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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n395197 

Dossiê Corpo e Menstruação na Amazônia Indígena

Sangue feminino: Quando as mulheres Karipuna encontram com a lua

Female blood: When Karipuna Women Meet the Moon

Sangre femenina: cuando las mujeres Karipuna se encuentran con la luna

Ana Manoela Primo dos Santos Soares1 
http://orcid.org/0000-0003-2143-1945

1Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil. 66075-110 - ppgsa@ufpa.br


Resumo:

No artigo, trato sobre como a menstruação é vivenciada entre as mulheres indígenas Karipuna. A menstruação, para as Karipuna, tem a ver com a ruptura da infância para a vida adulta; com a formação saudável do corpo feminino; com o aperfeiçoamento de sua generificação; com o início da sexualidade; com os casamentos; com a gravidez; com os cuidados com a limpeza do território e as relações cosmopolíticas com os karuãnas “donos dos lugares”. A partir deste estudo, busco compreender: “Como a menstruação está na cosmologia Karipuna?”; “Quais são as suas características e significados?”; “Quais são as transformações históricas que ocorreram com relação a ela?”. Inserem-se nestes debates, também, os relatos da própria autora para com o seu djispoze ou lalin (menstruação) e suas inter-relações entre o modo de menstruar Karipuna e o modo menstruar das não indígenas.

Palavras-chave: Karipuna do Amapá; menstruação; menarca; mulheres indígenas; gênero

Abstract:

The research deals with how menstruation is experienced among Karipuna indigenous women. Menstruation for the Karipuna has to do with the break from childhood to adulthood; with the healthy formation of the female body and the improvement of its gender; with the onset of sexuality; with weddings; with pregnancy; with care for cleaning the territory and cosmopolitical relations with the karuãnas “owners of places”. From this study I seek to understand, how is menstruation in Karipuna cosmology? What are their characteristics and meanings? What are the historical transformations that occurred in relation to it? As part of these debates, the author's own reports on her djispoze or lalin (menstruation) and her interrelations between the Karipuna way of menstruating and the non-indigenous way of menstruating are also included.

Keywords: Karipuna do Amapá; menstruation; menarche; indigenous women; gender

Resumen:

La investigación aborda cómo se vive la menstruación entre las mujeres indígenas Karipuna. La menstruación para los Karipuna tiene que ver con la ruptura de la niñez a la adultez; con la sana formación del cuerpo femenino y la mejora de su género; con el inicio de la sexualidad; con bodas; con embarazo; con el cuidado de la limpieza del territorio y las relaciones cosmopolíticas con los karuãnas “dueños de lugares”. A partir de este estudio busco comprender, ¿cómo es la menstruación en la cosmología Karipuna? ¿Cuáles son sus características y significados? ¿Cuáles son las transformaciones históricas que se produjeron en relación con ella? Como parte de estos debates, también se incluyen los relatos de la propia autora sobre su djispoze o lalin (menstruación) y sus interrelaciones entre la forma Karipuna de menstruar y la forma no indígena de menstruar.

Palabras clave: Karipuna do Amapá; menstruación; menarquia; mujeres indígenas; género

Introdução ao djispoze ou a lalin

Esta pesquisa trata sobre como a menstruação, a qual chamarei ora djispoze, ora lalin,1 é vivenciada por mulheres Karipuna, a partir de oralidades, relatos, diálogos e escritos produzidos pelas próprias parentas e articulados a um referencial teórico da antropologia, em que articulo a etnologia indígena ao gênero. Refiro-me às Karipuna como parentas, pois também sou originária deste povo e os relatos sobre como percebo meu próprio djispoze também se farão presentes ao longo do artigo. Porém, meus relatos estarão a partir de uma posição bastante específica, que é a de ser uma mulher Karipuna que não está residindo dentro do território de seu povo, a aldeia Santa Isabel, na Terra Indígena Uaçá, em Oiapoque, estado do Amapá, região amazônica e de fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. Tal aldeia foi fundada por meus avós maternos, onde nasceram e cresceram minha mãe, tias, tios, primas e primos. Território onde as mulheres de minha família tiveram suas primeiras vivências e ensinamentos sobre lalin. Sendo eu uma mulher Karipuna que vivencia a territorialidade dos cuidados para com a menstruação em um grande centro urbano, que é Belém (capital do estado do Pará, também na região amazônica, localizada a 696 km de Oiapoque), estar e crescer em um outro território que não o da aldeia me impactou diretamente para com relação ao djispoze. Por estar distante geograficamente do território de meu povo, acabei vivenciando, desde a menarca, de modo frequente, modos de menstruar que estão fortemente relacionados aos modos como as mulheres não indígenas menstruam. Logo, também vivo outras sociabilidades ligadas às causas e consequências de como estas outras mulheres vivem a própria menstruação. Constituem assim, em meu caso, inter-relações ou relações interétnicas nos modos de menstruar, por viver tanto a cosmologia Karipuna, quanto as sociabilidades das não indígenas para com o sangue menstrual. Mulheres Karipuna que frequentam de maneira mais assídua as cidades também vivenciam estas mesmas inter-relações a partir de suas próprias trajetórias de vida.

De acordo com a cosmologia Karipuna, a menstruação geralmente é relacionada à transição de menina para mulher (tx ifam para fam), também sendo relacionada às sociabilidades com os encantados karuãnas, as dietas, os cuidados e as evitações. Os karuãnas são caracterizados por serem pessoas que vivem no Outro Mundo ou no Mundo Invisível e que apenas os pajés conseguem ver e se comunicar. Karuãnas podem provocar doenças e até matar; outros gostam de ter filhos com as mulheres visíveis. Os karuãnas, ou “bichos do mundo invisível”, são grandes médicos, doutores, cientistas que, durante o turé, são convidados pelo pajé para participar da festa, tomar muito caxixi e fumar os grandes cigarros de tawari (Ugo Maia ANDRADE, 2009, p. 19-51). Tais relações foram abordadas pela autora deste artigo em pesquisa anterior (Ana Manoela PRIMO DOS SANTOS SOARES, 2019). Retomarei algumas destas, novamente, para relacionar tais assuntos com outras informações, trazendo novos debates sobre o djispoze, buscando traçar novos caminhos em torno das pesquisas que desenvolvo sobre a menstruação. No entanto, quais poderiam ser estes novos caminhos?

