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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.3 Florianópolis  2023  Epub 08-Oct-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n396052 

Resenhas

Diferentes mulheres, diferentes feminismos

Different women, different feminisms

Diferentes mujeres, diferentes feminismos

Thainã Miranda Oliveira1 
http://orcid.org/0009-0009-5902-676X

1Universidade Federal do Tocantins, Porto Nacional, TO, Brasil. 77500-000 - librasportonacional@uft.edu.br

SAMYN, Henrique Marques; ARAO, Lina. Feminismos Dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jandaíra, 2021.


O livro Feminismos Dissidentes: perspectivas interseccionais tem organização de Henrique Marques Samyn e Lina Arao (2021) que, entre suas atividades de docência no Rio de Janeiro, integram a equipe do Gabinete em Estudos de Gênero da Universidade de Lisboa e ancoram suas pesquisas na área de Letras. A publicação procura tensionar o feminismo hegemônico e resulta do curso de mesmo nome, ofertado por Henrique Samyn no Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.

Durante o período pandêmico de 2020, pesquisadoras especializadas em diferentes temáticas dos feminismos não hegemônicos foram convidadas a ministrarem aulas remotas no curso e posteriormente a publicarem suas contribuições. Nesse sentido, para desenvolver seu objetivo - agrupar e evidenciar discussões ditas pelo feminismo hegemônico como menores e marginais, como também abarcar diversos temas e diferentes pesquisadoras - o volume valoriza representantes feministas de variadas realidades, como: mulheres negras, amarelas, romani/“ciganas” e amazônicas; lésbicas, transexuais e travestis; mães pobres, mulheres gordas, trabalhadoras sexuais e praticantes de BDSM, por ilustração.

Interessante destacar que a utilização da linguagem no feminino plural - as autoras, as professoras, as pesquisadoras - segue escolha da organização. Importante, também, comentar que ao final existem breves biografias de cada autora, mas que algumas comentam ou citam parte de suas formações e/ou experiências durante seus capítulos. São quatorze textos que não são numerados, mas estão comentados aqui sequencialmente.

Em “Ventres amestrados: problematizando a objetificação/sexualização das mulheres negras”, Ana Paula da Silva discute da objetificação/sexualização da “mulata” (Ana Paula da SILVA, 2021, p. 15) maior símbolo da mestiçagem brasileira, a violenta política do branqueamento, passando por algumas teorias racializadas. Ao final, ela também pincela sobre a moralidade do amor, o direito ao próprio corpo e ao exercício da sexualidade por mulheres negras/não brancas.

Outra perspectiva racializada é apresentada por Yasmim Pereira Yonekura em “A mestiza existe? A América despedaçada e miscigenada de Glória Anzaldúa a Lélia Gonzalez”. Ela, por ser uma mulher mestiça afro-indígena nortista, apresenta seu local de fala no texto e discute o mito da democracia racial brasileira a partir das teorizações feministas da chicana Gloria Anzaldúa e mineira Lélia Gonzalez. Também, relaciona os contextos das autoras com seu cenário amazônico de miscigenação.

A organizadora do livro, Lina Arao, e autora do capítulo intitulado “Entre Japão e Brasil: alguns apontamentos acerca de Sob dois horizontes, de Mitsuko Kawai”, relaciona subjetividades de mulheres japonesas ou descendentes no Brasil com seus próprios sentimentos sobre identidade, representatividade, língua, entre outros. A análise da autobiografia Sob dois horizontes de Mitsuko Kawai (1988) se mostra fio condutor para as discussões realizadas.

No capítulo seguinte a discussão sobre raça ainda é destacada, agora a partir de uma perspectiva chinesa. Yonghi Q., pessoa não binária com preferência pronominal ele/dele, em “Da diáspora chinesa: uma história sino-cariona”, traz um relato de experiência. No texto, ele mobiliza suas memórias desde seu nascimento até seu atual momento de formação e empoderamento subjetivo. Também discorre sobre sua formação acadêmica e como não se sente à vontade em espaços feministas, nos quais as questões raciais são ignoradas, especialmente as voltadas às pessoas amarelas e/ou asiático-brasileiras. As teorizações ocorrem entrelaçadas as memórias e lembranças de situações vividas, muitas delas infelizes.

Em “Feminismos e BDSM: racializando o debate”, Raquel Basilone Ribeiro de Ávila se localiza como pesquisadora branca, entre outros marcadores. A partir dessa marcação, discute a temática do BDSM à luz da racialidade de mulheres negras. O texto está organizado da seguinte forma: conceituação do BDSM; contexto histórico da chamada “guerra do sexo estadunidense” (Raquel ÁVILA, 2021, p. 84) especialmente na década de 1980; reflexão sobre opiniões das autoras feministas negras Audre Lorde e Alice Walker; e finaliza com reflexões políticas mais complexas que podem envolver a prática sexual de forma (in)direta.

