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Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação

versão impressa ISSN 0104-4036versão On-line ISSN 1809-4465

Ensaio: aval. pol. públ. educ. vol.31 no.118 Rio de Janeiro jan./mar 2023  Epub 08-Fev-2023

https://doi.org/10.1590/s0104-40362023003103307 

Artigos

A Filosofia no Enem e suas fontes: reflexos dos PCNs e reflexões pós-BNCC *

Back to the sources: philosophy in Enem and reflections from and about the curriculum documents

Filosofía en Enem y sus fuentes: reflexiones de PCN y reflexiones post-BNCC

Ester Pereira Neves de Macedoa 
http://orcid.org/0000-0002-1908-7279

a Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Brasília , DF , Brasil .


Resumo

Esse artigo investiga reflexos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) na cobertura de Filosofia nas provas de Ciências Humanas, do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) entre 1998 e 2018. A partir da análise de elementos compartilhados pelos PCN, Enem e Base Nacional Comum Curricular (BNCC), argumenta-se que uma cobertura equilibrada das competências e habilidades que os PCN propõem para a Filosofia, com ênfase na diversidade de fontes e tarefas, é essencial para assegurar a presença da área no exame, nesse novo cenário. Esse artigo consiste em três partes. A primeira traz um panorama do surgimento dos PCN, suas características principais e o espaço da Filosofia nesse contexto. A segunda parte examina a intersecção entre as competências propostas para a Filosofia nos PCN e sua materialização no Enem, ao longo dos anos. A terceira parte sinaliza desafios e possibilidades para a Filosofia no Enem, no horizonte pós-BNCC.

Palavras-Chave: Filosofia; Exame Nacional do Ensino Médio; Referenciais Curriculares; Interdisciplinaridade; Diversidade

Abstract

This article investigates some reflections of the National Curriculum Guidelines (Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN) in the questions related to philosophy in the National High School Test (Exame Nacional do Ensino Médio - Enem) between 1998 and 2018. Having as point of departure elements shared by the PCNs, the Enem and the new National Common Core (Base Nacional Comum Curricular - BNCC), I argue that a balanced coverage of the skills and abilities that the PCNs propose for high school philosophy, with emphasis on the diversity of sources and tasks, is essential to guarantee the presence of philosophy in the exam in this new scenario. This article consists of three parts. The first brings an overview of the context in which the PCN were issued, some of its main characteristics and how philosophy appears in this context. The second part examines the intersection between the skills which the PCN recommend for high school philosophy and how they appear in the humanities component of Enem over the years. The third part points at challenges and possibilities for philosophy in Enem in the scenario after the new BNCC.

Key words: High School Philosophy; Large Scale Assessment; Curriculum Documents; Interdisciplinarity; Diversity

Resumen

Este artículo investiga los reflejos de los Parámetros Curriculares Nacionales (PCN) en la cobertura de Filosofía en las pruebas de Ciencias Humanas del Examen Nacional de Enseñanza Media (Enem) entre 1998 y 2018. A partir del análisis de elementos compartidos por los PCN, Enem y Base Nacional Común Curricular (BNCC), se argumenta que una cobertura equilibrada de competencias y habilidades, que los PCN proponen para Filosofía, con énfasis en la diversidad de fuentes y tareas, es fundamental para asegurar la presencia del área en el examen, en este nuevo escenario. Este artículo consta de tres partes. La primera ofrece un panorama del surgimiento de los PCN, sus principales características y el espacio de la Filosofía en este contexto. La segunda parte examina la intersección entre las competencias propuestas para la Filosofía en los PCN y su materialización en el Enem, a lo largo de los años. La tercera parte señala desafíos y posibilidades para la Filosofía en Enem, en el horizonte post-BNCC.

Palabras-clave: Filosofía; Examen Nacional de Bachillerato; Referencias Curriculares; Interdisciplinariedad; Diversidad

1 Introdução

Esse artigo investiga alguns reflexos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), especialmente seu componente para o Ensino Médio (PCNEM), nos itens relacionados à Filosofia aplicados nas provas de Ciências Humanas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), entre o surgimento do exame, em 1998, e a publicação da nova Base Nacional Comum Curricular – Ensino Médio (BNCC-EM), em 2018. Tomando como ponto de partida alguns elementos compartilhados entre esses três instrumentos (PCN, Enem, BNCC), tais como organização por competências e habilidades, e ênfase em interdisciplinaridade e contextualização, nesse artigo, apontam-se caminhos e desafios para a permanência significativa da área no exame.

A questão que mobiliza esse estudo é: como os PCN para a Filosofia materializaram-se ao longo do exame, e quais perspectivas isso traz para a permanência da área, em virtude de sua iminente reformulação de forma a atender a BNCC? Esta questão é importante, dado o momento de transição em que o Ensino Médio se encontra, ainda mais considerando a situação instável da Filosofia no Ensino Médio ( ALVES, 2002 ; MACEDO, 2022 ; RIBEIRO, 2020 ). Uma vez que a nova BNCC tem os mesmos autores e referenciais teóricos que o Enem e os PCN ( AGUIAR; TUTTMAN, 2020 ; CASTRO, 2020 ; FINI; SANTOS, 2020 ), uma análise de como a Filosofia tem-se materializado no exame, ao longo de duas décadas, permite-nos antecipar desafios e possibilidades para a sua permanência no exame em sua reformulação, a partir da BNCC.

