XVIII). O Renascimento (séc. XVI) compreendia o conhecimento como um processo de apreensão das similitudes das coisas; Deus havia colocado marcas nas coisas pelas quais, a partir do reconhecimento delas, o homem [sic] atingia a verdade das coisas [divinatio]. O signo era o mesmo que representação, portanto, a própria coisa, o que o homem fazia era interpretar essas coisas [esses signos] por meio das exegeses [eruditio] das marcas divinas. Esse sistema de pensamento tendia a tornar tudo o Mesmo. O sistema de pensamento da Era Clássica tomou a máthêsis [ciência da ordem] como referência. As coisas passaram a ser organizadas em séries, hierarquizadas e categorizadas, com isso, as similitudes não desaparecem do pensamento, mas são deslocadas para os recônditos da imaginação e das impressões como um murmúrio insistente e necessário. As diferenças e as identidades aparecem no pensamento. Foucault reconhece doravante a separação das palavras das coisas. A representação das coisas se dá agora pela comparação [a interpretação é substituída pela análise], inevitavelmente binária. “O elemento significante não é [mais] o signo. Ele só se torna signo sob a condição de manifestar, além do mais, a relação que o liga àquilo que significa. É preciso que represente, mas que essa representação, por sua vez, se encontre representada nele” (FOUCAULT, 2011, p. 88).

É nesse sentido que as categorias pressupõem a manifestação do signo, que liga ao que supostamente representa. Por esse mesmo efeito, o hino nacional não poderia ser cantado em outra língua diferente da nacional. Dessa condição, evidencia-se a falta de controle entre o signo com o que ele representa. Daí retiramos a noção de pós-categoria: diferente da categoria que agrupa os semelhantes em comparação com os diferentes, a pós-categoria agruparia pelas diferenças e separaria pelas semelhanças. O hino nacional estadunidense cantado em espanhol obtém o estado [status] de pós-categoria: une as diferentes pessoas com diferentes línguas, mas as separa justamente pelo que as uniria, os direitos, e, nesse ponto, a pós-categoria também é uma contradição performativa. Há um elemento no acontecimento do hino nacional estadunidense cantado em espanhol que passou despercebido por Butler e Spivak e torna mais evidente a pós-categoria: se era justamente a língua que determinava a impossibilidade de cantar o hino em território estadunidense, interessante destacar que o acontecimento ocorreu em Los Angeles, cujo nome da cidade é escrito e [quase] enunciado em espanhol, em território estadunidense. Os imigrantes se autotornaram pós-categorias, com efeito, fizeram dos estadunidenses também pós-categorias, ambos se aliam pelas suas diferenças a partir do hino, transformado em outra pós-categoria.

Consideramos categoria como elaboração constituída por três eixos, o performado, o forjado e o representado; não estamos dizendo que a união desses configura e produz uma imagem real da coisa que a categoria nomeia. Mas o que ela nomeia também é proveniente dos efeitos da performatividade e da representação da coisa que ela, muitas vezes à revelia dos primeiros, forja. Cada um desses eixos também contém dentro de si, um forjado, um representado e um performado.

O forjado é entendido aqui como o processo histórico e político da modernidade colonial que, ao fundar a lógica categorial, organizou o mundo ontologicamente em termos de categorias homogêneas, atômicas e separáveis em duas zonas - a do humano [ser] e a do não humano [não ser]. Como pontua Maria Lugones (2014, p. 935), começando com a colonização das Américas e do Caribe, uma distinção dicotômica, hierárquica entre humano e não humano foi imposta sobre os/as colonizados/as. Essa distinção hierárquica entre brancos/as [colonizadores] e não brancos/as [colonizados/as] veio acompanhada por outras, incluindo aquela entre homens e mulheres. O sexo/gênero também se tornou a marca do humano e a marca da civilização. “Só os civilizados são homens ou mulheres” (LUGONES, 2014, p. 936). Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas - como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens.