O capítulo subsequente, “Romanipen nas margens: o triângulo marrom, diáspora e a movimentação de mulheres romani”, a autora também traz o marcador raça/etnia para as discussões. Sara Macêdo inicia a escrita saudando sua ancestralidade “cigana” e, a partir disso, tece discussões direcionadas aos movimentos diaspóricos dos “povos ciganos” (Sara MACÊDO, 2021 p. 105). Ela deseja que tais movimentos consigam agrupar e também discutir os anseios das gitanas feministas, e assim entrecruzar gênero e etnia. Seu embasamento perpassa teóricos pós-coloniais que ressignificam as epistemologias das margens, a hegemonia burguesa/liberal, as políticas de relativismo cultural entre outras interseccionalidades presentas na vivência étnica “cigana”.

Os seis primeiros capítulos destacam o marcador raça/etnia como ponto interseccional inicial para as argumentações, ou seja, um foco inicial para abarcar outros marcadores. Já as contribuições seguintes focam nas relações de corpo, gênero e sexualidade de forma mais direta e, a partir disso, trazem diferentes feminismos.

“Gordofobia, gênero, classe, raça e sexualidade: uma questão de saúde” é escrito por Vanessa Figueiredo Lima e não se configura como relato pessoal. Ela faz poucos comentários de cunho pessoal e atrela discussões teóricas sobre as opressões acometidas às mulheres gordas maiores e gordas menores em diferentes espaços sociais, como saúde, moda, família, transporte público, entre outros. Para pautar suas reflexões, recorre a alguns depoimentos de mulheres gordas em páginas sociais e as interseccionalidades que, somadas à gordofobia, são intensificadas.

As autoras Sofia Favero e Mariane Marini discorrem sobre transfeminismo. Em “Quase mulheres, quase feministas”, questionam os feminismos conservadores e radicais sobre o status quo do conceito/categoria mulher e como os discursos clínicos e científicos projetaram e ainda projetam identidades incompletas para aquelas mulheres variantes de tal ideal. Elas ainda enfatizam como os feminismos dissidentes precisam estar atentos a esse debate para não reafirmarem concepções de gênero a-históricas e totalizantes.

Novamente uma perspectiva epistemológica que envolve feminismos interseccionais é retomada por Camila Fernandes em “O martírio da maternidade: reprodução e sexualidade a partir de uma perspectiva interseccional”. Ela defende que as maternidades sejam entendidas em polissemia e ancoradas por diferentes marcadores sociais. Nesse sentido, desenvolve uma interessante discussão sobre o poder científico, especialmente, o econômico, e esclarece que, ao se diferenciar trabalho produtivo, voltado ao mercado e ao masculino, de trabalho reprodutivo, próprio das mulheres, ocorre uma subalternização e uma desqualificação de relações e trabalhos que envolvam cuidados num geral. Em sua argumentação, a maternidade não é problema de uma mulher só, e não se restringe ao campo subjetivo, mas de teorias e políticas da sociedade.

O texto “Feminismo e trabalho sexual” é escrito por Bárbara V. a partir de sua vivência única e subjetiva. Ela discute sobre prostituição ou, como defende conceitualmente, trabalho sexual. As explorações laborais e outras críticas patriarcais normalmente relacionadas às trabalhadoras sexuais são rebatidas com reflexões sociais de cunho mais geral. Sendo as explorações de trabalho e as situações machistas, infelizmente, comuns a muitas mulheres em diferentes contextos. Ela também defende a regulamentação da prostituição, ao retomar o Projeto de Lei proposto por Jean Wyllys em 2012, para que melhores condições de trabalho, e consequentemente, melhores igualdades entre as mulheres sejam reais.

A escrita de Heloisa Melino, em “Lésbicas, prostitutas, travestis e transexuais: uma aliança necessária”, é caracterizada por ela como um ensaio aberto a diálogos. Há uma contextualização social/acadêmica sobre o capítulo e aulas que culminaram no livro; um aprofundamento teórico sobre como raça, sexo e classe são inseparáveis para uma hierarquização humana; e como somos resultado de processos históricos do colonialismo e da colonialidade. Após as discussões teóricas, Heloisa dedica-se a uma escrita mais informal/pessoal ao comentar suas vivências de mulher lésbica em militâncias feministas e/ou LGBTQIA+, ao lado de mulheres prostitutas e trans, como também questiona e reflete sobre certas hegemonias e “tretas” (Heloisa MELINO, 2021, p. 180) dentro dos próprios movimentos.