O exercício proposto no presente artigo foi o de identificar quais dispositivos dos PCNEM para a Filosofia são acionados em cada um dos itens com temáticas ou abordagens associadas à área aplicados na prova de Ciências Humanas do Enem nas 20 edições, entre 1998 e 2018. Para esse estudo, foram identificadas, no total, 73 questões de Ciências Humanas nesse período, listados ao final, na tabela 1 , em formato de quadro-resumo 1 . A identificação desses itens bem como das competências dos PCN atendidas por eles foi feita pela autora, a partir da análise dos cadernos de prova da aplicação principal do Enem nos anos em pauta ( CARNEIRO, 2015 ; MACEDO, 2015 ; 2022 ; RIBEIRO, 2020 ). Tal interpretação, enquanto imbuída de um elemento de subjetividade pela característica interdisciplinar da proposta do exame 2 , esforça-se em considerar não só a autoria dos textos-base utilizados, como também a natureza da tarefa proposta na situação problema, o direcionamento presente nas alternativas e a resolução proposta no gabarito.

Tabela 1 Itens de Ciências Humanas aplicados no Enem entre 1998 e 2018, utilizados neste estudo (prova.item) 5 , com suas correspondências em termos de texto-base e atendimento de competências dos PCN 

1998-2008 Item Texto-Base PCN (1999) 1a 1b 2 3
1 1999.10 Aquino, João Paulo II 1ab, 2, 3 X X X x
2 1999.31 Copernico, Da Vinci 1ab, 2, 3 X X X X
3 2000.04 Cícero, Ulpiano 1ab, 2, 3 X X X X
4 2000.52 Locke 1a, 3 X     X
5 2000.53 Locke 1a, 3 X     X
6 2001.18 Bacon, R. 1a, 2, 3 X   X X
7 2001.30 Hobbes, Bobbio 1a, 2 X   X  
8 2001.31 Hobbes, Bobbio 1ab, 2 X X X  
9 2001.57 Shakespeare 1b, 2, 3   X X X
10 2003.48 Montesquieu 1a, 3 X     X
2009-2011 Item Texto-Base PCN (1999) 1a 1b 2 3
11 2009.58 Aristóteles 1a X      
12 2010.29 Valéry 1a, 3 X     X
13 2010.30 Maquiavel 1a, 3 X     X
14 2010.34 Foucault 1a, 2 X   X  
15 2010.39 Manual 1a X      
16 2010.44 Manual 1a, 3 X     X
17 2010.45 Quino 1b, 2   X X  
18 2011.02 Folha de S. Paulo 1b 2   X X  
2012-2018 Item Texto-Base PCN (1999) 1a 1b 2 3
19 2012.02 Kant 1a, 3 X     X
20 2012.07 Montesquieu 1a X      
21 2012.09 Habermas 1a, 3 X     X
22 2012.25 Platão e Parmênides 1a X      
23 2012.28 Descartes e Hume 1a, 2, 3 X   X X
24 2012.30 Descartes e Hume 1a, 2 X   X  
25 2012.31 Maquiavel 1a, 2, 3 X   X X
26 2013.04 Descartes 1a X      
27 2013.10 Maquiavel 1a X      
28 2013.22 Montesquieu 1a, 3 X     X
29 2013.24 Bentham 1a, 3 X     X
30 2013.27 Aristóteles 1a X      
31 2013.36 Kant 1a, 2, 3 X   X X
32 2013.41 Descartes e Bacon 1a, 2, 3 X   X X
33 2014.04 Descartes 1a X      
34 2014.11 Vernant 1b, 2, 3   X X X
35 2014.12 Bioética 1b, 2, 3   X X X
36 2014.14 Habermas 1a X      
37 2014.19 Tucídides e Aristóteles 1ab, 2, 3 X X X X
38 2014.24 Epicuro 1a X      
39 2014.25 Escola de Atenas 1b, 2, 3   X X X
40 2014.29 Galilei 1a, 2, 3 X   X X
41 2015.03 Freire 1b, 2,3   X X X
42 2015.13 Trasímaco e Sócrates 1a X      
43 2015.16 Hume 1a X      
44 2015.17 Aquino 1a, 3 X     x
45 2015.26 Hobbes 1a X      
46 2015.28 Vernant 1b, 2, 3   X X X
47 2015.34 Nietzsche 1a, 2, 3 X   X X
48 2015.42 Beauvoir 1a, 2, 3 X   X X
49 2016.01 Schopenhauer 1a, 3 X     X
50 2016.06 Shakespeare 1b, 2, 3   X X X
51 2016.15 Adorno, Horkheimer 1a, 3 X     X
52 2016.20 Descartes 1a, 2 X   X  
53 2016.23 Heráclito e Parmênides 1a, 2, 3 X   X X
54 2016.24 Young 1a X   X  
55 2016.25 Jonas 1a, 2, 3 X   X X
56 2016.28 Diógenes Laércio 1a, 2, 3 X   X X
57 2016.37 Nietzsche 1a, 2, 3 X   X X
58 2017.48 Bentham 1a X      
59 2017.49 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 1b, 2, 3   X X X
60 2017.64 Rawls 1a, 2, 3 X   X X
61 2017.65 Hegel 1a, 2, 3 X   X X
62 2017.66 Sócrates 1a X      
63 2017.84 Habermas 1a X      
64 2017.85 Kant 1a X      
65 2017.88 Aristóteles 1a X      
66 2018.49 Merleau-Ponty 1a X      
67 2018.51 Aquino 1a X      
68 2018.52 Hobbes e Rousseau 1a, 2 X   X  
69 2018.66 Iluminismo 1b, 2, 3   X X X
70 2018.79 Epicuro 1a, 2, 3 X   X X
71 2018.83 Agostinho 1a, 2 X   X  
72 2018.89 Cunha 1b, 2, 3   X X  
73 2018.90 Bobbio 1a, 3 X     X

