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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n390958 

Ponto de Vista

Estudos trans e políticas globais em perspectiva feminista: uma entrevista com Susan Stryker

Trans Studies and Global Politics in Feminist Perspective: An Interview with Susan Stryker

Estudios trans y política global en una perspectiva feminista: una entrevista con Susan Stryker

Francisco Cleiton Vieira1 
http://orcid.org/0000-0002-8852-6212

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi, Santa Cruz, RN, Brasil. 59200-000 - direcao@facisa.ufrn.br


A historiadora feminista Susan Stryker tem sido uma figura importante na virada crítica em torno da despatologização da transexualidade e da formação de um campo de pesquisa e de ensino denominado de “estudos trans” a partir do Norte Global, notadamente desde os Estados Unidos. Por meio de sua trajetória, contada sem tantas pretensões de autoanálise ou de biografia, poderemos aprender sobre a constituição de pensamentos e práticas acadêmicas interdisciplinares que veem nas experiências de trânsito e diversidade de gênero e sexualidade um foco e um ponto de partida à análise sobre sociedade, cultura e relações políticas.

Conheci Susan por ocasião da minha estadia na Universidade do Arizona, quando realizava estágio doutoral na Escola de Antropologia e no Instituto para Estudos LGBT, entre 2018 e 2019. Stryker era, naquele período, diretora do Instituto e tinha acabado de ser nomeada para o cargo de Professora Emérita. No momento da entrevista, Susan estava prestes a se tornar professora visitante em Gender, Women’s, and Sexuality Studies na Yale University (2019-2020) e, posteriormente, tornou-se Barbara Lee Distinguished Chair in Women’s Leadership na Mills College, cargo que ocupa atualmente desde 2020.

Não apenas envolvida com o trabalho acadêmico, Susan é engajada no movimento por direitos trans em solo estadunidense, participando frequentemente de marchas, protestos e de falas públicas a respeito. Além disso, é produtora e diretora cinematográfica, tendo produzido documentários sobre a história de pessoas trans. Seu Screaming Queens: The Riot at Compton’s Cafeteria (2010) (codirigido com Victor Silverman) oferece um olhar de perto sobre uma pequena revolta quando um antigo espaço de sociabilidade foi fechado na Califórnia. O filme consegue ainda demonstrar o contexto do contato de ativistas, artistas e trabalhadoras do sexo trans com a medicina transexual em emergência com suas novas definições e campo de possibilidades promissoras, retratando como isso afetou as vidas dessas pessoas. Essa produção audiovisual se alia às publicações acadêmicas que trazem edições interdisciplinares de impacto como The Transgender Studies Reader (STRYKER, Stephen WHITTLE, 2006), e do seu estudo History of Transgender (STRYKER, 2017).

Stryker talvez seja mais conhecida por um artigo que escreveu quando acabara de se doutorar, na década de 1990. “My Words to Victor Frankenstein above the Village of Chamounix” (STRYKER, 1994), publicado originalmente em 1994, mas inicialmente apresentado como uma performance na Universidade do Estado da Califórnia em San Marcos durante a Conferência “Rage Across the Disciplines”, em 1993. No texto, a autora endereçava sua raiva com os xingamentos correntes de monstruosidade em relação a pessoas trans, à falta de políticas públicas contra HIV/Aids e à patologização da transexualidade. Stryker, que também é letróloga, defendia que era necessário ressignificar termos como “monstro” e “anormal”, recebidos para que não mais detivessem efeitos corrosivos na comunidade trans, fazendo uma relação com o lugar de monstro presente no romance de Mary Shelly (1972 [1818]), Frankenstein: ou o Prometeu Moderno. Esse era o cenário cheio das reverberações públicas da então patologização da transexualidade pela Associação de Psiquiatria Americana com a sua classificação de 1987 como “transtorno de identidade de gênero” que medicalizava a identificação pessoal e tornava mais difícil a “prova” para admissão clínica nos EUA - o que se replicaria no Brasil com particular força na década de 1990. O texto-performance de Stryker se deu, assim, no âmbito de sua atuação militante enquanto membro do hoje famoso grupo ativista Transgender Nation, que procurava protestar no momento em que a APA se preparava para se reunir para atualizar seu manual diagnóstico - o DSM -, o qual seria lançado em 1994, mantendo a sua classificação anterior. Apesar de sua relevância histórica nesse ativismo, Susan não relega a si mesma um lugar de protagonista do campo de estudos trans, mas propõe vê-lo como um ambiente de trabalho coletivo que ajudou a projetar e que abarca muitos agentes cujo lugar é, antes de tudo, uma conversação.

Na entrevista abaixo, concedida presencialmente em 30 de abril de 2019, na sua sala no Centro de Estudos da Mulher e de Gênero na Universidade do Arizona, em Tucson, nos Estados Unidos, Stryker reflete não apenas sobre a conformação de pesquisas reunidas sobre o termo “estudos trans”, que não constitui uma área do conhecimento per se, mas aponta para uma direção em comum de pesquisadores e pesquisadoras. Ela nos mostra, ainda, como o feminismo foi e é uma perspectiva fundamental para entendermos políticas nacionais e seus entrelaçamentos globais na atualidade. Nossa conversa não endereça apenas uma perspectiva histórica sobre a formação de um campo, reflete também acerca de dilemas e questões políticas de nosso tempo nas quais estamos implicados.