Enquanto revisitava minhas anotações sobre o que poderia abordar relacionado ao djispoze, percebi alguns pontos fundamentais que não havia visitado anteriormente ou que não havia expandido as discussões de maneira mais adequada. Uma vez que fui ampliando meus conhecimentos como mulher Karipuna sobre a menstruação, ao longo dos últimos anos, um dos primeiros debates trata de ampliar as discussões em torno das relações cosmopolíticas com os karuãnas em torno de lalin. As reclusões que as mulheres Karipuna praticam ao não irem às roças, aos rios, igarapés, furos d’água, matas, entre outros lugares, quando menstruadas, nada mais são que acordos entre o povo Karipuna e os karuãnas. Tais acordos são ensinados às mulheres ao longo das gerações pelas pessoas mais velhas, principalmente pelas mães, avós, tias, primas, as e os pajés. Estes acordos, como iremos discutir no texto, estão relacionados aos cuidados com o corpo e a saúde da mulher, com o cuidado com o território e com os cuidados e respeito para com os próprios karuãnas.

Outro ponto que não desenvolvi foi relacionar o que escrevia às bibliografias de indígenas pesquisadoras, em Oiapoque, que também debatessem o djispoze. As versões Karipuna e Galibi Kalinã sobre a menstruação, realizadas, respectivamente, pelas pesquisadoras Bruna Santos Almeida (2022) e Claudia Renata Lod Moraes (2018), são relevantes na bibliografia da região. No artigo que precede este (PRIMO DOS SANTOS SOARES, 2019), não havia dialogado com Lod Moraes (2018). Na época, ainda não conhecia sua pesquisa, que foi desenvolvida no mesmo período em que realizei Trabalho de Conclusão de Curso (PRIMO DOS SANTOS SOARES, 2018). Porém, na monografia que desenvolvi, existia apenas um capítulo que tratava sobre o djispoze. Enquanto a pesquisa de Lod Moraes, que também foi seu Trabalho de Conclusão de Curso, tratava integralmente dos rituais Galibi Kalinã para com a menarca e menstruações posteriores. Não citei Almeida (2022) anteriormente, por ela ter realizado publicação sobre a menstruação Karipuna há pouco tempo. Além disso, sua pesquisa é voltada para oralidade das mulheres Karipuna, mas ela também cita informações relevantes sobre o djispoze, em trechos de seu artigo. A partir disso, compreendo que as oralidades das mulheres de meu povo perpassam, em suas conversas e histórias, pelos cuidados que devemos tomar com o sangue menstrual.

Ambas as pesquisas das parentas (LOD MORAES, 2018; ALMEIDA, 2022) fortalecem os debates sobre gênero e menstruação na Amazônia indígena, em especial entre as mulheres de Oiapoque, onde há muitos conhecimentos para com o djispoze, mas ainda poucas publicações. Atento-me mais à bibliografia de Almeida neste artigo, pois é ela quem trata da menstruação nas Karipuna.

Quando trato da literatura de gênero sobre as mulheres indígenas de Oiapoque (PRIMO DOS SANTOS SOARES, 2022), afirmo que a maioria das pesquisas são desenvolvidas por mulheres e, em sua maioria, mulheres indígenas da própria região. Nesse sentido, remeto-me à Nelly Dollis (2017), do povo Marubo, quando, em dissertação, afirma que as mulheres indígenas são as protagonistas de suas próprias histórias. A partir disso, penso que ninguém melhor do que elas para pesquisarem sobre si mesmas. Da mesma forma ocorre com a menstruação, já que as pesquisas sobre o tema, em Oiapoque, são, em sua maioria, desenvolvidas pelas próprias indígenas pesquisadoras da região.

A partir do debate sobre o djispoze, compreendo que existem diversas formas de menstruar e que são inter-relacionadas por relações que podem envolver gênero, sexualidades, cosmologias, relações étnico-raciais, socioeconômicas, entre outras, nas quais se inserem as pessoas que menstruam. Neste artigo, estão em debate com a antropologia, especificamente, os modos de menstruar das mulheres Karipuna. O que pretendo com a pesquisa é compreender: como a menstruação está na cosmologia Karipuna? Quais são as suas características e significados? Quais são as transformações históricas que ocorreram com relação a ela? Inserindo-se nestes debates, também os relatos da própria autora para com o seu djispoze ou lalin e suas inter-relações entre o modo de menstruar Karipuna e o modo menstruar das não indígenas. Isso por meio da constituição de um estudo de encontro com a lua (lalin), pois lua e menstruação são uma só.

Sangue feminino: Veneno e perfume para os karuãnas

Quando tinha onze anos, comecei a menstruar. Morava na periferia da cidade de Belém, no estado do Pará, em uma casa em que dividia o quarto e o único banheiro com meus pais. Quando tive a menarca, minha mãe passou a me recomendar cuidado ao trocar de roupa ou a usar o banheiro, para não deixar nenhum pingo de sangue menstrual cair em algum lugar. Caso meu pai pisasse no sangue, ele teria dificuldades para arranjar emprego, pois, na época, trabalhava como autônomo e dependia do chamado de outras pessoas para prestar serviços.

De tanto minha mãe repetir este cuidado para mim durante as menstruações sequentes, fui compreendendo que o sangue menstrual deixaria meu pai “empanemado”, expressão da região amazônica e norte do país utilizada tanto entre comunidades indígenas, quanto entre comunidades ribeirinhas, que significa dizer que ele teria azar em seus serviços. Um indígena Karipuna “empanemado” pelo sangue menstrual em Oiapoque não consegue caçar, nem obter sucesso na pesca, já um homem “empanemado” na cidade não teria sucesso em seus serviços.

