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Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação

versão impressa ISSN 0104-4036versão On-line ISSN 1809-4465

Ensaio: aval. pol. públ. educ. vol.30 no.116 Rio de Janeiro jul./Set 2022  Epub 07-Jul-2022

https://doi.org/10.1590/s0104-403620220003002943 

Artigos

A pesquisa brasileira em Educação sobre o uso das tecnologias no Ensino Médio no início do século XXI e seu distanciamento da construção da BNCC

Brazilian research in Education on the use of technologies in High School in the beginning of the 21st century and its distancing from BNCC construction

La investigación brasileña en educación sobre el uso de tecnologías en la escuela secundaria a princípios del siglo XXI y su distanciamiento de la construcción de BNCC

Alvaro Martins Fernandes Juniora 
http://orcid.org/0000-0003-0726-1177

Fernando José de Almeidab 
http://orcid.org/0000-0002-6498-3427

Siderly do Carmo Dahle de Almeidac 
http://orcid.org/0000-0002-2190-7213

a Centro Universitário Internacional Uninter, Curitiba, PR, Brasil.

b Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

c Centro Universitário Internacional Uninter, Curitiba, PR, Brasil.


Resumo

Esse estudo tem por objetivo “analisar de que maneira os conhecimentos produzidos pelas pesquisas nacionais fundamentam os argumentos para o uso de tecnologias digitais no Ensino Médio nas concepções teóricas da Base Nacional Comum Curricular”. A fundamentação teórica alicerça-se nos marcos legais que embasam a BNCC e os conceitos de pensamento computacional, de cultura digital e de mundo digital, estabelecendo as conexões entre esses temas. Foi realizado um estudo qualitativo em 295 teses e dissertações do século XXI e aplicadas as metodologias “Estado da Arte” como técnica para coleta de dados, e “Análise de Conteúdos” para a análise dos dados. Baseado no estudo, concluiu-se que, embora a Base deposite muitas expectativas com relação ao uso de tecnologias no Ensino Médio, ela não consegue transmitir isso explicitamente quando discorre sobre o assunto e, embora os jovens demandem uma escola mais moderna, não sabem reagir a atividades que demandem deles autonomia.

Palavras-Chave: Currículo; Base Nacional Comum Curricular – BNCC; Ensino Médio; Tecnologias na Educação

Abstract

This study aims to analyze how the knowledge produced by national researches support the arguments for the use of digital technologies in high school in the theoretical conceptions of the National Common Curricular Base (BNCC). The theoretical foundation is based on the legal frameworks that support the BNCC and the concepts of computational thinking, digital culture and digital world, establishing the connections between these themes. A qualitative study was carried out on 295 theses and dissertations of the 21st century and the following methodologies were applied: “State of the Art”, as a technique for data collection, and “Content Analysis” for data analysis. Based on the study, it was concluded that although the Base places many expectations regarding the use of technologies in High School, it cannot express this explicitly when deals with the subject and, although young people demand a more modern school, they don’t know how to react to activities that demand autonomy from them.

Key words: Curriculum; National Common Curricular Base – BNCC; High School; Technologies in Education

Resumen

Este estudio tiene como objetivo “analizar cómo el conocimiento producido por la investigación nacional apoya los argumentos para el uso de las tecnologías digitales en el Bachillerato en las concepciones teóricas de la Base Nacional Común Curricular”. El fundamento teórico se sustenta en los marcos legales que sustentan el BNCC y los conceptos de pensamiento computacional, cultura digital y mundo digital, estableciendo las conexiones entre estos temas. Un estudio cualitativo se llevó a cabo en 295 tesis y disertaciones desde el siglo XXI y las metodologías “Estado del Arte” se aplicaron como técnica de recolección de datos, y “Análisis de contenido” para el análisis de datos. Con base en el estudio, se concluyó que, si bien la Base tiene muchas expectativas en cuanto al uso de tecnologías en la Escuela Secundaria, no es capaz de expresarlo explícitamente al hablar del tema y, aunque los jóvenes demandan una escuela más moderna, no saben cómo reaccionar ante actividades que les exigen autonomía.

Palabras-clave: Currículum; Base Curricular Nacional Curricular – BNCC; Escuela Secundaria; Tecnologías en la Educación

1 Introdução

A Educação sempre foi vista como promotora das transformações que podem garantir uma sociedade democrática, melhor e mais justa. Por meio dela, espera-se fortalecer a capacidade dos cidadãos de conhecer e exigir seus direitos, minorando a desigualdade social. Desde os anos finais do século XX, observa-se um movimento, especialmente das instituições que atuam com formação docente, no sentido de propor soluções e métodos para aprimorar os processos de Ensino e de aprendizagem e melhorar os sistemas de Ensino.

As políticas públicas também confluem nesse sentido, e há um debate acerca da Educação como elemento incitador do avanço de um país. As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) expressam em seu texto que a Educação escolar, para cumprir seu papel, e para possibilitar a inclusão social, deve alicerçar-se na ética, no respeito, na liberdade, na justiça social, na diversidade e no altruísmo, visando ao “pleno desenvolvimento de seus sujeitos, nas dimensões individual e social de cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, compromissados com a transformação social” (BRASIL, 2013, p. 16). A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por sua vez, reconhece que “a Educação tem um compromisso com a formação e o desenvolvimento humano global, em suas dimensões intelectual, física, afetiva, social, ética, moral e simbólica” (BRASIL, 2018, p. 16).