O próprio componente forjado também precisa ser constantemente performado e representado para que se mantenha prevalente como “fundador” da categoria. Quando Butler (2019) busca compreender o que significa “povo”, ela atribui à operação que delimita quem está incluso nesse signo como uma forma performativa de poder. Entendemos aqui que o que Butler considera como ações concertadas corporificadas e plurais são os aparecimentos dos corpos em espaços públicos que os inscrevem no campo da política, e, não obstante a performatividade ser frequentemente associada ao desempenho individual, também opera por meio de formas de ação coordenada. No entanto, essa performatividade está sujeita às condições de possibilidade de aparecimento, controlada por tecnologias que medeiam a representação por meio de enquadramentos e da infraestrutura de encenação. A despeito de toda essa “constituição”, as categorias trazem em si sua memória clássica, como se revelassem coisas ou objetos dispostos em séries por meio de uma comparação binária.

O exercício de pensar a pós-categoria evidencia os embates subsumidos no e alienados pelo eixo forjado - como se a coisa em si existisse, fosse fixa e natural. Das diferenças entre as coisas passamos para a différance das coisas - como explica Hall (2011) descrevendo o termo pós-colonial. Mais do que agrupar coisas pelas semelhanças e distinguir de outras por suas diferenças, é evidenciar que performativo, forjado e representado também são différances e, portanto, o aspecto sensível e inteligível do que a categoria nomeia está deslocado da metafísica da substância. Se houvesse um real, ele estaria próximo do performado; não obstante, mesmo esse é consequência de um embate constante com o forjado e com o representado. Quando essa batalha interna da categoria se revela, ela já é pós-categoria; pelas palavras de Edward Said (2007, p. 29), diríamos que “não se trata de uma presença que se transmite verdadeiramente, mas de uma presença que se apresenta na fabricação desse processo”. Esses três eixos - performado, representado e forjado - funcionam como engrenamento das categorias e as torna pós-categorias.

Referimo-nos à representação, sobretudo, com apoio no Pensamento Feminista Negro de bell hooks e nos trabalhos dos Estudos Culturais, com Stuart Hall. Para hooks (2019), os embates em torno dos regimes de representação e visibilidade estão no cerne das políticas identitárias contemporâneas em que apenas alguns são contemplados na noção de humano, na coleção de imagens que circulam e instituem processos de hétero e autoidentificação, com base no poder dos dispositivos do “olhar” supremacista branco. Hall (2011, p. 201) entendia que a tarefa dos estudos culturais devia ser a análise da natureza política da representação, “das suas complexidades, dos efeitos da linguagem, da textualidade como local de vida e morte” e uma vez que tanto diferença quanto representação são conceitos escorregadios, eles estão sujeitos à contestação. Por isso mesmo, para Patrícia Hill Collins (2019), poder nomear e se autodefinir se torna um modo de subverter as limitações das opressões que se interseccionam.

A dimensão do representado de uma categoria não diz respeito a uma propriedade estável e inerente a ela mesma, mas a um conjunto de sentidos - tenso, deslizante, instável -, que demanda o exercício violento de estabilizar os aspectos que compõem a cena cambiante representada e repeti-la quantas vezes for necessário, fazê-la circular, investir em sua capacidade produtiva, que opera por meio de poderosas imagens modeladoras de corpos, pensamento, psiquismo e formas de se relacionar, de desejar e de se reconhecer. São imagens de controle, como tem defendido Collins, que nos conformam como os “terrivelmente outros” da norma (patriarcal, capitalista, colonial). Assim, por essa dimensão representacional, uma categoria captura, prende e estabiliza provisoriamente determinados epítetos [p. ex. raciais, sexuais, religiosos, nacionais] para significar o objeto, tipificá-lo, produzi-lo e articulá-lo discursivamente, como Frantz Fanon expressou (1983, p. 92, 96):

E depois, foi preciso enfrentar o olhar do Branco. Um peso inabitual nos oprimiu. [...] Já os olhares brancos, os únicos verdadeiros, me dissecam. Sou fixado. Tendo ajustado seu micrótomo, realizam, objetivamente, cortes de minha realidade. Sou traído. Sinto, vejo, nestes olhares brancos, que não é um homem novo que surge, mas um novo tipo de homem, um novo gênero. Um negro.

