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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n395356 

Dossiê Corpo e Menstruação na Amazônia Indígena

A viagem de urutau: Como é a vagina por dentro?

Urutau’s Journey: How is the vagina inside?

El viaje de Urutau: ¿Cómo es la vagina por dentro?

1Universidade Federal do Rio Janeiro, Museu Nacional, Departamento de Antropologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 22940-040 - dep.antropologia@mn.ufrj.br


Resumo:

Uma akinha (narrativa) kuikuro faz a autora voltar a pensar e a escrever sobre sexos e sexualidades de mulheres (e homens) num canto do mundo ameríndio e no nosso mundo de kagaiha (não indígenas). A personagem da akinha é Ájahi, a ave-gente Urutau, que empreende uma viagem para saber como seria a vagina por dentro. É uma narrativa divertida e séria, ao mesmo tempo, que leva para complementaridades, desdobramentos e contrastes. Egü (vulva ou vagina) é outro personagem, vagina-pessoa, que atravessa o pensamento mitológico ameríndio em fragmentos e transformações. Vulva “boa para ser pensada”.

Palavras-chave: Kuikuro; Alto Xingu; sexos; gênero; vulva

Abstract:

A kuikuro akinha (narrative) makes the author think and write again about sexes and sexualities of women (and men) in a corner of the Amerindian world and in our kagaiha (non-indigenous) world. The character of the akinha is Ájahi, the Urutau bird-people, who undertakes a journey to find out what the vagina would be like from the inside. It is a fun and serious narrative, at the same time, that leads to complementarities, developments and contrasts. Egü (vulva or vagina) is another character, vagina-person, who crosses Amerindian mythological thought in fragments and transformations. Vulva "good to be thought of".

Keywords: Kuikuro; Upper Xingu; sexes; gender; vulva

Resumen:

Una akinha (narrativa) kuikuro hace que la autora vuelva a pensar y a escribir sobre sexos y sexualidades de mujeres (y hombres) en un rincón del mundo amerindio y en nuestro mundo kagaiha (no indígena). El personaje de la akinha es Ájahi, el pájaro-persona Urutau, que emprende un viaje para conocer cómo sería la vagina por dentro. Es una narrativa divertida y seria, al mismo tiempo, que conduce a complementariedades, desarrollos y contrastes. Egü (vulva o vagina) es otro personaje, vagina-persona, que atraviesa en fragmentos y transformaciones el pensamiento mitológico ameríndio. Vulva "buena para ser pensada".

Palabras-llave: Kuikuro; Alto Xingu; sexos; género; vulva

Caminhos, viagens

Feminismo não é uma palavra da minha convivência,

mas vou buscar essa equidade no mundo dos sonhos.

Elisa Ramos Pankararu (fala no Acampamento Terra Livre, abril 2021).

Senti-me compelida a deixar minha memória imagética percorrer pedaços dos caminhos que passaram pela Viagem de Urutau, uma akinha hesinhügü (‘história feia’) que me contaram na aldeia Ipatse, do povo kuikuro, mais de trinta anos atrás. Apresento, aos leitores, aqui, uma narrativa tradicional, contada por um homem, pertencente a um subgênero composto por histórias curtas que levam ao riso ao falar de sexo e desavenças obscenas entre afins. Na Viagem de Urutau, um chefe-ave-pessoa empreende uma investigação para responder à pergunta: como é a vagina por dentro? Assim, a vagina é pensada, nos seus mistérios. Trata-se, também, de um fragmento de uma mitologia ameríndia mais ampla, tecida pela e através da ave Urutau.

Emigrante voluntária de onda recente, minha chegada ao Brasil veio após uma militância feminista na Itália, que continuou no Brasil logo na segunda metade dos anos 70. Continuo, sou feminista, na travessia entre um velho e um novo mundo. Virei antropóloga linguista (ou linguista antropóloga) e a herança feminista foi comigo para o campo: Ipatse, a principal aldeia do povo kuikuro, no sudeste do então Parque indígena do Xingu - hoje, Terra Indígena do Xingu - no estado de Mato Grosso. Cerca de setecentos Kuikuro, distribuídos em várias aldeias ao longo do rio Culuene e entre este e o Rio Buriti (Mirassol), falam uma variedade da Língua Karib do Alto Xingu. Estou com os Kuikuro desde 1977.

Ouvi Ájahi akinhagü (‘a história de Ájahi’) no tempo que chamaria de ‘segundo capítulo’ da minha vida com os Kuikuro, numa sequência que sintetizo a seguir.

Primeiro capítulo (1977-1981): Sofrimento e primeiras aprendizagens

De um lado, eu era um ser andrógino, com a ambiguidade de uma quase assexuada (sozinha, sem marido, feia, cabelo branco, olhos de água). Do outro lado, eu era mulher com sangue (ainda menstruava ou menstruaria), cheiro perigoso, negativamente empoderada, se assim é possível dizer. Comparando com as mulheres da aldeia, gozava de alguma liberdade, mesmo se um tanto restrita, de comportamento e de movimento. Ainda, era kagaiha (uma ‘branca’ ou não indígena) sozinha no cotidiano da aldeia, solidão sem privacidade, a uma certa distância de mulheres e de homens. Algumas vezes me senti na beira do colapso emocional. Um dos meus pesadelos recorrentes era o de estar no topo de uma torre, um vendaval, frio, medo. Desejando contornar a vulnerabilidade da mulher menstruada - três dias cada mês apartada no meu canto da casa, uma pequena reclusão, poluidora de outros corpos, comidas, água -, meu corpo reagiu instintivamente e parei de menstruar, uma amenorreia que mobilizou a atenção, os comentários e as interpretações das mulheres kuikuro.