Oportunizar esta entrevista em língua portuguesa para o público brasileiro se mostra de importante alcance acadêmico, informacional e reflexivo para novas gerações de pesquisadores, pesquisadoras e ativistas. Isso porque a professora Susan Stryker se tornou uma referência incontornável no campo dos estudos trans, uma vez que sua trajetória acadêmica e pessoal se entrelaça com a história do processo que formou as questões e os objetos em torno da categoria transgênero na imaginação cultural no Norte Global e, por consequência, os fluxos transnacionais nos quais se transformou, inclusive no Brasil.

Francisco Cleiton Vieira (FCV): Susan, obrigado por conceder esta entrevista. Você se tornou uma referência nos estudos trans. Mas esse não foi seu primeiro tema de pesquisa. Gostaria de começar nossa entrevista te perguntando como você se interessou nos objetos com os quais começou a trabalhar no início da sua carreira. Conte-nos um pouco sobre sua trajetória.

Susan Stryker (SS): Eu fiz minha tese de doutorado sobre história dos Estados Unidos entre as décadas de 1983 e 1992. Naquela época, já faz muito tempo agora, eu não trabalhei com questões trans. Não parecia possível escrever uma tese sobre um assunto que envolvesse pessoas trans, o tema não estava em evidência na nossa cultura. Havia pouquíssimas oportunidades para falar sobre ser trans em qualquer aspecto para além do discurso médico, o qual era muito psicopatologizante. Além disso, o feminismo não apoiava muito as questões trans na época e os movimentos pela Liberação Gay tendiam a olhar para as pessoas trans como sendo mais reacionárias do que progressistas. Não havia oportunidade para falar criticamente desses assuntos até o início dos anos 1990, logo quando eu estava terminando minha tese.

Minha tese foi, na verdade, sobre história da religião. Eu escrevi sobre a história inicial dos Mórmons. A maneira que eu pensei sobre isso foi a seguinte: em 1825, não existia nada como um Mórmon. Não existia! Vinte anos depois, em 1845, há pessoas que se dizem Mórmons, uma igreja, um corpo de literatura ou escritura, uma migração transcontinental, novas formas de parentesco e uma nova cosmologia. Então, havia essa emergência de uma nova forma histórica de identidade, a qual é basicamente o resultado de um trabalho cultural. Mas como isso relaciona pessoas a uma certa temporalidade, espaço e sociedade? Que trabalho cultural foi feito para possibilitar a emergência dessa nova forma histórica de identidade? Esta pergunta é, secretamente, um tipo de questão sobre identidades trans. Há uma diferença importante entre esses sujeitos, mas o modelo que eu desenvolvi ali para pensar sobre a emergência de novas formas de identidade é exatamente o que eu faço nos estudos trans.

FCV: Então, como você começou a realizar estudos trans?

SS: Pessoalmente, eu ainda estava procurando entender, na minha própria vida, o que eu precisava fazer em relação à transição. Eu sempre tive esses sentimentos sobre ser trans, mas eu não sabia o que fazer com eles, nem se eu precisaria transicionar. Nessa preocupação, ressoavam as questões: “Como eu vou sobreviver?” “Em que vou trabalhar?”. Eu tentava responder: “Vai ser com trabalho sexual?” “Vai ser como professora?” “Em que vai ser?”. Eu não sabia como responder a essa questão sobre ser trans e querer ser uma professora. Eu transicionei e não conseguia arranjar nenhum emprego. Tentei ser uma historiadora especializada em História da Religião com foco nos Estados Unidos do século XIX e ser abertamente uma lésbica transexual. A única coisa que às pessoas trans era permitido saber era sobre ser uma pessoa trans. Eu pensava nisso algumas vezes e dizia: “O único emprego que uma mulher trans pode ter é descobrir como fazer com que pessoas cis a paguem para ser uma mulher trans para elas”. Por exemplo, você pode fazer isso através do trabalho sexual, através do ato de narrar sua trajetória ou através do ensino sobre questões trans. Então, eu pensei:

Eu vou pegar meu conhecimento incorporado sobre ser trans e minha formação como uma historiadora - já que havia me aprofundado acerca da emergência histórica de novas formas de identidade - e vou uni-las para fazer pelas pessoas trans o que o feminismo tem feito pelas mulheres, o que a teoria queer tem feito pelas pessoas queer, o que a teoria racial crítica tem feito por aqueles que foram racialmente marginalizados, o que os estudos da deficiência têm feito pelas pessoas com deficiência.

Trata-se de pensar a partir de saberes incorporados e experiências de estar no mundo e começar a conectá-las com o que Michel Foucault (2008) chamou de “saberes legitimados”. Trazer saberes subjugados para um diálogo com saberes legitimados, isso são os estudos trans.

Para mim, o grande momento de ruptura se deu quando eu li o artigo de Sandy Stone (2006 [1991]), “Posttranssexual Manifesto”. Eu estava terminando meu doutorado, me assumindo publicamente como trans e descobrindo como eu iria ganhar a vida. Sabendo que havia um projeto intelectual chamado de estudos trans, e pensando quanto grandioso isso poderia ser, eu pensei: “É isto, ela acabou de fazer todo o trabalho duro”. Agora, eu estava partindo daí para desenvolver o projeto que ela descreve em seu artigo, que foi muito influente para mim.