Esses textos/imagens - que compõem a gramática do regime de representação -, justamente por seu caráter fragmentário e ambivalente, têm de ser continuamente reatualizados nas narrativas textuais de massa para garantir seu efeito de verdade e acabam por organizar o catálogo das representações disponíveis com as quais passamos a ser inventados, reconhecidos e nos identificamos dentro das restrições de uma certa estética [geralmente racista e sexista]. Esse tipo de representação discursiva tem, na análise de Fernando Coronil (1998, p. 123), o estranho efeito de produzir imagens tão tangíveis quanto uma segunda pele.

Representar, nessa perspectiva, é o poder de instituir uma linguagem que imagina, descreve e visibiliza - fixando - o outro como Outro, colocando no seu lugar uma série de inscrições para, no seu conjunto, significá-las como Outro, numa complexa articulação de operações que envolve narração, criação, associação, classificação, fantasias, hierarquização e conceituações, dentro de uma formação discursiva histórica específica. bell hooks (2019) observou, nesse sentido, que “da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial” (p. 33).

Se por um lado, “performatividade é um modo de nomear um poder que a linguagem tem de produzir uma nova situação ou de acionar um conjunto de efeitos” (BUTLER, 2019, p. 35), por outro, não pode haver reprodução das normas sem sua representação corporal (BUTLER, 2019). Fanon (2008) relaciona a imago do negro à produção cultural europeia por meio da produção de imagens [cinema, literatura, mídia, educação, música] que controla a representação. Nas palavras de Hall (1997, p. 10), “o significado de qualquer objeto reside não no objeto em si, mas é produto da forma como esse objeto é socialmente construído através da linguagem e da representação”.

Fobias, cídios e abjeções: différances não intercambiáveis

Na decisão da ADO 26/DF, o Relator Ministro Celso de Mello fez referência ao julgamento do Habeas Corpus 82.424/RS, no qual o STF entendeu que o racismo não se “resume a um conceito de ordem estritamente antropológico ou biológico, projetando-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica” (BRASIL, 2019, p. 69), além de caracterizar, em sua abrangência conceitual, “um indisfarçável instrumento de controle ideológico, de dominação política e de subjugação social” (BRASIL, 2019, p. 69). Nesse movimento, o STF reconheceu o racismo como uma forma de dominação e subjugação de sujeitos e grupos, assim como a dimensão de abertura e fluidez de raça, ao pontuar que a “definição de raça é, em realidade, desenvolvida de acordo com o contexto histórico e varia conforme o tempo e o local” (BRASIL, 2019, p. 70).

Entretanto, o STF considerou que

a identidade fundamental que evidencia a correlação entre homofobia e a transfobia e o racismo […] [é] a motivação orientada pelo preconceito e a finalidade de submeter a vítima a situação de diferenciação quanto ao acesso e gozo de bens, serviços e oportunidades tanto no domínio público quanto na esfera privada (BRASIL, 2019, p. 80).

Essa relação de correspondência entre motivação e finalidade, que inscreve sob a mesma lógica LGBTfobia e racismo, além de insuficiente para distinguir raça, gênero, sexualidade, etnicidade, classe social ou qualquer outra forma de discriminação, reduz estruturas de poder, como racismo e a heterocisnormatividade, a simples preconceitos e atos de hierarquização, ao mesmo tempo desconsidera as especificidades das suas dinâmicas e efeitos nos processos de subalternização, violência e morte física, simbólica e social dos sujeitos, grupos ou povos.

O STF considerou ainda que

[...] no sentido de ser o racismo toda e qualquer ideologia que pregue a inferioridade de um grupo relativamente a outro e a consequente superioridade deste sobre aquele [...] tem-se que as condutas homofóbicas e transfóbicas se enquadram no conceito constitucional de racismo (BRASIL, 2019, p. 85).

Pensamos que um denominador comum, articulado como está nesse trecho, é a noção de inferioridade, sem considerar que os dispositivos de inferiorização de pessoas negras, homossexuais e transexuais respondem a processos históricos distintos de constituição de hierarquias que, por sua vez, é apenas uma das dimensões do amplo processo de desumanização que, não raro, tem culminado em execuções que incidem diferencialmente sobre esses distintos grupos e seus corpos.