Minha mãe não se preocupou em me explicar que, a partir da menarca, pela cosmologia Karipuna, eu já estava me tornando uma mulher adulta, apta a ter uma vida sexual ativa, formar família e gerar filhos. Nem me explicou sobre os cuidados de não tomar banho no rio ou entrar na mata quando menstruada, para não sujar as casas dos karuãnas e nem engravidar ou adoecer por causa dos bichos. Estes foram ensinamentos sobre o cuidado com o corpo, com o território e os karuãnas, que fui adquirindo em outros momentos de minha vida, por minha própria mãe e outras mulheres de minha família materna. Na menarca, ela se preocupou somente com a “panema” que atinge os homens e com os modos como eu deveria me limpar e usar os absorventes descartáveis. Os cuidados relacionados aos karuãnas, naquele momento, pareciam não caber a mim por morar em Belém, cabendo apenas às meninas e mulheres que residiam na aldeia.

Depois de descobrir que a menstruação era como um perfume ou um veneno que poderia atrair ou deixar os karuãnas apaixonados ou com raiva, um de meus medos tornou-se o de ficar menstruada na aldeia. Porém, por coincidência, isto nunca aconteceu. Eu ficava menstruada sempre antes de ir para o território de minha família, embora, com muito receio, já tenha passado menstruada por dentro de algumas aldeias indígenas de Oiapoque que ficam ao longo da BR-156.

A panema, a repulsa e atração aparecem em literaturas que tratam sobre a menstruação na região amazônica, como, por exemplo, em Raquel Paiva Dias-Scopel (2015), quando apresenta que as mulheres Munduruku pareciam ansiosas para saberem quando ela menstruaria na aldeia. Era necessário que a antropóloga, tal como as indígenas, também cumprisse os resguardos da menstruação, não indo ao rio e banhando-se dentro de casa, para evitar que os bichos a deixassem doente ou a engravidassem. Este é um relato que confirma que, para este povo, os bichos não se atraem ou repudiam somente o sangue menstrual das mulheres Munduruku, mas também se sentem atraídos e repudiam o sangue menstrual de outras mulheres não indígenas que estejam no território, sendo o boto o encantado que mais se atraí pelo cheiro da menstruação das Munduruku.

Em Camila Caux (2018), em pesquisa sobre a menstruação que desenvolveu com as Araweté, o bicho que mais se sente atraído é a cobra, especificamente a Sucuri, o que explica a forte relação existente entre as cobras e a lua para com a menstruação, neste povo. Algo que também é existente entre as Karipuna, pois, entre elas, quem se sente mais atraído ou repudia o cheiro do sangue menstrual são as cobras karuãnas. Em nossas histórias, geralmente é um karuãna cobra quem encanta a mulher Karipuna que foi ao rio menstruada, a sequestrando para morar junto dele e a transformando em bicho. Enquanto, nas oralidades das mulheres mais velhas de meu povo, estas dizem que o ciclo da menstruação sempre se adequará aos ciclos da lua. Por isso, o djispoze também poderia ser chamado de lalin, pois, por se adequarem, se assemelham. Falar de karuãnas cobra e da lua é recorrente nos assuntos sobre a menstruação Karipuna.

Ocorrem, nos relatos de Dias-Scopel (2015), os casos de mulheres que engravidaram de bichos. Entre as Karipuna também é comum as mulheres engravidarem dos bichos karuãnas, ou porque foram encantadas por eles ou porque, ao invés delas, foram seus namorados ou maridos quem foram encantados pelos bichos. Estes homens, ao manterem relações sexuais com suas companheiras, as engravidam e elas têm com eles os filhos que seriam dos bichos. Mas ter filho de bicho na aldeia não tem relação direta com o fato de existirem mães solteiras em meu povo. Já fui questionada por mulheres não indígenas e acadêmicas se ter filho de bicho não ocultaria ou suavizaria relatos de violências de gênero e sexuais que indígenas Karipuna poderiam estar sofrendo dentro ou fora dos territórios.

Em meu povo, ter filho de bicho ocorre, normalmente, dentro de uma relação de casamento monogâmica e em que as práticas sexuais são consensuais. Sendo considerados filhos de bichos apenas crianças que nascem com “algum problema de saúde” ou que nascem gêmeas ou que, aos poucos, vão desenvolvendo o dom para ser pajé. Filhas e filhos de mães solteiras, que não se encaixem nas características mencionadas, não são considerados filhas e filhos de bichos, mas de pai humano. Além disso, meu povo não utiliza sua cosmologia para justificar atos de violência contra as mulheres.

Eu sou filha de bichos, pois minha mãe é gêmea. Os gêmeos são os karuãnas hoho, que deixaram de existir no mundo invisível para existirem no mundo visível, que é o mundo em que vivem os Karipuna. Minha mãe me conta que nasceu gêmea porque os hohos encantaram seu pai, meu avô materno, quando este estava caçando. Encantar e panemar, em alguns contextos, pode ser a mesma coisa ou significar questões distintas. Enquanto minha tia materna, irmã mais nova de minha mãe, conta que minha avó não deixava os filhos gêmeos brincarem em cavernas. Segundo ela, vovó acreditava que os hohos que habitavam nas cavernas levariam os filhos de volta para o mundo invisível. De fato, em nossa cosmologia, os karuãnas sentem saudade das filhas e filhos de bichos que estão entre os humanos, pois, antes de virem para o mundo visível, eles existiam como karuãnas no mundo invisível.