Para que isso se efetive, percebe-se que há uma precípua necessidade de unir esforços, tanto entre as esferas de governo – federal, estadual e municipal, a fim de superarem a fragmentação das políticas educacionais – quanto entre os níveis educacionais, especialmente no que diz respeito à formação de professores para atuação na Educação Básica e na Educação Superior. Neste último segmento, deve ser considerado, além da graduação, o stricto sensu, que muito pode contribuir, por meio de suas pesquisas, para promover a esperada qualidade da Educação.

Assim como ocorre com a Educação, a tecnologia é vista como aliada para contribuir de modo rápido e preciso com a solução dos problemas que assolam a humanidade, melhorando a sua qualidade de vida. Dessa forma, é premente lembrar que “debemos comenzar por conocer, investigar, experimentar e innovar con las TIC con actitud participativa y crítica ante la Sociedad red1 (CABEZAS-GONZÁLEZ; CASILLAS-MARTÍN, 2019, p. 523).

A temática desse estudo nasce do contexto desta tríade – políticas públicas, pesquisa nacional e tecnologias educacionais –, evidenciando, assim, de um lado, as políticas públicas para a Educação Básica, tendo como documento fundante a BNCC, de outro, as pesquisas nacionais desenvolvidas nos programas stricto sensu nos últimos 20 anos acerca desse cenário e, por último, o uso das tecnologias na Educação, sobretudo no que diz respeito às dimensões tecnológicas explicitadas pela BNCC para o Ensino Médio.

Os pesquisadores tinham por hipótese inicial o entendimento de que os formuladores de políticas públicas não buscam as Instituições de Educação Superior – e, de modo especial, as pesquisas desenvolvidas nos programas stricto-sensu – no sentido de fortalecer e de fundamentar suas propostas, gerando uma lacuna entre o que é realizado pelo Estado, por meio das políticas públicas, e o que se estuda e se produz na academia.

Considerando-se o cenário ora apresentado, o problema de pesquisa que se estabelece para esse artigo é: “De que maneira os conhecimentos produzidos pelas pesquisas nacionais, nas duas primeiras décadas do século XXI, fundamentam os argumentos para o uso de tecnologias digitais no Ensino Médio nas concepções teóricas da Base Nacional Comum Curricular?”.

Para responder essa problemática, o objetivo geral que se constitui para o estudo é: “Analisar de que maneira os conhecimentos produzidos pelas pesquisas nacionais, nas duas primeiras décadas do século XXI, fundamentam os argumentos para o uso de tecnologias digitais no Ensino Médio nas concepções teóricas da Base Nacional Comum Curricular”.

Nesse sentido, o primeiro passo foi realizar um levantamento bibliográfico acerca das dimensões tecnológicas apresentadas no documento oficial (BNCC), com o propósito de posicionar os pesquisadores sobre o universo da pesquisa.

Importante esclarecer algumas especificidades que envolvem o público que frequenta o Ensino Médio – os jovens –, que nessa fase, não se reconhecem ainda como adultos, mas também não se sentem mais crianças. Sem dúvida, é uma etapa de muitas mudanças que afetam até o modo como veem a vida e se colocam nela. Percebem que a família, os amigos e o mundo esperam algo deles, mas não sabem muito bem o que fazer ou por onde começar. É um tempo de incertezas, de medo e de insegurança, mas também de experimentar, de buscar respostas, de se entender autônomo e, com isso, poder assumir o controle de determinadas situações.

É uma fase de refletir também sobre a questão profissional, e, nesse aspecto, cabe salientar que, segundo a pesquisa “Millennials na América e no Caribe: trabalhar ou estudar?”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada em dezembro de 2018, 20 milhões de jovens não estudam e não trabalham na América Latina e no Caribe. O estudo foi realizado com 15 mil jovens entre 15 e 24 anos, moradores de áreas urbanas de nove países: Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Haiti, México, Paraguai, Peru e Uruguai (IPEA, 2018). O levantamento revela ainda que 41% dos jovens se dedicam exclusivamente ao estudo e/ou capacitação, 21% só trabalham e 17% trabalham e estudam ao mesmo tempo.

Esses dois estudos apontam a necessidade de se repensar não apenas os currículos relativos ao Ensino Médio, mas as políticas públicas específicas e abrangentes para a juventude, tendo em vista alcançar indistintamente a todos, sobretudo aqueles de menor poder aquisitivo. Outro aspecto convergente nessa discussão é o uso de tecnologias em sala de aula. Temos uma sociedade interconectada com jovens que interagem por meio das tecnologias a todo momento, debatendo ideias, organizando encontros, desenvolvendo projetos, fazendo pesquisas colaborativas ou apenas conversando.

A fundamentação teórica dessa pesquisa alicerça-se, especialmente, sobre os marcos legais que dão sustentação à BNCC – e à própria BNCC – e aos conceitos de pensamento computacional, de cultura digital e de mundo digital, estabelecendo as conexões entre esses temas.

2 Os marcos legais que dão direção a esta pesquisa

A versão final da BNCC do Ensino Médio foi entregue pelo Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional de Educação em abril de 2018, e, em 14 de dezembro do mesmo ano, teve a última versão homologada pelo ministro da Educação, Mendonça Filho. A Figura 1 ilustra os marcos legais que influenciaram a concepção da Base.

