1 Introdução
Iniciativas de accountability têm acompanhado as reformas educacionais globais, instaurando-se, a partir de mecanismos de responsabilização, de avaliação e de prestação de contas sobre as escolas. No Brasil, a política de responsabilização educacional se intensificou a partir de 2007, quando o Ministério da Educação (MEC) implantou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), composto por duas variáveis: o fluxo escolar e as médias de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para os estados e na Prova Brasil, para os municípios.
Pesquisa coordenada por Vieira (2021) constatou que 25 estados implementaram seus próprios sistemas de avaliação, alguns associados às políticas de responsabilização. No Nordeste, todos os nove estados possuem sistemas de avaliação, tendo Ceará, Paraíba e Pernambuco políticas consideradas high stakes , ou de responsabilização forte, com implicações materiais sobre os agentes escolares. Essas políticas utilizam os resultados de desempenho discente para a distribuição de prêmios às equipes das escolas, e aos alunos, diferente de políticas low stakes , ou de responsabilização branda, quando há apenas consequências simbólicas ( BONAMINO; SOUSA, 2012 ).
O estado do Ceará vem, desde o início dos anos de 1990, fortalecendo uma cultura de avaliação, a partir do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece), e de um conjunto de políticas que procuram emitir rankings , classificações e prêmios. A política estadual, em seus sistemas oficiais, aplica testes ou procedimentos padronizados para avaliar a aprendizagem, emprega critérios que determinam se as escolas apresentam desempenho desejável ou insuficiente, podendo gerar consequências high-stakes ou low-stakes .
Uma das ações de incentivo com consequências high-stakes é o Prêmio Escola Nota Dez, destinado às turmas dos 2º, 5º e 9º anos do Ensino Fundamental. Atualmente, o Prêmio é disciplinado pela Lei Estadual nº 15.923, de 15 de dezembro de 2015, regulamentada pelo Decreto nº 32.079, de 9 de novembro de 2016, e funciona como “[...] política indutora para as escolas melhorarem seus resultados; [e] como política apoiadora às escolas com menores resultados [...]” ( CEARÁ, 2013 , p. 1).
No cenário de efetivação dessa política, há, no entanto, elementos que merecem aprofundamento, sobretudo quanto ao envolvimento dos sujeitos escolares, os efeitos ocasionados e os mecanismos de (re)apropriação na prática escolar. Observa-se, nesse caso, que a criança é estimulada a responder a demanda da “eficácia escolar”, representada pelo maior rendimento no Spaece.
Apesar de todas as mudanças no mundo, a criança encontra-se em fase de formação e constituição de sua subjetividade e identidade, em tempo de reconhecimento do desenvolvimento integral que respeite a maturidade e o ritmo da aprendizagem infantil. As crianças carecem de cuidados afetivos, precisam de atenção as necessidades próprias da infância, para além da lógica de aprenderem para os testes, de reconhecerem o que é verdadeiro ou falso nas avaliações, de serem estereotipadas, a partir do nível de proficiência do desempenho escolar alcançado. Em razão dessa problemática, sentimo-nos instigados a explorar a seguinte questão: Qual o lugar que as crianças do 2º ano do Ensino Fundamental ocupam diante da política de accountability escolar representada pelo Prêmio Escola Nota Dez?
Essa discussão tem como objetivo desvelar os efeitos do modelo de responsabilização na relação docentes e discentes em escolas de alto rendimento, que tangenciam as crianças do 2º ano do Ensino Fundamental a ocuparem certa posição no processo de Ensino e de aprendizagem.
Além da introdução e das considerações finais, o artigo está estruturado em outras seis seções: a seção seguinte apresenta a metodologia do estudo; a terceira seção aborda a temática da accountability educacional; a quarta e a quinta seções aprofundam o modelo de accountability adotado no Ceará, discorrendo sobre o Prêmio Escola Nota Dez e sua demanda de eficácia nos processos pedagógicos das escolas. A sexta seção discute e analisa os resultados da pesquisa de campo, fazendo alusão à questão norteadora do artigo.