Eu também costumo brincar sobre o meu papel para a institucionalização dos estudos trans, para transformá-lo em um campo de estudo. Eu era uma mulher trans desempregada, o que mais eu poderia fazer? Eu tinha todo o tempo do mundo. Eu pensei:

Eu vou ter que descobrir como ganhar a vida, descobrir como comer, descobrir como cuidar das minhas crianças. Eu vou ter que escrever e fazer política, fazer arte e viver minha vida.

Eu tinha uma visão: por que não fazer algo que pudesse expandir as conversas sobre nós (pessoas trans), no sentido de permitir que mais pessoas viessem, falassem e participassem de um diálogo? Eu estava sempre pensando detidamente: “Eu não tenho nada além de tempo nas minhas mãos, eu posso estar envolvida em um projeto de longo prazo”.

Eu estava sempre pensando sobre como eu poderia fazer o que necessitava ser feito no presente momento, e pensar sobre a conexão disto com a construção de um campo de estudo, para estabelecer uma conversa, para ajudar a criar mais espaços para mais pessoas poderem trabalhar naquilo que me importa. Eu penso sobre isso como algo compartilhado, um espaço que não é uma propriedade privada, um espaço comum para você fazer suas coisas. Se você está sempre plantando sementes no espaço comum e cuidando daquilo que cresce lá, você não somente cria um modo de se alimentar, mas também se torna um lugar para outras pessoas. Eu penso nisto como uma estrutura de trabalho anarquista e anticapitalista, para desprivatizar, decolonizar, descentralizar e para coletivizar. Ele não pertence a ninguém. Eu escuto muitas pessoas falarem que eu tive uma participação fundadora nos estudos trans. De certo modo, é verdade, mas, mais que isso, o que eu sinto é que eu pus esforços para cuidar de um lugar comum e que agora tem muita gente nele.

FCV: No seu livro Transgender History (STRYKER, 2006), você cobre cem anos da história dos Estados Unidos. Em 2017, você editou uma nova versão deste livro. Como historiadora, qual a importância e os limites das comparações históricas envolvendo a experiência trans?

SS: Duas coisas. Quando você estuda a historiografia trans, você percebe que os modos que fazem com que as pessoas trans entendam suas identidades hoje é bem recente, com várias décadas de idade, mas não séculos. Há um modo específico de pensar sobre as questões trans que nós desenvolvemos no período contemporâneo e passado recente, mas a outra coisa que você vê é que a diversidade de gênero sempre existiu. Então, ao se tentar descobrir como falar sobre estas duas coisas se deve, por um lado, não querer projetar sob o passado formas contemporâneas de entender a categoria transgênero, nem mesmo usar a palavra “transgênero” como uma identidade, porque ela não existia como um rótulo identitário. Transexuais não existiam como um rótulo identitário. Pensar nisso me faz voltar à minha tese de doutorado, na qual eu apontei que formas específicas de identidade emergem em certos lugares e em certos tempos, fazendo certo tipo de trabalho cultural, mas é anacrônico pegar esta construção de identidade e projetá-la no passado e dizer que estas pessoas são como eu. Acho que isso é uma historiografia mal feita.

Por outro lado, o que ser trans lhe ensina é que quando você olha para o passado, você vai ver que gênero não era organizado do mesmo jeito que é no presente. Então, como você consegue entender e apreciar as diferenças entre o passado e o presente, para ver como gênero funcionava diferentemente? Uma questão realmente historiográfica é sobre como a variância de gênero existiu e funcionava em outros lugares e tempos. Basta olhar para o passado e você vê que houve diferentes práticas de gênero e como nós pensamos sobre isso; talvez, sem ter a perspectiva trans do presente, não teríamos notado estas coisas ou lhes dado a devida atenção. Ao mesmo tempo, você não pode pensar que eles são exatamente como você conhece no presente. Então, há uma relação circular ou interativa, reflexiva, sobre pensar a partir de um ponto de vista trans no presente que pergunta sobre como gênero poderia ser organizado diferentemente no passado.

Uma das coisas mais interessantes que está acontecendo na historiografia transgênero agora, ou acontecendo na profissão de historiador/a sobre as questões transgênero, é o reconhecimento de que não só gênero tem uma história, mas transgênero também. As categorias que usamos, como homem e mulher, ou homossexual e heterossexual, estas palavras não são mais gerais que a palavra transgênero. Elas são historicamente específicas, historicamente definidas, geográfica, cultural e linguisticamente específicas. Logo, um homem não é sempre um homem em qualquer contexto. O que conta como um homem é diferente de um contexto para outro, e o que se conta como um homem muda ao longo do tempo, e os modos como a cultura pode relacionar as noções de diferenças masculinas e femininas às questões de papéis sociais e ao corpo também podem mudar com o tempo. Não há um status ontologicamente natural de macho-fêmea, o status de homem/mulher muda tanto quanto o que define algo como transgênero. Pensar seriamente sobre a historicidade de todas as categorias é importante, e a história trans pode nos ensinar sobre isso.