Fonte: Elaborado pelos autores baseado no histórico exposto no site: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/historico (2018)

Figura 1 Os marcos legais e a BNCC 

A BNCC é um documento legal que foi imposta pelo art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN [BRASIL, 1996]) e homologada pelo MEC no apagar das luzes de 2018, mais especificamente em 14 de dezembro – ou seja, 22 anos após a imposição da sua obrigatoriedade (BRASIL, 2018).

A Base tem caráter normativo e define, segundo consta em seu documento de criação, o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e das modalidades da Educação Básica. As competências e as diretrizes explicitadas são comuns a todos os sistemas nacionais, mas os currículos devem ser diversos, segundo o Plano Nacional de Educação (PNE).

Focando o Ensino Médio, nível escolhido para investigação nesse estudo, salienta-se que, entre seus objetivos, destaca-se o aprofundamento dos conhecimentos e das aprendizagens obtidas nos anos anteriores (BRASIL, 2013, p. 39). Para que isso se efetive, sugere-se a incorporação das tecnologias no processo de Ensino e de aprendizagem, dadas as suas potencialidades para realização de atividades relacionadas a diversas áreas do conhecimento, às práticas sociais e ao mundo do trabalho.

Nesse cenário, Almeida, Almeida e Fernandes Junior (2008, p. 607) enfatizam que “O estabelecimento de políticas de inclusão digital torna-se urgente e a Educação é apontada como primordial neste cenário. Tais políticas passam, a partir do fim do século passado, a oferecer incentivo para o desenvolvimento de pesquisas na área”.

Voltando à BNCC, que dedica menos de três páginas às questões das tecnologias digitais e da computação, ela explicita três dimensões no documento, tematizando-as tanto no que diz respeito a conhecimentos e habilidades quanto a atitudes e a valores. O conceito atribuído a cada uma delas aparece de modo breve e pouco preciso, especialmente no que concerne à distinção entre mundo digital e cultura digital, conforme segue:

  • pensamento computacional: envolve as capacidades de compreender, analisar, definir, modelar, resolver, comparar e automatizar problemas e suas soluções, de forma metódica e sistemática, por meio do desenvolvimento de algoritmos;

  • mundo digital: envolve as aprendizagens relativas às formas de processar, transmitir e distribuir a informação de maneira segura e confiável em diferentes artefatos digitais – tanto físicos (computadores, celulares, tablets etc.) como virtuais (internet, redes sociais e nuvens de dados, entre outros) –, compreendendo a importância contemporânea de codificar, armazenar e proteger a informação;

  • cultura digital: envolve aprendizagens voltadas a uma participação mais consciente e democrática por meio das tecnologias digitais, o que supõe a compreensão dos impactos da revolução digital e dos avanços do mundo digital na sociedade contemporânea, a construção de uma atitude crítica, ética e responsável em relação à multiplicidade de ofertas midiáticas e digitais, aos usos possíveis das diferentes tecnologias e aos conteúdos por elas veiculados, e, também, à fluência no uso da tecnologia digital para expressão de soluções e manifestações culturais de forma contextualizada e crítica (BRASIL, 2018, p. 474).

Denominam-se “as tecnologias digitais e a computação” o tópico da BNCC em que se explicitam as três dimensões que abordam o uso de tecnologias (BRASIL, 2018, p. 474). No texto, estão divididas em temas e tratam das TIC e de suas relações com os conhecimentos, as habilidades, as atitudes e os valores. As dimensões elencadas na Base são dirigidas para o pensamento computacional, para o mundo digital e para a cultura digital, conforme anteriormente explicitado.

A leitura do documento sugere uma articulação entre essas dimensões e as competências gerais da BNCC e evidencia que devem ser abordadas também nas outras etapas da Educação Básica,

no Ensino Médio, por sua vez, dada a intrínseca relação entre as culturas juvenis e a cultura digital, torna-se imprescindível ampliar e aprofundar as aprendizagens construídas nas etapas anteriores. Afinal, os jovens estão dinamicamente inseridos na cultura digital, não somente como consumidores, mas se engajando cada vez mais como protagonistas (BRASIL, 2018, p. 474).

Denota-se uma preocupação da BNCC com relação à realidade genérica em que os jovens brasileiros se encontram inseridos e uma forte expectativa com relação ao uso de tecnologias digitais no Ensino Médio em todas as áreas do conhecimento, práticas sociais e a preparação para o mundo do trabalho. No entanto, essa “preocupação” se mostra um tanto vaga, uma vez que:

  1. aponta um futuro incerto;

  2. não evidencia as condições que serão dadas pela escola;

  3. não descreve ou regulamenta a função do Estado para a criação de circunstâncias; e

  4. não apresenta os requisitos para que se desenvolvam atividades curriculares relacionadas ao uso de tecnologias nas instituições escolares.

É do aprofundamento das quatro questões acima que trata este estudo.

A BNCC busca definir as competências supostamente necessárias ao enfrentamento das questões que o mundo do trabalho colocará àqueles que concluíram o Ensino Médio, assim como o comportamento da economia em gerar postos de trabalho, sem, entretanto, se aprofundar nas questões locais. Isso se explica pelo fato de que apresenta uma visão genérica e desconectada das políticas de geração de emprego ou renda nesse setor tecnológico.