Nessa perspectiva, raça e sexo/gênero se aproximam como discursos, porquanto fazem apelos a naturalizações ou essencialismos que organizam e regulam as práticas sociais dos sujeitos em suas interações cotidianas e justificam, na modernidade ocidental colonial, hierarquias sociais e processos de subalternização. Porém, nomear de racismo qualquer forma de discriminação baseada em construções essencialistas que resulte em hierarquia social significa “transformar o racismo numa simples metáfora, numa imagem política” (Antonio Sergio GUIMARÃES, 1995, p. 31). Desse modo, “cai-se num interminável túnel de tergiversações, ao final do qual, o que surge é uma visão trivial e asséptica do racismo” (Carlos MOORE, 2007, p. 280), que passa a ser utilizado para caracterizar qualquer experiência de preconceito e discriminação de mulheres, LGBTQIA+, de pessoas com deficiência, entre outras. Como assevera Kabengele Munanga (2003, p. 9), o uso generalizado do racismo por metaforização, o qual seria capaz de descrever qualquer atitude ou comportamento de rejeição e de injustiça social, pode constituir uma armadilha ideológica, na medida em que esse uso banaliza suas dinâmicas e efeitos no mundo contemporâneo.

O STF, ao reduzir o racismo à metáfora, desconsiderou tanto o aspecto forjado quanto o performado do sentido “ontológico-constitucional” de racismo, que informaram o texto constitucional e a Lei nº 7.716/89. Isso porque, ao desvincular o sentido ontológico-constitucional de racismo do racismo ‘antinegro’ e da ‘antinegritude’, apagou-se tanto a luta política do movimento negro brasileiro, responsável pela emergência do debate político sobre racismo no Brasil, e, sobretudo, pela discussão da legislação antirracismo na constituinte de 1987/88, quanto o fato de que o racismo antinegro, do ponto de vista do forjado, está atrelado à modernidade colonial e, portanto, ao processo de colonização e escravização de povos negros. Somente a partir do encurtamento dos sentidos de raça e racismo, foi possível ao STF apagar tal vínculo, como já dito, apagar a dimensão história e política do racismo e, assim, afirmar a existência de uma identidade entre LGBTfobias e racismo [e qualquer sistema de dominação], na medida em que racismo se tornou apenas metáfora ou gênero para descrever toda forma de hierarquização social.

Para conseguir comparar a LGBTfobia ao racismo, o STF se cerca das características definidoras de sexo e gênero: o sexo é inserido no aspecto forjado como biológico, “restringindo-se à mera verificação de fatores genéticos [cromossomos femininos ou masculinos], gonadais [ovários ou testículos], genitais [pênis ou vagina] ou morfológicos [aspectos físicos externos gerais]” (p. 9 - destaques no original); enquanto gênero é inserido no aspecto performado, “refere-se à forma como é culturalmente identificada, no âmbito social, a expressão da masculinidade e da feminilidade, adotando-se como parâmetro, para tanto, o modo de ser do homem e da mulher em suas relações sociais (p. 9 - destaques no original). Nessa separação, performado é nada mais do que o aspecto forjado sob a ótica “cultural”, com efeito, de acordo com Guimarães (1995), as LGBTabjeções [doravante usaremos esse termo em vez de LGBTfobia] por esse e somente esse aspecto, poderia ser comparada ao racismo, porque “o racismo é a redução do cultural ao biológico, a tentativa de fazer o primeiro depender do segundo. O racismo existe sempre que se pretende explicar um dado status social por uma característica natural” (GUIMARÃES, 1995, p. 31). Mas, essa elaboração é apenas uma estratégia discursiva para explicar como o racismo antinegro opera no seu aspecto representado, que nada mais é do que a expressão de um dispositivo fenotípico demandando controle mais do que necro/biopolítico dos corpos, também controle no nível celular e molecular, a biologia torna origem e explicação de um dissimulado determinismo sociológico, uma espécie de sociobiologia - o termo não é novo (Fulvio Cesar GARCIA-SEVERINO, 2018). De qualquer forma, o que une racismo antinegro e LGBTabjeção na “definição ampla de racismo” (p. 6, expressão usada no documento) é o sistema jurídico, que, no seu mágico poder enunciativo, tinge o aspecto representado com tons de forjado: diz-se que a LGBTabjeção é racismo e ela o será.