2 Metodologia da pesquisa
A pesquisa1 , de natureza qualitativa, utilizou como instrumento de coleta de dados entrevistas semiestruturadas com 13 professoras polivalentes do 2º ano do Ensino Fundamental. Os loci de investigação foram cinco escolas, distribuídas em municípios pertencentes às Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Crede)2 , situadas nas regiões Norte (Crede 3), Sul (Crede 18), Leste (Crede 10), Oeste (Crede 13) e Centro (Crede 12) do estado. Com base nos dados do Prêmio Escola Nota Dez, selecionamos em cada uma das Credes os municípios que obtiveram o maior número de escolas agraciadas nos anos de 2014 e 2015. Dessa forma, foram identificados os municípios de Morrinhos (Crede 3); Fortim (Crede 10); Quixeramobim (Crede 12); Novo Oriente (Crede 13); e Nova Olinda (Crede 18).
Com relação à escolha das unidades escolares, extraímos, de cada um dos municípios, as escolas com os melhores desempenhos. Essa seleção ocorreu levando em conta a reincidência das instituições agraciadas com a referida premiação, ou seja, as escolas que mais haviam recebido o Prêmio Escola Nota Dez.
Dada a natureza qualitativa desta investigação, analisamos as entrevistas dos participantes da pesquisa com base na hermenêutica gadameriana, especialmente com aplicação da noção de fusão de horizontes. Seguimos ancorados no filósofo Gadamer (1997 , p. 327), que nos apontou o caminho, conceituando:
O conceito de horizonte [...], porque ele exprime a elevada amplitude de visão que deve ter quem compreende. Adquirir um horizonte significa aprender sempre a ver além do que está próximo, demasiado próximo, não para afastar o olhar, mas para melhor ver, num conjunto mais vasto e em proporções mais justas.
O método de análise ocorre numa relação dialógica mediante a inclusão, a interpretação, a compreensão e o confronto dos horizontes culturais de pesquisador e pesquisado. A perspectiva hermenêutica em Gadamer nos ofereceu possibilidades para o exame pormenorizado do conjunto de conceitos e de crenças relatados pelos investigados, a fim de desvelar o objeto de estudo. A análise conectou os horizontes das entrevistas realizadas com os docentes, identificando os aspectos convergentes e divergentes e associando-os com o que foi percebido ao longo dos estudos realizados acerca do fenômeno.
Nesse estudo, os relatos das professoras entrevistadas estão identificados por meio de codinomes, a fim de resguardar suas identidades, a saber: “P” para professora, seguido da letra que representa a inicial do nome da cidade em que foi realizada a pesquisa, sendo “M” para o município de Morrinhos, “Q” para o município de Quixeramobim, “F” para o município de Fortim, “NO” para o município de Novo Oriente e “NOL” para o município de Nova Olinda, acrescido do número que indica a série na qual a docente lecionava, seguido ainda do numeral que representava sua posição na entrevista em cada escola.
Para a concretude desse trabalho, fizemos uso da pesquisa bibliográfica, apoiando-nos nas ideias, concepções e teorias fundamentadas por estudiosos do tema da accountability educacional. Também foram analisados documentos que regulamentam a política de accountability no Ceará, como leis, decretos e demais orientações produzidas pelo governo estadual.
3 Accountability : avaliação e controle dos resultados escolares
A preocupação com a qualidade da Educação, mensurada e creditada por testes avaliativos, marca uma nova era: a era da accountability e de propagação de um discurso auspicioso para fins de melhoria no Ensino escolar. Em razão da polissemia do termo, nesse trabalho adota-se uma concepção multidimensional e crítica da accountability educacional, compreendida pela articulação dos pilares da avaliação em larga escala, da responsabilização dos agentes educacionais e da prestação de contas por meio da publicização de resultados ( AFONSO, 2018 ). Ademais, tem-se em vista que a accountability é acompanhada por consequências, sejam materiais ou simbólicas, na forma de premiação ou punição, que constituem a razão de ser dessa iniciativa.
A adesão às políticas dessa natureza é justificada pela lógica da eficiência e pela padronização das aprendizagens que orientam o estreitamento da relação entre standards e avaliação educacional, e difunde regras de controle nos sistemas de Ensino ( FRANGELLA; MENDES, 2018 ). Na esteira dessas mudanças, a dinâmica das escolas é comprometida pela ação redutora das concepções de currículo, de gestão e de avaliação, que têm sido alardeadas, pois, uma vez que a qualidade educacional é o axioma das políticas de accountability , a crença nos indicadores das avaliações aciona recomendações mais estritas no trabalho dos professores, afetando, consequentemente, sua relação com as crianças e com os adolescentes. Não é outro o entendimento de Welter e Werle (2021) ao sinalizarem que, na cultura avaliativa encontrada hoje, o conceito de qualidade não é apenas complexo como restrito.