Minha mãe relata que, em sua adolescência na aldeia Santa Isabel, não tomava banho no rio durante a menstruação, para seu djispoze não sujar a casa dos karuãnas, e tomava banho dentro de casa com água que era trazida por outros familiares em um balde. Tal como também acontecia entre as Munduruku (DIAS-SCOPEL, 2015). Após a menstruação passar, voltavam a tomar banho no rio. Quando jovem, na aldeia, minha mãe não tinha acesso a absorventes, como mais tarde passou a ter, quando se mudou para a cidade. Ela e outras mulheres da aldeia usavam pedaços de pano para conter a menstruação, e tal pedaço de pano não deveria ser lavado no rio, mas, sim, distante dele. Relata que uma vez em que brincava com um dos irmãos na frente de casa na beira do rio, escorregou sem querer dentro da água. O irmão percebeu que ela estava menstruada e caçoou dela, a advertindo sobre ter caído no rio estando de lua. Ela ficou com medo que outra pessoa descobrisse ou que algum karuãna lhe fizesse mal. Mas, de acordo com ela, nada ocorreu e o irmão guardou segredo sobre o ocorrido. Hoje em dia, ela conta esta história a mim e a demais pessoas indígenas ou não indígenas.

Já relatei, em publicação anterior (PRIMO DOS SANTOS SOARES, 2019), que minha avó materna quase não teve a mesma sorte que minha mãe. Ela tomou banho menstruada em um local onde a água crescia, formando um alagado. Não sabia que esta era a casa de um karuãna. Depois do ocorrido, os bichos quiseram lhe fazer mal, mas um pajé, em suas comunicações com os karuãnas, descobriu o que tinha acontecido. Saiu de sua aldeia, que ficava distante da aldeia Santa Isabel, para lhe orientar a não fazer mais aquilo, pois ela tinha sujado a casa de um karuãna e, por causa disso, os bichos queriam lhe fazer mal. Mas ele não deixou.2 É esta umas das principais missões das e dos pajés, intermediar as relações entre as pessoas e os karuãnas, pois somente estas e estes têm o dom para o contato direto entre os dois mundos.

Cabe retomar a informação de que até mesmo as antropólogas não indígenas devem tomar os mesmos - ou quase os mesmos - cuidados que as indígenas para com a menstruação, quando dentro dos territórios. Desde que iniciei a formação em antropologia, outras colegas antropólogas me explicavam que as mulheres indígenas de Oiapoque diziam que elas também deveriam ter cuidados com o próprio djispoze ao estarem nas aldeias, como, por exemplo: Não se banhando no rio, não entrando nas matas e não participando de rituais, neste último caso, não sendo autorizadas pelo pajé, para que não fossem encantadas pelos karuãnas. Uma das pesquisadoras que conversou comigo me relatou que o que percebia de mais forte na cosmologia Karipuna eram os cuidados com a menstruação. Para ela, eles pareciam ainda acontecer da mesma forma como no passado, no tempo dos antigos (modo que o povo Karipuna utiliza para se referir a um passado mais distante), ou melhor, das antigas, já que tratamos de um assunto pertinente às mulheres. Pouco tempo antes dela me relatar isto, uma de minhas tias maternas me contou que uma das coisas mais fortes que ainda existiam entre as mulheres Karipuna eram os cuidados com a menstruação. Concordo, particularmente, tanto com a perspectiva da parenta indígena, quanto da antropóloga para com a lalin. Ambas têm a mesma consideração para com a menstruação. Mesmo na cidade, o que aparece de mais forte para a cosmologia são os cuidados com o djispoze.

Em conversa com uma parenta de minha idade sobre menstruação em Oiapoque, esta me contou que, assim como no passado, até hoje, devemos respeitar os karuãnas, não entrando na água menstruadas, para não sujar a casa dos bichos. Contou também o caso de uma amiga que entrou menstruada na água e que, depois disso, passou a ter sonhos com as pessoas do outro mundo (karuãnas). A amiga da parenta com quem conversei foi procurar o pajé, que lhe explicou que aquilo acontecia porque ela não havia respeitado o espaço dos karuãnas. Afirmou a parenta para mim que, quando menstruadas, estamos mais suscetíveis a sonhar com os encantados.

Outro ensinamento que a parenta com quem dialoguei me passou foi que devo cuidar de minha menstruação não somente quando estiver em Oiapoque, mas também quando estiver em outros territórios da Amazônia, pois, para além de Oiapoque, também existem encantados karuãnas em outras regiões. Nisto me recordei da vez em que passei mal por viajar menstruada de barco por regiões paraenses, ficando curada apenas depois de tomar um chá feito por uma de minhas tias. Além disso, minha mãe me ensina que não é por estarmos na cidade que não existem encantados nela. Podemos, inclusive, estar residindo sobre a casa de um encantado e não sabermos. Minha amiga também me aconselhou que, quando menstruada, devemos ter cuidado até com os objetos que usamos, caso esses tenham relações com os karuãnas. Depois de tal conversa evito utilizar, quando menstruada, um colar que representa a cobra karuãna Aramari, pois considero que seria desrespeitoso para com a karuãna eu utilizar um colar que é a própria cobra, enquanto estou de djispoze.

Conversar com a parenta também me fez relembrar o relato de uma moça Karipuna que contou que sempre pegava água em um poço dentro da aldeia em que reside, até que um dia viu dentro do poço uma cobra. Em outros dias que retornou, para novamente pegar água, viu a cobra novamente. Então, contou para familiares que toda vez via o bicho no poço, mas os parentes afirmavam para ela que não existia nenhuma cobra morando dentro dele e que não conseguiam enxergá-la. Ao recorrer ao pajé, este contou que a cobra que morava no poço era um karuãna que queria encantar a moça para ir morar com ele no mundo invisível. A moça não relatou para mim se estava menstruada ou não quando ia ao poço, mas era provável que estivesse, pois são as mulheres menstruadas quem os karuãnas querem encantar.