A manobra discursiva para equiparação das LGBTabjeções ao racismo justificar-se-ia porque, segundo o documento, “a homofobia decorre da mesma intolerância que suscitou outros tipos de discriminação, como aqueles em razão de cor, procedência nacional, religião, etnia, classe e gênero” (BRASIL, 2019, p. 70 - destaques no original), “vindo a reconhecer, por isso mesmo, que a prática do racismo abrange atos homofóbicos e transfóbicos” (BRASIL, 2019, p. 87). Dessa forma, tanto o racismo quanto as LGBTabjeções seriam um indisfarçável instrumento de dominação, embora o texto não diga por parte de quem, subentende-se que do Estado, por isso a ação do judiciário quando quem deveria fazê-la seria o legislativo.

Nessa operação discursiva do STF, ainda outro aspecto vale ser ressaltado e diz respeito ao emprego do termo-sufixo “fobia” para nomear práticas de inferiorização, apelando para uma suposta ignorância ou hostilidade, em que, de algum modo, borra-se a compreensão de que tais práticas engendram assassinatos e execuções. Conforme o trecho do voto descrito a seguir:

Nesse sentido, para Daniel Borrillo: “A homofobia é um preconceito e uma ignorância que consiste em crer na supremacia da heterossexualidade”. Segundo o autor: “A homofobia é a atitude de hostilidade contra as/os homossexuais; portanto, homens ou mulheres. [...] Do mesmo modo que a xenofobia ou o antissemitismo, a homofobia é uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal; por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do universo comum dos humanos [...]” (BRASIL, 2019, p. 84).

Não é a homofobia que designa esse ideal regulatório de dominação heterocisnormativa racista produtora de corpos que vão ser figurados como fronteiras de abjeção, em outras palavras, é a crença na anormalidade e na inferioridade, engendrada pelo sistema hierárquico heterocisnormativo, que institui o que tem sido nomeado como homofobia. Além disso, não há nada de arbitrário nesse processo deliberado, como parte do conhecido projeto do Estado moderno de modelação dos desejos e de descartabilidade seletiva dos corpos.

Embora o uso do termo fobia para se referir a práticas de violência e assassinato associadas a grupos LGBTQIA+ seja amplamente recorrente, ele nos parece esvaziado ou insuficiente para esse fim. O interessante nesse caso é que, fundamentalmente, o que define uma condição fóbica tem sido muito mais a mobilização das técnicas de evitação daqueles conteúdos representados no ego como perigosos, ameaçadores, aversivos ou danosos e não, necessariamente, a das técnicas de aniquilamento projetadas na eliminação do objeto, como resultam nas ditas práticas de homofobia ou transfobia, por exemplo. A produção das sexualidades ditas dissidentes e tornadas social e psiquicamente abjetas as elenca como objetos ansiogênicos e fóbicos [resultantes de uma série de inscrições das normas sociais, morais e políticas no psiquismo] que precisam ser evitados, porque ameaçam a desintegração do ego, heterocisnormativamente constituído. A ameaça, na verdade, procura um objeto e o encontra nos corpos assim abjetos, como uma barreira “fóbica” que se imporia diante da força supostamente incontrolável e perigosa que tensiona a heterocisnormatividade e os seus padrões de masculinidade.