O acionamento das políticas de accountability é acompanhado por um imbróglio que tem sido denunciado, relacionado não tanto à existência das avaliações, mas dos usos que são feitos dos seus resultados. Bastos (2018) , ao aprofundar os efeitos da responsabilização educacional nos Estados Unidos, observa que o problema das políticas de accountability é a possibilidade de, a partir delas, responsabilizar ou buscar culpados pelos resultados insatisfatórios dos estudantes, se enquadrando, em outros termos, como uma “política de culpabilização” ( AFONSO, 2018 ).
Isso ocorre porque a avaliação é enclausurada numa perspectiva economicista e empregada, prioritariamente, para comprovar a eficácia escolar. Sob a “lógica da competência”, a avaliação, associada à responsabilização, tende ao desmembramento dos saberes, que são, depois, racionalizados, isolados e quantificados, sendo, ela mesma, a atividade-fim das aprendizagens ( LAVAL, 2019 ). Nesse cenário, encontra-se em jogo não apenas o controle da gestão da Educação, mas o próprio processo formativo dos estudantes ( FREITAS, 2016 ). Por isso, sustenta-se o entendimento de que a avaliação contribui para a solidificação e a manutenção de um modelo gerencial e de controle da Educação que reproduz um Ensino fragmentado, mecânico e vinculado à obtenção de nota.
No Brasil, a accountability educacional tem atendido ao pressuposto da responsabilização dos atos praticados pelos atores educacionais, a partir de iniciativas dos governos federal, estaduais e municipais, seja através do Ideb, que, por si só, constitui uma responsabilização low stake (baixo impacto), ao divulgar os resultados das escolas, ou pela instituição de dispositivos de bonificação e de premiação de escolas, de professores, de gestores e de alunos. Essas políticas têm como base os resultados da escola, sendo o professor responsabilizado pela aprendizagem dos alunos perante as autoridades públicas e a comunidade escolar. Todavia, a lógica que assevera essa dinâmica não supera limites operacionais, como o de que não há consistência na responsabilização docente via resultado dos alunos, porque nota mais alta não é sinônimo de boa Educação; e que não se pode superar os problemas da escola ao desconsiderar os fatores contextuais nas quais elas estão inseridas ( FREITAS, 2016 ).
Por essa razão, os críticos das políticas de accountability discordam da exposição pública gerada por elas, quando fundamentadas, unicamente, em indicadores que mensuram poucos aspectos do cotidiano escolar. Posição essa não consensual no campo acadêmico, pois os que defendem iniciativas dessa natureza justificam que a cobrança de resultados satisfatórios apenas atende ao imperativo do bom trato do erário público. Brooke e Rezende (2020) , por exemplo, sustentam que uma parte das críticas direcionadas à accountability é inapropriada, pois toma a experiência dos EUA como base de sustentação.
Todavia, não há como negar a lógica gerencialista que acompanha a accountability educacional e que promove uma discussão meritocrática dos valores da Educação, transferindo para gestores, professores e alunos o mérito pelo sucesso e pelo fracasso da escola. Nessa direção, as escolas tendem a desenvolver suas ações educativas baseadas na racionalização técnica e contábil, prevendo o que deve ser ensinado, retido, contabilizado e valorizado, com menor gasto do erário público e curto prazo de tempo. Além disso, não se pode desconsiderar a possibilidade de as escolas também instituírem técnicas específicas, e pouco éticas, para alcançarem as metas estabelecidas. Há evidências de pesquisas que apontam nessa direção ( BASTOS, 2018 ). Nesses termos, a corrida pelos resultados estimula a padronização dos conteúdos e dos métodos empregados pelos professores, pois o julgamento de suas funções seria efetivado a partir dos indicadores quantitativos produzidos pelas avaliações de desempenho ( LAVAL, 2019 ).
O desenho da política de accountability do Ceará, seus fundamentos e especificidades, são apresentados a seguir.
