Introdução
O cheiro da minha mãe era atípico. Não era perfume, não era hálito nem os cabelos. Era cheiro de mãe. Na verdade não sei se mãe tem cheiro para cada filho e se tem creio que para este o perceber seria necessário uma longa separação. O fato é que o cheiro dela era diferente e nela sempre permaneceu em qualquer circunstância.
Rudá de Andrade (2005).
Pagu é um dos pseudônimos de Patrícia Galvão, porém, é o que historicamente a identifica. O nome “Pagu”, apesar de diminuto, é expansivo. Ele vai além, inclusive, podemos dizer que, de certa maneira, ele amplifica várias outras Pagus. Ele reverbera a imagem de uma mulher que teve seu nome e sua trajetória replicados nos mais diversos âmbitos e períodos da história brasileira. Foi leitmotiv de filmes, obras literárias, canções, edições, imagens e estudos acadêmicos que ajudaram a publicizar a luta feminina no Brasil. Em um período em que os movimentos feministas ganham fôlego e encontram novas e velhas barreiras na luta pela igualdade de gênero, manter a história da Pagu na superfície dos mares agitados da atualidade é, também, dar continuidade à sua luta e à sua importância para as mulheres brasileiras.
Outra particularidade na trajetória de Pagu é sua condição de polígrafa. Curiosamente, o termo polígrafo tem sido de uso mais corrente entre o gênero masculino, não sendo totalmente peculiar às definições da identidade intelectual feminina.1 O polígrafo é um traço peculiar de uma pessoa que conjuga uma série de saberes e domínio de gêneros textuais diversos. Portanto, esta é uma característica observada também em Pagu, dada sua produção poética, imagética, histórias em quadrinhos, romance, materiais jornalísticos, textos críticos e literários. Logo, a Pagu polígrafa é marca distintiva de sua contribuição intelectual, militante e artística, mas, por vezes, obliterada pelo discurso sexista, mesmo no campo progressista. Os estudos sobre sua vida e sua obra são expressivos, elucidando sua contribuição para a organização da luta política, do feminismo e das produções artísticas e literárias, inaugurando uma nova forma de posicionamento e, de maneira especial, de enfrentamento às condições sociais, políticas e culturais do período que ecoam até os nossos dias.
Apesar desta diversa e rica atuação, este artigo é dedicado à retomada dos aspectos inerentes à Pagu militante que, antes de tudo, foi mulher e, por “consequência”, mãe. Como mulher e militante, ela é considerada a primeira presa política no Brasil, o que ocorreu durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945). Ao voltar-se às peculiaridades da militância política de Pagu, este trabalho está embasado nos estudos já realizados sobre sua vida e produção, em duas obras escritas por ela, bem como no levantamento e análise dos arquivos da polícia política brasileira, disponíveis on-line e que podem ser consultados a partir do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN).
Para atingir a proposta apresentada, o texto está organizado em três momentos: inicia com algumas reflexões sobre o período histórico da militância de Pagu; em seguida, analisamos, com base em sua autobiografia e em algumas pesquisas sobre sua vida, elementos da Pagu mulher, mãe e militante, ancoradas em estudos sobre a concepção do gênero e de autobiografia; para, então, como último ponto de reflexão, a partir da pesquisa nos arquivos da polícia política, elucidarmos a forma como a vida desta militante foi vigiada, enfatizando quais eram as características da militante apresentadas nesta documentação oficial.
Destarte, a pesquisa no acervo do SIAN extrapola o período de militância de Pagu, adentrando-se nos impactos de suas contribuições no decorrer da história brasileira, em especial no período da Ditadura Militar (1964-1985). Por conseguinte, ao estender o recorte temporal, almejamos mapear como a militância e a trajetória de Pagu ecoaram no processo de organização e ação dos movimentos contra a ditadura militar. Pagu foi mulher, mãe e fervorosa militante, e apesar da repressão estatal e da sociedade como um todo, construiu uma trajetória que inspirou mulheres de diferentes gerações, influenciando as lutas feministas em meio a uma sociedade patriarcal e autoritária.