Corpo feminino e território se inter-relacionam

A categoria cosmológica Karipuna de karuãna se articula a uma outra, que é “a de dono do lugar”. Se tenho uma casa e resido nesta, compreende-se que sou “a dona da casa”. Da mesma forma ocorre com os bichos karuãnas. Contei que eles moram em rios, lagos, igarapés, poços, cavernas e matas. Isto significa que eles são “os donos destes lugares”. Compreendo que os territórios onde habita o povo Karipuna são territórios em que os donos são os karuãnas e devemos respeitar os donos da casa, para que não se zanguem conosco. A indígena Karipuna Bruna Almeida conceituou o significado de os “donos dos lugares” da seguinte forma, em articulação com as mulheres menstruadas:

Os donos dos lugares são os seres invisíveis que, de acordo com Tassinari (2003), “[...] cuidam dos lugares onde habitam deixando-os sempre limpos, e podem causar doenças naqueles que os poluem, mediante o cheiro forte do peixe (pitiu) e de sangue menstrual”. Durante minha pesquisa de campo, ouvi vários relatos de seres que não gostam de barulho, de mulheres que vão menstruadas aos rios ou igarapés e sonham com esses seres, entre outras histórias (ALMEIDA, 2022, p. 109-110).

Almeida (2022, p. 109-110) ainda acrescenta que o respeito para com os karuãna deve ser levado a sério nas várias ocasiões pelas crianças, jovens e adultos:

O respeito com o “dono do lugar” tem que ser levado a sério para que não ocorram fatalidades. É importante ter respeito com as coisas da natureza, é importante repassar essas histórias para os/as filhos/as e netos/as porque as crianças de hoje não têm a vivência de antigamente: chegam ao rio, fazem barulho. Às vezes, as adolescentes vão no período menstrual e tudo isso os sobrenaturais não gostam. E é importante repassar esses ensinamentos de respeito sobre os lugares habitados pelos karuãnas (ALMEIDA, 2022, p. 109-110).

Ao ler Almeida (2022), é nítido que não é apenas a menstruação que incomoda os karuãnas. Tanto que o povo Karipuna, ao fazer a festa do turé, ritual em que os karuãnas dançam e bebem caxiri com os humanos, recomenda que as pessoas devem se abster de comer peixe durante três dias antes do ritual, para não incomodarem os convidados karuãnas que acham o cheiro de peixe morto enjoativo. Além de que mulheres menstruadas somente participam após serem defumadas pelo pajé, sendo proibido brigar e namorar durante o turé, pois isto também incomoda os karuãnas e é sinal de desrespeito (ANDRADE, 2009).

Quando chegamos na casa dos karuãnas, ao entrar no rio ou na mata, não devemos bagunçar, nem gritar. Devemos, outrossim, pedir licença para o dono do lugar, tal como faríamos ao sermos visitas na casa de outras pessoas. Almeida também remete ao fato de mulheres que vão aos rios menstruadas e sonham com os karuãnas durante as noites seguintes, sendo assombradas por eles, conforme ocorreu no relato da parenta com quem conversei. Os sonhos e a menstruação nos levam ao contato com o mundo invisível. Já tive sonhos em que os karuãnas se manifestaram, mas não recordo se, em tal época, estava menstruada, lembro apenas que foram em períodos em que estava em Belém.

Saindo um pouco das discussões sobre os donos dos lugares, e voltando aos debates sobre como os cuidados com o djispoze permanecem importantes para as novas gerações com relação a meninas indígenas que estão próximas de terem a menarca ou que a tiveram recentemente, lembrei outro caso. Uma parenta contou a mim que queria conversar com a filha sobre os cuidados que ela deveria ter quando menstruasse pela primeira vez. No entanto, o marido, também indígena, sempre convencia a esposa de adiar a conversa com a filha. Para ele, a menina ainda era muito criança para tais assuntos. Na época, associei estas informações ao fato de que a menina talvez não soubesse identificar o que era o djispoze, o que eram as cólicas, como utilizar os absorventes e que menstruar não era motivo para ficar envergonhada. Porém, mais tarde, percebi que a conversa era sobre o que tinha imaginado, mas que também era sobre respeitar a casa dos karuãnas.

Enquanto isso, houve o caso sobre uma parenta de minha família que teve a menarca recentemente e que mora apenas com o pai, um homem não indígena. Minha mãe expressou uma forte preocupação que também tomou conta de mim. Questionamos a menina sobre seu djispoze e ela não conhecia os cuidados para com lalin, nem ao menos identificar quando sua menstruação viria, não compreendendo o próprio ciclo do corpo, que é como o tempo da lua. Além de que, se mora apenas com pessoas não indígenas, é difícil manter ativos os costumes do povo.

Entre as Karipuna, a menstruação é bastante ligada à limpeza e ao cuidado do território e, consequentemente, ao cuidado com os karuãnas, mas também é corporeidade, e está associada ao modo como cuidamos, como criamos e como percebemos o corpo feminino. Entrar menstruada na casa dos bichos é negligenciar a própria saúde, pois o risco de adoecer é alto. Na cosmologia Karipuna, o corpo das mulheres e o território se inter-relacionam de diversas formas, principalmente através da menstruação.

A antropóloga Braulina Aurora (2018, p. 168-169), do povo Baniwa, conta, em artigo, características sobre a menstruação entre as mulheres de seu povo, algumas destas que identifico como semelhantes às características da menstruação entre as mulheres Karipuna. Entre as Baniwa, a menstruação também é tida como um veneno, tanto para os homens, quanto para os seres espirituais. Além de que, entre as Baniwa, o cuidado com a menstruação também está associado à saúde do corpo das mulheres. No entanto, seria a menstruação, tal como é tida na cosmologia Karipuna, uma forma de violência contra as mulheres de meu povo? Elas não podem frequentar os rios e as matas porque sua menstruação é considerada impura e pode sujar os bichos e empanemar os homens? Discutirei isto no final da seção a seguir, mas adianto, desde já, que a resposta é: Não! Os cuidados com o corpo, o território e os seres invisíveis a partir da menstruação não são violências com as mulheres.

