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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Sep-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n393357 

Resenhas

Outras formas de construir-se na vida: a transexualidade em Paul B. Preciado

Other ways of constructing oneself in life: transsexuality in Paul B. Preciado

Otras formas de construirse en la vida: la transexualidad en Paul B. Preciado

Frederico Romanoff do Vale1 
http://orcid.org/0000-0001-9570-9597

1Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900 - ppgas@contato.ufsc.br

PRECIADO, Paul B.. Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas. Rodrigues, Carla. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2022.


Diante de uma psicanálise despolitizada, precisamos de uma clínica radicalmente política, que comece por um processo de despatriarcalização e descolonização do corpo e do aparelho psíquico. (Paul B. PRECIADO, 2022, p. 61).

Paul B. Preciado é um filósofo espanhol que constrói sua vida acadêmica nos Estados Unidos, onde obtém o título de Doutor em Filosofia e teoria da Arquitetura pela Universidade de Princeton. Atualmente, está associado ao Centre Georges Pompidou, em Paris, é autor de Manifesto contrassexual, Testo junkie e Pornotopia, entre outros. É inspirado no pensamento de Michel Foucault, Donna Haraway, Gilles Deleuze, Judith Butler e Jacques Derrida. Reconhece-se hoje como um homem trans não binário.

Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas possui uma força capaz de produzir um processo reflexivo importante entre os adeptos às teorias da psicanálise e de sua prática clínica. Localizando-se a partir do corpo de um homem trans não-binário o autor elabora este relatório (que pode ser visto também como um manifesto) para a academia de psicanalistas da Escola da Causa Freudiana reunida em Paris. Em uma sala com cerca de 3500 psicanalistas, Paul é vaiado e ridicularizado pela plateia, que não permite que seu discurso chegue ao fim. O autor então lança o texto na íntegra a fim de que a audiência possa ter acesso na íntegra e para que os trechos gravados e difundidos nas redes sociais fora de contexto possam ser explicados.

O livro não possui divisões em capítulos, trata-se de um texto corrido, o qual está organizado em três tópicos da metade para o final de maneira que ajudam na argumentação do autor.

Na primeira parte Paul coloca-se radicalmente contra o regime de diferenciação sexual moderno e também contra a prática clínica psicanalítica que, segundo ele, agiria dentro desse paradigma. Paul aponta que no discurso psicanalítico o corpo trans é considerado “como sujeito de uma ‘metamorfose impossível’ [...] incapaz de resolver corretamente o complexo de Édipo” (PRECIADO, 2022, p. 13). Dentro desse quadro de patologização, tanto por parte da psicanálise quanto da psiquiatria e do sistema jurídico, Paul se coloca como o monstro responsável pelas linhas de pensamento/atuação produzidas: “Eu sou o monstro que se levanta do divã e toma a palavra, não tanto como paciente, mas como cidadão, como um igual monstruoso” (PRECIADO, 2022, p. 14).

Nas páginas seguintes o autor caracteriza sua história de vida a partir de um alguém que não se conformou com o regime da diferenciação sexual. Ele descreve que tinha medo da morte por não se sentir confortável na situação/corpo/sexualidade que se encontrava enquanto jovem. Comenta ainda que não encontrou refúgio no tratamento da chamada saúde mental, mas através de referências literárias. Encontra nos livros uma saída para o regime de diferenciação sexual, entendendo que “a liberdade é uma porta de saída [...] algo que se fabrica” (PRECIADO, 2022, p. 22). Beatriz (à época) se reconhece, então, como pessoa trans e inicia o processo de transição de gênero. Comenta que aceitou o processo de patologização da medicina e da psicanálise para passar pelo processo de transexualização - fazendo referência às sessões de psicanálise que foi obrigado a se apresentar a fim de que tivesse certeza sobre a sua decisão. Preciado discorre sobre a manipulação da testosterona em seu corpo e como essa manipulação foi produzindo efeitos ao longo do processo, como quando sua voz mudou e ele se sentiu finalmente reconhecido entre os pares homens em um ambiente público, uma vez que, enquanto era lido em um corpo feminino, era constantemente reconhecido enquanto um sujeito subalterno.

Importante colocar que a ideia desse relatório surgiu para Preciado como uma analogia do discurso produzido por Franz Kafka no qual conta a história do chimpanzé Pedro Vermelho sequestrado pelos humanos e obrigado a se apresentar em circos (PRECIADO, 2022). Pedro Vermelho narra o processo pelo qual teve de passar, mimetizando o comportamento humano para que, aos poucos, fosse reconhecido enquanto um de seus raptores. O chimpanzé discorre para uma plateia de médicos veterinários e outros especialistas, sobre, dentre outras coisas, a jaula em que a subjetividade humana está condenada. Ele comenta que sai de sua jaula física em que foi capturado enquanto macaco, para entrar na jaula da subjetividade humana. Recorrendo a essa metáfora, Preciado sentia-se na jaula dentro do esquema da diferenciação sexual e conta ainda que, ao engajar-se como estudante no mundo da linguagem técnica da psicologia, filosofia, antropologia e arquitetura, em busca de sua saída, viu-se de novo - ao obter seu título de doutorado e receber os aplausos por isso - em outra jaula, dessa vez uma jaula dourada, mas não menos eficaz.