Pagu e o Varguismo
Patrícia Galvão (1910-1962) vive e milita durante toda a chamada Era Vargas (1930-1945), residindo a maior parte de sua vida no estado de São Paulo. Ao lado do Rio de Janeiro, São Paulo conjugava a efervescência política com a cultural, portanto, caracterizando-se fortemente pela organização da(s)/o(s) trabalhadora(s)/es em âmbito sindical e partidário. É um período marcado pela perseguição a militantes, vinculadas(os) aos ideais do comunismo ou do socialismo. Dentre as estratégias para manter-se atuando, apesar da forte vigilância, Patrícia Galvão utiliza-se de pseudônimos como Mara Lobo, Pagu, Solange Sohl e outros, sendo “uma hipótese viável, no caso de Pagu”, que a “[...] utilização recorrente de inúmeros pseudônimos pode estar ligada à sua prática política, com atuação e militância extremamente progressista” (Arlindo REBECHI JUNIOR, 2018, p. 165). Apesar da suposição expressa pelo autor referenciado, de fato os pseudônimos se vinculavam diretamente à sua militância política.
O período de ditadura do Estado Novo carrega as marcas do processo de organização e efetivação de um golpe. Não obstante, este movimento, que conduziu Getúlio Vargas ao poder, tornou-se conhecido na história brasileira como a Revolução de 1930, sendo efetivado com o golpe de 1937. Tal acontecimento histórico permite que Getúlio permaneça no governo federal até 1945. Trata-se de um período conturbado, em que ocorrem levantes revolucionários contra o governo, todos eles energicamente aniquilados. Outra marca importante deste período diz respeito ao controle exercido pelos meios de comunicação, destacando-se, na Era Vargas, a criação, em 1939, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o qual exerce papel fundamental na formulação de propagandas políticas e no controle das informações a serem transmitidas para a sociedade, pelo emprego da censura.
É neste período da história brasileira que a ideologia de Segurança Nacional tem sua gênese. A Escola Superior de Guerra (ESG) é constituída a partir de dois fatores da história do Brasil: a participação do país na Segunda Guerra Mundial e o debate político sobre a exploração do petróleo, tendo como finalidade:
[...] um reforço da tendência à dominância do grande capital (no meio do qual ressalta o capital estrangeiro) como meio indispensável ao desenvolvimento econômico e à implementação de uma política de segurança nacional. Resulta daí, no plano econômico e no político, o estabelecimento de limites “toleráveis” à organização e participação política dos setores populares (Eliézer Rizzo de OLIVEIRA, 1976, p. 21).
O trabalho desenvolvido pela ESG, por sua vez, vinculava-se à Doutrina de Segurança Nacional, igualmente partilhada por outros países na América Latina, quando, após a Segunda Guerra Mundial, houve a crença de que ocorreria uma guerra total entre o Ocidente democrático e cristão contra o Oriente comunista e ateu. Entretanto, a doutrina desenvolvida e implementada pela ESG estava mesmo voltada a combater os inimigos internos, ou seja, o comunismo que poderia ser desenvolvido dentro do Brasil, ainda que vinculado às ideias exóticas, como tal ideologia, caracterizava tais ideais.
Portanto, pessoas, instituições, partidos políticos e movimentos sociais que se colocassem em uma posição ativa de questionamento do governo estavam sob a mira desse sistema de vigilância e punição. Pagu assenta-se na posição de luta pela defesa dos interesses da classe trabalhadora e, por isso, é vigiada, presa (várias vezes) e torturada por esta ditadura, porém se mantém firme na defesa de seus ideais.
Pagu: mulher, mãe e militante
A utilização de uma autobiografia como elemento para dialogar sobre a militância de Pagu está balizada pela compreensão de que este é um gênero textual que guarda especificidades, inclusive por se tratar de uma biografia produzida pela própria pessoa. Todavia, com o avanço nos estudos sobre este gênero, atualmente, é possível recorrer a diferentes perspectivas para compreendê-lo de maneira mais elaborada. Comumente, os estudos têm-se pautado na definição sistematizada pelo francês Philippe Lejeune, que define autobiografia como “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14).
Não obstante, como contraponto às clássicas definições e reformulações conceituais de Lejeune, destacamos, aqui, uma particularidade da escrita de Pagu: o fato de desvelar uma escrita de si e uma literatura de autoria feminina que se afastaria do cânone; este, por sua vez, vincado por uma baliza masculina e intrínseca ao status quo, afinal, “[...] a questão do cânone é espinhosa, porque o cânone se constrói sobre as mesmas estruturas socioeconômicas que movem a sociedade como um todo” (Eurídice FIGUEIREDO, 2022, p. 290).