Fonte: Adaptado de Macedo (2022)

Esse artigo está dividido em três partes. A primeira, mais introdutória, é dedicada a um panorama do surgimento dos PCN, pontuando suas características principais, sua conexão com o Enem e o espaço que a Filosofia encontra nesse contexto. A segunda parte, que é o objeto central desse trabalho, examina como tais aspectos desembocam no Enem, manifestando-se de diferentes maneiras ao longo dos anos. A terceira parte examina como as questões, levantadas no corpo do texto, iluminam alguns desafios e possibilidades para a Filosofia no Enem no horizonte pós-BNCC. Conclui-se que dentro dos limites de uma avaliação em larga escala, uma cobertura equilibrada das competências e das habilidades que os PCN propõem para a Filosofia, com atenção especial para a diversidade de fontes e tarefas, é essencial, especialmente considerando as mudanças em curso no exame e no próprio Ensino Médio.

2 Afluentes: Os PCN e a Filosofia no Ensino Médio a partir década de 1990

Os PCN surgem no contexto das reformas educacionais a partir da publicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996, que, por sua vez, reverbera alguns pontos da conferência de Jomtien de 1990. Com o lema de “Educação para Todos”, essa conferência desdobrou-se em uma série de iniciativas por parte da comunidade internacional, como a OCDE e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), gerando ações como por exemplo, a criação do Pisa, em 1997, por um lado ( AGUIAR; TUTTMAN, 2020 ; ALVES, 2014 ; CASTRO, 2020 ; FINI; SANTOS, 2020 ) e iniciativas como “ Philosophy for All ” e “ Philosophy and Democracy in the World”, organizado pela Unesco em 1995 ( DROIT, 1995 ; UNESCO, 2005 ; 2007 ).

Após a publicação dos Parâmetros para o Ensino Fundamental, em 1997 ( BRASIL, 1997 ), e da Resolução CNE nº 3, em 1998 (BRASIL, 1998), que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCEM), surge em 1999 a versão do Ensino Médio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNEM). Esse documento detalhou as DCEM, que por sua vez, definiram alguns marcos importantes, como os princípios pedagógicos (art. 6º), que consistem em: identidade, diversidade e autonomia (art. 7º); interdisciplinaridade (art. 8º) e contextualização (art. 9º). Em seu artigo 10º, as DCEM preconizavam que “a base nacional comum dos currículos do Ensino Médio será organizada em áreas de conhecimento” e que:

  • § 1º. A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio deverá contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a contextualização.

  • § 2º. As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para:

  • a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;

  • b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania (Resolução CNE nº 3/1998, art. 10 [BRASIL, 1998]).

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) surge em 1998, mesmo ano em que são publicadas as DCNEM, e segue na mesma esteira: organização por competências e habilidades, ênfase em interdisciplinaridade e em contextualização. Nesse sentido, o Enem, originalmente, é concebido com uma prova única com 63 questões, com uma matriz interdisciplinar, sem divisão por área do conhecimento ( INEP, 2002 ). Esse modelo permanece até 2009, quando o exame é reformulado e só então passa a contar com provas específicas por área do conhecimento: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias, que é desmembrada de Ciências da Natureza e suas Tecnologias ( INEP, 2014 , p. 7-9).

Os PCNEM aprofundam o disposto nas DCNEM e no Parecer CEB nº 15/98 (BRASI, 1998) que as acompanha, em particular as três competências básicas (p. 11): Comunicação e Representação; Investigação e Compreensão; e Contextualização Sociocultural, sistematizando essas competências, de forma específica, para cada uma das áreas do conhecimento e componente curricular. Para a Filosofia, essas três competências básicas foram detalhadas pelos PCNEM ( BRASIL, 1999 ) da seguinte maneira:

  • 1) Representação e Comunicação:

  • • Ler textos filosóficos de modo significativo.

  • • Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros.

  • • Elaborar, por escrito, o que foi apropriado de modo reflexivo.

  • • Debater, tomando uma posição, defendendo-a, argumentativamente, e mudando de posição face a argumentos mais consistentes.

  • 2) Investigação e Compreensão:

  • • Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais.

  • 3) Contextualização Sociocultural:

  • • Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sociopolítico, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica (PCNEM, IV, 1999, p. 64).

O fato de essas competências serem poucas e abertas traz alguns reflexos importantes, tanto nos referenciais curriculares seguintes (incluindo a nova Base Nacional Comum Curricular), quanto no Enem. Em relação aos referenciais curriculares, no contexto das reformas educacionais a partir da publicação da LDB, em 1996, os PCNEM são os primeiros de uma série de documentos com uma seção específica para os diferentes componentes curriculares, entre eles, a Filosofia. Nos referenciais curriculares seguintes, em particular nas Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+), de 2002, e nas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCEM), de 2006, observam-se tentativas díspares de especificar melhor essas diretivas dos PCNEM, aos quais ambos se reportavam 3 .

