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Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação

versão impressa ISSN 0104-4036versão On-line ISSN 1809-4465

Ensaio: aval. pol. públ. educ. vol.30 no.115 Rio de Janeiro abr./jun 2022  Epub 05-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/s0104-40362022003003764 

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A curiosa história do Real Collegio dos Nobres*

The curious history of the Real Collegio dos Nobres

La curiosa historia del Real Collegio dos Nobres

Claudio de Moura Castroa 
http://orcid.org/0000-0001-6998-6435

a Universidade Positivo, Curitiba, PR, Brasil.


Resumo

O que aprendemos examinando um colégio para preparar a nobreza portuguesa, no período do Marquês de Pombal? Hoje seria inaceitável usar verbas públicas para financiar um colégio restrito à nobreza. Ou punir com cadeia a indisciplina. Ou aceitar que alguns livros eram proibidos. Em compensação, colégios públicos podiam cobrar dos alunos. Dos reitores, exigiam-se cultura e dotes morais. O mesmo com sua equipe. O regime de estudos era severíssimo. Os professores deveriam explicitar a pedagogia usada e sempre levar os alunos a aplicar na prática o que ensinavam.

Palavras-Chave: Escola; Nobreza; Rigor; Diferenças

Abstract

What have we learned by examining a college to prepare the Portuguese nobility in the period of the Marquis of Pombal? At present, it would be unacceptable to use public funds to finance a college restricted to the nobility. Equally unacceptable would be to punish indiscipline with jail sentences. Or even, to accept that some book s were forbidden. In contrast, public schools could charge students. The rectors and their staff were required to have culture and moral qualities. The study regime was very strict. Teachers had to explain the pedagogy used in class and always lead students to apply what they taught in practice.

Key words: school; nobility; rigor; differences

Resumen

¿Qué aprendemos al examinar un colegio para preparar a la nobleza portuguesa, en el período del marqués de Pombal? Hoy sería inaceptable utilizar fondos públicos para financiar un colegio restringido a la nobleza. O castigar la indisciplina con la cárcel. O aceptar que algunos libros fueron prohibidos. Por otro lado, las escuelas públicas podrían cobrar a los estudiantes. De los decanos se exigieron dotes culturales y morales. Lo mismo con su equipo. El régimen de estudios era muy estricto. Los maestros debían explicar la pedagogía utilizada y siempre guiar a los estudiantes a aplicar lo que enseñaron en la práctica.

Palabras-clave: Escuela; Nobleza; Rigor; Diferencias

1 Introdução

Discute-se a Educação brasileira como se nem tivesse passado e nem houvesse questões equivalentes em outros cantos do mundo. Em outras palavras, tratamos como fenômenos tupiniquins o que é universal. Para andar na contramão e dar uma cutucada nesse cacoete verde-amarelo, revisitamos a criação do Real Collegio dos Nobres, em Lisboa – iniciativa do Marquês de Pombal, em 1761.

O que descobrimos? Há muita coisa que não faz o menor sentido hoje ou, até, seriam inadmissíveis. A mais flagrante é criar uma escola financiada pelos impostos, na qual só entra quem apresentar títulos de nobreza. Contudo, outros aspectos reproduzem situações semelhantes às que convivemos. E, surpresa, algumas soluções são melhores do que as adotadas hoje.

Nossa fonte principal é um Édito Real criando essa escola, publicado em fac-simile no livro A Aula do Commercio e datado de 1771 (MENDONÇA, 1982)1. Está assinado pelo Rei D. José I, mas, obviamente, é fruto da cabeça do então Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal. Causa boa impressão a alta qualidade técnica da proposta para o Collegio, bem como o preciso detalhamento das normas de funcionamento e dos currículos propostos.

Pombal foi Embaixador em Londres e passou bom tempo em Viena, onde se casou em segundas núpcias com uma aristocrata austríaca, Elenore Ernestine Eva Wolfganga Grafin von und zu Daun auf Sassenheim und Callaborn. Assim é, quanto mais nomes, mais nobre.

Portanto, teve uma longa estada no exterior. Por consequência, viveu próximo das melhores escolas da Europa. Mais do que o acanhado ambiente de Lisboa, o espírito e o regulamento do colégio proposto parecem inspirados pelo que se fazia nessas capitais, altamente sofisticadas.