Ademais, sua autobiografia não poderia ser inserida no gênero autobiográfico sem se evidenciar a transversalidade trazida pela escrita feminista, na altura pouco dimensionada, inclusive pelo fato de essa obra de Pagu ser gestada de maneira precoce, embora reveladora de uma intimidade por vezes relegada. Sobre estas modulações, como o componente ficcional nas autobiografias, Figueiredo expõe a miríade de estudos que vêm demarcando o conceito de “autoficção”, enfatizando que, apesar de seu caráter disruptivo, que impediria tomá-lo como um novo gênero, “a maneira de construir e encarar as categorias de autobiografia e ficção sofreu grandes transformações, com a proliferação de relatos e romances nos quais as fronteiras entre elas parecem desvanecer” (FIGUEIREDO, 2022, p. 81).
Em entrevista a Rafaela Procknov, e ao tratar das minorias, dos interditos e transgressões inerentes à literatura, a mesma autora traz uma outra particularidade que pode ser inferida da obra de Pagu:
Se a personagem feminina nos romances do século XIX é vista como objeto (ainda que rebelde e sedutor), nos romances escritos por mulheres nos séculos XX e XXI a personagem feminina, em geral, torna-se sujeito. Às vezes um sujeito meio perdido, às vezes vítima, mas ela detém a voz, ela definirá seu caminho, suas opções (até mesmo sua falta de opção) (FIGUEIREDO, 2022, p. 288).
Dito isso, ainda que a autora se remeta à personagem literária, pode-se pensar na literatura de autoria feminina de Pagu, que rompe com o cânone, adquirindo centralidade em um universo avesso às mulheres.
Em síntese, as produções de si têm uma contribuição significativa para a compreensão da realidade, uma vez que, ao ocuparem o espaço privado, (re)produzem vivências e memórias de períodos históricos específicos, inclusive na sua percepção estética:
Quando no fluir histórico os detalhes circunscritos às privacidades do indivíduo pouco a pouco transitam o terreno da vida social sob a forma de narrativas de vida, vemos as escritas de si gradativamente ascender a novos horizontes de contemplação, permitindo o reconhecimento de um valor (auto)biográfico em percepção estética (Yuri Andrei Batista SANTOS; Vânia Lúcia Menezes TORGA, 2020, p. 120).
No caso da obra Pagu: autobiografia precoce, também é possível destacar que
a escrita de si pode funcionar como instrumento de memória, pois propicia o registro das impressões, vivências e leituras de mundo de quem a escreve, ao mesmo tempo em que, quem o faz, pode refletir acerca desse processo (Adriana Aparecida de Figueiredo FIUZA; Simone Pinheiro ACHRE, 2021, p. 175).
Ao discorrer especificamente sobre os relatos de vida e as classes sociais, Lejeune (2008) destaca que os proletários também escreveram autobiografias, e menciona os militantes engajados ao tratar a distinção de dois aspectos desta literatura, quais sejam: os livros de autodidatas e os depoimentos de militantes. Os primeiros relatam a vida de pessoas comuns, suas escritas não são muito elaboradas no plano ideológico, por isso, podem servir de literatura para o grande público, bem como de documentos pelos historiadores. De outro lado, é possível recorrer aos “[...] depoimentos de militantes engajados que escrevem tanto para testemunhar quanto para analisar e justificar sua ação. Estes tiveram mais possibilidade de publicação do que os outros, porque tinham um público virtual, limitado, mas real, nas organizações políticas e sindicais” (LEJEUNE, 2008, p. 138). Inclusive, este autor assevera que as produções dos militantes, ao serem compiladas pelos sindicatos e demais organizações, contribuem de maneira decisiva para a história do movimento operário.
Em sua autobiografia, escrita em 1940, logo após ter sido liberada de uma das mais de vinte vezes que foi presa, Pagu explicita, ainda, reflexões sobre a condição feminina, a relação com a família, a iniciação sexual, as relações “amorosas”, os dilemas vivenciados pelo casamento livre com Oswald de Andrade, entre outros temas. Ponderações estas inerentes à condição feminina na sociedade de classes marcada pela questão de gênero, uma vez que se trata de uma construção social que também diz respeito a uma categoria histórica. Por conseguinte, urge se superar as diferenças entre os sexos desencadeadas ao longo da história, avançando na luta pela igualdade social para além das características biológicas, ou seja, superando a naturalização da condição da mulher (Heleieth Iara Bongiovani SAFFIOTI, 2015). Tomado como categoria histórica, o gênero deve considerar que:
Não se trata de buscar qualquer outra igualdade fora do campo social, na medida em que isto levaria, inexoravelmente, a uma essência masculina e a uma essência feminina. Tampouco se trata de negar as diferenças entre homens e mulheres, o que representaria intolerância, mas entendê-las como fruto de uma convivência social mediada pela cultura (SAFFIOTI, 2015, p. 53).