4 Alicerces da política de accountability no Ceará
Têm sido recorrentes as críticas direcionadas à política de accountability do Ceará, isso porque há evidências de que os elementos mobilizados no interior das redes de Ensino desconsideram fatores socioeconômicos e culturais no processo de aprendizagem das crianças do Ensino Fundamental ( RAMOS, 2018 ), além de materializarem um projeto educacional de caráter responsabilizador e padronizador que se beneficia de uma estrutura capilarizada nas 184 redes municipais.
A intensificação dessa política no Ceará tem ocorrido desde 2007 com a implantação de mecanismos de premiação aos municípios e às escolas no âmbito do Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic), que consolidou um modelo de Gestão Pública para Resultados (GPR). Conforme Costa e Vidal (2020) , a política de gestão por resultados, no Ceará, foi beneficiada por um conjunto de normas, acordos e aportes financeiros que criaram ou fortaleceram ferramentas de indução aos municípios. A implementação do Paic, como programa de gestão voltado à avaliação educacional, as mudanças ocorridas no Spaece e os mecanismos de accountability , sintetizam essas transformações e põem em marcha o paradigma da escola governada por números.
O Paic fornece aos municípios, em regime de colaboração, apoio técnico e pedagógico para que possam desenvolver políticas de formação continuada de professores, fortalecer a gestão educacional e escolar e instituir uma cultura de avaliação educacional. Em decorrência dos objetivos do programa, as secretarias municipais de Educação são orientadas a instituir equipes técnicas para implementarem as ações da política educacional, ocasionando a institucionalização da avaliação nos organogramas das redes municipais. Essas equipes são acompanhadas pelas Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Credes). As Credes têm o papel de averiguar se as ações do Paic estão sendo aplicadas nos municípios, analisam o desempenho dos municípios no Spaece e propõem mudanças, caso necessárias.
Essa dinâmica de acompanhamento e de monitoramento materializa uma hierarquia de controle que parte dos órgãos centrais – a Seduc, passa pelos órgãos regionais – as Credes, e desdobra-se em orientações aos municípios com implicações sobre as escolas, especificamente sobre as turmas avaliadas no Spaece. No cotidiano escolar, essa estratégia é materializada pela verificação da situação de leitura das crianças do 1º e do 2º anos do Ensino Fundamental, controle da frequência escolar, registro dos livros de literatura infantil lidos, frequência dos professores dos 1º e 2º anos, frequência dos servidores e uso do material estruturado pelos professores ( CEARÁ, 2012 ).
Para atender às demandas oriundas do Paic, o Spaece passou a ter um componente destinado à etapa da alfabetização escolar, o Spaece-Alfa. Caracterizado como uma avaliação externa e censitária, averigua o processo de alfabetização ao fim do 2º ano do Ensino Fundamental, servindo como um instrumento de prestação de contas que busca comprovar a “eficiência” das ações do programa.
Pela peculiaridade dessa avaliação, é possível verificar as habilidades individuais dos alunos a partir de uma matriz de referência com descritores objetivos, que tratam das competências básicas que as crianças precisam aprender. Como consequência, são estabelecidos padrões de desempenho estudantil: não alfabetizado; alfabetização incompleta; intermediário; suficiente e desejável. A centralidade do Spaece nas escolas de Ensino Fundamental tem sido objeto de pesquisas, as quais apontam um desvio de finalidades da avaliação e intensificação do trabalho docente ( MOTA, 2018 ).
Como mecanismos de estímulo para que municípios e escolas implementassem as ações do Paic, foram também instituídas políticas de accountability , com previsão de implicações materiais para as redes municipais e para as escolas, como o Prêmio Escola Nota Dez, cujas concepções e regras de concessão serão abordadas na seção seguinte.
5 O Prêmio Escola Nota Dez: demanda de eficácia escolar e standard student
O Prêmio Escola Nota Dez é uma política de accountability high stake , com consequências materiais e simbólicas aos agentes e instituições educacionais. Essa premiação tem uma face meritocrática acionada pelos resultados das escolas no Spaece, desdobrando-se em benefícios financeiros para aquelas escolas que atinjam os melhores resultados expressos no Índice de Desempenho Escolar (IDE). Há um elemento, no entanto, que difere de outras políticas de responsabilização em voga no país, pois, além das escolas premiadas, também são concedidos recursos financeiros àquelas escolas com menores resultados, que serão apoiadas pelas escolas premiadas, a fim de compartilhar experiências.