2 O renascimento de Portugal

Falar de Sebastião José de Carvalho e Melo é bulir no maior vespeiro da história portuguesa. E como uma busca rápida no Google sugere, as trocas de farpas continuam hoje em plena efervescência – até no Brasil. Encontramos algumas discussões sérias, em paralelo a muita birra, de lado a lado.

Mas parece seguro afirmar, depois da era dos descobrimentos, não apareceu outro estadista de igual porte e com folha de realizações mais volumosa. Mas Pombal, a poderosa iminência parda por trás de D. José I, indispôs-se seriamente, nada menos do que com a velha nobreza de Portugal. Iniciou-se a briga com a prisão, a seu mando, de centenas de pessoas associadas a uma tentativa de assassinato do Rei (que alguns atribuem a mandantes jesuítas). E dos presos, alguns foram executados.

As colisões começam na Educação em Portugal, cujo monopólio pertencia aos jesuítas. Porém, se alastram para o Vice-Reinado do Grão-Pará, onde se engalfinhou a fundo com eles. Diante dos conflitos da Ordem, também com outras Coroas europeias, em 1773, o Papa decidiu extinguir a Ordem.

Pombal ganhou a batalha, mas perdeu a guerra, no julgamento da história que nos chega. Essa se escreve e reescreve, de acordo com o momento e o lado do autor. Com a recriação da Ordem de Santo Inácio de Loiola, 30 nos adiante, aparecem as versões retocadas pelos jesuítas. Com efeito, nossos livros didáticos mostram uma visão muito negativa e maldosa do Marquês. Uma análise mais isenta sugere um quadro bem diferente.

É bem documentado que Pombal conseguiu despertar Portugal da sonolência em que vivia, a partir do fim do século XVI. Naturalmente, o ouro do Brasil ajudou. Foi uma façanha inaudita a rápida reconstrução de Lisboa, em um ano, após o medonho terremoto de 1755.

Inteligente, culto, decidido, corajoso e cheio de iniciativas, sacudiu o Império. Criou companhias públicas para o desenvolvimento do vinho, sedas, pesca, afora as outras, para o comércio com as Índias e com o Brasil. Diante da mediocridade das empresas locais, criou monopólios explorados por tais Companhias. Hoje questionamos essas soluções estatais, comuns na Europa de então e justificadas pela doutrina Mercantilista. Mas na época, eram uma boa solução - como foram as nossas estatais, durante curto tempo.

Parte da má vontade contra ele resulta de que atropelava, sem vacilar, quem entrasse à sua frente. Seguia as ideias do Iluminismo, mas achava também que, para as pôr em prática, era preciso um déspota esclarecido, crença muito em voga na época. Usou a sua autoridade soberana para impor a racionalidade requerida do Estado. Países, como a China de hoje, levam alguns a pensar que tais ideias ainda tenham a sua vigência e os seus sucessos.

Pombal criou um complexo e minucioso sistema de censura de livros. Nos dias de hoje, isso traz imagens do que se fez durante o regime militar no Brasil, algo considerado inaceitável. Porém, nada diferente do que acontecia na França. De fato, são recorrentes as colisões de Diderot com a censura francesa, ao preparar a sua Enciclopédia. De fato, o autor e organizador dessa monumental obra teve seus momentos de cárcere.

Pombal descartou o Index do Vaticano e criou o seu próprio, com regras muito claras. Ademais, desinflou a Santa Inquisição em Portugal e eliminou a distinção entre cristãos novos e velhos – discriminação que vinha se arrastando havia séculos.

À parte essas escaramuças, sua mais fragorosa colisão foi com os jesuítas, não apenas em Portugal. Segundo ele, esses faziam o que lhes aprouvesse. Como julgava Pombal, ao cuidarem os jesuítas de todas as escolas do Reino, o faziam mal, seja em termos do pouco que aprendiam os alunos, seja em semear ideias perniciosas ao país. Além de não pagarem impostos, olimpicamente desdenhavam a Coroa portuguesa, e o próprio Papa, criando conflitos militares.