Na autobiografia de Patrícia Galvão é possível, portanto, recorrer ao relato das condições de vida que permeavam o século XX, as quais eram atravessadas pela sociedade patriarcal e direcionavam as lutas desencadeadas por ela. Afinal, em uma reflexão eivada de um ethos revolucionário, conjeturava-se sobre o tempo vivido, particularmente sobre sua relação com a maternidade, que lhe produziria um misto de sentimentos, contrapondo-se à responsabilização imposta pela sociedade no que diz respeito ao papel da mãe e às definições de papéis sexuais. Em contrapartida, igualmente apresentou reflexões sobre a relação mãe e filho a partir de sua vivência. A seguir, apresenta-se um fragmento de um dos muitos relatos sobre a maternidade e o amor materno que ela registra em sua autobiografia:
Arrancar o seio do bebê, quando ele é ainda tão novinho... Quando uma doença grave principia a renascer... Partindo, deixei o alvorecer dos primeiros sorrisos e não pude acompanhar os sintomas que se gravam no olhar da primeira compreensão humana. Deixei tudo isso, sem querer confessar que o meu interesse materno era menor que meu desejo de fuga e expansão (GALVÃO, 2020, p. 33, grifo nosso).
Assim, quando ela já está inserida na militância, realizando a primeira tarefa que lhe foi designada no caso, uma panfletagem, seu filho adoeceu, o que fez com que seus companheiros tecessem comentários agressivos com relação à maneira como ela lidava com a maternagem e como se expressava sobre isso. Em suas memórias, revela seu sentimento em relação ao seu filho, como quando ela se despede dele para ingressar nas atividades do partido, relatando que, por ter chorado na despedida, “sofri a tarde toda as sátiras de Villar contra meu sentimentalismo excessivo”, ao passo que, quando o filho estava novamente com pneumonia, R. a atacou com o que denominou de aviltante sentimentalismo, chegando a questionar como seria a reação de Pagu caso seu filho morresse (GALVÃO, 2020, p. 51-52).
No texto autobiográfico, em carta escrita para seu segundo companheiro, Geraldo Ferraz, Pagu explicita a importância que ela atribui ao processo de conscientização da condição de classe, bem como do ingresso na luta política, vinculação, diga-se de passagem, formal, via partido. Afinal, a militância não se restringia à atividade partidária, uma vez que ela militou durante toda sua vida, inclusive questionando as relações sociais, em especial no que diz respeito à condição feminina. Ela inicia o texto esclarecendo que não falaria da morte, e sim da vida, talvez por isso não tenha mencionado detalhes das prisões. Dedicando-se, então, a discorrer sobre os desafios para uma mulher ser respeitada como militante, inclusive frente aos demais membros do partido, refletindo ainda sobre as renúncias que precisou fazer, bem como as condições de preconceito que vivenciou.
Sobre a militância, uma primeira “oportunidade” acontece após seu casamento arranjado com Waldemar Belizário, que, nas palavras dela, “foi a forma planejada para que eu, de menor idade, pudesse sair de casa sem complicações” (GALVÃO, 2020, p. 20). Foi quando ela foi para a Bahia, onde o renomado educador Anísio Teixeira lhe arrumaria um trabalho. Porém, após um mês, recebe um telegrama de Oswald relatando que ela deveria retornar imediatamente. Ela regressa, casa-se com Oswald, com quem tem um relacionamento aberto, tomado por ele como livre, condição que causaria muito sofrimento à Pagu.
No texto, ela destaca os acontecimentos de sua vida relacionados à inserção e à compreensão da luta emancipatória. Ou seja, em detrimento de sua produção artística, ela enfatiza sua trajetória de busca pela inserção na militância. Ela evidencia a primazia pela ação política e pela intervenção na realidade, tecendo críticas aos comunistas que não propunham ações: “Mas as organizações revolucionárias pareciam-me tão distantes. Receava que nem mesmo estivessem formadas de acordo com o meu desejo sincero. Meia dúzia de comunistas vivendo em cafés. O que faziam esses comunistas conhecidos, se não saíam dos cafés?” (GALVÃO, 2020, p. 44).