O Prêmio Escola Nota Dez passou por diversas modificações, desde sua criação, sendo hoje disciplinado pela Lei nº 15.923, de 15 de dezembro de 2015 ( CEARÁ, 2015 ) e regulamentado pelo Decreto no 32.079, de 9 de novembro de 2016 ( CEARÁ, 2016 ). Conforme consta na Lei, o Prêmio destina-se às escolas que, no ano anterior à concessão, tenham obtido os melhores resultados de aprendizagem nas turmas de 2º, 5º e 9º anos. Para receber o Prêmio, as escolas devem atender a três condicionalidades, por turma avaliada, conforme observado no Quadro 1 .
2º ano | 5º ano | 9º ano |
---|---|---|
Pelo menos 20 alunos matriculados no 2º ano do Ensino Fundamental | Pelo menos 20 alunos matriculados no 5º ano do Ensino Fundamental | Pelo menos 20 alunos matriculados no 9º ano do Ensino Fundamental |
Obter média entre 8,5 e 10,0 no IDE | Obter média entre 7,5 e 10,0 no IDE | Obter média entre 7,5 e 10,0 no IDE |
Participação de, no mínimo, 90% de alunos matriculados no 2º ano no Spaece | Participação de, no mínimo, 90% de alunos matriculados no 5º ano no Spaece | Participação de, no mínimo, 90% de alunos matriculados no 9º ano no Spaece |
Fonte: Elaboração dos autores (2021), com base na Lei nº 15.923, de 15 de dezembro de 2015 ( CEARÁ, 2015 )
A Lei estabelece que serão premiadas até 150 escolas de cada segmento, recebendo o montante de R$ 2.000,00 por aluno avaliado. Os valores são repassados às escolas em duas parcelas: a 1ª, correspondente a 75% do valor do prêmio e a 2ª é referente aos 25% restantes.
As 150 escolas com menores resultados no 5º e 9º anos também recebem recursos financeiros como estímulo à melhoria dos indicadores. Como as escolas premiadas, também as apoiadas devem ter, pelo menos, 20 alunos matriculados nas turmas e participação de, no mínimo, 90% deles. Essas condições, para ambos os perfis de escolas, buscam inibir que essas instituições de Ensino criem estratégias para burlar as regras, como submeter à avaliação somente os melhores alunos. As escolas apoiadas também recebem os recursos destinados em duas parcelas, no entanto, com diferenças: cada uma corresponde a 50% do montante e o valor por aluno avaliado é de R$ 1.000,00.
Após a divulgação do Prêmio, escolas premiadas e apoiadas formam pares, indicados pelo governo estadual, com o objetivo de cooperação e compartilhamento de práticas. A colaboração entre as escolas, inclusive, é condição para que se receba a 2ª parcela do Prêmio. Para que a escola premiada receba a 2ª parcela é necessário, além da manutenção ou elevação de seus indicadores, que também a escola apoiada eleve seus resultados. Assim como, para que a escola apoiada receba a 2ª parcela, é necessário que a escola premiada mantenha ou eleve os resultados. O recebimento do Prêmio em duas parcelas também implica a forma como as escolas podem usar os recursos recebidos. O Quadro 2 apresenta os limites permitidos para aplicação de recursos em cada rubrica:
Tipo de escola | Série | Primeira parcela | Segunda parcela |
---|---|---|---|
Escola premiada | 2º ano | Até 20% para bonificação dos profissionais Até 80% para investimento em material didático, formação pedagógica e reforma escolar | Até 30% para bonificação Até 100% para investimento em material didático e formação pedagógica |
5º e 9º ano | Até 20% para bonificação dos profissionais Até 70% para investimento em material didático, formação pedagógica e reforma escolar Até 10% para o mínimo de 6 viagens à escola apoiada | ||
Escola apoiada | 5º e 9º ano | Até 90% para material de apoio pedagógico; livros; material permanente; formação continuada; construção/reformas Até 10% para o mínimo de 6 viagens à escola apoiada | Até 30% para bonificação Até 100% para investimento em material didático e formação pedagógica |
Fonte: Elaboração dos autores (2021), com base no manual de aplicação de recursos financeiros do Prêmio Escola Nota Dez ( CEARÁ, 2017 )
O Quadro destaca uma evidente diferenciação na forma de aplicação dos recursos. Escolas premiadas conseguem bonificar seus professores tanto na primeira como na segunda parcela. Já as escolas apoiadas só podem fazer a bonificação ao receber a segunda parcela, o que pode intensificar seu envolvimento nas ações do programa, já que, caso não atendam os critérios especificados, perderão parte dos recursos.