Não cabe entrar aqui mais a fundo nessa longa e feroz disputa. Seja como for, a pressão de vários países europeus levou o Papa a extinguir a Ordem, em 1773. Se uma medida tão drástica foi tomada, alguma razão teriam os opositores da Ordem. De fato, os jesuítas entraram em rota de colisão com vários dos países europeus. E de quebra, com suas colônias nas Américas. A guerra pelos territórios das Missões é um exemplo da recusa dos jesuítas em cumprir um tratado entre Portugal e Espanha, armando os indígenas para resistirem.

Uma acusação ubíqua em livros atuais é que a saída dos jesuítas arruinou a Educação em Portugal e no Brasil. Mas a favor do Marquês, é preciso aduzir que, com a morte de D. José, foi sumariamente defenestrado, em 1777, por pressão da mesma nobreza contra quem se esgrimia. Portanto, não era mais sua a tarefa de substituir as escolas jesuítas.

3 Como funcionava o Real Colégio dos Nobres

Um colégio é um colégio, por muito que pudesse ser diferente dois séculos e meio atrás. Os professores ensinam, os alunos aprendem – ou não – e há uma administração para cuidar do que for necessário. E podemos supor haver sido esse colégio inspirado na experiência inglesa ou austríaca. Afinal, foram os países em que ele passou mais tempo.

Nessa análise, o que buscamos são as diferenças nos detalhes de funcionamento. Há situações óbvias, curiosas, bizarras e criativas. São elas que examinaremos. Mas vejamos o início do documento:

Dom José por graça de Deus, Rei de Portugal [...] faço saber [...] considerando que da boa e regular instrução é sempre tão dependente o bem Espiritual e a felicidade Temporal dos Estados; para a propagação da Fé e augmento da Igreja Catholica [...] que os Estudos se farão mais férteis quando fossem cultivados em Collegios nos quais a regularidade das ordens, e a virtuosa emulação dos Estudantes concorressem para elles se adiantassem nas suas profissões com maior brevidade [...] Hei por bem restabelecer na minha Corte e Cidade de Lisboa um Collegio com o titulo Collegio Real dos Nobres... O qual quero que se conserve sempre no meu inteiro Domínio e na minha privativa, e imediata Proteção (MENDONÇA, 1982, p. 571).

Porquanto o princípio de toda a sabedoria é o temor de Deos e a observância dos seus preceitos, e da sua Igreja, não bastando que no Colegio floreção as Bellas Letras, se com ellas não aprenderem, e cultivarem os bons costumes... Assistirão todos os dias ao Santo Sacrificio da Missa... Nos doming, e dias Santos se lhes ensinará a Doutrina Christã. Nos sabbados de tarde irão recitar devotamente a Ladainha da Nossa Senhora (MENDONÇA, 1982, p. 195-203).

Encontramos aí três ideias fundamentais: o bem-estar da nação, a importância dos dotes morais e a devoção religiosa. As duas primeiras, claramente, eram uma convicção de D. José (ou pelo menos, do Marquês). A terceira ideia reflete o caldo de cultura da época, dada a forte religiosidade do país. De fato, essa retórica nada tem de original à época. Impossível dizer o quanto há de sinceridade ou ânimo de produzir um documento “politicamente correto”.

Sorrimos ao ver o grau de detalhamento das instruções. Não nos esqueçamos: foram firmadas pelo Rei. Em certo trecho, determina a frequência com que deve ser varrida a entrada do Collegio. Em outro, determina a hora de retirar a chave da porta, para que não possa mais ser aberta durante a noite. E há também Éditos Reais detalhando a ementa das disciplinas.

Um aspecto algo curioso do texto são as finanças do Collegio. Em contraste com a verticalidade de tudo que é prescrito para a escola, os dinheiros são administrados por um comitê. Naturalmente, inclui o Reitor. Além dele, os dois professores de maior antiguidade e, também, três alunos, escolhidos dentre os de melhor julgamento. As prestações de conta são frequentes e rigorosas. Entra em cena a figura do mordomo, a quem são confiados os dinheiros para as compras do cotidiano. Menciona-se também o cofre, que apenas pode ser aberto com três chaves, uma prática comum.

O Collegio foi instalado em uma antiga escola jesuíta, vaga após a extinção da Ordem. Depois de várias encarnações, o belo edifício virou Escola de Engenharia. Hoje é um museu de ciência.

O financiamento do Collegio vem de fundos da Coroa. Por alguma razão, isso não fica claro no Édito de criação. Além disso, há as receitas das mensalidades dos 100 alunos admitidos.