Os cuidados com o sangue menstrual não são formas de machismo ou violências

Outro assunto relacionado à lalin que retomo é o princípio da vida adulta e o início de uma vida sexual ativa. Se a menina Karipuna tem a menarca, é porque não é mais menina e está se tornando mulher, estando apta a casar e a gerar filhas e filhos. Porém, o sangue menstrual também é algo que permite que se tenha filhas ou filhos com bichos, sem que se mantenha relações sexuais com os karuãnas, pois engravidam através de encantamentos que estes jogam nas mulheres, tendo filhos que nascem com doenças, ou são gêmeos ou com o dom para a pajelança, como já foi relatado. Minha mãe narra para mim que, até a geração de minha avó materna, acreditava-se que a primeira menstruação significava que a menina já havia tido intercurso sexual, pois seriam os primeiros atos sexuais que desencadeariam a menarca. A menstruação relacionada às primeiras relações sexuais é algo que aparece na pesquisa da antropóloga Cecilia McCallum (1999, p. 167), em que, entre as Kaxinawa e as Xavantes, acreditava-se que a menina poderia ser induzida a menstruar através do sexo. A antropóloga Vanessa Lea (1999, p. 188), por sua vez, em pesquisa com as mulheres Mebengôkre, afirma que, entre elas, a menarca também seria concebida como consequência das relações sexuais, mas que as mulheres deste povo, após a primeira menstruação, passavam a tomar chás para evitarem as menstruações posteriores e as tais infusões também funcionariam como uma forma de controle da natalidade. Hoje, desde a geração de minha mãe, sabe-se, entre as Karipuna, que a menstruação não significa que a menina já mantenha uma vida sexual ativa.

Por poderem casar a partir do momento em que ocorre a menarca, é natural que meninas, consideradas adolescentes aos olhos dos brancos, já estejam casadas e tendo os seus primeiros bebês. Mas algo que também ocorre, em gerações mais recentes de mulheres Karipuna, é não se casarem e nem terem filhos tão jovens, por priorizarem a conclusão dos estudos e/ou trabalho, para depois constituírem família. Este último caso é no qual me encaixo, pois priorizei primeiro concluir a universidade.

Esta mudança demonstra uma nova ou outra sociabilidade com relação a quando casar e quando constituir família, a partir da menstruação. Sobre os casamentos no povo Karipuna, estes podem ser duradouros ou não. As uniões de casamento são monogâmicas, embora já tenham existido uniões poligâmicas que eram bem aceitas no passado, no caso de lideranças; e podem ser entre membros do próprio povo, de mesma aldeia ou aldeias distintas, ou casamentos interétnicos.

No caso das relações interétnicas, elas podem ocorrer com casamentos que são entre pessoas de povos indígenas distintos ou entre Karipuna com pessoas que são não indígenas. Em meu povo, não há registros de rituais que tratem sobre os casamentos, sendo considerado que um casal contraiu matrimônio quando ambos passam a residir juntos na mesma casa como uma família. É também comum que casais, constituídos por pessoas Karipuna, casem-se no civil para formalizar a união perante o Estado, mas pouco comum que se casem no religioso, como, por exemplo, na igreja católica ou em igrejas evangélicas - que são as religiões que predominam entre os povos indígenas de Oiapoque.

Certa vez, comentei com uma mulher não indígena, com quem desenvolvia um projeto, que, em meu povo, o sangue menstrual empanemava os homens e poderia sujar a casa dos bichos karuãnas. Acrescentei, na conversa com ela, que a menarca significava o princípio da vida adulta e que as mulheres já poderiam se casar. A partir destas informações, minha colega externou uma forte preocupação, contando a mim que, na idade em que ocorre a menarca, as Karipuna deveriam estar na escola e não formando família. Além de que, tal colega considerou que perceber o sangue menstrual como panema ou veneno seria uma prática machista e violenta para com as indígenas de meu povo. Anteriormente, uma outra pesquisadora não indígena já havia afirmado o mesmo para mim. Não concordo com ambas, pois, para a cosmologia Karipuna e para as mulheres, os cuidados com o sangue menstrual não são formas de machismo ou violências contra as mulheres indígenas de nosso povo. Pelo contrário, as atitudes das indígenas Karipuna são as de considerar que os cuidados que temos para com a menstruação são práticas de cuidado com a saúde do corpo e com a preservação dos territórios. As atitudes são também vinculadas às práticas de boas relações com os karuãnas e a importância de “levá-los a sério”.

Como explica o antropólogo Roy Wagner (2017), “todos observamos a partir dos pontos de vista da cultura à qual pertencemos”. Sobre a educadora que conversou comigo expressar que as meninas indígenas se casam muito cedo quando deveriam priorizar os estudos e outras vivencias da adolescência, a primeira questão a se considerar é que a categoria de adolescência não é acionada dentro das comunidades Karipuna. Embora algumas vezes aconteça de se acionar a categoria de jovem, para determinar pessoas que não são crianças e nem adultos com idade mais avançada. Ainda pensando o modo como minha colega de pesquisa se posicionou, me utilizo também do que escrevem Valéria Paye Pereira Kaxuyana e Suzy Silva (2008, p. 39), quando falam que as indígenas mulheres costumam compartilhar, a partir de suas comunidades originárias, a visão do papel que essas comunidades reservam às próprias mulheres.

O que estou tentando articular com isto é que minha colega percebia a menstruação, a fase da adolescência e o casamento a partir da perspectiva de sua própria cultura não indígena. Além de que, seu discurso estava envolto por perspectivas feministas próprias de sua formação acadêmica. Enquanto eu e outras pessoas Karipuna percebemos a menstruação e os casamentos em nosso povo não a partir de uma perspectiva feminista, mas a partir da visão que a própria cosmologia Karipuna produz sobre o que são a menstruação e os casamentos.

Eu compreendi o posicionamento de minha colega, que não tratou o costume de maneira mal-intencionada, mas, em certa medida, zelosa e preocupada com as possíveis violências de gênero que as meninas indígenas poderiam sofrer. Porém, ambas estamos envoltas por organizações socioculturais e cosmológicas distintas. O que é violência de gênero para ela, pode não ser para as Karipuna e vice-versa (PRIMO DOS SANTOS SOARES, 2021). No Documento Final da I Marcha das Mulheres Indígenas (2019), estas defenderam não fechar os olhos para as violências que ocorrem contra as mulheres dentro das aldeias, defendendo problematizar as formas de organizações contemporâneas existentes em seus povos para fortalecer a potência e a memória das mulheres indígenas. De acordo com Barbara Arisi (2012, p. 60), “a violência maior sempre parece estar naquela vivência que não nos é familiar”. Casar e poder ter uma vida sexual ativa a partir da menarca não era uma vivência comum para minha amiga, mas uma violência a partir de sua cultura.