FCV: Falando de categorias, a abordagem biomédica detém um grande e letigimado espaço na cultura ocidental euro-estadunidense para a definição do que é a transexualidade ou transgeneridade. Essa classificação percorreu o status de doença, transtorno e síndrome. As categorias mudam e os termos também, como a desordem de identidade e a disforia de gênero (VIEIRA, 2020). Você vê um caminho para a despatologização efetiva? Como você vê esta categorização médica atual?

SS: Honestamente, eu sou contra incluir qualquer coisa relacionada a trans no DSM1 ou no CID2. Estou alinhada à forma de pensamento do movimento pela despatologização trans para refletir sobre como chegar aos termos certos no modo de trabalho médico-psi. Dito isso, creio que chamar algo de desordem de identidade de gênero é profundamente patologizante. É como dizer que você tem uma identidade desordenada ou confusa. Em contraste, falar em disforia de gênero é como falar “estou insatisfeito sobre algo”, e há uma verdade em pensar que a maioria das pessoas trans decidem buscar ajuda médica para transição porque há algo que lhes causa infelicidade. Dizer coisas como “eu não quero isto no meu corpo” ou “eu realmente preciso que meus genitais sejam deste jeito, em vez daquele”, ou “eu não gosto disso, eu não gosto de como as coisas estão, não estou contente, eu quero mudar”. Então, eu acredito que disforia de gênero é um termo melhor do que desordem de identidade de gênero, e ainda assim eu preferiria não ver nada lá. Isso então cria a pergunta: considerando esta sociedade capitalista na qual vivemos, como você tem uma atenção à saúde adequada para o cuidado em saúde trans, para os gastos relacionados com a transição?

Eu gosto do modelo-ação que foi desenvolvido pelo GATE (Global Action for Trans Equality3), chamado de modelo estrela-do-mar. Já existe um CID ou código do plano de saúde para qualquer coisa que as pessoas trans fazem com seu corpo, como uma vaginoplastia corretiva. Algumas pessoas que não são trans, que são atribuídas como mulheres ao nascimento e são geneticamente fêmeas, têm uma ausência congênita da vagina, e há alguns procedimentos cirúrgicos para uma vagina em um corpo que nunca teve uma antes acompanhado de um código do sistema de saúde para seu pagamento. Por que esses procedimentos cirúrgicos precisam ser organizados através de alguma identidade, de uma rubrica trans? Serão feitas mamoplastias de aumento ou redução, ou pessoas que fazem faloplastia que não são homens trans, ou seja, existem muitas razões para tomar hormônios. Por que você precisa de uma cirurgia neovaginal? Por que você necessita se submeter a uma cirurgia de neovaginoplastia? Porque você precisa de uma vagina no lugar no qual não havia uma antes. Porque você nasceu sem ela e alguém imagina que você deveria ter uma, ou é por que você é trans? Quem se importa?! Você já existe!

Eu vejo a ideia de permitir o acesso a tratamentos médicos por meio da categoria trans como uma forma de marginalizar as pessoas trans. Além disso, eu vejo isso como uma forma de criar hierarquias entre alguns corpos que têm mais direito a estes tratamentos, e outros corpos que não têm esse direito, ou, se têm, é por uma via que continua a lhes manter de alguma forma politicamente subjugados. Portanto, acho que devemos ter a abolição médica da categoria trans, e o modo estrela-do-mar de escolher, que diz: “Você precisa deste procedimento, e aqui está o código para ele, e você sabe que você precisa dele porque seu médico disse que você precisa”. Isto deveria ser tudo, é o que eu preferiria.

FCV: Porque, se você pensar sobre isso, eles estão mudando seus nomes, mas eles estão mantendo os protocolos. Os médicos ainda têm o controle para recusar, e este é um dos maiores problemas, pois eu percebi, na minha pesquisa (VIEIRA, 2020), que muitas pessoas trans estão lutando contra o protocolo, contra o regulamento.

SS: Exatamente! Eu estava falando sobre a parte médica desse problema, mas a maior questão são as questões sociais e políticas sobre como as transformações e procedimentos corporais são autorizadas ou não. Entramos na problemática do que diferencia algo cosmético de algo medicamente necessário, o que nos faz pensar sobre autoridade e se todas as pessoas têm tido o mesmo direito à autodeterminação de gênero. Nós temos a habilidade de nos autodefinirmos, e então há essa negociação relativa a como nossa autodefinição e autocompreensão se tornam articuladas socialmente. E é aí onde a luta política frequentemente acontece. Para as pessoas trans serem totalmente liberadas, livres, autônomas. autodeterminadas, é necessária uma transformação social bem mais geral. Isto requer o reconhecimento social acerca da legitimidade da autoconsciência trans.

FCV: Considerando seu arcabouço analítico, quais foram e quais são suas principais inspirações teóricas e epistemológicas; quais trabalhos mais te inspiraram?

SS: Eu quero reconhecer a grande dívida que tenho com o feminismo negro, particularmente, com os feminismos de fronteira, que incluem dois dos trabalhos mais influentes que li quando eu estava pensando sobre como ser trans, uma intelectual e uma ativista nos anos 1990. Foi Borderlands, de Gloria Anzaldúa (1987), e Zami, a New Spelling of My Name: A Biomythography, de Audre Lorde (1982).