Como competências e habilidades a serem desenvolvidas por meio do uso de tecnologias nas diferentes áreas, a BNCC (BRASIL, 2018, p. 473-474) aponta os seguintes objetivos:

  • buscar dados e informações de forma crítica nas diferentes mídias, inclusive as sociais, analisando as vantagens do uso e da evolução da tecnologia na sociedade atual, como também seus riscos potenciais;

  • apropriar-se das linguagens da cultura digital, dos novos letramentos e dos multiletramentos para explorar e produzir conteúdos em diversas mídias, ampliando as possibilidades de acesso à ciência, à tecnologia, à cultura e ao trabalho;

  • usar diversas ferramentas de software e de aplicativos para compreender e produzir conteúdos em diversas mídias, simular fenômenos e processos das diferentes áreas do conhecimento, e elaborar e explorar diversos registros de representação matemática;

  • utilizar, propor e/ou implementar soluções (processos e produtos) envolvendo diferentes tecnologias para identificar, analisar, modelar e solucionar problemas complexos em diversas áreas da vida cotidiana, explorando de forma efetiva o raciocínio lógico, o pensamento computacional, o espírito de investigação e a criatividade.

Importante enfatizar que tais objetivos são colocados no texto, mas, após leitura, se percebe não se estabelecerem conexões com as dimensões anteriormente apresentadas, dificultando a interpretação por parte dos professores em suas práticas.

De maneira sucinta e não explícita, o documento aborda que o pensamento computacional é a dimensão nodal a ser desenvolvida nos alunos. Isso pode ser compreendido por meio do entendimento das demais dimensões tecnológicas, que vão descrevendo aprendizagens mais complexas, que só podem ser trabalhadas com competências prévias, a serem fortalecidas no âmbito do pensamento computacional. Nessa dimensão, a proposta indica exclusivamente o desenvolvimento da capacidade de pensamento dos jovens, imersos em um mundo de computadores; em suma, espera-se que o aluno saiba refletir sobre as modalidades de procedimentos desenvolvidos nos computadores, mesmo sem estar manuseando um.

Só é possível fazer as afirmações acima após conhecer a teoria que serve (ou deveria servir) como norteadora da Base sobre o pensamento computacional; sem conhecê-la, o professor, ou qualquer outra pessoa que manusear o documento, não terá subsídios para entender o que dela se espera. O termo pensamento computacional é atribuído a autora Jeanette Wing (2006), mas seu nome passa à margem do documento.

Outro desalinho conceitual da Base está relacionado às duas outras dimensões tecnológicas: mundo digital e cultura digital. De acordo com as leituras feitas pelos pesquisadores e aqui explicitadas, a cultura digital é que está inserida em um mundo digital, e, nesse sentido, concorda-se com o Centro de Inovação para a Educação Brasileira – Cieb (2018) quando este opta por referir-se à dimensão “mundo digital” como “tecnologia digital”.

A Base, apesar de depositar a confiança de que as tecnologias podem potencializar o processo de Ensino e de aprendizagem, é incipiente em suas descrições, apresentando dois ou três exemplos seguidos de “e outros” ou “etc”. O 4 in Balance (CIEB, 2018) é um modelo profícuo para os sistemas de Ensino refletirem sobre sua atual realidade tecnológica, podendo levar a pensar em planos de ação com vistas a mitigar os eixos do modelo que se encontram desbalanceados. O fato de ter uma versão nacional assinada pelo Cieb e organizada pelos professores Maria Elizabeth Almeida e José Armando Valente denota a relevância do modelo que poderia ter sido, pelo menos, sugerido na Base (ALMEIDA; VALENTE, 2016).

Desse modo, a dimensão “tecnologia digital” teria por objetivo desenvolver competências básicas e prévias para a compreensão e a vivência mais clara da “cultura digital”. Sob essa perspectiva, nessa dimensão, os currículos escolares deveriam fornecer o ferramental e o vocabulário inerentes às tecnologias digitais, propiciando uma aproximação dos aprendentes com as tecnologias de informação e de comunicação que estão à disposição para serem utilizadas tanto no âmbito escolar como na sociedade que os rodeia – cultura digital.

Outra aparente imprecisão do documento é o uso do termo cultura digital para designar uma dimensão tecnológica. A literatura existente costuma utilizar o conceito cibercultura, de Lévy (2000), para designar esse estado de cultura. Tal termo possui maior literatura2 e está mais disseminado; portanto, seu uso seria mais apropriado.

Concordamos com Fuza e Miranda (2020, p. 18) que evidenciam que “não é suficiente que haja um documento normativo postulando a introdução de tecnologias digitais no Ensino para melhorá-lo automaticamente. Até porque as próprias concepções de tecnologias digitais da BNCC são variáveis e muitas vezes conflitantes”.

Segundo a Base, tendo o aluno adquirido habilidades de raciocínio lógico e de resolução de problemas, bem como o manuseio de tecnologias digitais e virtuais, estaria pronto para refletir sobre a realidade à sua volta e conhecer as possibilidades de ações para tomada de decisão e, consequentemente, a efetivação de atos que impactem positivamente a sociedade na qual está inserido. Nesse aspecto, a Base desconsidera todas as outras competências que ela mesma apresenta como fundamentais para serem trabalhadas na Educação Básica.

3 Metodologia

O caminho delineado para responder ao problema de pesquisa evidencia uma pesquisa qualitativa, pois se pretende analisar e identificar informações que possam orientar novos processos, novas perspectivas, novos caminhos e ainda descobrir, ou comprovar, uma verdade que seja coerente com sua concepção de realidade e com sua epistemologia (CHIZZOTTI, 2014).