Em contrapartida, destaca a importância da conversa com Luís Carlos Prestes, ocorrida em Montevidéu, e apesar de demonstrar apreço e consideração pelo comunista que conheceu, ainda não foi o suficiente para convencê-la das relações entre teoria e prática política adotadas. Pagu salienta que se dedicou aos estudos sobre marxismo, embora “a satisfação intelectual não me bastava... A ação me fazia falta” (GALVÃO, 2020, p. 43). Esta intervenção viria quando ela, Oswald e seu filho Rudá foram viver em Santos, litoral de São Paulo, e lá participaram de uma reunião do Sindicato da Construção Civil, o que a fez ter contato com a organização dos trabalhadores, participando de algumas atividades. Por fim, ela explica seu ingresso na luta revolucionária, a partir da intervenção de Herculano:
Entrei na casa pequenina para o dom absoluto de minha pessoa. Entreguei-me completamente. Só ficou o êxtase da doação feita à causa proletária. Perturbada, desde esse dia, resolvi escravizar-me espontaneamente, violentamente. O marxismo. A luta de classes. A libertação dos trabalhadores. Por um mundo de verdade e de justiça. Lutar por isso valia uma vida. Valia a vida (GALVÃO, 2020, p. 49).
Pagu ingressa no Partido Comunista Brasileiro em 1931, aos 21 anos, sendo presa mais de vinte vezes, como já mencionado, de 1935 a 1940. Quando sai da prisão, em 1940, escreve sua autobiografia. É recorrente, nas produções sobre Patrícia Galvão, a exposição da sua militância pelo viés das produções artísticas. Neste texto, a pretensão volta-se para reflexões sobre as condições de sua participação no Partido Comunista Brasileiro, bem como a vigilância da polícia política sobre sua trajetória de militância.
Inclusive, em sua autobiografia, a própria Pagu elucida sua vida atrelada à luta política e à sua militância. No decorrer das mais de cem páginas, é possível identificar a ênfase dada aos momentos vividos a partir de sua inserção consciente na luta e no partido. Interessante destacar que, sobre sua produção artística, ela apenas faz menção ao fato de que conheceu Oswald a partir das coisas que ela escreveu, bem como sobre o trabalho realizado na elaboração do jornal O Homem do Povo. Também, sobre a obra Parque Industrial (GALVÃO, 2018), que ela publicou sob seu pseudônimo Mara Lobo, destaca tê-la redigido para estreitar o vínculo com a militância, o que é explicitado por Antoine Chareyre: “não foi uma romancista de profissão, e sim uma mulher de ação que, para seguir com seu combate revolucionário, entre muitas outras formas de intervenção, valeu-se do formato de romance por no máximo duas vezes ao longo de sua vida agitada” (CHAREYRE, 2018, p. 127).
Sobre o texto/romance Parque Industrial, no posfácio da edição de 2018, o mesmo Chareyre destaca que, no corpo do texto, os títulos dos capítulos alternam:
[...] o caráter pitoresco de um realismo social (“Teares”, “Mulher da vida”, “Habitação coletiva”...) e temas ostensivamente marxistas (“Num setor de luta de classes”, “Onde se gasta mais valia”, “Reserva industrial”...). Explicita-se que o leitor está, então, na presença de uma ficção equipada de modo singular, que não dissimula seu viés documental, militante e contestador; nem seu teor ideológico e até mesmo partidário (CHAREYRE, 2018, p. 122).
A escrita do romance proletário, primeiro deste gênero, acontece quando ela foi convidada a se retirar do partido durante a campanha de depuração, em que foram afastados do partido todos que não tinham origem proletária. Ela, então, recebe o conselho de continuar militando intelectualmente.
Aceitei a situação. Minha vida era minha vida política. Apesar de contrária à “depuração” arbitrária, não quis desanimar. Trabalharia intelectualmente, à margem da organização. Pensei em escrever um livro revolucionário. Ninguém havia ainda feito literatura nesse gênero. Faria uma novela de propaganda que publicaria com pseudônimo, esperando que as coisas melhorassem (GALVÃO, 2020, p. 90, grifo nosso).
Apesar de inconformada com a situação, mantém-se na luta e explicita que a vida dela era a militância. A leitura da autobiografia permite a compreensão de que Pagu combate de forma incansável para ingressar no Partido Comunista Brasileiro (PCB), enfrentando desafios físicos e emocionais, vivendo como operária e distanciando-se do filho pequeno. Explicita as condições impostas pelo partido para que ela pudesse militar, reiterando seu afinco em atender a tais condições. Relata que sua condição de mulher foi utilizada pelo partido de forma inadequada, indesejável, sendo extrapolada a questão da militância com a proposição do uso do seu corpo para conseguir informações. Quando essa proposta lhe foi feita, ela foi incisiva em esclarecer que estava disposta a sacrifício total se se tratasse de vidas, em um momento de luta armada, mas não para usar seu corpo dessa maneira. Não obstante, lhe foi dito que, como ela estava ligada ao Comitê, precisaria acatar e realizar as ordens, sem contestar. Em síntese, ela registra sua indignação com o trabalho que lhe foi imposto, mas o fez, para contribuir com o partido.