Há um tipo de escrita nessas obras que costura conjuntamente uma poesia e uma sensibilidade lírica com uma reflexão autoetnográfica e visão crítica. Ela é tecida entre diferentes gêneros. Eu acho a escrita destes livros como sendo de gênero trans (trans-genre). Há algo que realmente fala comigo naquele tipo de escrita, precisamente porque ela contesta os conhecimentos formais e legitimados. Estes conhecimentos objetivos nos quais o corpo do locutor não é implicado no modo como o conhecimento é apresentado são confrontados com uma escrita que coloca em primeiro plano o papel do conhecimento incorporado em diálogo com outros saberes. Coisas que você aprende porque alguém estudou sobre isso e você aprendeu sozinho, versus coisas que você sabe, pois você anda pelo mundo e você vê como o mundo te trata. Eu sinto que este método, algo como uma teoria radical na carne, foi muito influente para mim e eu sou inspirada pelo seu formato.

Um dos trabalhos que li quando estava iniciando meu contato com estas problemáticas foi o ensaio de Hortense Spillers (1987), “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”. Ela pensa sobre o corpo/carne como sendo o grau zero para a significação social que se torna socialmente significante por meio do que acontece com ele histórica e culturalmente. O sentido de criar gênero como parte do que nos faz humanos sempre envolve uma generificação do corpo/carne, enquanto desfazer o gênero se torna um ato de desumanização. Ela está escrevendo particularmente sobre o que acontece com a carne negra feminina no contexto da escravidão. Entretanto, ela falava sobre a carne num sentido que ressoara também comigo.

Além disso, Mark of Gender, da Monique Wittig (1985), foi outro ensaio importante para mim. A teoria da performatividade de gênero de Judith Butler (1990) foi significante. Havia muitas coisas acontecendo e eu tentei pegar um pouco de várias delas e então pensar especificamente no meu próprio tipo de incorporação. O que eu escrevi que melhor exemplifica isso é meu ensaio “My Words to Victor Frankenstein above the Village of Chamounix” (STRYKER, 1994). Esse texto tem 28 anos de idade este ano e ainda está chamando atenção, ainda circulando e sendo lido. Este foi meu trabalho, que acredito que contribuiu para o estilo de escrita que eu admiro, minha própria visão de um tipo de escrita performativa ou de escrita trans.

FCV: Nesta perspectiva, como você acha que anarquismo e anticapitalismo se intersectam no seu trabalho intelectual?

SS: Eu não faço, necessariamente, referência aos trabalhos na tradição do anarquismo, nem mesmo estive profundamente envolvida nos movimentos sociais anarquistas, mas se trata de uma postura ou uma perspectiva antiestatal e anticapitalista. Eu acho que estes são modos negativos de ser e eu tento, no meu trabalho, imaginar um outro lugar, não só imaginar um futuro que seja uma reprodução do presente estendido indefinidamente ao futuro. Eu realmente estou tentando pensar sobre a Liberação Trans, e a liberação não vem mantendo-se no Estado e no capitalismo, ela vem da transcendência e reconfiguração, da resistência. São fugidios do modelo atual, realmente tentando imaginar sua liberdade de modo que não dependa do Estado, pois o Estado, penso eu, é um modo violento de impor e lucrar, tratando nossos corpos como zonas de extração de recursos para outras coisas. O Estado não está interessado em nossas causas.

Então, como você vincula os tipos de transformações corporais que muitas pessoas trans fazem? Isto nos coloca em conflito com o modo como a sociedade é organizada e então nos ajuda a ver que existem grandes estruturas sociais que podem mudar do mesmo modo que nossos corpos podem. Podemos pensar sobre como podemos pegar este conhecimento que é fruto de ser trans, esta mudança profunda, e então combinar isto com o reconhecimento de que os tipos de mudanças corporais de que necessitamos para nossa própria sobrevivência nos são, às vezes, negados ou deixam nossas vidas mais vulneráveis de outros modos.

Este modo de ser não se encaixa com a organização do Estado, da sociedade e do Capital. E, então, como você, por sua vida e por sua liberação, imagina possibilidades para transformações sociais que você sabe podem ser tão reais quanto as experiências que tivemos quando mudamos nossos próprios corpos? Fazendo com que estas transformações sociais ocorram, você conecta o conhecimento trans da transformação da realidade àquele da transformação social. Logo, isto tudo está em jogo precisamente porque o modo de ser trans nos coloca em uma posição de vulnerabilidade.

Eu não acho que essa abordagem na qual me enquadro seja explicitamente uma posição anarquista, mas um reconhecimento de que o modo estatal não é, necessariamente, de onde virá minha liberação. Eu gostaria de pensar sobre como nós podemos imaginar diferentes sujeitos, corpos, sociabilidades, relações em torno do território, dos recursos, dos alimentos e da energia. É uma grande imagem, sempre perguntando que tipo de sociedade, economia e ecologia estamos reproduzindo através de nossos corpos.

FCV: Ao se considerar a organização destes saberes, há um crescente debate sobre a institucionalização dos estudos trans através da criação de departamentos e cursos em universidades. Como você enxerga este debate e os problemas envolvidos neste tipo de política acadêmica?

SS: A questão da institucionalização é complicada e não há uma única resposta. Eu certamente acredito que nós devemos ter uma forma de organização para pessoas que são acadêmicas e são trans, ou estudam a questão trans, só para que nós possamos nos encontrar de modo regular, criando uma contínua conversação. Creio que deva existir uma revista de estudos trans, mais de uma, talvez, um espaço estável para publicar trabalhos.