Mais ou menos à mesma época, foi criada a Aula do Commercio, uma escola de contabilidade e administração. Sua clientela seria uma burguesia nascente. Nem pobres e nem nobres. Essa escola também cobrava mensalidades dos estudantes.

Conclui-se que não se viam problemas para que as instituições públicas de Ensino, além dos seus orçamentos, cobrassem dos seus estudantes. Nesse sentido, estamos nós, hoje, muito mais atrasados do que o Portugal pombalino.

À guisa de conclusão, há que se admirar a iniciativa da Coroa portuguesa de empreender três iniciativas educativas de magnas consequências futuras para o país – e para o Brasil: A aula do Commercio, o Real Collegio dos Nobres e a reforma da Universidade de Coimbra. E note-se, não foram apenas planos e leis, mas realizações na contramão da conservadora nobreza de Portugal.

4 Quem eram os alunos

Trata-se de um colégio criado para receber os jovens da nobreza de Portugal. São eles que precisam ser educados, para tirar o país da sua letargia secular. Nessa época, quase não é preciso dizer, nem pensar em admitir mulheres.

Pelo Édito, os professores e alunos têm direitos especiais. “Gozarão, respectivamente, de todos os Privilegios, Indultos e Franquezas que gozam os Lentes da Universidade de Coimbra” (MENDONÇA, 1982, p. 86).

Também relevantes eram os favorecimentos para que, ao se formarem no Collegio, fossem admitidos em Coimbra. Porém, a vantagem mais cobiçada seria a preferência para sua contratação subsequente no serviço público.

Confirmando o papel destacado que se esperava deles, a cada ano, os alunos seriam convocados para ir ao Palácio da Ajuda, para o beija-mão do Rei. E previa-se que o próprio Rei, ou Pombal, visitasse periodicamente o colégio e que assistisse às provas. Será que veio daí o hábito de D. Pedro II visitar escolas?

Um dado curioso é a idade de entrada. O colégio recebia alunos de 8 a 14 anos. Não fica claro no Édito Real como lidar com idades e repertórios de conhecimentos tão díspares.

Para cada cinco alunos, há um “Familiar”, termo curioso para designar um empregado doméstico que cuidaria das necessidades cotidianas dos estudantes. A existência desses valets de chambre reforça o caráter aristocrático do colégio. O lado positivo, como acontecia também na Espanha, é que os “familiares” estavam autorizados a assistir as aulas, ainda que em uma área separada da sala de aula.

O bem-estar material da jovem nobreza era levado a sério. Além dos “familiares”, havia a preocupação com os dois cozinheiros. Serão despedidos se “não cumprem com suas obrigações, assim no cuidado com o bom tempero, e limpeza dos guizados, como o asseio da cosinha e da fidelidade ao serviço do Collegio” (MENDONÇA, 1982, p. 586). “Os mantimentos com que se alimentam os Collegiaes ... serão sempre os de melhor qualidade, e os mais saudaveis em cada uma das diferentes espécies” (MENDONÇA, 1982, p. 590-591).

Até os pratos a serem servidos aos alunos são especificados no documento. “Nos dias de carne, terão ao jantar um prato de sopa, outro de vaca, outro de assado, ou guizado alternativamente: outro de Arroz, e queijo, ou fruta para a sobremeza” (MENDONÇA, 1982, p. 591).

Cabe também aos porteiros, “tanger todos os dias os sinos, ás horas que se deve levantar os Collegiais...” (MENDONÇA, 1982, p 589).

5 Da estrutura administrativa

“Haverá hum Reitor que tenha a seu cargo o governo do Collegio, sendo Pessoa de Letras, e Virtudes... O mesmo Reitor residira sempre no Collegio. E não poderá pernoitar fora dele, sem negocio grave, e urgente [...]” (MENDONÇA, 1982, p. 573-574). Fica claro o regime rigoroso imposto a esse mandatário. Seu perfil combina conhecimentos com dotes morais. Nada mau se assim fosse hoje. Porém, não poder pernoitar fora reflete o autoritarismo de então.