Já em 2000, em sua dissertação intitulada “A Filosofia no Ensino Médio: ambiguidades e contradições na LDB”, Dalton Alves preocupava-se que nem a Lei 9.394/96 ( BRASIL, 1996 ), nem os recém-publicados PCNEM traziam garantias para a Filosofia no Ensino Médio, apenas “reeditando sob novas roupagens antigos empecilhos” ( ALVES, 2002 , p. 134). Por serem “parâmetros”, os PCN não contavam com força de lei, e, portanto, sua estruturação por área do conhecimento deixaria a oferta da Filosofia a critério das escolas e/ou redes de ensino. A Filosofia estaria, assim, “em toda parte e em nenhum lugar”, no sentido de percorrer diversas áreas do conhecimento, mas não ter um espaço próprio no currículo do Ensino Médio (MATOS, 1999, apudALVES, 2002 , p. 129). Apresentando um histórico da oferta da Filosofia no Ensino Médio no Brasil, Alves argumentava que toda vez que a Filosofia esteve presente de forma dúbia na legislação, ela estaria sob risco de redução gradativa, ausência definitiva ou presença controlada (p. 131). Para o autor, não basta que a Filosofia esteja presente no Ensino Médio, mas sua presença precisa ser substancial, em forma e em conteúdo. Assim, defendia a necessidade da obrigatoriedade da Filosofia, enquanto disciplina, para garantir a especificidade da área, “evitando a vulgarização que um tratamento transversal, interdisciplinar ou contextualizado, como proposto pelo MEC, pode acarretar” (p. 131-132).

Mais de uma década depois, e já após o estabelecimento da obrigatoriedade da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, ocorrido em 2008, Gallo, em palestra no Instituto Nacional Anísio Teixeira (Inep) em 2011, revelava “não estar nem um pouco convencido de que a ‘Pedagogia das Competências’ [fosse] a base sólida para a construção de outras perspectivas curriculares”, expressando, como Alves, suspeita de que “mudam-se o discurso e as palavras, permanece o ensino centrado em conteúdos, mascarado por um discurso que se pretende novo e inovador” ( GALLO, 2013 , p. 415). Apesar de expressar simpatia em relação ao Enem, questionava como um exame de múltipla escolha poderia avaliar competências e habilidades. De todo modo, argumentando que “avaliar é produzir valor”, frisava a importância de pensar-se em como incluir a Filosofia em exames como o Enem e o Encceja, no contexto da “cidadania curricular” alcançada com a obrigatoriedade da disciplina, a partir de 2008, mesmo considerando todas as contradições nos normativos produzidos a respeito de sua inclusão no Ensino Médio ( GALLO, 2013 ).

A partir dessa injunção de Gallo, em estudo anterior constatei que, do surgimento do exame até 2011, predominava uma abordagem interdisciplinar, com menor adesão ao modelo proposto pelas Ocem, em que havia uma maior ênfase em conteúdos ( MACEDO, 2015 ). Observei também que, ao longo dos anos, e de forma especial após a reformulação do exame, em 2009, a presença de autores e de temáticas mais fortemente associadas à Filosofia se havia dissipado, de forma que seria recomendável retomar a presença de clássicos da área, não simplesmente por serem clássicos, mas de forma a fortalecer a identidade da área no exame e no Ensino Médio. Retomando esse estudo, e seguindo metodologia semelhante, Sílvio Carneiro, em seu artigo “O Enem e a leitura de textos filosóficos: análise de alguns parâmetros para a sala de aula” (2015), observou que, entre 2012 e 2015, o quadro parecia inverter-se, com maior presença de conteúdos associados à Filosofia ocidental, sob risco, talvez, de um certo excesso nessa direção.

Adaptando essa metodologia para a área de sociologia em sua dissertação intitulada “A presença e a abordagem da Sociologia no Exame Nacional do Ensino Médio, a partir das diretrizes e orientações curriculares oficiais para a disciplina”, Flávia Ribeiro (2020) observa que o preceito de interdisciplinaridade, preconizado nos documentos norteadores das últimas décadas, convive, lado a lado, com aspectos de maior isolamento na maneira em que cada uma das disciplinas se materializa no exame. Fazendo uso dos conceitos de enquadramento e classificação de Basil Bernstein, Ribeiro (2020) nota que, no que diz respeito às questões de Sociologia no Enem, há questões em que se percebem um enquadramento mais forte, em que se recorre a autores ou temas mais canônicos da Sociologia, e a questões em que a Sociologia surge de maneira mais interdisciplinar e, por vezes, difusa, havendo um enquadramento mais fraco.

Consoante Alves (2002) e Gallo (2013) , Ribeiro preocupa-se com o fato de, apesar de uma abordagem interdisciplinar, em tese, ancorar-se nos saberes disciplinares, na prática, o que é preconizado nem sempre ter-se concretizado, no exame, em especial ao que diz respeito à área de Sociologia. Dessa forma, na perspectiva a partir da BNCC, a autora alerta que a situação de fragilidade pode persistir no exame, podendo até acentuar-se, ao menos que haja um esforço dentro do que está sob ingerência do Inep, de se garantir, de forma explícita, um espaço para a Sociologia e a Filosofia, equiparado ao das outras subáreas das Ciências Humanas (RIBEIRO, 2020, p. 167-170).

Cabe observar que os próprios PCN, citando Piaget, alertam que a abordagem interdisciplinar não pode implicar banalização das disciplinas, enfatizando a importância da escolarização na sistematização da experiência pessoal, sendo necessária uma transição, por vezes árdua, do conhecimento espontâneo e concreto para o sistemático e abstrato, de forma a que o aprendizado possa ser estabelecido em uma via de mão dupla entre teoria e prática ( BRASIL, 1999 , p. 81-83). E como Droit descreve no estudo “ Philosophy and Democracy in the Worl d” publicado pela Unesco em 1995:

De um lado temos os escavadores: os filósofos que buscam raízes, o solo nativo do pensamento, os sítios originais. Do outro lado temos os nômades: os filósofos da viagem, do cosmopolitanismo, dos desvios. De um lado, temos filósofos que querem uma pureza cada vez maior para a Filosofia, e buscam afastá-la de tudo que não é Filosofia, querem fazê-la mais e mais autônoma, fazê-la ficar de pé sobre seus próprios alicerces. De outro lado, temos filósofos que querem ir além, destrancar portões, perder suas identidades, abrir seu pensamento em todas as direções ( DROIT, 1995 , p. 135-136, minha tradução).