Os dois capítulos seguintes voltam suas discussões interseccionais a partir do marcador raça, entretanto, direcionas o debate às mulheres brancas. Amana Rocha Matos, em “Subjetivações de raça e gênero a partir de fragmentos de memória”, traz suas reflexões pessoais e sociais em suas discussões teóricas sobre raça e gênero através de três memórias: uma na infância, uma na adolescência e outra já como uma mulher adulta acadêmica. A partir de suas ilustrações, ela defende a importância de pessoas brancas se conscientizarem dos processos de racialização brasileira e se envolverem em militâncias contra os tabus da democracia racial.

No mesmo viés, Geórgia Grube Marcinik discute como mulheres brancas podem atuar na luta antirracista. O texto intitulado “Entre discursos e práticas: a branquitude nos movimentos feministas e o papel das pessoas brancas na luta antirracista” é um recorte de sua pesquisa de mestrado. No capítulo, apresenta dados e falas de mulheres brancas no movimento feminista suas consciências sobre suas localizações privilegiadas. Ela afirma sua preocupação ao indagar feministas que ainda se dediquem apenas às opressões de gênero e são intransigentes a apontamentos racistas estruturais.

Por fim, o único texto escrito por um homem cis, é assinado por uma das pessoas que assina a organização do livro. Em “Sobre masculinidade negra e violência sexual”, Henrique Marques Samyn discorre sobre a construção da masculinidade negra e como historicamente situações de violências sexuais são associadas de forma exagerada apenas a homens negros. Muitas das vítimas são intocáveis mulheres brancas o que socialmente provocou/provoca a política do linchamento. É um texto com alguns depoimentos que podem provocar desconforto para possíveis leitoras/es vítimas de violência sexual, porém, tais dinâmicas de poder são complexas e precisam ser discutidas.

Entre as conversas sobre feminismos dissidentes encontradas no volume, muitos relatos e vivências me provocaram empatia e desconforto, pois alguns atravessamentos não eram conhecidos por mim. Entretanto, um grupo minoritário em específico foi, em minha visão, silenciado, as mulheres com deficiências, em especial, as mulheres surdas. Apenas os textos sobre gordofobia e maternidade, assinados por Vanessa Lima e Camila Fernandes, respectivamente, citaram esse marcador, mas apenas citaram. Dessa forma, reflito: onde estão os movimentos dissidentes feministas das mulheres com deficiências? Onde estão os feminismos surdos? Como tais mulheres se posicionam frente às suas realidades opressoras? Algumas ações, movimentos e pesquisas já são percebidos, mas quais são suas afinidades e barreiras com os demais feminismos não hegemônicos?

Referências

ÁVILA, Raquel Basilone Ribeiro de. “Feminismos e BDSM: racializando o debate”. In: SAMYN, Henrique Marques; ARAO, Lina (org.). Feminismos Dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jandaíra, 2021. p. 83-99. [ Links ]

MACÊDO, Sara. “Romanipen nas margens: o triângulo marrom, diáspora e a movimentação de mulheres romani”. In: SAMYN, Henrique Marques; ARAO, Lina (org.). Feminismos Dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jandaíra, 2021. p. 101-115. [ Links ]

MELINO, Heloisa. “Lésbicas, prostitutas, travestis e transexuais: uma aliança necessária”. In: SAMYN, Henrique Marques; ARAO, Lina (org.). Feminismos Dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jandaíra, 2021. p. 173-193. [ Links ]

SAMYN, Henrique Marques; ARAO, Lina (org.). Feminismos Dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jandaíra, 2021. [ Links ]

SILVA, Ana Paula da. “Ventres amestrados: problematizando a objetificação/sexualização das mulheres negras”. In: SAMYN, Henrique Marques; ARAO, Lina (org.). Feminismos Dissidentes: perspectivas interseccionais. São Paulo: Jandaíra, 2021. p. 11-25. [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MIRANDA OLIVEIRA, Thainã. “Diferentes mulheres, diferentes feminismos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 3, e96052, 2023.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 25 de Agosto de 2023; Revisado: 30 de Setembro de 2023; Aceito: 02 de Outubro de 2023

Thainã Miranda Oliveira (miranda.libras@uft.edu.br, miranda.libras@gmail.com) é docente na graduação em Letras-Libras (UFT), atua e pesquisa com/sobre Literatura Surda e Ensino de Literatura relacionando Estudos Surdos, Estudos Literários e Estudos da Tradução. Em sua pesquisa de doutorado (PGET/UFSC), investiga mulheres artistas surdas. É Mestra em Letras (PPGLetras/UFT) e licenciada em Letras-Libras (UFG)

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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