Se acho que necessitamos de departamentos? Não sei. Eu pessoalmente vejo uma necessidade para isso e um desejo para que as pessoas sejam capazes de receber uma formação para serem especialistas nas questões trans. Isto vem, a meu ver, de uma perspectiva dos estudos trans, em vez de uma perspectiva patológica. Existem muitas pessoas que conhecem questões trans que estão envolvidas nos meios médicos, legais, psiquiátricos, psicológicos e serviços sociais, mas eu resisto à ideia de que estes tipos de conhecimentos especializados são os que melhor servem às pessoas trans.

Todo mundo quer ter assistência médica, mas ninguém quer que lhes seja dito que estão doentes. Estou muito interessada em tentar criar um modo que permita conectar o que as pessoas trans sabem por causa do modo como inserimos nossos corpos no mundo com este tipo de conhecimento que conta como saber especializado que tem um certo efeito poderoso no mundo. Por exemplo, se alguém vai testemunhar num tribunal e eles perguntam: “Quais são suas credenciais para falar sobre questões transgêneras?”, alguém pode dizer: “Eu sou um psiquiatra forense e eu lidei com muitas pessoas trans e instituições psiquiátricas”. Agora, se você diz: “Eu tenho um certificado em estudos transgêneros da Universidade do Arizona e um doutorado em Antropologia Médica e eu sou trans”, isso é um modo diferente de especialização. Eu quero ver mais deste segundo tipo de especialização, que é mais empoderador para as vidas trans.

Eu vejo o potencial de criação de um programa de estudos para diplomação nesse tema, mas não está claro, para mim, como fazer isto. É o que eu venho tentando fazer de alguma forma aqui na Universidade do Arizona (EUA) nos últimos anos e vem sendo difícil. Os profissionais que fomos capazes de contratar aqui estão em diferentes faculdades ou departamentos, e alguns estão interessados em uma versão dos estudos trans e outros em outras versões. Como não há consenso, temos somente a habilidade de inspirar e encorajar as pessoas a colaborarem entre si. É um processo bem lento.

Eu acho que o papel que tive na institucionalização dos estudos trans se dá através de vinte e cinco anos, ao longo dos quais eu tenho publicado, editado coletâneas e edições especiais de periódicos, organizado conferências para ajudar as pessoas a se conhecerem, lançado o Transgender Studies Quaterly, e ainda fui capaz de ser contratada como professora de estudos trans aqui na Universidade do Arizona. Eu fiz algumas coisas, mas também acho que chegou o momento na minha carreira para dizer que existem todas essas peças no tabuleiro, este foi meu trabalho, eu montei o jogo, eu coloquei peças nele e agora outras pessoas precisam jogá-lo, e veremos o que acontece.

FCV: Na sua introdução ao livro Transgender Studies Reader, volume 1, olhando para os estudos gays e lésbicos de então, você argumentara que é importante estudar as questões trans de forma independente. Tomando isso como gancho, como você vê a relação entre os feminismos e os estudos trans, já que parece haver aí um clima de tensão?

SS: A relação entre trans e feminismo é complicada. Mas é simplesmente errado, de modo empírico, dizer que o feminismo é hostil às questões trans. Algumas feministas são, e outras não. Nunca houve um feminismo monolítico ou hegemônico. Existem “feminismos”. Alguns são mais interseccionais que outros, este sempre foi o caso. Alguns feminismos têm sido transfóbicos, outros não; alguns feminismos têm sido racistas e nacionalistas. Não existe um feminismo puro; e feminismo não está sempre do lado correto; algumas vezes, está do lado errado. Isto é parte da crítica feminista pós-colonial do Sul Global sobre boa parte do feminismo liberal que emana dos EUA e da Europa, como mulheres brancas salvando mulheres de cor de homens de cor. Existe aí este complexo de salvador e de vitimização, transformando o feminismo num modo de reproduzir a dominância do Norte sobre o Sul Global.

Para mim, o ponto principal é pensar o feminismo como uma crítica política às hierarquias injustas de gênero e como uma perspectiva abolicionista à subordinação das mulheres. E se nós pensarmos gênero como um sistema de subordinação de alguns sobre outros, então o que os estudos trans adicionam é que existem mais formas de opressão de gênero do que simplesmente a criação do binário (homem-mulher) e a supressão do lado minoritário. Não é somente que o gênero é algo binário com os homens no topo e as mulheres tendo que descobrir um modo de ganhar o poder do patriarcado ao subir em seus pescoços. Podem ter formas de opressão de gênero que são baseadas em não se encaixar nestas categorias binárias, e em pensar que estas categorias são estáveis e não mutáveis. Eu vejo transgênero como uma extensão do feminismo em vez de algo que lhe seria antiético. É como dizer: contar até dois não é o suficiente, existem mais.

Vejo isso a partir de um analogia. A física newtoniana, por exemplo, trabalha bem para quase tudo aquilo para o qual nós usamos a física. Entretanto, quanto mais você a força, mais ela se quebra ao redor das margens, e você começa a ver os fenômenos quânticos. De repente, a sensação de lidar com o que parece marginal muda toda a sua perspectiva, e você vê algo que pensava ser dominante ou suficiente quando, na verdade, é apenas um caso num universo muito maior. A física newtoniana funciona apenas dentro de certos parâmetros, e vivemos dentro deles na maior parte do tempo, mas vivemos num universo quântico também. De algum jeito, eu penso assim sobre gênero.