Apesar das críticas que tecia à estrutura partidária, declarava que fazia parte do processo, que a organização da luta no Brasil estava na fase inicial, portanto, que haveria muito trabalho a ser realizado, com erros e acertos a serem cometidos. Todavia, importante reiterar que, além de ser
[...] vítima da repressão estatal, que lhe tomou a liberdade e submeteu seu corpo a provações que a deixaram próxima da morte, também esteve diante do sectarismo nascente do PCB obreirista, que lhe impôs um esforço de autoanulação para, posterior e contraditoriamente, excluí-la de seus quadros (João Carlos RIBEIRO JUNIOR, 2015, p. 10-11).
Quando o assunto é a luta feminista, Pagu também é revolucionária, colocando-se de forma contundente contra o que pode ser denominado de feminismo reformista, levado à frente pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em que a defesa pelo sufrágio estava articulada com a continuidade do cuidado dos afazeres domésticos. Nesse sentido,
Pagu não poupou críticas a esse feminismo bem comportado (sic). Dos oito artigos da coluna “A mulher do povo”,2 o que mais enfatiza essa questão é o intitulado Maltus Alem (de 27 de março de 1931), nome que em si já nega a visão retrógrada de algumas feministas cuja crença nas possibilidades de mudança social a partir do simples controle da natalidade era radical (Larissa Satico Ribeiro HIGA, 2009, p. 2, grifos da autora).
O posicionamento de Pagu, voltado para o que hoje podemos denominar de feminismo marxista, pode ser identificado em Parque Industrial, cuja primeira edição data de 1933 (GALVÃO, 2018). No romance proletário, ela tece críticas severas às sufragistas, por não considerarem a questão de classe em suas lutas. Por sua vez, o romance conta com mulheres militantes defensoras dos ideais comunistas. No decorrer da obra, fica evidente o seu posicionamento no sentido de romper com a sociedade capitalista pelo viés da revolução, e não da reforma. Afinal, para ela, o sufrágio seria apenas uma das ações necessárias, pois a emancipação da classe trabalhadora, bem como da mulher, exigiria uma transformação na sociedade. Estas críticas de Pagu também estão registradas em sua participação na coluna feminista “A Mulher do Povo”, do jornal O Homem do Povo: “Nestes textos, compostos de observações fragmentárias, critica hábitos e valores das mulheres paulistas, desancando o feminismo pequeno-burguês em voga, reflexo provinciano do movimento inglês dos primórdios do século” (Augusto de CAMPOS, 2014, p. 20).
A luta de Pagu nesta direção pode, hoje, ser interpretada como constituinte da gênese dos estudos de gênero no âmbito do marxismo, ao lado de outras estudiosas e militantes (podemos recorrer, ainda, às produções de Eleanor Marx, Rosa Luxemburgo e Heleieth Saffioti, a título de exemplo) no contexto brasileiro e mundial daquele período. Não obstante, na atualidade, tal corrente pode vincular-se à defesa daquilo que a Teoria da Reprodução Social vem defendendo, de que é necessário partir das sistematizações, mesmo que iniciais de Marx, Engels e Lenin sobre a condição da mulher no capitalismo, como, por exemplo, o problema da desigualdade entre os sexos dentro da força de trabalho assalariada, para desenvolver os aspectos teóricos sobre a questão (Lise VOGEL, 2022).
Ainda sobre as críticas tecidas por Pagu sobre o feminismo burguês, Campos (2014) considera que, apesar de não ter o caráter rebuscado da crítica acadêmica, produzida inclusive por Saffioti, tem o mesmo direcionamento, elucidando as mesmas contradições da condição da mulher na sociedade de classes e explicitando a mera transposição do feminismo reformista estadunidense para a realidade brasileira.
Pagu militante: sob a vigilância da política estatal
Em uma busca a partir do nome Patrícia Galvão no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), constam, no acervo do Arquivo Nacional, trinta registros, dentre os quais alguns são repetidos e outros apenas fazem menção a um ou outro dado como o nome de Patrícia Galvão, como é o caso de um documento sobre atividades desenvolvidas por Rudá, filho de Pagu. Os dados englobam desde o registro da censura prévia, como é o caso da tradução realizada por ela da peça teatral O Túnel; ou, ainda, os registros das prisões de Pagu. Igualmente se encontram informações posteriores, de atividades organizadas após sua morte, a partir de sua trajetória de luta e militância política, e que inspirariam novas produções intelectuais e artísticas.