Quanto aos procedimentos, essa pesquisa fez uso da pesquisa documental e da pesquisa bibliográfica. Severino (2007), ao se referir a esses dois tipos de pesquisa, destaca:

A pesquisa bibliográfica é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados. No caso da pesquisa documental, tem-se como fontes documentos no sentido amplo, ou seja, não só de documentos impressos, mas sobretudo de outros tipos de documentos, tais como jornais, fotos, filmes, gravações, documentos legais (p. 122).

Nesse contexto, a pesquisa documental ocorreu em duas instâncias: a primeira, para explorar a BNCC (BRASIL, 2018), de modo especial, no que diz respeito ao Ensino Médio; e a segunda, para aprofundamento dos marcos legais que dão base a essa investigação.

Já a pesquisa bibliográfica concentrou-se em outros dois pilares: os livros e os artigos de periódicos que destacassem os principais temas desse estudo, a saber, tecnologia (particularmente nas três dimensões explicitadas na BNCC); e as teses e as dissertações dispostas no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e selecionadas pelos termos “tecnologias na educação” e “ensino médio” (BRASIL, 2019).

A elaboração da BNCC convoca a universidade pública, principalmente, para lhe dar sustento em sua concepção – e tais assessorias constam dos créditos e dos textos produzidos; no entanto, nossa hipótese é a de que uma afinação mais conceitual no que diz respeito às questões das tecnologias passa ao largo dos conceitos explicitamente redigidos no texto oficial e atual.

Conforme descrito, os procedimentos de pesquisa, assim como a opção pelo “estado da arte” e pela metodologia de análise de conteúdo, foram adotados tendo por focos o problema e os objetivos descritos na introdução desse estudo e são mais bem detalhados nos tópicos que seguem.

3.1 A pesquisa documental e a bibliográfica

Conforme já elencado na introdução, a presente pesquisa teve como objetivo geral: “Analisar de que maneira os conhecimentos produzidos pelas pesquisas nacionais, nas duas primeiras décadas do século XXI, fundamentam os argumentos para o uso de tecnologias digitais no Ensino Médio nas concepções teóricas da Base Nacional Comum Curricular”.

O documento oficial da BNCC dedica três páginas às tecnologias e cita três dimensões que caracterizam contemporaneamente a computação e as tecnologias digitais: o pensamento computacional, o mundo digital e a cultura digital (BRASIL, 2018, p. 474). Porém, faltaram elementos explicitadores que dessem profundidade à definição dos termos. Além disso, outras experiências – presentes nas teses e nas dissertações estudadas – não foram consideradas no documento nacional. Não se esperava que todos os conceitos trazidos nas múltiplas pesquisas constassem do texto; no entanto, vai ser explicitada nas conclusões a baixa aderência do texto da BNCC com a temática mais rica que a universidade já debatia nos últimos 20 anos.

O primeiro passo para desenvolver o estado da arte foi selecionar as categorias principais que se destacam nessa pesquisa e buscar pelos termos combinados. Para isso, os pesquisadores utilizaram Ensino Médio e tecnologias na Educação como termos de busca no catálogo da Capes, não usando filtro para data de publicação, tendo por resultado 5.879 trabalhos.

A necessidade do rigor científico para o desenvolvimento desse protocolo não tem por escopo apontar soluções para um problema de pesquisa, mas sistematizar uma análise e apontar possibilidades em determinado campo do conhecimento.

A análise de conteúdo das teses e das dissertações, objeto desse estudo, foi realizada, tendo por metodologia o caminho proposto por Bardin (2016).

Os 5.879 trabalhos foram planilhados3 de maneira a permitir que os pesquisadores tivessem o controle do que realmente fazia parte do escopo de seu estudo. Na planilha constavam as informações: id do trabalho, autor, título, biblioteca, data da defesa, grau acadêmico, instituição, link, município do programa, nome do programa e número de páginas do trabalho. Esse grande volume de dados só foi possível ser planilhado devido à realização de um script4, que fez o download dos trabalhos em um arquivo do Excel, automatizando o processo.

Tomou-se a decisão teórica e procedimental de que os trabalhos seriam analisados por meio do seu título; os que, efetivamente, não tivessem relação com a pesquisa seriam automaticamente excluídos. Desse corte, resultaram 295 teses e dissertações a serem analisadas. Para tanto, foram necessárias operações de codificação, decomposição e enumeração. Conforme ensina Bardin (2016, p. 133), a codificação

[...] corresponde a uma transformação – efetuada segundo regras precisas – dos dados brutos do texto, transformação esta que, por recorte, agregação e enumeração, permite atingir uma representação do conteúdo ou da sua expressão; suscetível de esclarecer o analista acerca das características do texto.

Atento à publicação, à relevância e aos debates sobre a BNCC, decidiu-se que esse documento seria o parâmetro de análise, portanto, se verificaria em que medida as pesquisas nacionais realizadas pela academia foram utilizadas em sua concepção. A escolha da BNCC como parâmetro é fundamental para a etapa de categorização.

Agrupar elementos em categorias propicia com mais rigor a investigação do que cada um deles apresenta em comum com os demais, ou seja, é o que os torna comum, que viabiliza a coerência do agrupamento. Nessa fase, os textos baseados em seus resumos foram categorizados conforme aderência (ou não) às dimensões tecnológicas da BNCC; então, se constituíram como categorias:

  • Pensamento Computacional;

  • Mundo Digital;

  • Cultura Digital;

  • Experiência que não se aplica às diretrizes da BNCC.