Segundo capítulo (1981-2000): Cura e outras aprendizagens

Fizeram-me cantar na festa Kuãbü, me expondo publicamente como “aquela que veio para espionar todos nós”. Todos riram às gargalhadas e o riso, como quase sempre, foi catártico, marcando uma virada. O tempo curou. Já conseguia me comunicar com as mulheres em sua língua kuikuro - finalmente elas se abriram e me abriram seu mundo. Trocávamos experiências em dois mundos, cúmplices em nossas semelhanças e diferenças, conversando muito sobre sexo e sexualidade, prazeres e dores, sedução, sangue, parto e trabalho. Conversávamos sobre os espaços de liberdade num universo paralelo feminino, delineando como que dois coletivos antagônicos e complementares, mulheres e homens. Conversávamos sobre as transformações dos corpos e meu próprio corpo se transformou. Repensei minha sexualidade, no momento em que estava sendo ressexualizada, mesmo sem atingir a condição de mulher plena. Tensão e dor diminuíram radicalmente. Foi neste momento que soube da viagem de Ájahi e da narrativa das Itaõ Kue᷉gü (‘Hiper-Mulheres’), que absorvi numa leitura feminista (FRANCHETTO, 1996): separados numa aventura ancestral, as mulheres se transformam em ‘Hiper-Seres’, enquanto os homens se transformam em ‘hiper-queixadas’.1 Aquelas Hiper-Mulheres - afinal monstruosas, perigosas - se foram para os confins do mundo, numa aldeia sem homens. Identifiquei-me, em modo quase selvagem, com as Hiper-Mulheres e as mulheres, cantando e dançando em suas festas. Por outro lado, não podia evitar a mediação dos homens, seu controle e sua perspectiva; por eles soube que a vagina é valiosa (tihipükoinhü)2 e querida, pensada, contada, cantada, vestida, pintada e esculpida. Chegou Ájahi.

Terceiro capítulo: o Agora

O terceiro capítulo do meu tempo kuikuro é o de agora. Sou hagü (‘velha’), inhalü leha uamatsotilüi (‘não menstruo mais’), inhalü leha ungugui (‘sem mais sangue’). Não me sinto mais tão constrangida por hüsu (‘vergonha, respeito’), posso atravessar mundos e espaços, posso falar alto o que quero (quase tudo), uma velha alforriada. Retomei a viagem de Ájahi, personagem masculino, contada por um homem, que faz rir mulheres e homens. Os personagens são: Ájahi (a ave urutau) e Egü (‘vagina, vulva’).

A viagem de Urutau

No dia 11 de setembro de 1981, na aldeia Ipatse, Jakalu pediu para que eu me sentasse ao lado de sua rede, expressando o desejo de me contar Ájahi akinhagü, a narrativa ou uma história de Ájahi.

Estavam presentes, no contexto da execução da narrativa: eu, pesquisadora-ouvinte, envolvida na documentação da língua kuikuro desde 1977 (até hoje), atenta ao registro de diversos gêneros de fala, entre os quais dominam narrativas, como dizem os próprios Kuikuro: tudo tem akinha, ‘tudo tem história’; Jakalu, akinha oto (um dos mestres reconhecidos da arte de narrar), filho de uma destacada liderança da época do estabelecimento do contato permanente com agentes do estado brasileiro (dos anos quarenta aos anos setenta do século passado).

O que é akinha?

A palavra kuikuro akinha contém a raiz aki, traduzível, com o amargo da aporia tradutiva, por ‘palavra/língua’. Designa um objeto verbal contendo qualquer acontecimento narrativo, do mais simples e informal ao mais estruturado e elaborado quando executado por um bom akinha oto (‘mestre de akinha’). O ato de executar uma akinha não resulta em um monólogo e não deve ser considerado de maneira isolada das relações que enunciadores e interlocutores trazem consigo no momento da narração (FRANCHETTO, 1986; 2003). Trata-se de um gênero onde conjuntos de blocos formulaicos são articulados em sequências e paralelismos pela arte do narrador.

As akinha se abrem, geralmente, chamando a atenção do ouvinte (itsakeha, ‘ouça!’) e deixando no fundo e nos interstícios outras akinha. O narrador escolhe o momento de dizer ‘fim’, marcado pela fórmula verbal upügüha igei (‘este é o último’).

A articulação entre as falas citadas e os eventos que as precedem e as seguem são cruciais para o caminho narrativo: narrar é também a arte de articular as vozes de diferentes personagens, num movimento progressivo entre espaços e falas, até levar a algum desfecho (sem moral).

A história de Urutau é uma akinha hesinhügü (‘história feia’ - literalmente, ‘o feio de história’), subgênero narrativo que contrasta com o de akinha hekugu (‘história verdadeira, das origens’) (FRANCHETTO, 1986, p. 302-320). São narrativas curtas, fragmentos míticos que relatam jogos picantes, aventuras sexuais, relações proibidas, incestos, afins ridicularizados, amantes. E o sexo feminino, literalmente, é objeto de toda uma série de pequenas narrativas contadas para o entretenimento masculino e repetidas em voz baixa pelas mulheres.3

A abertura de uma akinha hesinhügü se caracteriza por tentar o ouvinte com uma armadilha metalinguística, ou, melhor, metadiscursiva: se introduz uma narrativa ‘menor’, como se fosse uma narrativa hekugu, uma longa e respeitável narrativa mítica, um belo exemplo de ironia antinômica. Akinha hesinhügü faz rir; veremos o poder catártico do riso, capaz de resolver dilemas e tensões. A história de Ájahi acaba em risos, faz rir e ela começa, como esperado, por uma espécie de antiabertura, com o narrador anunciando que o que o ouvinte está para escutar é uma akinha hekugu, ‘história verdadeira’, uma tisihũgu akinhagüpe, ‘uma história que foi dos nossos antigos’. O narrador está afirmando o que parece estar sendo negado através de uma mentira, de um engano, típico jogo metalinguístico, expressão de uma filosofia nativa da linguagem assentada na saliência da não verdade ou, melhor, da incertitude.

A akinha de Ájahi: uma história de Urutau

É a história da viagem de Urutau, chefe de sua própria aldeia, à procura de resposta à pergunta que o atormentava: “Como seria a vagina? O que tem no seu interior?”.

Ájahi é o nome kuikuro da ave conhecida no Brasil como Urutau, Mãe-da-Lua, Ave Fantasma (Nyctibius griseus).

