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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 01-Set-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n394523 

Resenhas

AUSI me contou: uma perspectiva decolonial feminista da África

AUSI told me: a feminist decolonial perspective of Africa

AUSI me dijo: una perspectiva feminista decolonial sobre África

Danilo Romeu Streck1 
http://orcid.org/0000-0001-7410-3174

Carolina Schenatto da Rosa1 
http://orcid.org/0000-0001-5021-3782

1Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, Caxias do Sul, RS, Brasil. 95200-000 - ppgedu@ucs.br

BAM, June. Ausi Told Me: Why Cape Herstoriographies Matter. Cape Town: Fanele/Jacana (ABC Press), 2021.


Este trabalho argumenta que ecologias decoloniais cotidianas do conhecimento dos Cape Flats proveem importantes sinalizadores para reimaginar os passados híbridos coloniais. Ausidi (filhas primogênitas, mulheres guardadoras do conhecimento) foram e continuam sendo profundas conhecedoras desses passados (BAM, 2021, p. XI, tradução nossa)1.

Com essas palavras June Bam abre o prefácio do livro que se coloca como um desafio para a nossa compreensão e reflexão. Pretendemos fazer juz à obra e à autora que vive a realidade dos povos originários da Região do Cabo, na África Sul, com muita intensidade e reflete isso ao longo da obra. Da mesma forma, queremos fazer um movimento de imersão nos modos de produzir e reproduzir o conhecimento e a própria vida retratados pelas histórias das mulheres. Reconhecemos que, desde nossa posicionalidade, não conseguiremos corresponder plenamente às nossas intenções ora expressas, tanto com relação à autora quanto à cultura desses povos que nos privilegiaram com as aprendizagens que compartilhamos nesta resenha, mas entendemos também que isso faz parte da vivência e aprendizagem intercultural.

Um dos ensinamentos que podemos encontrar na obra é que são as biografias esquecidas, aquelas deixadas de lado pela História oficial, as quais nos permitem reconstruir uma herstoriografia2 do conhecimento da África Austral. Contar a história de June Bam é contar uma história intergeracional, uma história que não é só dela. Portanto, optamos por começar por May, sua Ausi. A mãe de June, May, viveu e morreu em Cape Flats, região pobre localizada a sudoeste da Cidade do Cabo. É para lá que foram realocadas as populações negras e indígenas depois do apartheid. Ela foi à escola uma única vez, pois em seu primeiro dia de aula o professor disse que ela era “indígena demais”3 para estar ali. May teve, então, outra escola: a savana. Ali, junto de sua mãe, sua avó e tias-avós, ela aprendeu sobre medicina, biologia, história, linguagem, astronomia etc. Ela aprendeu a ler, a escrever e a ouvir, ouvir com seriedade o vento, o passado, os sonhos. Ouvir um mundo diferente daquele ensinado na escola tradicional da qual foi expulsa.

Com sua mãe, June aprendeu a ouvir e, ao longo dos anos, June tem ouvido e registrado muitas histórias do Cabo, questionando a historiografia tradicional e incorporando o conhecimento intergeracional (que envolve, entre outros, os sonhos, as visões, os rituais) ao conhecimento acadêmico não apenas enquanto fonte, mas como base teórico-metodológica para construir a pesquisa. Nas últimas três décadas ela ocupou cargos de gestão em diversos órgãos públicos na África do Sul e no Reino Unido, além de lecionar em diversas universidades, como Universidade de Stanford, Universidade de Kingston, Universidade de York, Universidade de Cape Town e, atualmente, Universidade de Johannesburg. Como demonstração do reconhecimento de seu trabalho, cabe mencionar que em 2008, um dos projetos de pesquisa-intervenção por ela liderado recebeu o Prêmio de Educação para a Paz da UNESCO; em 2020 o livro Whose History Counts: Decolonising precolonial historiography, coeditado em parceria com Lungisile Ntsebeza e Allan Zinn, foi finalista no prêmio HSS Awards e, em 2023, essa honraria foi concedida à obra autoral Ausi Told Me: Why Cape Herstoriographies Matter.

O livro está estruturado em quatro partes, compondo ao todo dez capítulos, além da Introdução e de um Apêndice no qual são compartilhadas curtas histórias de vida das mulheres entrevistadas. Na Introdução sente-se uma autora profundamente identificada com o povo cujas memórias pretende trazer à luz como indicadoras de outros caminhos para a academia e para a vida no planeta, entre humanos e com a natureza. Introduz o leitor e a leitora ao conceito de Ausi, que na linguagem dos povos San e Khoe significa a “irmã mais velha” e é derivado de Aus que se refere a água, denotando “fonte”, “sangue” e “cobra” (BAM, 2021, p. XXVIII).