Nesse sentido, surge essa última categoria, a de experiências relatadas que não se enquadram nas dimensões tecnológicas da BNCC, e que não foram analisadas.

O Quadro 1 representa um resumo de todas as decisões tomadas e consiste também em um norteador para a última etapa de tratamento dos resultados, quais sejam, análises conceituais e inferências.

Quadro 1 Resumo das decisões tomadas para análise das comunicações 

Local de busca dos documentos Catálogo de Teses e Dissertações da Capes
Corpus da pesquisa 295 teses e dissertações
Tempo das publicações Do século XXI
Unidade de registro Termos relacionados ao Ensino Médio e às tecnologias digitais
Unidades de contexto Resumos e palavras-chave
Regra de enumeração Presença (ausência)
Categorização
  • - Pensamento computacional

  • - Mundo digital - Cultura digital

  • - Experiência que não se aplica às diretrizes da BNCC

Fonte: Elaborado pelos autores a partir da metodologia delineada na pesquisa (2020)

4 Exposição e análise de dados

Encontrar uma linha divisória, ainda que tênue, entre as categorias “mundo digital” e “cultura digital”, conforme explicitadas na BNCC, constituiu-se em tarefa bastante complexa para os pesquisadores. Isso se deve ao fato de que, além de o documento não explicitar um claro aporte teórico e conceitual a respeito dessas dimensões, do modo como está ali apresentado, faz parecer que “mundo” está dentro de “cultura”, o que, por si só, causa estranhamento e torna o processo de definição dos temas ainda mais obscuro.

O Quadro 2 apresenta o resultado quantitativo da categorização das 295 teses e dissertações nacionais que compõem o corpus dessa pesquisa.

Quadro 2 Apresentação qualitativa da categorização dos trabalhos analisados 

Categoria Quantidade
Fora da BNCC 194
Mundo digital 59
Cultura digital 34
Pensamento computacional 8

Fonte: Elaborado pelos autores com base no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes (2020)

Os trabalhos que compuseram a categoria “fora da BNCC” são pesquisas que consistem em:

  • Políticas públicas para uso de TIC (17 trabalhos);

  • Pesquisas com informações insuficientes em seus resumos (46 trabalhos);

  • Trabalhos que abordam formação de professores para o uso de TIC (86 trabalhos);

  • Trabalhos que usam tecnologias digitais, mas que não estão relacionados com os descritos nas dimensões tecnológicas (45 trabalhos).

No âmbito das políticas públicas, pode-se citar os trabalhos que estudaram o Proinfo5, a análise dos Parâmetros Curriculares Nacionais, as políticas públicas para formação de professores, ações do Instituto Nacional de Cinema Educativo; e, por fim, uma pesquisa sobre políticas públicas nacionais para a inserção da TIC na escola.

Os 46 trabalhos cujos resumos são insuficientes para categorização tratam de pesquisas que não apresentaram rigor metodológico, com informações claras, principalmente sobre os resultados, em seus resumos, impossibilitando análise.

Os trabalhos que abordam a formação de professores estão agrupados na categoria “fora da BNCC” por dois motivos: inicialmente, pelo fato de que essa pesquisa está buscando estudos que apresentem experiências no processo de Ensino e de aprendizagem com o uso de TDIC no Ensino Médio. O segundo motivo é que esse tema não é tratado no texto da BNCC, e são necessárias leis complementares para regerem-no.

Por último, dentro dessa categoria há trabalhos que fazem o uso de tecnologias digitais, mas que não se enquadram nas dimensões tecnológicas da BNCC. Eles consistem em ações que foram levantadas e pesquisadas em teses e em dissertações e deixadas de lado quando essas dimensões foram refletidas e idealizadas no documento legal.

Entre os 45 trabalhos que utilizam tecnologias digitais no Ensino Médio, mas que estão na categoria “fora da BNCC”, foram encontradas quatro pesquisas sobre robótica. Esse tema, embora emergente, não se enquadra em nenhuma das dimensões tecnológicas explicitadas pela BNCC, o que denota outro hiato na Base.

O uso de software e de objetos de aprendizagem se constituem em experiências encontradas nas pesquisas nacionais, mas que, como robótica, não são encontradas nas dimensões tecnológicas da BNCC. Nesse contexto, há trabalhos com software para o Ensino de física, Ensino de biologia, Ensino de matemática, Ensino de química e uso de audiovisual para retenção de conteúdos.

Experiências relatadas com o uso de realidade aumentada, integração de acervos de arte contemporânea em realidade virtual e também o uso de software para aprendizagem de conceitos, embora sejam relevantes, não se encaixam nas dimensões tecnológicas da Base; portanto, mais uma vez, observa-se que se trata de temas que foram deixados de lado pela BNCC.

Por fim, figuram nessa categoria trabalhos sobre o uso de tecnologia da informação e comunicação (TIC) para a gestão escolar, um trabalho que se propôs a criar indicadores para o uso de TIC nas escolas, o estudo de um sistema para detecção de bullying em escolas, a construção de indicadores de fluência digital dos alunos e uma pesquisa sobre como os alunos usam TIC para estudar. Além de não consistirem em experiências de aprendizagem dos alunos, que é o escopo dessa pesquisa, se trata de assuntos que passam ao largo das dimensões propostas pela BNCC.