A partir de sua história de vida e em relação com a sua formação acadêmica, Paul faz uma dura crítica à psicanálise de Freud e Lacan. Denunciando que os pais desse pensamento agiram em conformidade com o sistema de diferenciação sexual, patologizando todos aqueles que não se enquadram em seu sistema. Para o autor, Freud e Lacan teriam contribuído para a normalização das crianças intersexo, e, ao mesmo tempo, entendiam a transexualidade como uma forma de patologia.

Depois de realizar esse balanço histórico de sua vida e relacioná-la ao processo de transexualização, Paul lança mão de três argumentos principais que darão base à sua crítica da psicanálise:

(1) o regime da diferença sexual com o qual a psicanálise trabalha não é nem uma natureza nem uma ordem simbólica, mas uma epistemologia política do corpo, que, como tal, é histórica e mutante, [...] (2) essa epistemologia binária e hierárquica encontra-se em crise desde os anos 1940, por força da contestação dos movimentos sociais e do surgimento de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos que tornam a atribuição binária do sexo ao menos conflitante, se não impossível. [...] (3) “essa velha epistemologia da diferença sexual foi abalada por forças profundas e dará lugar a uma nova. Os novos movimentos transfeministas, queer e antirracistas, mas também as novas práticas de filiação, de relações amorosas, de identificação de gênero, de desejos, de sexualidade, de nomeação são indícios dessa mutação e das experimentações na fabricação coletiva de uma outra epistemologia do corpo humano vivo.” (PRECIADO, 2022, p. 46-47)

Nas páginas seguintes Paul irá discorrer sobre cada um desses pontos demonstrando como a epistemologia do corpo foi construída e operacionalizada através da medicina, da psiquiatria e, principalmente, da psicanálise. Diante dessa construção, Paul finaliza suas argumentações indicando um outro caminho que aponta para um futuro fora do esquema de diferenciação sexual. Dentro desse horizonte de profundas mudanças que vivenciamos nos últimos anos, o autor convida cada ouvinte, cada leitor e cada leitora de seu texto, principalmente psicanalistas, a realizarem uma importante reflexão: se vão querer continuar a corroborar com as narrativas dos pais da psicologia ou se voltarão para a realidade sexual diversa a sua volta de modo a contribuir na construção de uma nova epistemologia política do corpo, que não patologiza a diferença, mas que a considere como uma outra realidade possível.

Eu sou o monstro que vos fala tem o objetivo de interpelar psicanalistas a respeito da forma que realizam seu trabalho, principalmente em relação aos corpos dissidentes do esquema da diferenciação sexual. Nesse sentido, o trabalho de Paul está bastante alinhado com o acúmulo da história da antropologia que preconiza uma relação mais honesta com os, antes chamados, “objetos de estudo” (Ceres VÍCTORA et al., 2004, p. 50). Coloca Paul:

Uma transição na prática clínica implica uma mudança de posição: o objeto de estudo se torna sujeito, e aquele que até o presente é o sujeito aceita se submeter a um processo de estudo, questionamento e experimentação. Desaparece a dualidade sujeito/objeto, e em seu lugar surge uma nova relação que conduz conjuntamente a mudar e a tornar-se outro. Trata-se de aprender juntos a curar nossas feridas, de abandonar as técnicas da violência e a inventar uma nova política de reprodução da vida em escala planetária. (PRECIADO, 2022, p. 88)

Assim, o autor demonstra acúmulo teórico considerável a respeito das discussões em ciências humanas e sociais, alinhando seu texto a trabalhos de vanguarda na área que buscam produzir um processo de reflexão sobre os fundamentos aos quais essas disciplinas estão assentadas.

De modo geral, o texto é bastante elucidativo e parece atingir seu objetivo de contestação sobre a teoria e a prática psicanalíticas. Seu tom, como o próprio autor menciona, é de insubmissão. Em algumas partes do texto as críticas são bastante ácidas e profundas, o que pode explicar a reação da plateia quando proferiu seu discurso. Uma crítica possível a esse trabalho (e que poderia ser estendida a outros trabalhos dentro da área dos estudos queer) diz respeito ao rebuscamento da linguagem. Por vezes, tem-se a impressão de um excesso de conceitos que buscam categorizar uma realidade vivida, mas que por seu hermetismo deixam de ser compreendidos por um público mais amplo.

É uma leitura recomendada para todas as pessoas que buscam compreender melhor outras formas de viver, outras formas de produção de corpos e da reprodução da vida social. Especialmente endereçado aos psicanalistas, esse livro tem um traço bastante inovador (como toda a obra de Preciado) no que concerne à teorização de processos de transexualidade e identidade de gênero que tem tomado o debate público nos últimos anos. É também uma leitura indicada para quem trabalha com educação para a diversidade e/ou educação de forma ampla, uma vez que lança luz a importantes questões da área.

Referências

PRECIADO, Paul B. Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas. Trad. de Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2022. [ Links ]

VÍCTORA, Ceres et al. (org.). Antropologia e Ética. O debate atual no Brasil. Niterói: EdUFF, 2004 [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: ROMANOFF, Frederico. “Outras formas de construir-se na vida: a transexualidade em Paul B. Preciado”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e93357, 2023.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 13 de Março de 2023; Revisado: 22 de Junho de 2023; Aceito: 25 de Junho de 2023

Frederico Romanoff (frederico.romanoff@posgrad.ufsc.br, fredericoromanoff@gmail.com) é doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes Indígenas (NESSI) da UFSC e ao Instituto Brasil Plural (IBP) também da UFSC

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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