A Parte I, denominada “Rethinking Cape precolonial methodology”, é dedicada a colocar o panorama metodológico. Organizada em três capítulos, o primeiro mostra como a historiografia da colonização tratou de não apenas invisibilizar, mas de apagar a história dos povos originários da região, o que coloca sob suspeita os próprios arquivos da época. A pergunta que se impõe para a historiografia, portanto, é como desconstruir essas narrativas dentro de um quadro de referência decolonial. O segundo capítulo traz o argumento de que existem possibilidades de descolonizar a historiografia eurocêntrica ao olhar para os próprios San e Khoe não apenas em termos de conhecimentos, mas, sobretudo, de formas de conhecer. Segue-se uma importante reflexão sobre como prover acesso ao próprio povo originário de sua historiografia, desfazendo complexas camadas de epistemicídio e linguicídio.

Os dois capítulos da Parte II, cujo título é “Intergenerational Cape Khoe and San knowledge narratives”, abordam a dimensão metodológica do processo de pesquisa, informando o leitor e a leitora sobre os critérios de escolha dos sujeitos que participaram da pesquisa, dentre os quais destacamos: a) pessoas que em suas comunidades tivessem a reputação de possuir tal conhecimento; b) pessoas que tivessem uma relação próxima como as Ausidi; c) pessoas que em seu entorno tivessem condições de demonstrar seu conhecimento de plantas, de curas e de rituais. Os fragmentos das histórias nos conduzem a um outro mundo e a outra forma de conceber o mundo.

A Parte III, com quatro capítulos, tem por título “Epistemicide”. Nela, June Bam identifica sete tipos de apagamentos concomitantes, a saber: o genocídio, a tentativa de morte dos povos originários; o epistemicídio, a tentativa de apagamento do conhecimento; o culturicídio, a tentativa de apagamento da cultura; o linguicídio, a tentativa de apagar a língua; o botanicídio, a perda de plantas; o floricídio, a perda da riqueza de flores; o faunicídio, a perda do reino animal. Segundo ela, esse processo compulsivo de extinção, no entanto, nunca foi atingido plenamente, em grande parte devido à corrente entre gerações estabelecida pelas mulheres.

A quarta parte é composta por um breve, mas denso, capítulo com onze páginas, que a autora intitula “Como a escuta dessas histórias pode nos ajudar a repensar o currículo e os métodos de pesquisa sobre a antiga historiografia do Cabo”. Ela retoma o conceito de lalela, a escuta profunda, como referência tanto para o ensino quanto para a metodologia de pesquisa. A seguir, selecionamos alguns conceitos que nos parecem centrais para compreender a obra.

O primeiro deles refere-se à lalela e à escuta profunda como referência metodológica. “Ouvir, ouvir e ouvir. Então, escutar profundamente”4 - essas foram as orientações de May à June para manter vivo o conhecimento intergeracional - enquanto método, permitiu à autora uma “reavaliação total da história oficial”5 (BAM, 2021, p. 201) de forma a reorientar as agendas de pesquisa críticas à historiografia tradicional por meio de outras fontes que não os próprios arquivos produzidos pela/na lógica colonial. Para confrontar os registros (em grande parte produzidos por homens brancos) e colocar em suspensão essas fontes da história da África do Sul, a escuta profunda propõe que seja feita uma triangulação entre o arquivo histórico (produto da lógica colonial) com as vozes do passado que foram ignoradas por essa fonte oficial e as vozes do presente, ou seja, as histórias atuais Khoi e San.

Ouvir, ouvir e ouvir (Lalela) é, assim, um processo político e pedagógico que permite manter vivas as heranças culturais, as tradições, crenças espirituais e a organização sociopolítica da região do Cabo desde a África do Sul pré-colonial. E, mais do que isso, permite colocar em perspectiva o conhecimento indígena acumulado e compartilhado pelas Ausidi. Esse processo, como June Bam mostra em seu livro, exige sensibilidade e muito rigor. Ao longo de cinco anos (2015-2020), a autora realizou entrevistas com fontes do conhecimento intergeracional (Ausi) em Cape Flats e em outras regiões do Cabo.

Quando se escuta profundamente não se escuta a memória, a percepção individual que se transforma ao longo do tempo; se escuta a história e se escuta, na voz de quem está contando, outras vozes. Isso exige sensibilidade, pois não se resume ao ato de ouvir passivamente; trata-se de um exercício de vigilância para deixar de lado noções ou preconceitos tidos como verdade; suspender o julgamento e criar uma conexão profunda entre quem conta e quem ouve.

O segundo conceito trata da Ausi e do conhecimento intergeracional. A educação envolve a relação entre pessoas que se situam dentro de gerações que, por sua vez, desenvolvem certos conhecimentos e certas formas de conhecer. Embora os avanços tecnológicos tenham mudado a relação predominantemente unidirecional dos mais velhos para os mais jovens, as gerações mais velhas não são eximidas de transmitir às novas gerações os seus valores e conhecimentos e o fazem de variadas maneiras, implícita ou explicitamente. June Bam analisa como essa transmissão na região do Cabo, entre os Khoe e San, é realizada pelas mulheres, desempenhando ao longo da colonização um papel de resistência.