“Deve cuidar muito seriamente na paz, socego, boa ordem dos Porcionistas... e direção de todo o Collegio [...] Fará castigar os excessos que os Collegiaes cometerem... com até pena de reclusão pelo tempo que lhe parecer justo” (MENDONÇA, 1982, p. 574). Para colocar essas normas disciplinares em perspectiva histórica, em Paris, o celebrado colégio Louis Le Grand mandou construir um calabouço para domar os alunos mais recalcitrantes. Ou seja, gostemos ou não, a prisão de estudantes fazia parte dos costumes da época.

E os serviçais encarregados da limpeza das salas de aula tinham instruções adicionais: “executem os castigos que necessários forem”.

Antes de condenar as masmorras escolares, quem sabe estamos hoje no extremo oposto? Pode tudo e o desrespeito aos professores é um dos fatores que piora a qualidade do recrutamento para o magistério.

Fazem todo o sentido hoje as instruções aos reitores na apreciação pessoal do que acontece nas salas de aula.

“Visitará as Aulas com frequência, e sem determinadas horas, vendo as lições dellas, para assim animar os Aplicados, louvando-os publicamente, e admoestando os Negligentes para se amendarem [...]” (MENDONÇA, 1982, p. 578). Não seria saudável para as escolas de hoje se os diretores tivessem as mesmas instruções de assistir aulas? O que sabem hoje os dirigentes sobre seus professores, seus alunos e o Ensino no seu estabelecimento? Ademais, “nenhum Collegial poderá sair fora sem licença do Reitor, por escripto e selada com o Sello do Collegio” (MENDONÇA, 1982, p. 574).

É também determinado que os reitores não podem decidir a aceitação de novos estudantes. Para isso há de se cumprir os processos administrativos. Nada a objetar.

Fica também dito que cada aluno terá um registro sobre tudo que realizou durante o curso, o que seria hoje o seu portfólio. São informações “secretíssimas”. Porém, anualmente, são apresentadas ao Rei pelo Reitor.

Esse conjunto de instruções sugere alguns comentários. Põe em evidência a importância dada por Pombal à instrução da nobreza de Portugal. Revela também que o aproveitamento acadêmico é o critério mais importante. E, finalmente, mostra como era tudo muito pequeno à época. Que a centralização do governo fosse a palavra de ordem, mas chegar a esses detalhes, tal como o Rei revisar o avanço individual de alunos. Isso parece sugerir uma agenda Real bastante peculiar.

Outra leitura do mesmo tema é que se trata de valorizar os graduados desse Colégio, dada a imperiosa necessidade de empurrar para a modernidade a rançosa nobreza do país.

O Collegio tem também um Vice-Reitor. Substitui e ajuda o Reitor. Porém, estando mais próximo dos alunos, deverá empenhar-se em acompanhar muito detalhadamente a instrução. “Ao seu officio pertencerá vigiar cuidadosamente sobre os passos dos Collegiais: Tendo o cuidado de visitar repetidas vezes inesperadamente para os ter sempre cuidadosos e aplicados” (MENDONÇA, 1982, p. 575).

E também, garantir o bom comportamento dos alunos. Tal como hoje, não é tão fácil assim canalizar para atividades escolares as energias de jovens saudáveis e bem alimentados.

Abaixo do Vice-Reitor está o Perfeito (hoje Prefeito) dos Estudos. Na sua escolha, “[...] além dos exemplares costumes que são indispensáveis, as qualidades de ser bem instruído nas Bellas Letras, e de escrever com pureza, e com elegância em Latim” (MENDONÇA, 1982, p. 574).

Mais uma vez, as virtudes morais são mencionadas. Já o domínio do Latim tinha boas razões para ser exigido. De fato, a ciência da época estava escrita em Latim, bem como boa parte da literatura que todos deveriam conhecer.

Abaixo do “Perfeito de Estudos”, o Édito manda que sejam escolhidos funcionários de capacidade e exemplares costumes para que tenham suas camas em cada um dos dormitórios. E que não se ausentem durante as horas de sono dos alunos.

O Collegio contava com uma elaborada estrutura de serviços. O professor de Retórica funcionava como bibliotecário. Enfatiza-se então a proibição de retirar livros da biblioteca. Nesse particular, avançamos muito.

6 Do cotidiano dos alunos e sua disciplina

Descrevemos no Quadro 1 as rotinas diárias dos alunos, no período de verão. São quase iguais às do inverno, portanto, não se justifica a sua apresentação.