A velha e sábia Ájahi tem o mesmo nome: Urutau. Pedi a ela umas explicações ou definições sobre essa ave e eis o que ela me respondeu, em mensagem de voz por WhatsApp, em maio de 2022, transcrita e traduzida por Ashauá Kuikuro:

i gigüpuginhü kaenga soha isakanügü, isakãdohotsa hegei tügigüpuginhüi

é aquele que senta na árvore sem cabeça (árvore morta, sem folhas e cortada), é o lugar onde senta

isakanügü i gani geleha inhügü, inhalüha toloi ingilüi

quando senta, se torna igual à árvore e ninguém percebe que é ave

üle atehe tsüha o’o kuẽgü kilü “igepe nhokike etigikugu kẽigüi” titsigitoho ima

por isso que sua bisavó falou: “leve essa lenha para cozinhar kuigiku”. Foi no caminho da nossa roça

igia tüilü iheke, alu leha, áh “ajahi nika ekisei” nhũdita tiheke

Ela fez assim, e voou, ah! “aquele era Ajahi”, estávamos rindo

tõketila leha inhügü iheke ajahi heke leha akungakilü

então ela não rachou mais lenha, porque Ájahi a assustou

etelü solale leha

e foi embora

isakãdoho hegei tegigüpuginhüi, ajahi akãdoho

árvores sem ponta (árvores secas) são os lugares onde senta, é o lugar onde Ájahi senta

inhalüma i᷉konango kaenga isakanümi tegigüpuginhü kaengaha isakanügü

não senta em árvore normal, mas sempre em árvores sem ponta (secas)

isani geleha inhügü

isso é para ele ficar igual

Fonte: profjabiorritmo.blogspot.com. Acesso em 15/04/2023.

#PraTodoMundoVer + mimetismo da ave urutau + profjabiorritmo.blogspot.com +.

Figura 1 Urutau 

Ájahi, a minha interlocutora, mobilizou a observação do comportamento da ave, ressaltando a capacidade de se camuflar, tornando-se quase invisível no galho ou tronco de uma árvore seca, e um fragmento de suas lembranças familiares.

Navegando na internet, encontrei estas notas (JAQUELINE, 2018):

Pousado na ponta de um galho seco, fitando a lua e estremecendo a calada da noite, [o urutau] emite um canto bruxuleante, que mais parece um lamento humano. Tem uma cabeça chata, olhos grandes e muito vivos, a boca rasgada de tal forma que os seus ângulos alcançam a região posterior dos olhos. A sua cor parda em tons de canela com riscas transversais e escuras permite-lhe adaptar-se perfeitamente ao galho da árvore, passando completamente desapercebida. Este seu disfarce associado a uma perfeita imobilidade a protege dos seus predadores e lhe permite caçar as suas presas...

Boca rasgada, camuflagem que, ao mesmo tempo, o protege dos predadores e facilita a sua caça como predador.

Continua o mesmo texto a mencionar ‘crendices’ populares (JAQUELINE, 2018):

Em forma de “hu, hu, hu”, que se faz ouvir após o anoitecer, procura a solidão mais espessa... sua voz é semelhante ao clamoroso lamento de uma mulher que termina com amortecidos “ais”. O seu canto provoca, portanto, espanto e piedade aos que possam ouvi-lo e é também fantasmagórico. “Meu filho, foi, foi, foi” - interpreta o povo. A par da voz queixosa e plangente, uma quase invisibilidade confere-lhe o caráter de um ente misterioso. Muitos não a tomam por uma verdadeira ave, mas sim por um ser fantástico, inacessível à mão e aos olhos dos humanos. Já outros, porém, não duvidam de sua existência, mas consideram-no como um ente enigmático e superior, dotado de muitas qualidades fora das leis naturais, entre elas, o de preservar das seduções e a pureza das jovens moças.

Em suma, a akinha kuikuro de Urutau é vagamente tingida pela associação deste pássaro com a noite, a escuridão, a morte, mas também com a sedução que transpira das jovens reclusas após a menarca, em transformação de mulheres imaturas para mulheres maduras, onde o sangue menstrual é o operador ao mesmo tempo da desordem letal consequência de conjunções perigosas a serem evitadas (pelos homens) e de separações adequadas à ordem do mundo. O que interessa aos (homens) Kuikuro - em sua seríssima fabulação cosmo-mitológica - é o mistério úmido e escuro guardado e desvelado pela “boca rasgada” de Urutau, fragmento mitológico desgarrado de uma densa rede de experiências e sentidos que gravitam em torno desta ave, rede que se estende pelas Américas (e além delas).

Vamos ler-ouvir a história, narrada por Jakalu Kuikuro e gravada no dia 11 de setembro de 1981, na aldeia Ipatse, em versão escrita bilíngue, com transcrição ortográfica e tradução feita por Jamalui Kuikuro, revisadas pela autora e por Ashauá Kuikuro. As linhas indicam enunciados, unidades prosódicas de respiração.

Itsakeha Bruna, hekini hegei akinha, akinhaha hekugu akatsege hüle ungihanümi, ẽ, tisihü̃gu

akinhagüpe gele

Ouça, Bruna! Esta é uma história muito boa, vou contar uma história verdadeira. Sim, era uma

das histórias dos nossos antigos

Ájahi ingunkgingũdagü tüititaho, Ájahi ingunkgingũdagü tüititaho

Ájahi pensava deitado em sua rede, Ájahi pensava deitado em sua rede

kaküngingo tsügüha akagoi Ájahi

dizem que o pessoal de Ájahi era muito

tsũeiha, ajahi ingungingũdagü tüititaho

eram muitos, Ájahi estava pensando na sua rede

nügüha iheke, tühisuãdão hekeha, tikenemo heke leha ngapoha engapa itoto engapa itaõ

Ele falou para seus irmãos, talvez foi para suas irmãs mais novas ou talvez foi para os homens e as mulheres.

ái - nügüha iheke - ukita kutale ehekeni igei uingungingũdagü eingungingukoala ekuatsange

uingungingũdagü igei, kaküngi hekugu uingungingũdagü- nügüha iheke

Ai - ele falou -, eu estava pensando contrário às ideias de vocês (não sei se é uma boa ideia

para vocês), estou pensando muito sobre isso - ele falou.

Ajahi kilüha tühisũüdaõ heke

Ájahi disse para seus irmãos.