No que diz respeito às prisões de Patrícia Galvão, consta o registro sobre sua detenção, no ano de 1938, porque estava com “um amarrado contendo diversos boletins mimeografados de propaganda comunista” e que, na ocasião, ela usava o nome de Maria Magalhães (p. 15).3 No mesmo documento arquivado, após os dados sobre as prisões, estão anexados os materiais apreendidos, tanto os encontrados com Pagu quanto os com os demais presos. Todavia, sobre a prisão, em 1936, quando ela participou do Levante Comunista, é possível recorrer a uma foto em que ela está sendo conduzida à prisão e uma do período em que ficou detida, bem como a clássica e chocante foto do período em que esteve presa, elucidativa das torturas sofridas por Pagu.4 É uma foto em preto e branco em que o rosto apresenta marcas causadas em função de tortura sofrida.
Ainda sobre os arquivos da polícia política, nos deparamos com um outro documento que explicita a trajetória conflituosa de Pagu com o PCB. Em caráter elucidativo, recorremos ao documento denominado “Contra o Trotskismo”, encontrado na residência de Agostinho de Carvalho, que se tratava da Resolução do Comitê Regional de São Paulo do PCB, expulsando os que consideravam como fracionistas-trotskistas. A Resolução apresenta um panorama geral sobre a luta do partido contra este grupo político, explicitando quem eram os principais líderes, as ações consideradas como delitos e a justificativa da expulsão. Por fim, apresenta a relação dos expulsos e a explicitação dos motivos. Sobre Pagu, o texto é o que segue:
Patrícia Galvão: Conhecida geralmente com o nome de PAGÚ (sic). Desde princípios de 1937 que não mais pertencia ao Partido. Muito conhecida pelas suas atitudes escandalosas de degenerada sexual. Depois que “fugiu” do Hospital da Cruz Azul, onde se encontrava presa, ligou-se ao grupo fracionista-trotzkista (sic), onde passou a atuar ativamente, tendo sido enviada por Sacheta (sic) e seus sequazes para o Rio de Janeiro, com a incumbência de formar o CR trotskista (ARQUIVO NACIONAL, 1939, p. 251, grifos nossos).
Além da linha teórico-prática seguida por Pagu, no que diz respeito à luta emancipatória, que diverge da linha do PCB no período, é marcante o preconceito no que se refere à condição da vida privada dela, questão sempre presente. Portanto, os parâmetros patriarcais e sexistas também encontravam ressonância no âmbito dos movimentos revolucionários.
No Termo de Descostura e Recostura, ou seja, Apelação do processo referente à prisão de Hermínio Sacchetta, novamente a questão da cisão entre os membros do PCB é mencionada, inclusive com a acusação de que Sacchetta enviou Patrícia Galvão para o Rio de Janeiro - no período, capital do país -, para a realização do trabalho de propagação das atividades desenvolvidas por essa “nova organização extremista” (ARQUIVO NACIONAL, 1938).
É possível recorrer, ainda na década de 1940, à ficha de identificação de Pagu junto à Delegacia de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo. Trata-se de uma ficha de cadastro com os dados de Patrícia Andrade Galvão, nome completo; filiação (Thiers Galvão e Adélia Galvão). Local e data de nascimento (9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista, São Paulo). Endereço: Rua das Andradas, São Paulo. Estado civil: casada (DEOPS, 1946).
Sobre as atividades após a morte de Pagu, consta um documento do Departamento da Polícia Federal, de 03 de novembro de 1983, em que há o relatório sobre a Fundação Cultural de Curitiba, com o registro das atividades desenvolvidas pela entidade em agosto de 1983, em que é exibido o filme Eh: Pagu Eh!. No folder de divulgação das atividades, consta a descrição deste e dos demais filmes exibidos:
Eh: Pagu Eh!, Brasil, 1982, direção de Ivo Branco. Lançamento em Curitiba. O filme focaliza Patrícia Galvão - Pagu - romancista, poeta, feminista que militou no partido comunista na década de 30. Mulher de Oswald de Andrade, participou com ele do movimento Antropofágico. Escreveu “Parque Industrial”, considerado o primeiro romance proletário da literatura brasileira, resultado de seu trabalho de militante nas fábricas do Brás. Patrícia Galvão (1910-1962) é o símbolo feminino do modernismo brasileiro (ARQUIVO NACIONAL, 1983, p. 5).