Araújo (2020) e Mota (2018) compartilham do entendimento de que o Prêmio Escola Nota Dez provoca constrangimentos nos agentes escolares, pois, na contramão de uma ação de cooperação entre as escolas, são observados constrangimentos em razão das regras e condições da premiação, associados à divulgação pública dos resultados.
Araújo (2020) constatou que a política de accountability escolar, representada pelo Prêmio Escola Nota Dez, repercute no ato educativo, de modo que
a escola e sua equipe, durante todo o ano letivo, empreendem esforços (sermão da recompensa e controles aversivos) com o propósito de instruírem o aluno para alcançar a performance de excelência ( standard student ) explicitada nos descritores do Spaece-Alfa e, por efeito, serem reconhecidas e agraciadas com a premiação em dinheiro ( ARAÚJO, 2020 , p. 9).
Nessa direção, há evidências de que o modelo de standard student , ou seja, de protótipo da excelência estudantil, tende a converter a Educação escolar numa “ensinagem” para as avaliações externas, funcionando a partir da racionalidade técnica na forma de padrões de aprendizagem exigidos pelo sistema. A partir desse ideário, as escolas têm alavancado estratégias que buscam atender aos padrões e aos comportamentos almejados pela GPR.
Estas iniciativas enclausuram estudantes, professores e gestores em um modelo que considera a Educação como um bem essencialmente privado, e cujo valor é, antes de tudo, econômico. A formação escolar volta-se para o Homo economicus , ou homem econômico, pois, “a subjetividade dos educandos é sorrateiramente trabalhada na perspectiva das relações de trocas contábeis, valorando a melhor nota, o melhor desempenho e performance nos testes padronizados” ( ARAÚJO, 2020 , p. 161).
As implicações dessas estratégias à subjetividade das crianças do Ensino Fundamental serão especificadas na seção seguinte, com base em pesquisa empírica.
6 A criança do 2º ano do Ensino Fundamental: moeda corrente no âmbito da política de accountability escolar
As análises apresentadas nessa seção foram elaboradas a partir da fusão de horizontes gadameriana das falas dos docentes pesquisados, em que se identificaram nuvens de palavras coincidentes para questões específicas das entrevistas. A hermenêutica de Gadamer possibilita ao pesquisador
[...] (uma) relação ‘dialógica’ e a ‘fusão de horizontes’ como condições do saber o ‘saber negociado’ –, a perspectiva hermenêutica exige a inclusão, a penetração e o confronto dos horizontes culturais de pesquisador e pesquisado, assim como do pesquisador com seus horizontes teóricos [...] ( COSTA, 2002 , p. 377).
Na pesquisa de doutoramento, realizada por Araújo (2020) , no período de 2016 a 2019, foi possível conferir que a verticalização do padrão de qualidade do que chamamos standard student nota dez se faz presente nas escolas de alto rendimento do Ceará. O estudo, desenvolvido em cinco escolas de alto rendimento, localizadas em pontos extremos do estado, revelou que, independentemente da localização geográfica, a lógica da Educação contábil está sendo animada pelo culto ao mérito, com o sermão da recompensa e os controles aversivos, como também pelos ritos de premiação aos estudantes, aos professores e às instituições, conforme salientam os trechos a seguir:
Eles compraram essa ideia e evidentemente, como premiação, foi proposta uma festa; eu sugeri... na verdade, eles: ‘O que a gente pode fazer?’. Então, eles escolheram um dia na piscina [...]. Fiz também uma premiação em dinheiro: os melhores, com maior pontuação, e, no final do ano, fizemos entrega de medalhas em reconhecimento ao esforço [...] (PQ3, 2020).
Nós temos na escola o aluno destaque [...] cada sala tem o seu aluno destaque. Pra criança ser um aluno destaque, ela tem que não ter falta [...], ter um bom desempenho, boa nota, bom comportamento [...] no final do ano, cada professor escolhe dois, três ou quatro alunos destaque. Nós tiramos fotos deles [...] Tem a foto dele como aluno destaque e eles ganham “mimosinho”, alguma coisinha que nós, os professores, junto com a direção da escola, nós fazemos (PNO3, 2020).