“uama?” ihisũüdaõ “Ũama egei eingunkgingu᷉ ̃dagü?”

Como? Os parentes disseram: “o que está pensando?”.

“Unguhungu nile egüi” Ájahi kilüha, tühisuãdaõ heke.

“Como seria a vagina?”. Ájahi falou para seus irmãos.

“Unguhungu nile egüi, unguhungu nile egü engikõdohogui, tüingukinhünikaha egüi” nügüha

iheke “tüingukinhünikaha egüi, tatamitalongo” nügüha iheke

“Como seria a vagina?” “Como seria a vagina? “O que tem no seu interior?” “Como seriam os

enfeites da vagina?” “Seriam como detalhes?” “Será que tem olhos?” “Será que se cruzam (cheio de

detalhes)?” Ele disse.

“Ẽ, ihunkgẽĩtsitapa tunga” nügü iheke “ingukeῖtsitapa tuã” nügüha iheke, “ingukeῖtsitaha tuã,

ngele ale hute”

“Pergunte para Água - disseram-lhe - pergunte para Água - disse ele. “Pergunte para Água,

ela que sabe muito bem”.

Ülepe leha telü leha tungainha leha.

Então, foi até Água.

Eti᷉belü leha tunga kaenga leha

Chegou à aldeia de Água.

“eῖde akatsege engüha kupisũügüko” nügü iheke, Ájahi hekeha tunga kilüha

“Nosso irmão chegou”, ele disse, Água disse falando de Ájahi.

“ãde atsange uge elegῖdiginiha - nügü iheke - “uama” nügü ihekeni “ẽ ãde atsange einhani

uge” nügü iheke “uhisũüdaõ ãde atsange uge einhani” nügü iheke

“Estou aqui para perguntar a vocês”, disse ele. “Como?” Eles disseram “é que eu vim para vocês.

Disse ele - “Meus irmãos, estou aqui para perguntar a vocês”, ele disse.

“Ũátima”

“Do que se trata?”

“Ẽ, unguhungu nile egüi”

“Como é a vagina?”

“Ẽ, ajá - nügü iheke - tinhingilü utsegei, ẽ, lalehüle gitse ingilü tiheke, ingilü tüpingoi ekugu

inhengikõdohogu ingilü tiheke. Atatijüko heke lehüle egei tisigelü leha kijῖdu ale hüle sata leha

hüle egei ahütü”

“Ah, achei que era uma coisa importante” - respondeu. “Isso nós vemos direto, nós enxergamos

direito, olhamos claramente todos os detalhes, quando elas nos usam para lavar dentro (da

vagina) e isso nos deixa confusos e nada! (não conseguimos enxergar mais profundamente)

“Kenhinkgugini ale, aῖsaῖsagüa leha, ukijῖdu aleha ahütü kenhinkgugini uge Ajahi” nügü iheke”

“kenhinkgugini” nügü iheke

“Não quero te enganar, porque ficamos confusos e enxergamos como se fosse olhando dentro

da neblina; Ájahi, não tem mais nada a explicar para você”, disse ela. “Eu não quero te enganar

inventando”, disse ela.

Hüge inha eteke, hüge inha, hüge ale gitse ingite, ẽ kuale hüge, hüge inha nipa eteke, üngele

ale hüle gitse ingite angoloi ale hüle isata tute.

“Vá para o Pênis, vá para Pênis, Pênis que olha de verdade, agora, sim, ele é quem olha de

verdade, vá para Pênis, é ele quem olha claramente já que entra dentro”.

“Ẽ, osi eitsüe” osiapa eteke

“Está bem, fiquem bem!” “Pode ir lá”.

Etelü leha hüge inha

Então ele foi para Pênis

Ülepe etῖbelü gehaleha hüge itukona, hügena gehale

Então ele chegou no lugar de Pênis, chegou para Hüge (flecha).

“Ajahi etsagü ei᷉de” nügüha

“Ájahi está aqui”, falaram.

“Uama eitsagü igei” nügü

“O que está fazendo aqui?”, falaram.

“Ãde atsuge elegῖdiginiha eügühütukoki”

“Estou aqui para fazer perguntas sobre sua maneira de ser.”

“Ũátima” nügü ihekeni

“Do que se trata?”, disseram.

ngikonga ekuleha nügüa leha egei ihangamita leha hüge heke leha

Pênis estava achando que era algo muito importante.

“Unguhungu nile egüi” nügü iheke

“Como é a vagina?” Disse ele.

“Engü ataiha anünkgo atehe imütonkgijü atehe ehekeni elegῖdigini tiha uetsagü” nügüha iheke,

Ajahi kilüha hüge heke

“É que vocês são aqueles que confrontam direto, por isso que vim perguntar e esclarecer”, disse

Ájahi disse para Pênis.

“Ajá” nügü iheke “uinha tale egei inkona ekitomí” nügü iheke.

“Ah tá”, disse ele. “Pensei que você me perguntaria outra coisa”, disse (Pênis).

La leha itigu, hüge itiguko telü leha

Eles riram, os Pênis deram risadas.

imütsoketinhü tuhugu beta hegei, angini hügiha, angini hügi hüle de! hekugui angini hügi taloki

ekugeleha, angini hügi itsaketühügüha la

Dizem que eram rostos (dos pênis) para fora, os pênis de alguns, mas o pênis de outro era até

bonito, normal, o pênis de outro não era nada e o de outro ainda era cortado.

“itsakeha Bruna!”

“Ouça, Bruna!”

“ẽ” nügü iheke “lalehüle gitse imütonkgijü tiheke, imütonkgijü hüge heke tsũẽi hekugu

“É”, disse. “Sim, enfrentamos/confrontamos (egü, ‘vagina’), pênis fica enfrentando (a vagina)

muito mesmo.”

ülealehüle, tüpingoi lale egü ingilü tiheke, tüpingoi ekugu

Mas, vendo com tranquilidade, de boa.

ülelalehüle egei tisungugu igete leha tisetingankgilü leha, tisetingankgilü

“O que nos deixa confusos é quando vomitamos, nós vomitamos”.

tisetingankgingalü leha ahütü kingukila bele egü ata leha tisetingankgipügü heke tisigengalü.