Esta descrição elucida algumas das contribuições de Pagu para a organização da luta feminina e seu engajamento nas artes, sendo uma referência para reflexões no período da ditadura militar; portanto, se coaduna com a defesa de que as reflexões e as ações desencadeadas por Pagu reverberam nos nossos dias.
Considerações finais
Ainda que as lutas feministas no Brasil e suas conexões com o feminismo mundial sejam evidentes e frequentemente abordadas academicamente, recorremos aqui, também, às peculiaridades do caso brasileiro, voltando o foco para uma das mais conhecidas mulheres militantes de nossa história. Por vezes negligenciadas pela história triunfante dos homens, e nos mais diferentes espectros políticos, assistimos, nos últimos anos, a novos enfoques e a renovados olhares e lentes de análise sobre a história das mulheres. Uma das características dos novos estudos é justamente ressaltar a pluralidade de experiências das mulheres, os feminismos, observando-se questões étnico-raciais, sociais, culturais, nacionais, regionais, e buscando encontrar as zonas de interseção entre estas trajetórias singulares e as similitudes das realidades sociais que demarcam a desigualdade de gênero. Não obstante, não surgem unicamente novas fontes de análise do passado, mas, também, novos olhares sobre estas fontes já consultadas, porém, agora, eivadas de perguntas do presente e potentes pelas lutas e estudos feministas acumulados.
Expressão dessas transformações, as obras voltadas ao público infantil feminino, que trazem experiências singulares de mulheres no âmbito da ciência, da cultura, das artes e das lutas políticas, são igualmente recorrentes em inúmeros países e vêm ajudando na construção de uma imagem que rompe com posições subalternizadas, secundarizadas e, por vezes, até invisibilizadas das mulheres. Pagu tem centralidade nessas novas publicações, dando a conhecer sua trajetória também entre as crianças. As constantes transformações desencadeadas pelas lutas feministas, ao passo que ajudaram a construir novas formas de luta e de conscientização das novas gerações, também vêm provocando reações dos setores mais conservadores da sociedade, e não unicamente da realidade brasileira. A violência de gênero revela que estas reações encontram espaço tanto em grupos sociais organizados em torno de partidos, associações, grupos religiosos, como também na dimensão doméstica, igualmente influenciada por esta reação mais sistemática e coletiva. A solução não é retroceder a luta, mas avançar. Entende-se aqui que a seara histórica pode ensinar. As experiências das mulheres inspiram e ensinam. Prova disso é que novas Pagus estão por aí nas Marielles; elas encontram seus rostos refletidos nas mulheres que lutam.
Realizar pesquisa sobre a militância feminina na história do Brasil permite desvelar uma versão não socializada, ou seja, como as mulheres lutaram e foram acometidas pelas atrocidades dos períodos ditatoriais, como no caso da ditadura estadonovista; mas, também, de forma incisa, como elas contribuíram no processo de organização e reorganização da vida humana. Portanto, reiteramos a defesa de que “a história das mulheres é indispensável e essencial para a emancipação das mulheres” (Gerda LERNER, 2019, p. 27).
De outro lado, permite analisar a história por outro viés; no caso, da luta feminina por reconhecimento, liberdade, possibilidade de tomar decisões para além do espaço familiar e, ainda, no enfrentamento às barreiras que se colocaram e, quiçá, ainda se colocam para a participação da mulher nos diversos espaços sociais. O preconceito de gênero, a maternidade, enfim, o desvelamento da condição da mulher em uma sociedade patriarcal.
No tocante às produções sobre Pagu, em um levantamento realizado por Elfi K. Fenske (2014), que encontrou mais de uma centena de estudos sobre Patrícia Galvão, é possível destacar que as pesquisas, em sua maioria, enfatizam a Pagu artista. Aqui, reiteramos a intenção de explicitar sua vida como sendo mulher, mãe, militante, polígrafa, operária, artista e incansável lutadora por seu ideal de libertar as(os) trabalhadoras(es) que, como ela dizia, valem a vida.
Não podemos deixar de recorrer ao fato de que muitos documentos de Pagu e de seu último companheiro foram, recentemente, em 2004, encontrados no lixo por uma catadora de recicláveis. Entre eles, vários documentos originais do casal, os quais foram doados para o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL). Assim sendo, a vida de Pagu segue trazendo possibilidades de reflexão para as novas gerações, como, inclusive, é mencionado por Geraldo Galvão Ferraz (2004), quando redige um artigo sobre o ocorrido com o achado, que ele denomina: “Quando o lixo vira ouro”.