Os muitos escritos no campo da psiquiatria, incluindo a tese de exercício de Fanon, não deixam dúvidas de seu esforço para mostrar a centralidade da cultura e dos vínculos sociais, ou dos seus rompimentos na constituição das construções patológicas, ou ainda, nas formas distintas nas quais elas se manifestam. Na análise do negro como um objeto “fobógeno” e “ansiógeno”, Fanon (1979; 1983) reafirmara que a constituição das neuroses era resultante da situação cultural nas colônias, como a Argélia. A inscrição da negrofobia como parte do circuito de racialização do negro revela mais do colonizador e do colonialismo do que propriamente do negro, na medida em que a sua eleição como objeto fóbico tem a ver com um conjunto de taras, ansiedades, desejos reprimidos, ideias de estupros e incestos, excessos sexuais coloniais, brutalidades, “o mal” e “o pecado” que são projetados no negro como o depositário da “natureza” alucinante, irrefreada e exacerbada. O temor e a aversão assim projetados provêm dos conteúdos sexuais e animalescos ansiogênicos que residiriam no próprio branco e que, por não serem tolerados, são expulsos e projetados no corpo do negro - naturalizando-o e animalizando-o. O negro se torna - paralogicamente - na dialética cultural e psíquica dessa fobia, o [perigo] biológico, o instintual, genitalizado.

Nessa mesma ordenação de ideias, a atribuição de LGBTfobia a práticas de execução de pessoas LGBTQIA+ tenderia a atenuar o grau de responsabilidade e intencionalidade daquele que deliberadamente pratica as ações, sendo assim, concebido como sujeito “efeito” de seu próprio terror, cujo drama fóbico residiria na “ponte frágil entre um mundo interno e um mundo externo violentamente discordantes” (Pierre KAUFMANN, 1996, p. 212), ainda em um enquadramento médico-patológico. A homofobia e transfobia desde essa acepção inicial podem ser pensadas como resultantes de uma simplificação do regime de heterocisnormatividade como norma que hierarquiza sexualidades e corporalidades e legitima a descartabilidade dos que rejeitam a norma ou que desalinham a cadeia de equivalências entre sexo-gênero-corpo-desejo. Ao mesmo tempo, “fobia” soa palatável a uma sociedade cisheterossexista.

Em um trabalho a respeito dos limites do termo homofobia, Sergio Silva e Alexandre França (2019), embora argumentem pela inadequação do radical “homo” estendido indistintamente às violências aos gêneros e às sexualidades não hegemônicas, defendem a manutenção do termo "fobia", ao proporem “violências fóbicas em gêneros e sexualidades” no lugar de homofobia. Assim como Rogério Diniz Junqueira (2012) que, mesmo ao problematizar o conceito de homofobia, os seus limites e as tensões que carrega e considerar a possibilidade de que os fenômenos sociais a que se refere possam “exigir conceitos que permitam uma abordagem mais aprofundada do fenômeno e das articulações entre corpo, gênero, raça/etnia, sexualidade etc.” (p. 1), conclui pela manutenção do termo homofobia ainda que reconheça que outros termos (como, por exemplo, heteronormatividade) possibilitariam “análises mais fecundas e ações potencialmente mais incisivas” (p.18).

De qualquer forma, na discussão sobre a fobia, a presença do medo e da angústia parece ser uma constante; no entanto, queremos ressaltar que a atribuição de “fobia” a expressões de ódio e práticas de aniquilamento é encobridora dos assassínios e, ao mesmo tempo, apaga a dimensão do Estado que constrói um ideal de família como norma - a matriz heterocisnormativa ligada ao projeto de nação. Com efeito, “a estrutura familiar e a da nação mantêm-se unidas”, explica Fanon (1983, p. 119), de modo que as regulações nacionais operam também no nível familiar e psíquico. Collins (2019) observa, nessa direção, que a família é o espaço normalizador das hierarquias raciais, de classe social e de gênero, naturalizador de feixes de autoridades defendidos pelo Estado-nação, cuja hegemonia do modelo moral e simbólico de família nuclear patriarcal, branco, elitista e cisheterossexista opera como parâmetro de abjeção.

Argumentamos, portanto, que as práticas de execução de pessoas LGBTQIA+, as quais seriam mais apropriadamente reconhecíveis como “cídio”, são subsumidas na expressão “fobia” e o que emerge como condição de possibilidade é o fóbico como vítima de sua própria “patologia”. Nessa operação, tanto o agressor quanto o amplo projeto genocida (necropolítico) do Estado-nação moderno se tornam também borrados na imagem patológica da fobia.