Findada a articulação entre os ditos da Base e o referencial teórico vigente, foi o momento de explicitar as leituras realizadas nas teses e dissertações, parametrizando as lacunas por meio da exposição das pesquisas nacionais e demonstrando a riqueza dessas que foram deixadas de lado na concepção da BNCC. Conforme explicado no decorrer desse estudo, de 295 trabalhos que compunham o corpus de pesquisa, 92 tiveram excertos dos resumos compartilhados e 9 tiveram as considerações finais lidas no intuito de uma análise mais profunda.

No que se relaciona ao pensamento computacional, percebeu-se, na teoria, que o subjaz é muito mais profunda do que o explorado pela Base, principalmente no que diz respeito à meta-aprendizagem, “o conhecer como se conhece”. Foi visto também que as experiências do pensamento computacional podem ser trabalhadas de maneira transversal, isto é, como meio para aprender determinados conteúdos e desenvolver competências e habilidades.

Outro ponto que faltou à Base e que as pesquisas analisadas exploraram foi a necessidade de um referencial teórico sustentando as ações, seja o construcionismo de Papert, seja a Aprendizagem Significativa de Ausubel, ou ainda a Taxonomia de Bloom. A interdisciplinaridade também foi apontada como possibilidade a ser explorada na dimensão “pensamento computacional”.

Quando analisadas, as pesquisas definidas como possíveis contribuintes da Base na dimensão “mundo digital”, também foi percebido que o uso de uma teoria fundamentando as ações do professor provê resultados mais positivos.

A tecnologia digital, vedete para uma Educação de qualidade, não pode ser usada e debatida apenas como instrumental e racionalidade técnica. No contexto no qual ela se insere, os alunos têm de estar aptos a refletir sobre e com ela, e não ser simplesmente influenciados por ela. Partindo da divisão que o filósofo brasileiro Pinto (2005) faz da tecnologia, foi possível notar que das quatro possibilidades de se discuti-la, a Base considera apenas uma, a técnica. Nesse sentido, é possível reafirmar o descuido da BNCC ao tratar superficialmente dessa dimensão.

Outro ponto que se destaca na parametrização proposta foi a ausência de uma abordagem explícita sobre a autoria, a qual está em voga contemporaneamente e que tem o currículo do município de São Paulo como precursor no Brasil. Na autoria, os alunos têm contato com as mídias e tecnologias digitais, devendo construir as próprias histórias e projetos por meio do manuseio de dados e informações que estão à sua disposição no ciberespaço.

Quando não estimulados pelo professor, eles não conseguem se ver como autores do ciberespaço, contentando-se apenas com a fruição que o navegar na internet permite. Na opinião de professores, conforme análise apresentada pelos trabalhados examinados, o imediatismo e a fugacidade propiciados pelas redes tornam os jovens impacientes para processos de construção de conhecimento, tornando a escola um local desinteressante. As habilidades da atenção ficam frequentemente longe das finalidades pedagógicas do conhecimento escolar, que tem sua especificidade e seu valor na constituição do pensamento.

5 Considerações finais

No sentido de contribuir com o debate e tratar dos pontos apresentados, os conceitos de pensamento computacional, mundo digital e cultural digital foram expandidos de modo a verificar a incidência/ausência da pesquisa nacional em suas construções na Base. De forma a tornar a Base operacionalizável, os pesquisadores constataram que havia uma hierarquia entre as dimensões e que estas partiam de competências e de habilidades mais simples (a serem desenvolvidas no âmbito da dimensão “pensamento computacional”) às mais complexas a serem desenvolvidas na dimensão “cultural digital”.

Sendo essas dimensões hierárquicas, elas se tornam dependentes, ou seja, o aluno só conseguirá avançar e aprimorar as competências de uma dimensão superior se tiver desenvolvido bem aquelas desejáveis na dimensão que a antecede. Nesse sentido, o aprendente que não apresentar a capacidade de criar algoritmos, desejável na dimensão “pensamento computacional”, não conseguirá operar as tecnologias digitais e virtuais nem refletir criticamente sobre elas.

Observaram-se, ainda, dois desalinhos relacionados à nomenclatura das dimensões. No primeiro caso, os pesquisadores concordam com o Cieb, que propõe trocar o termo “mundo digital” por “tecnologia digital”, tendo em vista que o termo tecnologia digital expressa melhor o conceito que se quer atribuir a ele. O segundo ponto é que, após pesquisa aprofundada, os pesquisadores sugerem que o termo cultura digital possa ser substituído por cibercultura, conceito que possui mais literatura específica e se encontra mais disseminado.

O mundo digital na BNCC – ou tecnologia digital, como os pesquisadores elegeram nominar – corresponde ao manuseio dos artefatos tecnológicos digitais e aos seus vocabulários inerentes, envolvendo aprendizagens de processamento, transmissão, distribuição, codificação, armazenamento e proteção da informação. Todo esse vocabulário expresso na Base é oriundo das ciências da computação, da biblioteconomia e da gestão da informação, áreas que nem sempre passam pela formação dos professores, e, portanto, tendem a ser termos ou conceitos que estão distantes de seus contextos de formação e de aplicação.

Outro ponto levantado nesse estudo refere-se à polissemia do verbo “processar”, que possui em seus sinônimos variadas interpretações, permitindo que seja compreendido como “organizar”, “sistematizar” ou “fazer acontecer”. Trata-se de ações distintas que podem não contribuir para o desenvolvimento dos currículos dos sistemas de Ensino.