“Quando vomitamos, ficamos perdidos dentro da vagina, ficamos assim porque vomitamos.”

tisitügü itũdingalü leha, titsilohugu itũdingalü leha

“Ficamos com dor de cabeça, com dor no peito.”

kingukila leha titsengalü

“Ficamos sem entender.”

üle akegei atütüi tiha, tüpingoi hüle ihotugui imütonkginhalü tiheke

“Por isso que não pude explicar direito, antes (de vomitar) a enfrentamos tranquilos ainda.”

tsihetingankgilü ekugu leha hüle ihesui

“O problema é que vomitamos.”

tsihetingankgingalü leha (????) isinalü

“Sempre vomitamos e sempre saímos.”

“Kenhinkguginí ale uge” nügüha iheke Ájahi heke.

“Porque não quero mentir para você”, disse ele para Ájahi.

Atütüila kulalegitse imütünkgonkgijü, otongei hekugu leha gitse imütonkginhalü tiheke

“Não é bom brigar com ela (egü), é uma guerra quando brigamos com ela (egü).”

“Atsiginha eteke!”

“Vá para Mosquito”.

“Ẽhe, utetaiapa” nügü iheke

“Está bom, eu vou”, disse ele.

“Egetomi leta hegei, engü ale bege ege isata etelükopile egei uenhügü elegῖdigini” nügüha

iheke Ajahi heke.

“É para isso que eu vim, é porque vocês entram lá, por isso que vim perguntar para vocês”,

disse Ájahi.

Atangeha atsigi inha, etelüha atsigi inha gehale.

Lá foi para Mosquito, ele foi para Mosquito.

La tsetse atsange egei ihata uheke, inhama tügipehi uhunü uhunümi uheke, ijeginümingo hegei

uheke ago háῖdeneko inha

Estou contando mais ou menos, não sei direito, vou perguntar ainda para esses mais velhos.

itsake hegeha, atsigi inha “unguhungu nile egüi?” nügü iheke atsigi heke

Ouça! Foi para Mosquito. “Como é a vagina?”, perguntou para Mosquito.

“Ẽ, ingilü leta hüle gitse tiheke”

“Sim olhamos (sempre).”

aiha, ingilüla gitse tiheke. Ahütü...

“Sim, olhamos sim, mas...”

ῖke kuapa, ῖkekuapa gitse isaküngῖdu ekubeha, ahütü

“Veja que são muitos (os mosquitos), o problema é que são muito (ou somos muitos), nada!”

egü ingitohoila beleha kaküngi kuleha ingudepokongalüko “inhalüma ülegote ingilüi leha tiheke”

Isso atrapalha muito a visão deles para olhar a vagina, “assim não conseguimos olhar direito”.

inhalüma ingilüi leha tiheke

“Assim não olhamos direito.”

“i tuatinhü inha eteke” nügü iheke “i tuatinhü inha”

“Vá para Pau-Atravessado-No-Meio-Do-Caminho”, disse ele. “Vá para Pau-Atravessado-No-Meio-

Do-Caminho.”

Atangeha etelü i tuatinhü inha, etimbelü i tuatinhü inha gehale

Então foi até Pau-Atravessado-No-Meio-Do-Caminho, chegou na aldeia de Pau-Atravessado-

No-Meio-Do-Caminho.

Amatsüha kutegoho, tisimagü tsunite i alamakipügü ama ijatühonga

Quando caminhamos ao longo de um caminho, encontramos pedaços de madeira caídos

que atravessam o caminho.

Ĩkeapa, ülehungu uanügü ngikomuna titsegote hagitoi muke titselü, luki muke tüitaõki naha luki

titsengalü egei hagitoi muke, Aiha

Veja! Nós passamos por cima desses paus quando vamos para as grandes festas, com nossas

mulheres, vamos para a festa de ulukí, convidados com as nossas mulheres, é assim.

Üle hungu uanügü ale itaõ heke, bisu, atütüna beletsü igügüko inhügü ekugu, i heke leha

tütatinhü heke ingilü bisu, atütüna eku leha

Quando as mulheres passam por cima, suas vaginas se abrem e são bem visíveis. É por isso que

Pau-Atravessado-No-Meio-Do-Caminho pode vê-las, ele vê tudo o que precisa.

tatuhisi leha gitse ingilü

Eles olham (as vaginas) bem avermelhadas.

Aiha, nügü iheke

Então ele perguntou:

Uama eitsa igei? nügü iheke

“O que você está fazendo aqui?”, disse ele.

“Ẽ, ande akatsange einha uetsagü eügühütuki uakihatomi eheke? nügü iheke i tuatinhü heke

“Eu vim para que me contem sobre sua maneira de ser”, disse ele para Pau-Atravessado-No-

Meio-Do-Caminho

“E” nügü iheke “álati”, ingilü leta gitse tiheke, ingilü leta gitse tiheke.

“Sim”, disse ele, “sim, claro, olhamos sempre, sim, olhamos”.

Osi ápa hõhõ ãdakaῖtse, ãdakaῖtse”

“Abra a boca por favor, abra a boca.”

Ülepei Ájahi tü᷉dakaῖsi, ῖdzakaῖ̃jüha egei

Ájahi abriu a boca e quando abriu a boca.

Fonte: Arte de Tilaia Iohana Pereira da Silva (outubro 2022)

Figura 2 A boca aberta de Urutau 

“Ingitüete hoho” nügüha iheke I tuatinhü kilüha tühisũüdão heke

“Olhem!”, disse Pau-Atravessado-No-Meio-Do-Caminho para

seus irmãos.

“angí igehungu egüi?” nügüha iheke

“A vagina é assim, não é?”, disse ele.

ẽ unatsüma engukatagü

Sim, é bem parecido como embaixo do frênulo da sua língua.

“üe ehegei”

“Sim, é certamente como isto.”

Inhalüma atsange atütüikuti uhunümi uheke

Não sei direito completamente.

“Üle atsange atütüi”, engü hegei tatute tiha egü engikohõdohogu

ihata hegei iheke

“Por isso que não estou explicando direito”, isso porque está

explicando sobre a vagina cada detalhe.