Na visão desse estudo, ambas as vertentes contribuem para o fortalecimento de áreas como a Filosofia e a Sociologia no exame, especialmente no advento da reformulação do Enem, a partir da BNCC, sendo necessária sua presença equilibrada no exame para evitar um encastelamento da área de um lado, ou sua diluição, por outro.

É extensa na literatura a constatação da dualidade do Ensino Médio brasileiro entre propedêutico e profissionalizante, e do papel dos exames e das avaliações em larga escala em reforçar essas desigualdades ( ALVES, 2002 ; BRASIL, 1998; 1999; 2018; MESQUITA; LELIS, 2015 ; SILVA, 2020 ). Por outro lado, como argumentam Artur Parreira e Ana Lorga da Silva em seu texto “A Lógica Complexa da Avaliação”: “enquanto descrever e analisar são comportamentos claramente cognitivos, decidir/avaliar são atos de intervenção sobre a realidade” ( PARREIRA; SILVA, 2015 , p. 373), ecoando Gallo sobre o papel da avaliação enquanto criação de hierarquias valorativas. O próprio Parecer CEB 15/98 (BRASIL, 1998, p. 69) e os PCN enfatizam a importância da avaliação em geral, e do Enem em particular, para estabelecer e consolidar a proposta pedagógica apresentada, até no que diz respeito à reinserção da Filosofia no Ensino Médio, questionando retoricamente o valor de uma disciplina que, até então, “nem caía no vestibular” ( BRASIL, 1999 , p. 44).

Uma distribuição balanceada e diversa de autores e de tarefas no exame contribui tanto para o fortalecimento da Filosofia no Ensino Médio em toda sua especificidade, democratizando um capital cultural historicamente restrito a poucos, quanto para sua articulação com as outras áreas e com o contexto sociocultural dos pensadores e pensadoras (sujeitos ou objetos de estudo), e suas respectivas realidades. Uma Educação para todos, e uma Filosofia para todos, tem que levar em consideração que “todos” não é uma entidade homogênea e monolítica, e, sim, uma rede de relações e de saberes ( COLLADO-RUANO et al ., 2018 ; PEDRO; MARSICO, 2020 ). Em outras palavras, uma maior variedade de autores, fontes e abordagens é importante para fazer-se valer das características interdisciplinares não só dos PCN e do Enem como também da própria Filosofia ( BRASIL, 1999 , p. 9).

Nesse sentido, considerando 1) a iminente reformulação do exame de forma a atender à BNCC e à nova legislação do Ensino Médio, 2) a instabilidade histórica da Filosofia no Ensino Médio e no Enem e 3) a proximidade de concepção da BNCC em relação aos PCN e ao Enem, na próxima seção, examino como as competências propostas para a Filosofia pelos PCN encontraram (ou não) espaço no exame entre 1998 e 2018. O pressuposto é de que, a partir dessa análise, alguns pontos de atenção possam ser identificados, de forma a criarem-se mecanismos para garantir, de forma significativa, a continuidade da presença da área no exame no horizonte de sua adequação à BNCC.

3 Confluência: Filosofia nos PCNEM e no Enem

Em termos de como os itens de Filosofia da prova dialogam com as competências propostas pelos PCNEM, em primeira análise, das três competências gerais propostas pelos PCNEM, a mais fácil de ser identificada nos itens de Filosofia do Enem é a primeira, “Comunicação e Representação”, com cerca de 78 itens, no total, enquanto as outras duas, “Investigação e Compreensão” e “Contextualização Sociocultural”, contam com, aproximadamente, 40 itens cada uma.

Quanto ao primeiro campo de competências, “Comunicação e Representação”, das quatro competências específicas propostas para a Filosofia nesse campo, apenas as duas primeiras são passíveis de avaliação em prova objetiva de múltipla escolha: “Ler textos filosóficos de modo significativo” e “Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros”. Nesse estudo, sinalizamos essas competências específicas como 1a e 1b, respectivamente. A terceira, “Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo”, poderia, em tese, ser aferida por questões de resposta construída, tais como as que estão em desenvolvimento no Saeb Ciências para o 9º ano do Ensino Fundamental, ou mesmo em texto discursivo-argumentativo, como já é feito na redação que compõe o exame. Já a quarta competência específica, “Debater, tomando uma posição, defendendo-a, argumentativamente, e mudando de posição face a argumentos mais consistentes”, não cabe em questões de múltipla escolha, sendo o ponto de contato mais próximos questões abertas, questões em computadores, como aquelas utilizadas em testes como o Pisa para “resolução colaborativa de problemas” ou “pensamento criativo.” Pelo foco nas provas objetivas do Enem, não entram no escopo desse estudo possíveis maneiras de avaliar essas duas competências específicas 4 .

A partir do Quadro 1 , poderia supor-se um certo equilíbrio entre as competências específicas para a Filosofia mobilizadas pelos itens de Ciências Humanas do Enem, uma vez que apenas o primeiro campo, “Comunicação e Representação”, conta com duas competências específicas para a Filosofia que podem ser trabalhadas em questões de múltipla escolha (1a e 1b), enquanto os últimos dois campos contam, cada um, com apenas uma competência específica para a Filosofia (2 e 3). Todavia, essa distribuição apresenta disparidades entre as competências específicas propostas, mesmo dentro do primeiro campo de competências, como mostra o gráfico 1 . A primeira competência nesse campo, “Ler textos filosóficos de modo significativo”, contou com 61 itens, cerca de três vezes mais itens do que a segunda competência específica, que envolve “ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros”, com 17 itens.