Nesse sentido, mariellecídios e LGBTicídios funcionam como denúncia da ação necropolítica do Estado e, ao mesmo tempo, demanda a responsabilidade dos executores. Especialmente a pós-categoria mariellecídios tensiona também a noção de genocídio, porque inclui não apenas os assassinatos de homens negros heterossexuais, mas também de mulheres e LGBTQIA+ negros/as. As diferentes e complexas dimensões do genocídio da população negra irrompem como condições de possibilidade enunciativa. Os primeiros representam a enunciação do aniquilamento da negritude e de seus corpos na intersecção com gênero, sexualidade, classe social, com a ampla ressonância política, desde as favelas e os locais periféricos; os segundos, das “ininteligíveis” existências e experiências corporificadas que representam os LGBTQIA+. Essas duas pós-categorias são potentes porque revelam o quão frágil é o modelo de inteligibilidade da “colonialidade de gênero”, como denominado por Lugones (2014). Interseccionando a compreensão das pós-categorias, as feminoabjeções se constituem em um “engrenamento” ético, estético e político. Feminoabjeções partem da definição forjada de feminino como substância, mas feminino é tampouco metafísica, feminino não é coisa em si que se apreenda embora seja identificado inteligivelmente a partir de referenciais éticos, estéticos e políticos. Possuem relação quiasmática com as LGBTabjeções [enunciadas como LGBTfobia], com o racismo, com o feminicídio, com osLGBTicídios, com os mariellecídios, mas não são nem eles, nem causa, nem consequência deles [convergem-se, justapõem-se e separam-se]. As feminoabjeções representam a abjeção ao feminino forjado, porque nem todos os corpos podem performar e representar outros femininos [e outros masculinos]. A transabjeção [enunciada como transfobia], por exemplo, seria, nesse conjunto, uma aversão estética fundada em conceitos ético-normativos que “justificariam” o transcídio. Feminino e masculino são vistos como substâncias: a ética estética da substância - não possuem ontologias, mas uma mesma genealogia. As feminoabjeções, como um conjunto de pós-categorias, desontologizam as categorias, tensionando-as a partir da intersecção das realidades eclipsadas por nomeações.

Considerações finais

A decisão da ADO 26 significou um avanço por reconhecer inconstitucional a mora do Congresso Nacional em legislar sobre a proteção contra violências sofridas pelas pessoas LGBTQIA+, declarando a omissão do Legislativo, que, apesar da demanda histórica do movimento LGBTQIA+, ainda não promulgou norma que regule expressamente sobre a criminalização das “homotransfobias” (LGBTabjeções e LGBTicídios). Diante dessa omissão, o STF deu interpretação conforme o texto constitucional para enquadrá-las, provisoriamente, nos tipos penais definidos em legislação já existente, na Lei n.º 7.716/89, até que o Congresso Nacional edite norma autônoma. Ressalte-se que a crítica exposta aqui é menos sobre a ação do STF do que sobre as consequências que podem decorrer da ação, caso, de provisória, ela seja tornada permanente.

Constata-se na equivalência de “LGBTfobia” com racismo o agravamento do efeito proveniente da falta de um nome que refira às suas mortes, sobretudo de maneira violenta, que corrobora a sua banalização. Quando morte e vida são descartáveis, além de “banalizáveis”, retirar-se-ia a possibilidade de luto. A possibilidade de luto na morte poderia romper com a condição nua e crua da precariedade da vida, dando dignidade de vida, pelo menos na morte - o que implicaria, minimamente, que houvesse denúncia. Mais do que produção de vidas abjetas, ordinárias, marginais há produção de mortes abjetas, ordinárias, marginais. É preciso dizer sobre a morte para que ganhem vida, nem que seja uma vida póstuma, para que se produzam outros discursos, pois uma vez que houve um assassinato houve sujeitos assassinados [e não mortos, porque é comum da vida a morte]. Toda essa estratégia discursiva subsumida nas fobias comporia um dispositivo necropolítico de gestão das vidas.