Quadro 1 O dia a dia de um estudante do Collegio dos Nobres 

5:45 Levantar-se da cama
6:00 Estudos
7:15 Missa e primeira refeição
8:00 Aula
10:30 Recreação ou sesta
11:00 Almoço
11:45 Recreação
1:15 Estudo
2:30 Aula
5:00 Dança, picaria (equitação), esgrima etc.
7:30 Bênção na igreja
8:00 Estudo
9:30 Tempo livre
10:00 Ceia
10:30 Dormir

Fonte: Elaborado pelo autor com base em Mendonça (1982, p. 578-579)

Faz bem anos, a imprensa inglesa publicou o regime de estudos de alunos japoneses que buscavam acesso às boas universidades. Causou espanto e perplexidade o rigor da sua jornada. Recentemente, temos notícias de que, na Coréia, estudar 16 horas por dia é bastante comum. Mas, vejam só, pelo menos no papel, nossos antepassados portugueses não ficavam muito para trás.

Quantos alunos da elite brasileira de hoje se submeteriam a esse regime? Somam-se menos de três horas de tempo livre por dia. São quatro horas de estudo e quatro de aulas. De quebra, há que assistir uma longa missa e uma bênção, não necessariamente muito do agrado dos alunos. Quem sabe, somos nós que estamos descalibrados das exigências disciplinares para formar verdadeiras elites intelectuais?

Parece claro não ser uma escola para “filhinhos de papai”. Como mencionado, até para a cadeia podem ir os mais turbulentos.

Divertidas seriam apenas as atividades físicas, escolhidas dentre as que deveriam ser dominadas pela nobreza. As danças começam aos nove anos. A equitação começa com 13 anos. O cavalo era o meio de transporte e, obviamente, montar bem fazia parte da etiqueta dos nobres. Até hoje, existe o picadeiro da escola, transformado em atração turística. Esgrimir é saber usar a arma que, mais adiante em suas vidas, sempre terão à cinta. Por razões óbvias, não começa antes dos 14.

A maneira pela qual se tratam entre si os alunos é objeto de cuidadosas advertências.

Porque entre os mesmo Colegiais se deve conservar a mais constante, e perfeita harmonia, se tratarão todos com huma reciproca, e fraternal igualdade, sem que lhe seja permitido arrogarem-se alguma distinção, ou preeminencia com pretexto de maior nascimento, e menos moverem-se praticas ou disputas com similhante motivo. ...sob pena de ... oito dias de Carcere [...] (MENDONÇA, 1982, p. 577).

No que tange ao vestir, observamos as mesmas preocupações de não criar diferenças ou castas.

[...] Usaráo todos (sem exepção nem ainda do Reitor) do vestido Tallar a que se chama vulgarmente de granacha [batina]. Quando sahirem fora do Collegio, poderão os primogênitos usar de casacas, e vestidos de panno ou quaisquer outros Estoffos que não sejam de seda. Os que forem filhos segundos, ou terceiros, usarão tecidos chamados de Abbatina, Tallaresou de capa curta [...] E todos usarão de Habito distinto, pendente e uniforme no qual haverá de huma parte a Imagem de Nossa Senhora da Conceição, e da outra a Inscripção do Collegio (MENDONÇA, 1982, p. 577).

As exceções estão nas vestimentas para dançar, esgrima e equitação. “... nesses casos, poderão usar do vestido competente, conquanto que o larguem imediatamente, que se findarem as Lições...” (MENDONÇA, 1982, p. 577).

7 Do que se ensinava na escola

Naturalmente, a escola é herdeira direta das tradições escolásticas. Colégios como esse adotam um currículo de origem Medieval: Latim, Grego, Retórica, Poética, Lógica e História.

Dentre as línguas vivas, inclui-se, naturalmente o Português. Mas além disso, o Fancês e o Italiano. São bem prescientes os comentários sobre a língua inglesa. Era opcional, mas o Édito adverte: aqueles com interesses práticos têm todas as razões para aprendê-la.

Se hoje aprender Latim e Grego é um fim em si, na época, a Ciência se escrevia em Latim e muito dos clássicos havia que ler em Grego. Quanto ao Latim, há aqui um detalhe curioso: que se erre profusamente em qualquer língua, menos falando Latim.