Quadro 1 Quantidade de itens de Filosofia por competência proposta pelos PCNEM para a área - 1998-2018 

Competência PCNEM Número de itens de Filosofia no Enem
Comunicação e Representação 78
Investigação e Compreensão 39
Contextualização Sociocultural 43

Fonte: Elaboração própria (2022)

Fonte: Elaboração própria ( MACEDO, 2022 )

Gráfico 1 Quantidade de itens de Ciências Humanas do Enem por competência específica dos PCNEM para a Filosofia – 1998-2018 

A segunda competência geral, “Investigação e Compreensão”, que tem como competência específica para a Filosofia “articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais”, contou com cerca de 39 itens de Filosofia, no total. Em virtude da característica explicitamente interdisciplinar envolvida nessa competência, todos os itens que atenderam à competência 1b, “ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros” foram contabilizados também como representantes dessa segunda competência de “articular”. Foram incluídos, ainda nesse total, alguns itens com textos filosóficos (competência 1a) que transitam entre a Filosofia e a Ciência, como o item 2013.36, com texto de Immanuel Kant; o 2014.29, com texto de Galileu Galilei; e o 2016.25, com texto de Hans Jonas.

O terceiro campo de competências, “Contextualização Sociocultural”, propõe, como competência específica para a Filosofia, “contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica, quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica”. Na visão dessa análise, essa competência foi atendida por 43 itens de Filosofia. Exemplos de itens que demandaram essa competência incluem: o 2015.17, que solicitava, ao respondente, compreender o contexto em que escrevia Tomás de Aquino para entender sua visão sobre a monarquia; o 2015.42, que utilizava um texto de Simone de Beauvoir para contextualizar as lutas por igualdade de gênero e o 2017.84, que exigia do respondente identificar um pré-requisito para a inclusão social no pensamento de Jürgen Habermas.

As disparidades entre a cobertura das diferentes competências propostas pelos PCNEM para a Filosofia são ainda mais acentuadas se considerarmos a evolução do exame ao longo dos anos, como ilustrado no Gráfico 2 . Num primeiro momento, ainda na vigência da primeira matriz, nota-se uma preponderância de textos primários, seja de filósofos mais tradicionais, como Tomás de Aquino (1999.10), John Locke (2000.52 e 2000.53), Thomas Hobbes (2001.30 e 2001.31) e Montesquieu (2003.48); filósofos mais contemporâneos, como Noberto Bobbio (2001.30 e 2001.31), seja pensadores na interface entre a Filosofia e a Ciência, como Nicolau Copérnico e Leonardo Da Vinci (1999.31), e outros autores de outros tipos de registro, como, Cícero, Ulpiano (2000.04) e William Shakespeare (2001.57) por um lado e do papa João Paulo II (1999.10), por outro. Evidencia-se, assim, nesse primeiro momento, a presença não só de uma “leitura de textos filosóficos de maneira significativa” ou uma “leitura de maneira filosófica de textos de diferentes registros”, como também um foco em “articular” (competência 2) e “contextualizar” (competência 3).

Fonte: Elaboração própria ( MACEDO, 2022 )

Gráfico 2 Quantidade de itens de Ciências Humanas do Enem por competência específica dos PCN para a Filosofia, por período – 1998-2018 

Depois um período de sete edições (2002-2008) com apenas um item mais próximo da área de Filosofia (2003.48, sobre Montesquieu), observa-se que, quando ela ressurge, após a reformulação do exame em 2009, os itens aplicados nesses primeiros anos são marcadamente de textos não-filosóficos (2010.42, com quadrinho de Quino e 2011.02, com texto da Folha de S. Paulo) e textos de manuais (2010.39 e 2010.44). Configura-se, assim, nesse período, um retorno de temáticas filosóficas à prova, porém, com um distanciamento de fontes primárias e sem adaptações, se comparados ao período de 1999 a 2003. Os itens perdem, também, as características de interdisciplinaridade e de contextualização, sendo mais enciclopédicos e exigindo mais a identificação de conceitos no texto, como o que é ética (2010.39; 2010.44). Para os primeiros três anos após a reformulação do exame, foram identificados nesse estudo apenas dois textos filosóficos de fontes primárias (2010.30, com texto de Nicolau Maquiavel e 2010.34, com texto de Michel Foucault), e dois de fontes secundárias (o 2009.58, sobre a visão política de Aristóteles e o de 2010.29, sobre a visão de cidadania de Paul Valéry).

Entre 2012 e 2018, o número de itens com textos de filósofos aumenta significativamente. Por outro lado, embora o número de autoria de filósofos ou extraídos de manuais de Filosofia tenha acompanhado o aumento quantitativo de itens de Filosofia, nesse último período, percebe-se que esse aumento não se reflete em textos de outros gêneros, como literatura, jornais ou imagens, que já eram poucos.

Observa-se, assim, que, num primeiro momento, quando a prova tinha uma proposta mais interdisciplinar, havia uma proporção mais balanceada entre as competências exigidas. Em anos recentes, por outro lado, nota-se uma maior inserção de textos canônicos da Filosofia ocidental, possibilitando ao exame fortalecer um contato mais direto do estudante de Ensino Médio com as fontes filosóficas. Contudo, a predominância de itens exigindo a competência de “ler textos filosóficos de maneira significativa”, em detrimento das outras competências que os PCN propõem para a Filosofia, reflete algumas dificuldades da área e para a área: tanto em termos de interdisciplinaridade e de contextualização, quanto em termos de diversidade e de pluralidade ( CARNEIRO, 2015 ).