[...] eu sempre trago uma caixa de chocolate pra que quando ganhem eles saibam dividir. No sentido de eles competirem uns com os outros [...] quando é uma competição, eles ficam mais interessados e ficam sempre buscando ali, de qualquer maneira, ganhar do outro; aí é que eu percebo que: quando eu tô disputando com você, eu estou sempre tentando ser melhor, aí eu estou aprendendo (PNOL1, 2020).
Diante dos depoimentos supracitados, atestamos o uso do dispositivos de disputa e recompensa no cotidiano das escolas de Ensino Fundamental (2º ano) de alto rendimento, seja por meio do quadro de honra, com a exposição dos nomes dos alunos nota 10, seja por meio da premiação de medalhas para aqueles que se destacam na fluência leitora e/ou na arguição da tabuada, seja por meio de doações de chocolates, cadernos, lápis e outros “mimos” que causem interesse nas crianças, ou por meio, até mesmo, de festas em comemoração ao resultado exitoso no Spaece, além, ainda, da oferta em dinheiro para aqueles que alcançarem melhores performances na avaliação externa.
A cultura produtivista e de reconhecimento do mérito da política de accountability escolar, representada pelo Prêmio Escola Nota Dez, acaba repercutindo na ação pedagógica, de modo que a escola e sua equipe escolar, durante todo o ano letivo, cultuam o mérito. A equipe escolar é emanada pelo “mantra” da meritocracia: “alcance melhores resultados no Spaece-Alfa e garanta sua bonificação financeira”.
O professor almeja a bonificação, a instituição de Ensino busca ter a melhor posição no ranking das escolas nota 10 do estado para a obtenção da premiação financeira e, por fim, o sistema educacional do Ceará deseja reconhecimento social e visibilidade no âmbito nacional. Esse circuito de anseios mercadológicos pode ser representado como na Figura 1 .
Por apresentar um viés mercadológico e meritocrático, esse circuito tende a desvirtuar o ato educativo e deixar as crianças numa situação de suscetibilidade, destituídas de escolhas, pois suas trajetórias de aprendizagem são enquadradas pela Matrix 3 do Spaece e pela pedagogia obrigatória.
As práticas pedagógicas são influenciadas pela lógica do capital e pelo seu modelo de Educação contábil, objetivada na política de responsabilização que induz o que ensinar, como ensinar e para quais aprendizagens as escolas de Ensino Fundamental nota 10 do Ceará devem direcionar-se.
Nessa prospecção, as escolas que se rendem a essa face da política de responsabilização e correm em busca de altos resultados a qualquer custo, tendem, por um lado, a reprimir os desejos e as necessidades próprias da infância, subjugando-se à lógica mercantilista, produtivista e recompensadora; por outro lado, colocam em risco todo o processo de Ensino-aprendizagem das crianças.
O culto ao mérito mantém-se vivo no ato da fala dos gestores e dos professores, tomando espaço, tempo e corpo no processo de Ensino-aprendizagem das crianças. Por conseguinte, esse mantra circula na rotina escolar fortalecendo a subjetivação capitalista4 . Nessa direção, todo o tecido escolar é atravessado pelo ideário do Prêmio Escola Nota Dez, e pela subjetividade capitalista que engendra essa política educacional instituída pela máquina do poder estatal. Por conta disso, o professor funciona como uma espécie de servo do Estado, que dissemina ideais, valores, códigos e competências na formação de personalidades que se enquadrem ao modelo Homo economicus ou homem econômico.
A cobrança referendada pelas docentes pesquisadas perpassa pelo ambiente escolar por intermédio dos comandos da gestão escolar, que, porventura, já é recomendada pelo próprio sistema de Ensino, via pregação da gestão educacional do estado do Ceará. As docentes, em depoimentos, comentaram que:
A minha meta é todos com nota dez [...] Você está trabalhando numa escola que foi premiada gera toda uma expectativa (PM2, 2020).
Ah! Eu espero que atenda às expectativas agora nesse período que é o Spaece, né? Eu estou vindo à tarde, dando o reforço, dividindo a sala em grupos [...] Então, espero um bom resultado, né? Tô me esforçando muito, procurando meios pra chamar a atenção dos alunos na leitura (PQ1, 2020).