A BNCC, apesar de depositar confiança de que as tecnologias podem potencializar o processo de Ensino e de aprendizagem, é incipiente em suas descrições, apresentando dois ou três exemplos seguidos de “e outros” ou “etc”.

No âmbito da cultura digital, embora o termo esteja em voga no momento, o seu “sinônimo”, cibercultura, é mais robusto; além disso, como já é utilizado há mais tempo, possui maior literatura, fazendo esses pesquisadores acreditarem que seja o mais indicado para nominar essa dimensão da BNCC.

Outra questão observada é que a BNCC salienta uma preocupação com a realidade de nossos jovens e imputa ao Ensino Médio a responsabilidade tanto sobre a preparação deles para o mundo do trabalho quanto as necessárias relações entre tecnologia e processo de Ensino e de aprendizagem. Entretanto, não esclarece de que modo a instituição escolar dará conta dessa tarefa, tampouco aponta políticas públicas ou, ainda, responde qual a função do Estado para a constituição ou para o favorecimento de um ambiente que permita o desenvolvimento de atividades que envolvam o uso de tecnologias na escola.

Cabe aqui ressaltar que dois aspectos muito abordados nas teses e nas dissertações analisadas disseram respeito à falta de infraestrutura tecnológica das escolas para realizar ações embarcadas com tecnologia e à necessidade de formação docente para essa empreitada. Importante aqui salientar que ao se afirmar “que a crise da Educação faz parte de um contexto maior (a crise da tradição e do passado), percebe-se que o professor, que tem a tarefa de mediar as relações entre o conhecimento antigo e o conhecimento novo, fica fragilizado em seu papel” (SOARES et al., 2020, p. 92). Ambos os assuntos passam ao largo da Base.

A Base é lacônica e ainda utiliza vocábulos que podem denotar sentidos diversos em suas interpretações, dificultando seu entendimento. Esses desalinhos e lacunas foram explorados nessa pesquisa no sentido de contribuir para melhor interpretação e operacionalização por parte dos sistemas de Ensino.

As teses e as dissertações analisadas também ajudaram a construir um retrato mais fidedigno das relações dos jovens com as tecnologias digitais, e as pesquisas apontaram que os alunos não estão sempre dispostos a ter aulas com tecnologias, que não são autodidatas no uso delas e costumam resistir quando se veem diante da necessidade de manusear algo sobre o que não têm domínio.

Chegando ao fim das análises, foi o momento de parametrizar os trabalhos da dimensão “cultura digital” (ou “cibercultura”). As três experiências analisadas nessa dimensão nas teses e nas dissertações passaram totalmente à margem da Base. Isso porque o documento se esquece das tecnologias digitais off-line, como a televisão, por exemplo, que é o meio de comunicação de maior penetração nos domicílios no Brasil e, portanto, grande formador de opinião. Quando o assunto é a atitude dos jovens no ciberespaço, percebe-se uma proatividade deles para entretenimento, porém, adotam uma postura passiva quando o objetivo é uma atividade de aprendizagem envolvendo o uso de tecnologia digital.

Quando não estimulados pelo professor, os jovens não conseguem se ver como autores do ciberespaço, contentando-se apenas com a fruição que o navegar na internet permite. Na opinião de professores, conforme análise apresentada pelos trabalhados examinados, o imediatismo e a fugacidade propiciados pelas redes tornam os jovens impacientes para processos de construção de conhecimento, tornando a escola um local desinteressante. As habilidades de atenção ficam frequentemente longe das finalidades pedagógicas do conhecimento escolar, que tem sua especificidade e seu valor na constituição do pensamento.

Denota-se, nas pesquisas apreciadas, a necessidade de se pensar a escola como um local de desconectar, trazendo os jovens novamente para a realidade física. O que ainda consiste em um debate relevante, dado que o modo como usam as tecnologias digitais impactam diretamente o seu modo de aprender, que vem acontecendo off-line (no mundo físico).

Conclui-se, portanto, que, não sendo um componente curricular nem uma área, as dimensões tecnológicas merecem ser desenvolvidas, por meio da transversalidade, combinando as habilidades e as competências dessas dimensões aos componentes curriculares das áreas, sem se esquecer também das competências gerais.

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1 “Devemos começar por conhecer, pesquisar, experimentar e inovar com as TIC, com uma atitude participativa e crítica em relação à sociedade em rede” (Tradução nossa).

2 São encontradas 53.500 ocorrências do termo cibercultura, e 39 mil do termo cultura digital ao se realizar uma busca no Google Acadêmico.

3 Foi utilizado o software Microsoft Excel.

4 Conjunto de instruções para que uma função seja executada em determinado aplicativo.

5 É um programa educacional com o objetivo de promover o uso pedagógico da informática na rede pública de Educação Básica.

Recebido: 09 de Junho de 2020; Aceito: 22 de Setembro de 2021

Informações sobre os autores

Alvaro Martins Fernandes Junior: Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Processo número 169525/2017-1 Professor do Centro Universitário Internacional Uninter. Contato: alvarojunior777@gmail.com

Fernando José de Almeida: Doutor em Filosofia da Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da mesma universidade. Contato: fernandoalmeida43@gmail.com

Siderly do Carmo Dahle de Almeida: Doutora em Educação: Currículo pelo Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Novas Tecnologias do Centro Universitário Internacional Uninter. Contato: siderly.c@gmail.com

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