Os itens utilizados nesse estudo e sua respectiva classificação em relação aos PCNs para a Filosofia estão apresentados na tabela 1 , a seguir:

4 Influência: Reflexos e reflexões sobre a Filosofia no Enem pós-BNCC

Reiterando que “em política, nada é definitivo” ( ALVES, 2002 , p. 136), Alves alertava para a importância de não se sucumbir à falsa impressão de que o lugar da Filosofia no Ensino Médio está garantido, argumentando que, por um lado, toda política, teoricamente, sólida é provisória, enquanto, por outro lado, também não são definitivas as derrotas. Escrevendo em 2000, em um contexto em que os PCN estavam recém-publicados, pontuava que, ao mesmo tempo que não era possível vislumbrar o problema da Filosofia no Ensino Médio, era importante estar atento para que não houvesse retrocessos. Considerava, assim, como imperativo naquele momento, a alteração do artigo 36 da LDB de forma a tornar a Filosofia disciplina obrigatória no currículo, algo que, de fato, só ocorreu em 2008 com a Lei nº 11.684/2008 ( BRASIL, 2008 ). Contudo, como “em política nada é definitivo”, essa Lei foi revogada pela Medida Provisória 746/2016 ( BRASIL, 2016 ), que instituía o novo Ensino Médio, sendo essa MP, por sua vez, convertida pela Lei nº 13.415/2017, devolveu o status obrigatório da Filosofia no Ensino Médio e na Base Nacional Comum Curricular.

Com toda a polêmica em torno do processo de redação e de publicação da Base Nacional Comum Curricular ( ALVES, 2014 ; AGUIAR; TUTTMAN, 2020 ; CASTRO, 2020 ; SILVA, 2020 ), a BNCC-EM, de 2018, retoma alguns aspectos importantes dos PCNEM que têm repercussão direta nas expectativas para a área de Filosofia, entre eles: 1) foco em competências e habilidades ao invés de conteúdos; 2) ênfase em contextualização e interdisciplinaridade e 3) a influência das avaliações internacionais em seus conceitos basilares ( BRASIL, 2018 , p. 13).

Apesar de contar com força normativa, ao contrário dos PCNEM (e dos PCN+ e da Ocem), a BNCC-EM tem não traz uma seção específica para a Filosofia, assim como não o faz para a maior parte dos componentes curriculares que compõem as quatro áreas de conhecimento estabelecidas para o Ensino Médio, com exceção de Língua Portuguesa e de Matemática. Isso não quer dizer que não haja um espaço claro para a Filosofia na Base.

Contudo, um desafio para a permanência da área no exame nesse novo cenário é que, embora qualitativamente, a redação das competências e das habilidades da BNCC-EM sejam mais diretamente propícias para aplicação de itens relacionados à Filosofia no modelo adotado pela prova, ao longo desses 20 anos, quantitativamente, o número de habilidades mais diretamente relacionadas ao modelo de itens de Filosofia historicamente mais utilizados no Enem é reduzido.

Em outro estudo, argumentei que na matriz atual do exame, os 73 itens aplicados no Enem mais relacionados à área de Filosofia cobrem 14 das 30 habilidades de Ciências Humanas. Num exercício de análise desses mesmos itens, em termos da BNCC, observa-se que eles operam de forma compatível com apenas 4 ou 5 das 31 habilidades específicas para a área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas estipuladas pela Base ( MACEDO, 2022 ).

Dessa forma, se o novo desenho do exame envolver, como requisito, uma cobertura proporcional das habilidades estabelecidas na Base, será necessário um esforço dos profissionais que elaboram e selecionam as questões da prova em pensar como expandir o tipo de abordagem utilizado pelos itens de Filosofia, de forma a poderem mobilizar uma variedade maior de habilidades dentre aquelas prescritas pela BNCC, sob o risco de uma redução da presença da Filosofia na prova, nesse novo horizonte que se apresenta.

Para tanto, os recursos da interdisciplinaridade, contextualização e diversidade de fontes mostram-se essenciais, bem como a presença de itens de enquadramento mais rígido com a área da Filosofia. Itens que utilizam textos-bases de outros registros, ou utilizam textos filosóficos, de maneira transdisciplinar, permitem ao componente curricular Filosofia expandir suas possibilidades em termos tanto da matriz atual do exame, quanto das habilidades prescritas pela BNCC-EM.

Assim, ecoando Alves (2002) , Gallo (2013) , Carneiro (2015) e Ribeiro (2020) , enfatizamos a importância do engajamento da comunidade filosófica e escolar de forma para pautarem as novas direções das áreas na nova constituição do exame, de forma a garantir critérios e quantitativos mínimos específicos para a presença significativas de áreas menos consolidadas no Ensino Médio, como a Filosofia e a Sociologia no Enem pós-BNCC, de forma a evitar que a presença da Filosofia e da Sociologia no exame se dissipe, seja quantitativamente, seja qualitativamente.

5 Conclusão

Nesse artigo foram analisados alguns pontos de contato entre PCN, Enem e BNCC no que diz respeito à área de Filosofia, em particular, os desafios e as possibilidades para manter-se uma presença significativa da área no exame. Pontuei que, como os PCN, o Enem e a BNCC bebem na mesma fonte no que diz respeito à organização em áreas do conhecimento, ao foco em competências e em habilidades em vez de conteúdos, e à ênfase em interdisciplinaridade e contextualização. Uma análise sobre como o exame tem-se comportado em relação ao PCN pode auxiliar na reformulação do exame, a partir da BNCC, em particular, no que tangem os conhecimentos relacionados ao componente curricular de Filosofia.