As conversações familiares, serão sempre, ou na Lingua Portugueza, ou na Franceza, Italiana, ou Ingleza, como os Collegiaes acharem que he mais conforme aos diferentes genios e aplicações [...] Não poderáo porem nunca conversar em Latim, por ser o uso familiar desta língua morta mais propria para ensinar a barbarizar, do que para facilitar o conhecimento da mesma língua (MENDONÇA, 1982, p. 578).

Retórica adquiriu entre nós um sentido de algo pejorativo, como se fosse “a arte de fazer discursos”. Contudo, na realidade, trata-se do domínio do bem pensar, sem o que os interlocutores não seriam convencidos.

Lógica parece fazer muito sentido. Contudo, se hoje é relegada a um segundo plano, é porque melhor se dominam os seus princípios no bojo de aplicações. Pode ser decifrando textos ou acompanhando argumentos científicos.

História é tão importante hoje quanto era então. Quanto maior a invasão tecnológica nas nossas vidas, mais a História nos ajuda a entender o presente.

Muita ênfase é dada à Matemática, listando os teoremas a serem aprendidos. Opcionalmente, um segundo professor ensinará “annalis dos infinitos e Calculo Integral”.

É bem revelador da sociedade portuguesa de então estar Arquitetura Militar incluída no currículo. De fato, um dos pontos fortes do Império português era a excelência de suas fortificações – que ainda sobrevivem no Brasil. Está também a Arquitetura Civil, mas estranha menos. E para que se possa chegar a bom termo no Ensino desses assuntos, há que aprender Desenho.

Mercê do espírito modernizante de Pombal, introduz-se o Ensino da Física, com considerável detalhamento (curiosamente, incluindo Geografia). Nesse momento, antes da reforma pombalina, a Universidade de Coimbra não ensinava Ciências.

Com muita propriedade, o Édito chama a atenção para a aplicação dos conceitos matemáticos na Arquitetura. Aliás, há uma clara e inequívoca instrução para que se enfatizem as aplicações práticas de tudo que se ensina. A citação abaixo não cairia mal nos dias de hoje.

As Lições serão na maior parte de viva vós, sem que os ditos Professores carreguem os Discípulos com multidões de preceitos desnecessarios em Linguas que são vivas, e que se aprendem muito mais facilmente lendo, conferindo, e exercitando em repetidas praticas. Os livros para estas aplicações serão sempre correctos, uteis e agradáveis [...] (MENDONÇA, 1982, p. 580).

Se isso acontecia de fato, não sabemos. Mas como seria bom se nas nossas escolas de hoje os professores se detivessem nas aplicações do que ensinam.

Para ministrar o currículo acima descrito, exige-se dos candidatos a professor um forte detalhamento das credenciais que devem apresentar. Mais ainda, devem bem explicar os métodos de Ensino que utilizarão. Nisso, esse colégio está à nossa frente. Não seria má ideia para os professores de hoje!

Dado o atraso de Portugal no Ensino, havia professores estrangeiros – no caso, italianos e irlandeses. Mas não se menciona em que língua ensinavam. A mesma presença de estrangeiros aconteceu na criação da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA).

Em contraste, pareceria hoje extemporâneo o Édito indicar explicitamente os livros proibidos de serem usados pelos professores. As justificativas eram várias. Havia a preocupação de não trazer ideias revolucionárias. Sendo assim, Voltaire e Rousseau estavam banidos. Também tentava-se proteger os alunos de pregações escandalosas que pudessem estar em conflito com os bons costumes. Não obstante, boa parte da artilharia estava dirigida a livros jesuítas que pregariam inverdades ou a dissidia. Esse contencioso com a Ordem é um tema recorrente no Gabinete Pombal.

Mas não singularizemos Portugal por impor essa visão “administrada” do mundo intelectual. Vem de 1559 a primeira versão do Index Livrorum Proibitorum publicado pelo Vaticano. Apenas em 1948 abandonou-se a prática, quando já incluía quatro mil títulos. A novidade portuguesa foi descartar a lista do Vaticano e criar a sua própria.

8 A trajetória do Real Collegio dos Nobres

Sob muitos pontos de vista, o Collegio é um marco revolucionário na história da Educação portuguesa. A explícita volta aos clássicos. A ênfase nas Humanidades fica bem demarcada. Note-se que antes da sua reforma, a Universidade de Coimbra não ensinava as Matemáticas e as Ciências, o que propõe detalhadamente o Édito Real. Em tudo, surpreende o grau de detalhamento. O documento mostra conhecimento de causa e o interesse direto da Coroa na iniciativa.