“Ige hungu tiki egei”

“É mesmo, é assim.”

“Ige hungu tsale egei, engukatagü ãdagü hungu” nügüha iheke

“É desse tipo, parecido com embaixo do frênulo da sua língua,

parecido com a sua boca”, disse ele.

I᷉komunde kungapale ãde hüle uhupekuginhi hüle, atütü kulale

ingini

Deve ser, tem alguém que sabe bem, que olha direito/bem.

kenhinkguginí ale uge. Üle atehe gele egei taloki gele sepejekita gele uheke.

“Não quero te enganar, por isso que estou tentando contar para você (mesmo sabendo um

pouco, não muito da história, o máximo que consigo lembrar).”

Üle tsügütse egei, upügüha egei.

Eis as últimas palavras, acabou.

Aqui deixo uns breves comentários em torno da história de Ájahi.

A pergunta que não deixa Urutau dormir descreve, de alguma maneira, o que se espera encontrar no interior de uma egü, ‘vagina’; Urutau quer detalhes concretos obtidos por testemunhos diretos, diríamos nós, evidências empíricas de primeira mão:

Unguhungu nile egüi, unguhungu nile egü engikõdohogui, tüingukinhünikaha egüi nügüha iheke tüingukinhünikaha egüi, tatamitalongo nügüha iheke - Como seria a vagina? Como seria a vagina? O que tem no seu interior? Como seriam os enfeites da vagina? Seriam como detalhes? Será que tem olhos? Será que se cruzam (cheio de detalhes)? ele disse.

Egü deve ter seus engikõdohogu, ‘enfeites, adornos’, deve ter olhos, detalhes... Sugere-se que egü é também pessoa, ente socializado ou domesticado, cujo ügühütu (‘maneira de ser’) já é revelado pela sua representação como vagina vestida pelo ulurí, necessariamente (FRANCHETTO, 1996).4

Urutau parte para encontrar respostas e passa pelas aldeias de Água (Tunga), Pênis (Hüge), Mosquito (Atsigi), Pau-caído-no-meio-do-caminho (i tuatinhü): quem consegue ver de fato para contar como é o interior de egü? Em cada aldeia, Urutau chefe (anetü) é recebido formalmente por chefes.

Ninguém tem a resposta esperada por Urutau, apesar de cada chefe fornecer algum detalhe do ügühütu de egü - lavada, penetrada, fechada, aberta. É o chefe Pênis, todavia, que mais discorre sobre a razão pela qual não vê e não tem uma resposta, apesar de ele ser quem ‘entra’ e poderia, em princípio, ver tudo: hüge é tanto ‘flecha’ como ‘pênis’.

Hilárias são a pincelada sobre a diversidade de pessoas-pênis e, mais ainda, a descrição do ügühütu de Pênis, ou seja, a penetração em fotogramas...: “nós encaramos/enfrentamos (imütünkgonkgijü) egü (egü e hüge são adversários, imütongo); é uma guerra (otonge); entramos; vomitamos (ejaculação); ficamos tontos, desmaiamos; nada enxergamos”. Se Pênis se retrai mole e confuso de egü, esta também nada consegue ver nessa flechada peniana da duração de um raio.

Ajahi akinhagü faz rir, mas o riso é coisa séria... o desfecho é surpreendente e não revela os mistérios escondidos no interior de egü. Será que Urutau, definitivamente ludibriado, aceitará a não resposta? O interior de egü continua um mistério.

Conexões

Jogo a pedra Ajahi akinhagü no lago das mitológicas kuikuro (primeira onda, conexões internas) e ameríndias (segunda onda, conexões externas).

Conexões internas: a vagina cantada, esculpida e o riso

A história de Ájahi me leva para outra akinha (hekugu): I᷉be opogipügü - o aparecimento do pequi. É o mito da origem da árvore e dos frutos do pequi,5 narrativa contada por Nahu, pai de Jakalu, também em 1981 (Bruna FRANCHETTO, 1986).6

Assim aconteceu.

As mulheres de Agagati mantêm relações sexuais com Sakangatü, o ‘Hiper-Jacaré’, ora um ser sobrenatural, ora em forma de gente. A traição é denunciada por Akugi (Cutia). Agagati se vinga matando Sakangatü. As mulheres se revoltam, choram e enterram o amante. Da genitália do ‘Hiper-Jacaré’ nasce o ‘Hiper-Pequi’ e a mangaba. As esposas de Agagati se recusam a fornecer comida e bebida ao esposo e o expulsam de casa. Taũgi (o demiurgo enganador) é chamado para ‘pensar’ e chega para resolver dois dilemas e reconduzir as coisas à sua existência ordinária: transforma o ‘Hiper-Pequi’ em pequi adequado e amansa as esposas de Agagati. As mulheres continuam “sentindo a falta” de seu amante: só o riso poderá fazer com que aceitem a morte de um prazer mortal e voltem ao seu lugar no mundo humano dos homens. Taũgi pinta Agagati para prepará-lo a uma dança e a um canto que “zombarão” das mulheres; na testa, desenha uma vagina.7

Instruído por Taũgi, Agagati dança do kuakutu (a ‘casa dos homens’ no centro da aldeia) até a sua casa, dominada pelas mulheres, erguendo uma vagina aberta, esculpida em cera, e cantando:

ingike ingike - veja! veja!

eigügü hutoho - a imagem de sua vagina

ihekini hutoho - imagem gostosa

atütü hutoho - imagem bonita

uinha tiha tunkge - dê para mim

atütü tunkge uinha - dê bonita para mim

ihekini hutoho - dê gostosa para mim

ingike ingike - veja! veja!

eigügü hutoho - a imagem de sua vagina

atütü hutoho - imagem bonita

gudji-dzok

Magika sai do kuakutu dançando e cantando esses versos, provocando as mulheres que o rejeitaram e suscitando seu riso catártico. A imagem da vagina redonda: é palavra, é desenho pintado na testa de Magika, é a imagem de cera que ele traz na ponta de um pedaço de pau. Gudji dzok é ideofone que aviva o som da flecha-pênis penetrando na maciez pastosa, ideofone para o caminho da flecha-pênis que é, do ponto de vista masculino, a penetração.