Na maioria dos casos, o par binário homem-mulher explica bem as relações de gênero, mas existem fenômenos que ocorrem e existem pessoas cujas vidas não são englobadas por este modelo. Ao se dar atenção a estas pessoas, em vez de tentar apagá-las, negá-las, invisibilizá-las e contê-las, olhando àquelas que parecem marginalizadas dentro da perspectiva do sistema de gênero dominante, é possível notar que gênero trabalha de modo diferente do que se pode imaginar. Existe algo aí que transforma a compreensão de gênero para todos e isto é importante para entender como o sistema de gênero funciona. Eu me considero uma feminista e eu me considero trans, então, obviamente, pode-se ter feminismo e trans juntos porque aqui estou eu. Eu sei disso, em grande parte, por meio do contexto hispano-falante: os transfeminismos latinos me parecem mais bem enraizados e anarquistas, punks, autoconstruídos, queers e atentos a performances pós-pornô do que os transfeminismos anglófonos.

FCV: No Brasil, há militantes e teóricas falando de transfeminismo em relação às questões transgênero, preponderantemente quanto às mulheres. Contudo, parecer haver, na minha opinião, uma certa tensão e debate sobre o lugar que homens trans poderiam ocupar nessa seara.

SS: Sim, mas é complicado novamente. Parece que o transfeminismo tem mais a lidar quando pensa com as mulheres cisgênero, os homens trans e não binários, enquanto isso não inclui as travestis do mesmo modo. Existem as mulheres e o transfeminismo, mas nem todas as travestis se consideram mulheres, algumas sim, outras não. Há esta complicada questão sobre a relação entre feminismo, a questão trans, masculinidade e feminilidade, cisgênero e transgênero. Acredito que o objetivo não deve ser descobrir quais dessas categorias é a correta, ou criar uma solução que inclua todo mundo, mas perceber que outras maneiras de pensar, ser e de estar numa comunidade são possíveis. Pessoas com quem você compartilha algumas coisas, mas não tudo, tateando em direção a um futuro no qual todos podemos viver sem necessariamente saber exatamente como chegar lá.

FCV: Continuando a refletir sobre essa comunidade possível em meio às diferenças, mas em outra direção, como você vê a relação entre os estudos acadêmicos e movimentos sociais, uma vez que muitos ativistas têm ingressado na universidade após terem tido contato com lutas políticas? Qual o resultado desse espaço de interação?

SS: Eu diria que algumas pessoas da academia também estão nos movimentos sociais, há uma sobreposição. Eu ressaltaria que, às vezes, coisas que acontecem na universidade não necessariamente são traduzidas em algo que parece ser útil nas ruas. Penso que os acadêmicos e as acadêmicas precisam ser capazes, de algum modo, de apenas pensar livremente e ir aonde seus pensamentos os e as levam, e que pode haver algo útil deste pensamento que não seja estritamente instrumental. Não é como se disséssemos restritivamente: “Eu estou buscando uma resposta para esta questão e, então, farei uma pesquisa e encontrarei resultados que irei compartilhar com as pessoas e suas vidas poderiam melhorar”.

Pode haver tipos de pesquisa acadêmica que não necessariamente visionam uma aplicação direta, e isso não quer dizer que ela não seja útil ou valiosa de alguma forma. Acadêmicos precisam ser deixados livres para fazer seu trabalho. Eu também rejeito a ideia de que o trabalho acadêmico é necessariamente apolítico e desconectado com o que acontece fora das universidades. Não são apenas pessoas na academia estudando o que está acontecendo no mundo, mas elas são parte deste mundo, de modo que a maneira como o conhecimento que é formado nas universidades está direta e materialmente relacionado com o que está acontecendo fora dela.

Pessoas que não são acadêmicas pegam coisas que vêm das universidades se elas encontram utilidade. O saber acadêmico pode se tornar uma ferramenta, e, às vezes, se pode ter um uso para ela, e outras vezes não. Alguém me disse que aquele artigo do Frankenstein que citei anteriormente e escrevi vinte e cinco anos atrás é popular entre os brasileiros afro-caribenhos, que estão estudando arte performática queer. Ele está circulando como esta coisa que veio de uma pessoa branca, dos Estados Unidos, cerca de vinte e cinco anos atrás. Isso é algo que me deixa muito feliz. Eu não escrevi o artigo para eles, mas, se eles encontram um uso para ele, eu fico muito contente com o que fiz.

Você nunca tem como saber onde seu trabalho vai aterrissar e por isso acho que não se pode fazer com o que o trabalho acadêmico circule estritamente com a ideia de que isto vai ter algum valor de uso para alguém. Pensa-se sobre ideias. Pelo menos, no meu campo, você vai fazer algum tipo de análise cultural, tentando descobrir as estruturas, lógicas e processos profundos que estão em andamento. Pode-se pensar como as injustiças são criadas pela sociedade, que tipo de respostas são criadas sobre tais injustiças, entendendo o modo como a sociedade e a cultura funcionam. Sua análise pode ser uma parte da resposta para criar uma alternativa, até mesmo o/a autor/a não liga todos os pontos. Alguém pode ver algo no que você faz e perceber que é útil de um modo que você, como acadêmico, vai ser inspirado por coisas que vê “no mundo lá fora”. Algo que uma ativista viu, ou que uma artista criou, ou uma romancista escreveu, que pode lhe mostrar algo que te compele a compreender melhor e mais aprofundadamente o que você está estudando, e isso se torna parte do seu próprio mundo. Acredito na circulação entre as ruas e a torre de marfim, e eu não priorizo uma sobre a outra.