Junto com a Aula do Commercio e a subsequente reforma da Universidade de Coimbra, são três revoluções modernizantes em um país que vegetava, preso às suas tradições e refém de uma nobreza atrasada (comentário frequente quando se observa a sua chegada ao Brasil). “Belo documento, belas intenções. Mas o que aconteceu no mundo real?” (REAL COLÉGIO DOS NOBRES, s.d.)2.

Um novo Édito Real, um ano mais tarde, mostra que a teoria briga com a prática, o que não é novidade. O Rei lista uma série de providências para corrigir desvios e implementar mais plenamente a proposta. Não há mudanças de rumo, apenas a reafirmação do que fazer para implementar a proposta. Em linhas gerais, o Collegio cumpre sua missão e funciona por um bom número de anos.

Não obstante, Ciências e Matemáticas não caíam bem com a jovem nobreza. Quem sabe impressionavam pouco as moçoilas da Corte as demonstrações de Cálculo Integral, do Teorema de Arquimedes ou princípios de Catróptica. Na prática, não deram certo e, pouco depois, foram abandonadas, não havendo mais o olho percuciente e autoritário do Marquês.

Por outro lado, conservaram-se as Humanidades – que se prestavam ao exibicionismo nos saraus.

O Collegio seguiu em frente, apesar de muitos percalços. Não obstante, sofreu Portugal com as Guerras Napoleônicas, gerando para ele crises financeiras.

Como dito, uma transformação importante foi o abandono das Matemáticas e das Ciências. Essas se transferiram, juntamente com seus professores, para a Universidade de Coimbra. Após sua reforma, a Universidade teve que engolir as Ciências. Seguiram junto para a Universidade os equipamentos científicos do Collegio.

9 Conclusão

À guisa de conclusão, o Collegio não resistiu aos novos ares, mais liberais, mais igualitários. Passou a causar desconforto a existência de uma escola exclusiva para a nobreza, sobretudo, financiada pelo Erário Público. Após muita discussão e agonia, foi extinto em 1833. O seu prédio passou a abrigar a Engenharia da Universidade de Coimbra. Nos dias presentes, é um museu de ciências que mostra os belíssimos equipamentos de laboratório, ainda dos tempos do Collegio. Ironia do destino que o antigo prédio do Collegio mostre justamente os instrumentos de uma ciência que nele não deu certo.

Referências

MENDONÇA, M. C. Aula do Commercio. Rio de Janeiro: Biblioteca Reprográfica Xerox, 1982. [ Links ]

REAL Colégio dos Nobres. In: PORTUGAL. Dicionário histórico. [s. d.]. Disponível em: https://www.arqnet.pt/dicionario/rcolnob.html. Acesso em: 10 dez. 2021. [ Links ]

1 Quase todas as citações foram extraídas da obra de Marcos Carneiro de Mendonça, Aula do Commercio. Contudo, tratando-se de documentos oficiais de criação, os Éditos considerados não abrangem a história subsequente do Collegio. Para isso, foram consultadas e citadas outras fontes.

2 Citamos aqui Portugal: documentos históricos (https://www.arqnet.pt/dicionario/rcolnob.html). Contudo, trata-se de informações nada controvertidas e que podem ser encontradas em muitas outras fontes.

*O presente trabalho inclui citações de documentos do século XVIII. Mantivemos a ortografia, quando o original é em fac simile. Como comentário à margem, em se tratando de documentos do Rei, surpreende a quantidade de erros tipográficos e gramaticais, bem como inconsistências de grafia. Seria a precariedade dos serviços tipográficos e do copydesk da época?

Recebido: 10 de Dezembro de 2021; Aceito: 22 de Fevereiro de 2022

Informações sobre o autor

Claudio de Moura Castro: Mestre pela Universidade de Yale. Doutor em Economia pela Universidade de Vanderbilt. Ex-Diretor Geral da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, ex-funcionário da Organização Internacional do Trabalho - OIT, Banco Mundial e Banco Internacional de Desenvolvimento - BID. Contato: claudiodemouracastro@me.com

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