A mesma cena do mito é revivida num dos cantos-danças da festa Ahugagü, associada ao pequi e ao ‘Hiper-Beijaflor’, seu poderoso mestre. Os homens dançam ao encontro das mulheres erguendo vaginas esculpidas e cantando como fez Agagati. As mulheres riem e reagem atacando em escaramuças de sabor sexual.

Fonte: Fotografia de Gélsama Mara Santos (2007)

Figura 3 A vagina esculpida 

Egü hutoho é esculpido em cera de abelha, mostra os grandes e os pequenos lábios e seu interior vermelho; o triângulo invertido no topo é o ulurí, são suas asas com as quais as vaginas voam por aí... pessoas-vagina ou vagina-pessoas... precisam ser capturadas, domesticadas, para que suas ‘portadoras’ não deixem de serem alimentadoras de todos, dos homens.

Conexões externas: pelo Alto Xingu e pelas Américas

Lendo a excelente etnografia escrita por Antônio Roberto Guerreiro Júnior (2015), encontrei reverberações significativas no mito da origem do ritual egitsü (kuarup) ou do aparecimento de Tau᷉gi (Tau᷉gi otsogitsügü). Os Kalapalo são vizinhos dos Kuikuro e falantes de outra variedade da Língua Karib do Alto Xingu. Trata-se de uma longa narrativa, a mais citada e comentada, em suas diversas variantes alto xinguanas. É o Mito 5, Cena 2, na etnografia de Guerreiro (GUERREIRO JÚNIOR, 2015, p. 196-205). Assim aconteceu, em uma síntese do mito.

O ancestral Kuatüngü encontra Enitsue᷉gü (chefe onça) enquanto caçava. Para não ser devorado, oferece uma das suas filhas em casamento. Kuatüngü resolve enganar Enitsue᷉gü: fabrica mulheres de madeira, com a ajuda de seus irmãos.

“Quando os corpos das mulheres mais lindas do mundo ficaram prontos, estes incluíam o ulurí, e chegou o momento de elas se tornarem mulheres plenas, comendo peixe pela primeira vez como faz uma jovem ao final do jejum parcial...”.

As mulheres partem para alcançar a aldeia de Enitsue᷉gü. Em seu caminho, encontram vários ‘animais’ (hiper-seres) que lhes oferecem comida em troca de sexo. Todas elas usavam um bambu enfiado na vagina para guardar os espermas. No final só restam as duas mulheres esculpidas na madeira ue᷉gühi. O último ser é a ave Egü Ngamanetühügü [‘enfraquecido pela vagina’]. Sangitsegü, a mais velha e mais linda das mulheres de ue᷉gühi, foi fazer sexo com ele, mas sem o bambu, com sua vagina de verdade. Egü Ngamanetühügü encontrou uma vagina de verdade, ejaculou muito rápido e intensamente; imediatamente Sangitsegü o empurrou e ele saiu voando, meio tremendo, ficando assim até hoje.

Em seu caminho para a aldeia de Enitsue᷉gü, as filhas do ancestral Kuatüngü enganam os seres que desejam o sexo delas, menos Sangitsegü, cuja vagina desprotegida é penetrada pela ave Egü Ngamanetühügü, que “vomita” e levanta voo tremendo. Ela é a única que consegue chegar até o destino. A maciez dessas vaginas ancestrais, vestidas pelo ulurí, enfraquecem ‘hiper-seres’ e homens, como continua acontecendo.

Voando pela Amazônia, Yurutahy - boca (yura), escancarada, destendida (tahy), em Nheengatu - aparece em Poranduba amazonense, ou kochiyma-uara porandub (João BARBOSA RODRIGUES, 1890, p. 151-152), como personagem de canções em nheengatu (Yurutahy Nheengareçara, Jurutahy cantiga):8 “Esse fissirostro, os indígenas o têm como protector da virtude das mulheres...”. E eis fragmentos desgarrados da viagem de Urutau: a boca escancarada da ave, Pau-Caído-No-Meio-Do-Caminho olhando vaginas entre as pernas femininas, o riso.

Contam que Yurutahy estava vendo uma mulher passar por grosso páo. Depois o Yurutahy perguntou ao páo: - de que forma era o que vistes entre as pernas da mulher? = Eu vi a forma e o tamanho da tua bocca.

- Uá! uá!...Uá! uá... (BARBOSA RODRIGUES, 1890, p. 152, na tradução de versão nheengatu do Rio Branco).

N’uma noite de luar, havia um páo cahido no caminho e passando um Yurutahy perguntou ao páo: - Oh! meu cunhado! Quem passou por cima de ti? = quem foi? Uma mulher com uma bocca grande como a tua.

O Yurutahy gostou e riu-se para ele.

- Uá! uá!...Uá! uá... (BARBOSA RODRIGUES, 1890, p. 152, na tradução de versão nheengatu do Amazonas).

Em A Oleira Ciumenta, Claude Lévi-Strauss (1985) dedica um inteiro capítulo ao Engole-ventos, ou mãe-da-Lua, Urutau, batendo asas pelas mitológicas ameríndias, como as vaginas aladas kuikuro (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 50-51):

O fato de os Engole-ventos estarem particularmente bem representados no Novo Mundo talvez explique o lugar privilegiado que ocupam nas crenças indígenas... Chamados no Brasil de Mãe-de-Lua, Manda-Lua ou Chora-Lua (consta que os Engole-ventos cantam mais nas noites de lua), esses pássaros recebem, na América tropical e subtropical, nomes indígenas em geral de origem tupi ou guarani, que variam de acordo com a região, o gênero ou a espécie: urutau ou jurutau, traduzido ora como “pássaro fantasma”, ora como “boca grande”, ibijau, “come-terra”; bacurau, curiango, etc. Os Tukuna acreditam que as almas dos mortos voltem sob a forma de Engole-ventos, para chupar o sangue, a carne, os ossos dos vivos, dos quais só deixam a pele... Na Guiana, os Arawak acreditam que os Engole-ventos sejam as aves familiares dos espíritos dos mortos.