FCV: Minha questão final. Quando Donald Trump assumiu a presidência dos EUA, ele retirou várias informações sobre a população LGBTQIA+ dos sites do governo. Ao mesmo tempo, Jair Bolsonaro não só desmantelou políticas, mas também foi eleito com uma plataforma política contra nós. Então, quais são os desafios colocados pelo crescimento do conservadorismo para as práticas acadêmicas sobre e em conjunto com vidas trans?

SS: Um dos meus clichês é o seguinte: “primeiro sobreviva, depois faça todo o resto”. Nós estamos em um momento histórico muito perigoso, no qual as coisas podem se tornar piores para as pessoas trans do que têm sido recentemente. Nós precisamos não subestimar as possibilidades para que as coisas se tornem muito ruins. Estudando história, eu não acredito que a história seja sempre sobre progresso, como se houvesse sempre um contratempo e depois novamente o progresso. Coisas podem dar errado em certos momentos e nós precisamos estar atentos e atentas sobre o que está acontecendo agora.

O que acho esperançoso sobre a política trans nestes momentos assustadores de moldagem de governos reacionários etnonacionalistas, não só no Brasil ou nos EUA, mas em partes da Europa e da Índia, das Filipinas, é que há uma tendência global de distanciamento de certos tipos de formas neoliberais de representatividade de governos democráticos. Eu sou bem crítica acerca das partes neoliberais, mas há uma mudança de afastamento não só destas, mas também da esquerda mais radical ou das alternativas socialistas, o que não está em ascensão nesses lugares. Mas acho que é para se ter esperança nas alianças que estão resistindo à guinada à direta do etnonacionalismo autoritário.

Há uma crescente percepção das questões trans como parte do que uma boa sociedade deve ser, e o que está em risco com isso. Existem pessoas trans que estão se esforçando, e diferentes tipos de resistência antigoverno e protestos, trazendo uma perspectiva trans para alianças de justiça social, criando um movimento. Um exemplo dos Estados Unidos é a marcha das mulheres, que aconteceu quando Trump foi eleito. Não era uma marca radical de ativismo, mas foi um movimento muito simbólico no qual houve uma coalisão ampla antiTrump, que se formou em torno do feminismo, das questões das mulheres, das questões trans, de raça, e sobre deficiências. Tudo meio que se baseia como parte daquilo que resiste, parte da visão social que nós articulamos em resistência ao que está acontecendo. Então, esta virada das questões trans saindo da margem, uma coisa que muitas pessoas nem mesmo pensam a respeito, para se perceber o que está em risco, é uma questão central para a visão do que estamos tentando articular. Então, isso me parece bom. Nós não sabemos se vamos ganhar, mas mais pessoas reconhecem que nós estamos no mesmo lado.

Eu realmente acho, para fechar, que o feminismo é uma das questões que está na crista das lutas entre as formas reacionárias etnonacionalistas de governo e uma política mais liberatória antiestatal. Mas acho que o feminismo está dividido, não ao meio, mas em muitos tipos de feminismos, como as TERFs britânicas que estavam perfeitamente dispostas a se aliarem com os movimentos de direita, como o Brexit... Percebe-se políticas desse tipo nos EUA em torno do movimento feminista antipornográfico, algumas que estavam dispostas a colaborar com os republicanos de direita antissexo, porque elas pensavam que poderiam salvar as mulheres da prostituição desta forma. Então, o feminismo se resume ao quanto ele está confortável em colaborar com forças políticas reacionárias em nome do feminismo versus como o feminismo se imagina como parte de uma sociedade que vale a pena viver e que resiste a reações. Como o feminismo trata a questão trans é um bom teste ou guia para entender como esta fração particular do feminismo lida com maiores questões. Está é uma das grandes problemáticas atualmente

Referências

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1Termo em inglês para o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria.

2Código Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde.

3GATE (em português: Ação global para a equidade trans) é uma organização não governamental em prol da justiça e da igualdade em torno das comunidades intersexuais, trans e de outros sujeitos no âmbito da diversidade de gênero. Com sede nos Estados Unidos, o grupo tem atuado internacionalmente com parcerias estratégicas em diferentes níveis em termos de recursos e atividades.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: VIEIRA, Francisco Cleiton. “Estudos trans e políticas globais em perspectiva feminista: uma entrevista com Susan Stryker”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e90958, 2023

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 15 de Setembro de 2022; Aceito: 13 de Julho de 2023

cleiton.vieira@ufrn.br

Francisco Cleiton Vieira (cleiton.vieira@ufrn.br) é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Santa Cruz, Rio Grande do Norte. Doutor e mestre em Antropologia Social pela UFRN, com estágio doutoral na Escola de Antropologia e Instituto para Estudos LGBT da Universidade do Arizona (UofA). Realiza pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de São Paulo (USP)

Contribuição de autoria: não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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