Nesse sentido, identifiquei que, embora, no total, haja à primeira vista, um aparente equilíbrio na mobilização das competências propostas pelos PCN para a Filosofia, ao longo dos 20 anos do Enem, entre aquelas mais propícias a serem demandadas em questões de múltipla escolha, em análise mais aprofundada, nota-se que há fases bem distintas para a presença da área no exame, com proporções diferentes entre o uso dessas competências em cada uma dessas fases, com maior ou menor proporção de fontes primárias ou secundárias, de textos filosóficos e de diferentes registros. Defendi que a presença da Filosofia no exame é maior e mais forte quando há um maior equilíbrio entre as competências propostas pelos PCN para a Filosofia, pelo menos em relação àquelas que são passíveis de serem trabalhadas em uma avaliação em larga escala.

Durante o período analisado, embora de maneira mais acentuada a partir de 2012, notou-se uma preponderância da competência de “Ler textos filosóficos de modo significativo”. Esse fato traz pontos positivos e pontos de atenção, tanto para a presença da área no exame quanto para o ensino de Filosofia na etapa. Entre os pontos positivos desse maior uso de textos clássicos da Filosofia está a possibilidade de uma gama maior de textos da Filosofia, que permite uma adesão mais completa do exame a diferentes pontos das orientações para a área constante nos referenciais curriculares publicados nas últimas décadas, aproximando o estudante das fontes filosóficas e contribuindo para a consolidação da presença dessa área no Ensino Médio. Por outro lado, os textos de diferentes registros aparecem em menor proporção, bem como as competências de articular e de contextualizar.

Argumentei, porém, que uma presença equilibrada dessas competências, e portanto, o uso de uma diversidade maior de textos de diferentes áreas, contextos e autores e autoras, com uma maior exigência de interdisciplinaridade e contextualização, é essencial para a permanência da área no exame em sua reformulação, a partir da BNCC, impactando também sua presença nas salas de Ensino Médio. Como disposto nos PCNEM:

A consequência de uma opção pela interdisciplinaridade deve ser, portanto, a formação de cidadãos dotados de uma visão de conjunto que lhes permita, de um lado, integrar os elementos da cultura, apropriados como fragmentos desconexos, numa identidade autônoma e, de outro, agir responsavelmente tanto em relação à natureza quanto em relação à sociedade ( BRASIL, 1999 , p. 55).

A Filosofia desempenha papel fundamental na leitura dessa totalidade interrelacionada, que conecta diferentes áreas do conhecimento. Estimular um contato com a Filosofia que fortaleça diferentes tipos de conexão entre campos e pessoas com suas riquezas de saberes específicos é essencial, especialmente nesse momento, em que uma pandemia força o mundo a ver como estamos todos conectados, mesmo quando isolados, e como as Ciências Humanas, Exatas e Tecnológicas são divisões arbitrárias. Formar cidadãos que bebam dessas diferentes fontes, e formem pontes sólidas entre elas mostra-se, mais do que nunca, nesse momento em que a recuperação pós-pandemia exige pensamento inovador e interdisciplinar, para interconectar pessoas, saberes e gerações.

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1A referência a cada item é apresentada no formato “prova.item” em que “prova” corresponde ao ano de aplicação, e “item” à posição da questão no caderno de prova de cor amarela nas edições de vigência da primeira matriz de referência do exame (1998 a 2008) e nos cadernos de cor azul nos anos de vigência da segunda matriz (2009 a 2018).

2“É importante ressaltar que o exame apresenta proposta de abordagem interdisciplinar e contextualizada e, assim, não prevê quantitativos mínimos ou equitativos ou qualquer distinção entre as subáreas que compõem uma área de conhecimento. Portanto, a classificação realizada nesse estudo considera essa premissa, entendendo que todas as questões da prova buscam a interdisciplinaridade, mas que, ainda assim, é possível identificar a contribuição específica das subáreas que compõem a área de conhecimento de Ciências Humanas” ( RIBEIRO, 2020 , p. 22).

3Os autores das Ocem para a área de Filosofia, por exemplo, registram em nota de rodapé: “Nesse ponto, como em vários outros, mantivemos em parte o texto dos PCN de 1999, endossando, assim, seu conteúdo. O mesmo não se aplica aos PCN+, de 2002, que pouco contribuíram para esta discussão” ( BRASIL, 2006 , p. 23).

4Como pontua um dos revisores, as redações das edições de 2002 e 2004 oferecem elementos para a consideração filosófica dessas competências, embora não entrem no escopo desse estudo.

5Para os anos de vigência da primeira matriz (1998-2008) foram consultados os cadernos de cor amarela. Para os anos de vigência da segunda matriz (2009-2018) foram consultados os cadernos de cor azul.

*Estudo realizado durante afastamento integral do Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira para estágio de pós-doutorado em Estudos Comparados em Educação na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, como parte do grupo de pesquisa intitulada “Estudo comparado dos exames Enem (Brasil) e Gaokao (China): repercussões nos currículos do Ensino Médio e no acesso à educação superior de jovens brasileiros e chineses”, que conta com financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), Edital 03/2016, Demanda Espontânea e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Chamada Universal 01/2016.

Recebido: 21 de Dezembro de 2020; Aceito: 29 de Novembro de 2022

Informações sobre a autora

Ester Pereira Neves de Macedo: Doutora em Educação pela Universidade de Toronto/Ontario Institute for Studies in Education. Pesquisadora-Tecnologista do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Contato: ester.macedo@inep.gov.br.

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