Bruna Franchetto (1996, p. 54) nos chama a atenção para o fato de que devemos estar atentos a como experiências pessoais e coletivas estão vinculadas a contextos sociais e culturais historicamente específicos. Para esta antropóloga, o feminismo sensibilizaria as pessoas a compreenderem determinadas práticas como violências universais, o que poderia descontextualizar os simbolismos e as representações de outras culturas no que concerne às mulheres. Em entrevista que a antropóloga Luisa Belaunde concedeu para as estudantes de antropologia Graziela Dainise e Lauriene Seraguza (DAINISE; SERAGUZA; BELAUNDE, 2016, p. 303-305), estas dialogaram que as antropólogas não indígenas, muitas vezes, chegam ao campo com uma ideia fixa do que é ser mulher, reproduzindo este papel, tal como no caso de minha colega. O próprio campo passa a desconstruir este pensamento, pois os processos do povo com quem se pesquisa são outros. Para Dainise et al., ser mulher é um processo de construção de posicionamentos.

O encontro com a lua/lalin

Minha mãe tem o costume de quase todas as noites admirar a lua. Sem saber que escrevia este artigo, em uma das noites, ela me pediu para lhe fazer companhia. A lua estava cheia, muito maior e mais brilhante. Então me explicou que aquela lua me daria força. Logo, interpretei que ela me daria força para escrever esta pesquisa, pois tratar da menstruação é tratar simultaneamente da lua. A lua não é um karuãna, mas, de alguma forma, é um ser importante na cosmologia do povo Karipuna.

Minha mãe continuou sua fala, explicando que a lua é mulher, porque está relacionada à menstruação, e que o sol é homem, por ser o seu oposto. Questionei-lhe se, entre as Karipuna, a lua e sol eram irmãos ou amantes, por conhecer narrativas indígenas de outros povos em que estes o são. Ela contou que não conhecia nenhuma história de nosso povo que tratasse do sol e da lua, nem que estes seriam parentes ou amantes. Mas, ainda assim, que as pessoas em nosso povo contam que estes são um casal por serem de gêneros complementares na cosmologia.

Estar de lua é estar menstruada. Lalin é lua e, ao mesmo tempo, menstruação em kheuol. Embora menstruação também tenha uma palavra própria: djispoze. Minha avó materna, quando estava menstruada, sempre dizia para minha mãe, na língua Karipuna: estou de lua. Grande parte do que sei sobre a menstruação entre as mulheres de nosso povo vem desta avó. O que minha mãe e minhas tias me narram sobre o djispoze diz respeito ao que vivenciaram na aldeia, a partir dos ensinamentos maternos. Compõe-se, assim, entre nós, uma linhagem de conhecimentos femininos sobre a menstruação e que são repassados por gerações entre as mulheres de uma mesma família.

Encontrei-me com a lua diversas vezes para escrever este artigo, seja para admirá-la no céu noturno ou pelos ciclos menstruais que vivenciei enquanto escrevia e lia para a pesquisa, ou por retomar os conhecimentos sobre lalin que aqui estão. Logo, encontrar com a lua no título deste texto tem o sentido de me encontrar com a própria menstruação e de me encontrar com um estudo que trata sobre ela.

Considerações finais

Os cuidados com a menstruação entre as Karipuna permanecem os mesmos que no tempo das antigas. Quando trato do tempo das antigas, me refiro, especificamente, à época de minha mãe, tias e avó materna, pois são elas as referências mais velhas que tenho com relação à lalin. Minha avó já faleceu e minha mãe e tias maternas são senhoras idosas, em comparação com os relatos de mulheres que têm idade mais próxima à minha e que me transmitem as mesmas características sobre a menstruação que estas mais velhas. Mas, se, por vezes, ocorrer de as jovens ignorarem os ensinamentos das antigas e quebrarem as reclusões que a menstruação exige, os karuãnas serão os primeiros que as lembrarão no tocante à que devem respeitar as casas dos bichos.

Menstruação tem a ver com o corpo e com o território. É o cuidado com este fluído, pelas mulheres, que fará com que tenham saúde, bebês saudáveis, e que os karuãnas permaneçam com a casa limpa, protegendo o território em que também habitam os Karipuna. Os karuãnas são como guardas que podem nos proteger do mal e que, quando suas casas são sujas pela menstruação, o mais comum é que, com raiva, se afastem delas e mudem de lugar, nos deixando sem proteção. Mas a menstruação também é importante para que nasçam futuros pajés.

A menstruação, em específico, também tem a ver com a ruptura da infância para uma vida adulta; com a formação saudável do corpo feminino e o aperfeiçoamento de sua generificação; com o início da sexualidade; com os casamentos e com a gravidez, seja de bichos ou não. A relação entre a menstruação e os karuãnas também me leva à compreensão de que meu sangue de mulher Karipuna não é tão distinto do sangue menstrual de uma mulher não indígena.

Os karuãnas também podem ter nojo e se excitar por este outro sangue de mulher, o que demonstra que estes bichos possuem sexualidades, se apaixonam, têm o desejo de formar família, sentem raiva e se vingam. Ou seja, têm sentimentos, quereres, subjetividades e personalidades. Em resumo, têm agência, tal como os humanos. Afinal, como as antropólogas que já realizaram pesquisas em Oiapoque explicam (Lux VIDAL, 2007; Antonella TASSINARI, 2003), no mundo dos karuãnas, eles são gente, assim como o são os povos indígenas de Oiapoque. Porém, nós os percebemos como bichos e eles igualmente não nos percebem como seres humanos, mas sim como animais, geralmente, macacos ou porcos do mato.