Esse controle necropolítico pressupõe a distribuição da espécie humana em tipos e subtipos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo [aparentemente familiar] “racismo” - Achille Mbembe (2016) critica essa mesma concepção de racismo em Foucault, no curso “Em defesa da sociedade”. Mbembe, a partir da lógica foucaultiana, revela que o “racismo” é, “acima de tudo, uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘aquele velho direito soberano de morte’” (2016, p. 128). É nessa mesma lógica que opera o STF, ao subsumir “LGBTfobia” no racismo evidencia o movimento biopolítico, autoatribuindo ao judiciário o mesmo biopoder auto-outorgado à biologia e à medicina.

Caímos na armadilha da categoria quando relacionamos [por semelhança] o que diz Fanon ou Angela Davis sobre a sexualização dos corpos negros com o que diz por exemplo, Foucault, Judith Butler ou Guacira Lopes sobre a sexualização dos corpos queer [de pessoas LGBTQIA+]. Se “sexo” for visto como categoria, e, portanto, reveladora de uma verdade, toda différance performativa e representada das diferentes experiências corporais individuais e coletivas se tornam um único eixo forjado [contrário à différance e, portanto, sub-repticiamente fixador] com o nome de “sexo”. Mas se, por outro lado, “sexo”, nesse exemplo, for compreendido como pós-categoria, como buscamos argumentar neste artigo, entenderemos que a violência infligida à população negra e à população LGBTQIA+ operam de modos diferentes. Da mesma forma, o entendimento do STF acerca do racismo como forjador e unificador dos significados de raça, de identidade de gênero e de orientação sexual, à revelia da différance histórico-política dos movimentos negro e LGBTQIA+, tornar-se-ia categoria, esmagando sua potencialidade como pós-categoria. O movimento que o STF faz de subsumir [legalmente] as LGBTabjeções e os LGBTicídios [com o nome de LGBTfobia] em racismo aprisiona e reduz a noção de racismo, assim como a de lgbtabjeções, lgbticícios e mariellecídios - ao se tornarem todos uma mesma coisa, ficam aprisionados pelo significado do signo [racismo], como se o segundo revelasse o primeiro e vice-versa

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1No prefácio à edição brasileira de 2018, os tradutores relatam que, em 2015, em Campo Grande (MS), um indígena Terena também cantou o hino nacional brasileiro na língua Terena. Pelo impacto desses acontecimentos, pressupõe-se, portanto, que qualquer hino nacional só possa ser cantado na língua nacional.

2Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: GARCIA-SEVERINO, Fulvio C.; CATOIA, Cinthia de Cassia; KAWAKAMI, Érica Aparecida. “Feminoabjeções, lgbticídios e mariellecídios: pós-categorias para tensionar realidades”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e 85005, 2023.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

4Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 27 de Novembro de 2021; Revisado: 28 de Abril de 2023; Aceito: 17 de Julho de 2023

fulvio.garcia@sesisp.org.br; fulviossgar@gmail.com

200048155@aluno.unb.br; cinthia.c.catoia@gmail.com

Fulvio Cesar Garcia-Severino (fulvio.garcia@sesisp.org.br; fulviossgar@gmail.com) tem Graduação em Ciências Biológicas e em Fisioterapia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), na linha de pesquisa Educação, Cultura e Subjetividade. Pesquisa os corpos por meio da genealogia, com referenciais nos estudos queer, culturais, pós-coloniais, decoloniais. Atualmente, é professor da Faculdade Sesi de Educação (FASESP), em especial na pós-graduação em Ensino de Ciências da Natureza

Cinthia de Cassia Catoia (200048155@aluno.unb.br; cinthia.c.catoia@gmail.com) é doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Especialista em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo. Pesquisa temas relacionados a antinegritude, movimento negro, feminismo negro e legislação antirracismo

Érica Aparecida Kawakami é doutora em Sociologia (UFSCar), com graduação e mestrado em Psicologia (USP). É professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB/BA), pesquisadora do GP FEMPOS - Pós-colonialidade, Feminismos e Epistemologias Anti-hegemônicas e do GP Transnacionalismo Negro e Diáspora Africana

Contribuição de autoria: O autor e as autoras contribuíram igualmente

Conflito de interesses: Não se aplica

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