Para os Tikuna, quando os homens não conheciam o fogo, ele estava escondido na boca de Urutau. Só uma velha sabia deste segredo. Perguntaram a ela como conseguia cozinhar e ela respondeu: “no sol”. Engole-ventos achou graça da mentira, explodiu literalmente numa gargalhada, deixando sair as chamas de sua boca, que foi rasgada à força. Em mitos da Guiana sobre a origem do fogo de cozinha, este pertence exclusivamente a uma velha, que o guarda na vagina (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 61). Lévi-Strauss não deixa de mencionar que “os índios costumam comparar a boca grande do Engole-vento a uma vulva” (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 61).

Enfim, os mitos associam o Engole-ventos e o ciúme conjugal [e não conjugal]. Mais precisamente, esta ave está na primeira fila de mitos cujo tema é a separação ou o afastamento dos sexos (LÉVI-STRAUSS, 1985, p. 58).

Bocão escandaloso, Urutau tece conexões entre noite, mortos, fogo, vulvas, risos, ciúmes, sexos separados, desunião de cônjuges e amantes. O fogo na boca de Engole-ventos nos lembra que a vagina ‘queima’ (enquanto o pênis apenas ‘fura’), como dizem os Kuikuro. A vagina também separa, enfraquece, retém (como no bambu das mulheres de madeira no mito kalapalo, o oposto do vômito da ejaculação).

Uma conclusão?

O leitor, como todo kagaiha, esperaria uma conclusão deste breve ensaio, de fato, em aberto. Fiel ao meu aprendizado na aldeia, declaro aqui o fim da minha akinha, deixando os personagens de Urutau e de Egü sem moral, somente para contemplar nossas vulvas ‘pensadas’, perigosas e tihipükoinhü (‘valiosas’). Afinal, as saliências do nosso corpo, que nos pertence, não escapam da predação socializadora (masculina), se depreendem e são depreendidas, para esvoaçar, como aves-fantasmas, em pensamentos que cortam tempos e espaços.

Upügüha igei - ‘este é último’.

Referências

BARBOSA RODRIGUES, João. Poranduba Amazonense, ou kochiyma-uara porandub. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1890. Disponível em Disponível em http://biblio.etnolinguistica.org/rodrigues_1890_poranduba . Acesso em 04/08/2023. [ Links ]

FRANCHETTO, Bruna. “L’autre du même: parallélisme et grammaire dans l’art verbal des récits Kuikuro (caribe du Haut Xingu, Brésil)”. Ameríndia, n. 28, p. 213-248, 2003. [ Links ]

FRANCHETTO, Bruna. “Mulheres entre os Kuikúro”. Revista Estudos Feministas, INFCS/UFRJ, n. 1, p. 35-54, 1996. [ Links ]

FRANCHETTO, Bruna. Falar Kuikúro. Estudo etnolinguístico de um grupo karíbe do Alto Xingu. 1986. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) - Departamento de Antropologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 1986. [ Links ]

GUERREIRO JÚNIOR, Antônio Roberto. Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chefia Kalapalo e seu ritual mortuário. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015. [ Links ]

JAQUELINE. “Lenda: Urutau - Mãe-da-Lua”. Blog Armazém do Texto, 2018. Disponível em Disponível em https://armazemdetexto.blogspot.com/ . Acesso em 01/01/2023. [ Links ]

KUIKURO, Ájahi. “Definição de Urutau”. WhatsApp: mensagem individual, 10/05/2022. 10:45. 1 mensagem de WhatsApp. [ Links ]

LÉVI-STRAUSS, Claude. A Oleira Ciumenta. São Paulo: Brasilense, 1985. [ Links ]

1As Hiper-Mulheres deram o título ao filme “As hiper mulheres (Itão Kuegü)”, direção de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro. 2011, 80’.

2Tihipükoinhü, ‘o que tem muito ihipügü’, um valor inerente e medida de troca e de prestações. A tradução como ‘pagamento’ é péssima. Egü ihipügü, o valor (nesse sentido) da vagina, seu alto ‘preço’: para ter acesso a ela, o homem deve ‘pagar’ com bens valiosos (nas trocas entre amantes), com trabalho contínuo anos a fio, a vida inteira (pelo genro para seus sogros). Nenhuma mulher ‘dá’ de graça, a menos que seja violentada.

3Trata-se de um gênero alto-xinguano, não exclusivamente kuikuro.

4O ulurí (etungi, -i᷉gü en kuikuro) é um pequeno triângulo de entrecasca que cobre a fenda da vulva, segurado por cordéis de buriti, que circundam e passam entre as nádegas. Ao mesmo tempo, protege e esconde a entrada fechada da vagina, realçando seu valor e marcando a sexualidade madura e a fertilidade. O ulurí é visto como sendo parte integrante da genitália feminina.

5Caryocar brasiliense.

6A akinha I᷉be opogipügü - o aparecimento do pequi - está em Franchetto (1986; Volume II, p. 355-357, e Volume III, p. 20-62). É tema do filme Imbe Gikegü - Cheiro de Pequi, de direção de Takumã e Maricá Kuikuro, 36', 2006.

7Há toda uma série de associações entre o pequi e a sexualidade feminina.

8Agradeço a Gustavo de Godoy e Silva pela indicação desta citação.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: FRANCHETTO Bruna. “A viagem de urutau: Como é a vagina por dentro?”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e95356, 2023.

Financiamento: CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Bolsista PQ Sênior)

Consentimento de uso de imagem: Ver documentos “Autorização para uso de imagem”, da autora do desenho Figura 3, Tilaia Iohana da Silva Pereira, e da autora da foto Figura 4, Gélsama Mara Ferreira dos Santos

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 07 de Julho de 2023; Revisado: 12 de Julho de 2023; Aceito: 13 de Julho de 2023

bfranchetto@yahoo.com.br

Bruna Franchetto (bfranchetto@yahoo.com.br) é Professora Titular do Departamento de Antropologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com Doutorado concluído em 1986 pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ), seus interesses de pesquisa incluem: documentação e descrição de línguas indígenas, tradução, artes verbo-musicais indígenas, gênese e impacto da escrita e gênero. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8621640564395100

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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