Geralmente é a primogênita a encarregada de aprender com a Ausi a como preservar a memória intergeracional da família e todos os saberes ali contidos. Essa memória compreende as dores e traumas, as estratégias de sobrevivência e preservação, a língua (o processo de aprendizagem é feito somente na língua Khoi-San) e todo o conhecimento de geografia, herbologia, medicina, história, arquitetura, artes, entre tantas outras áreas, adquirido ao longo dos séculos e mantido vivo desde o período pré-colonial. Conhecimento intergeracional é, assim, a compreensão e manutenção da história pela perspectiva e agência feminina - por isso, na obra a autora utiliza a expressão herstory. Em língua inglesa, a primeira sílaba da palavra ‘história’ (his-to-ry) corresponde ao pronome possessivo ‘dele’ (his); a substituição do pronome masculino pelo feminino se propõe tanto a marcar a contraposição a uma lógica colonial machista, na qual o conhecimento é produzido, interpretado e registrado por homens, quanto a sinalizar que a prática da “história delas” é muito anterior à vinda da “história deles”.

O terceiro conceito refere-se ao apagamento e os consequentes movimentos de resistência e recriação que seguem sendo (re)inventados na África do Sul. A autora identifica três grandes plataformas ou espaços de conhecimento originário na Região do Cabo (BAM, 2021, p. 31). O primeiro está ligado com um movimento revivalista em torno de rituais, movimentos de ocupação e na recuperação de línguas perdidas com a imposição da língua dos colonizadores. O segundo é um espaço de conhecimento híbrido que relaciona os conhecimentos pré-coloniais com aqueles trazidos por muçulmanos e indianos ligados com o comércio escravo do Oceano Índico. Um terceiro tipo de conhecimento entre os San e Khoe está oculto em redes invisíveis ou invisibilizadas e, portanto, raramente disponíveis nos cânones da historiografia. É nesse espaço de produção e reprodução de conhecimento, considerado por ela o mais autêntico, que reside o interesse de June Bam, haja vista que carrega consigo o maior potencial de recriação do conhecimento.

Já mencionamos acima os sete tipos de apagamento (erasure) que a autora identifica. Aos mais conhecidos apagamentos ou extermínio de povos, dos conhecimentos, da cultura, da língua e da fauna, June inclui as plantas (botanicide) e em particular das flores (floracide) pelo que elas representavam para os povos da região. O livro traz imagens de flores que, junto com sua beleza, representavam também fontes de cura e de alimentação. Ausi told me é um livro enraizado na região sul-africana do Cabo, desde as histórias contadas e analisadas até a imersão de June Bam como historiadora. Ao mesmo tempo, a própria história da região é tecida por fios que se estendem para o mundo. Ali estão os portugueses em suas expedições de conquista, os indianos e muçulmanos trazidos do Oriente e estão os conquistadores europeus que, com o apartheid, protagonizaram um dos mais tristes capítulos da colonização.

As narrativas e as análises têm uma relevância especial para América Latina cuja história está umbilicalmente ligada com a da África. A aproximação se dá pela denúncia da colonialidade como forma persistente de dominação e a intenção de decolonizar os vários campos nos quais houve os ‘apagamentos’. June Bam nos auxilia a perceber as várias e complexas formas pelas quais esses apagamentos, silenciamentos ou extinções foram e continuam sendo realizadas e, mais do que isso, se tornaram possíveis

Referência

BAM, June. Ausi Told Me: Why Cape Herstoriographies Matter. Cape Town: Fanele/Jacana (ABC Press), 2021 [ Links ]

1No original: “This work argues that the everyday, decolonial-knowledge ecologies on the Cape Flats provide important pointers for reimagining the hybridised, precolonial pasts. Ausidi (firstborn daughters; female knowledge-keepers) were and continue to be profound intergenerational knowledge-holders of those pasts.”

2Termo derivado do inglês que significa, em tradução livre, “história pela perspectiva delas”.

3Em conversas pessoais com a autora ela contou sobre sua infância e sobre sua família.

4Conforme a autora narrou em conversas pessoais que teve com Carolina Schenatto da Rosa, em agosto de 2022, em sua residência, na cidade de Cape Town.

5No original: “A total reassessment of official history”.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: STRECK, Danilo Romeu; ROSA, Carolina Schenatto da. “AUSI me contou: uma perspectiva decolonial feminista da África”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e94523, 2023

Financiamento: FAPERGS - Termo de Outorga 23/2551-00001159

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 22 de Maio de 2023; Revisado: 15 de Junho de 2023; Aceito: 20 de Junho de 2023

Danilo Romeu Streck (drstreck@ucs.br, streckdr@gmail.com) é Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS. Doutor em Educação pela Rutgers University (US). Atua principalmente nos seguintes temas: educação popular, mediações pedagógicas e processos participativos, pedagogia latino-americana, cidadania global e internacionalização da educação

Carolina Schenatto da Rosa (csrosa8@ucs.br, carolinaschenatto@gmail.com) é Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS. Doutora em Educação pela Unisinos. Atua principalmente nos seguintes temas: cidadania global, pedagogia latino-americana, estudos decoloniais e educação popular

Contribuição de autoria: Os autores contribuíram igualmente

Conflito de interesses: Não se aplica

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