Os karuãnas também possuem gênero, pois, nas narrativas, sempre se fala, por exemplo, em cobra fêmea ou cobra macho para diferenciar os karuãnas que seriam homens de karuãnas que seriam mulheres (VIDAL, 2007). Até mesmo a lua é generificada, sendo importante considerar que as karuãnas mulheres não menstruam; isto é algo específico das fêmeas da espécie humana que habitam o mundo visível.

Os karuãnas terão boa relação com as mulheres menstruadas, desde que estas cumpram os resguardos que mantêm o território limpo do sangue menstrual. Esta sociabilidade é tecida entre a espécie humana e as espécies dos karuãnas. Demonstra-se, assim, como os pajés, demais pessoas do povo Karipuna, aqui, as mulheres, também possuem acordos com os seres invisíveis. Respeitar a casa dos bichos e cuidar do corpo durante a menstruação são regras e fatos sociais da sociologia de um povo indígena. Reforço que isto não é interpretado como violência de gênero por estas mulheres. Além de que, as mulheres Karipuna mantêm seus protagonismos, que são incentivados pelo próprio povo, em vários contextos da vida social, dentro e fora das comunidades.

As mulheres Karipuna realizam assembleias apenas de mulheres e em conjunto com as indígenas Galibi Marworno, Galibi Kalinã e Palikur desde a década de 1980. As mulheres dos povos mencionados possuem sua associação, que é a Associação de Mulheres Indígenas em Mutirão (AMIM), formalizada em 2006 (Ariana SANTOS; Tadeu MACHADO, 2019). Também existe prestígio perante suas comunidades, ao ingressarem e concluírem cursos de nível superior nas universidades, tornando-se funcionárias públicas em serviços que colaborem com os povos indígenas. Assumem, portanto posições como parlamentares, cacicas, vice-cacicas, conselheiras, diretoras de associação, pajés, entre outras.

A menstruação não abre margem para violências de gênero, mas abre margens para os cuidados com o corpo feminino, para a criação de pessoas, para a sustentabilidade do território e as relações cosmopolíticas entre espécies e mundos.

A menstruação é uma categoria instável, pois ela não aparecerá da mesma forma nos diversos contextos socioculturais e, mesmo em único povo, os costumes relacionados a ela não necessariamente se manterão estáticos, mas se modificarão com o passar dos anos. Os costumes Karipuna para com o djispoze atravessam o passado e permanecem no presente. As mulheres e os karuãnas vão reatualizando os costumes referentes à lalin.

Ao estar na cidade, não obtive os conhecimentos sobre lalin no mesmo ritmo que outras mulheres de minha geração residentes nas aldeias. Percebo estas diferenças com relação ao tempo e modos de aquisição de conhecimentos sobre a menstruação entre outras jovens de meu povo que também foram criadas nas cidades. Entre minhas amigas não indígenas, no entanto, observo que a menstruação é bastante associada à dor no útero, aos inchaços, aos incômodos, aos receios de engravidar, à utilização de absorventes e calcinhas menstruais, coletores e medicações. Há, entre elas, muitas conversas em torno do quanto é ruim menstruar e de que, se pudessem, não teriam a menstruação. Sendo eu participante de tais conversas, concordo com algumas considerações e discordo de outras. Os demarcadores do menstruar em meu povo são, pois, diferentes dos das não indígenas. Tornar-me mulher na inter-relação de duas maneiras distintas de vivenciar a menstruação é, por vezes, vivenciar mais uma do que outra. Mas, mais do que isto, é costurar as convivências entre ambas. Encontrando-me com a lua de duas maneiras diferentes ao longo da vida, duas maneiras que se misturam.

Referências

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1Pois são os modos como a menstruação é nomeada em kheuol, língua falada pelo povo Karipuna.

2Consta, nesta nota, o relato de minha tia materna sobre minha avó ter tomado banho menstruada em um local onde a água crescia, sem saber que era a casa de um karuãna: “Tem uma história que eu conto da minha mãe, né? A minha mãe morava na aldeia Santa Isabel e é meia hora de viagem pra aldeia Manga. Aí um dia ela disse ‘Ah, mas não tem ninguém aqui então eu vou tomar banho menstruada, vou tomar banho aqui’. Não era rio, mas a água crescia, era um portinho. Ela disse: ‘Acho que não vai fazer mal nenhum’. Aí ela tomou banho. Aí morava um pajé acima do Manga numa aldeia bem no Japim, bem longe, subindo cachoeiras. Aí no outro dia de manhã ele chegou e conversou assim com ela: ‘Nunca mais faça isso! Porque você tá sujando a casa dos bichos e eles não te fizeram nada porque eu não deixei. Então não faça mais isso!’. E ela nunca mais fez. Ele veio avisar para que não acontecesse nada. Então é isso, a gente, as mulheres têm, pois como que ele soube que ela tava menstruada? Como que ele soube que ela tava naquele local? Então, é nesse sentido. Então, o pajé, ele vê, ele conversa com esses seres do Outro Mundo e eles fazem com que não aconteça o mal para aquelas pessoas” (Estela dos Santos Oliveira Karipuna, comunicação pessoal, Belém, 5 dez. 2016) (PRIMO DOS SANTOS SOARES, 2019).

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: PRIMO DOS SANTOS SOARES, Ana Manoela. “Sangue feminino: Quando as mulheres Karipuna encontram com a lua”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e95197, 2023

Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 28 de Junho de 2023; Revisado: 07 de Julho de 2023; Aceito: 13 de Julho de 2023

anamanoelakaripuna@gmail.com

Ana Manoela Primo dos Santos Soares (anamanoelakaripuna@gmail.com) é doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduada em Licenciatura em Ciências Sociais (UFPA). Membro do Grupo Diversidade e Interculturalidade na Amazônia (DINA): Pesquisas colaborativas e pluridisciplinares do Museu Paraense Emílio Goeldi e do Grupo Ameríndia - Grupo de Pesquisa em Etnologia Indígena e dos Povos e Comunidades Tradicionais (UFPA)

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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