Todos os anos eu traço uma meta: até junho eu quero que meus alunos fiquem todos no verde-claro. Cada turma é diferente da outra, cada ano a gente recebe um desafio, né? (PF2, 2020).
Os enunciados mostram o quanto os docentes anseiam que sua turma conquiste os melhores resultados na avaliação do Spaece-Alfa. As expectativas levantadas apontam em direção a um modelo de desempenho padronizado e ajustado com base nos pré-requisitos do referido teste. A meta do professor é tornar o aluno nota 10, para que a turma alcance proficiência adequada, qualificando, assim, a escola para fins de recebimento do título e da premiação.
Com efeito, a criança do 2º ano do Ensino Fundamental é tratada como atributo capital que pode gerar custo-benefício institucional. Essa relação mercantilizada é marcada por troca de “fazeres”, mediante o alcance de determinados resultados. É imprescindível pontuar que a criança passa a ser alvo da missão aluno nota 10, visto que seu desempenho na prova do Spaece-Alfa é tributo para ganhar status , menção honrosa e premiação financeira, capitalizando, assim, a relação entre professores e alunos. O diálogo a seguir demonstra bem essa situação:
Ontem eu ouvi da minha diretora: ‘E aí, como foram os meninos?’. ‘Acho que bem’. ‘Na Prova Brasil, né?’. ‘Ah! Esse ano não importa, o que me importa é o Spaece. O Spaece importa porque dá dinheiro!’. Eu olhei para ela e disse: ‘Ei, isso traz recurso pro município, é importante pra gente’. Ou seja, o foco é o dinheiro (PQ3, 2020).
As crianças do 2º ano do Ensino Fundamental que se destacam, que leem com fluência e atendem satisfatoriamente às proficiências exigidas nas áreas de Português e de Matemática são protagonistas de uma história forjada pela maquinaria do poder, bem como aliciadas pelo servo da produção de conhecimentos nas instituições de Ensino, o professor.
A Educação contábil fluente nas escolas de alto rendimento do Ceará volta-se, sobremaneira, para os resultados nas avaliações externas, inclusive, com trabalho educativo sistêmico. Os depoimentos das entrevistadas revelam o quanto a criança é utilizada como um artefato para a absorção de conceitos, códigos e competências inerentes ao modelo capitalista de ser e de estar no mundo. Para tanto, a aplicação de simulados, não só pelas professoras das turmas avaliadas, mas pelas(os) demais, justificada pela possibilidade de se conhecer as fragilidades das turmas, é prática corrente no cotidiano das escolas, observando-se uma profusão de testes que buscam condicionar os alunos à dinâmica da avaliação. À prática docente é demandada também que a avaliação atravesse o cotidiano da sala de aula, mesmo que sob o risco de reduzir a dinâmica escolar. A situação a seguir é ilustrativa desse movimento:
Diante das limitações que eu tinha em sala, de dificuldade de aprendizagem dos alunos fora de nível, nível de leitura, nível de escrita, foi se trabalhando, de forma paralela ao nosso currículo, a questão das provas externas, aí o que foi que eu fiz: fiz um levantamento de vários simulados para aplicar com essas crianças, e não só aplicar, acho que a diferença está exatamente na exploração dessas questões que são trabalhadas, que são cobradas nessa prova do Spaece [...] Eu trabalhei 303 questões com eles, contadinha de uma a uma [...]. Muitas vezes, eu tirava xérox na minha casa, com o meu dinheiro, pra eles porque seria minha contribuição pra vida deles (PQ3, 2020).
Nas circunstâncias apresentadas nesse artigo, e em resposta à pergunta norteadora desse estudo, a criança ocupa um lugar de objeto, de um numerário que vale a conquista do título de professor e de escola nota 10. A corrida para resultados pauta as ações das escolas e dos professores, numa cadeia hierárquica que envolve todos os níveis da gestão educacional. Como consequência, a premissa de maximizar o rendimento escolar dos educandos para obter melhor rentabilidade distancia-se de uma Educação voltada para o desenvolvimento integral da criança que respeita a maturidade e o ritmo da aprendizagem infantil, bem como as necessidades e os desejos do aprendiz.
7 Considerações Finais
Nesse artigo evidenciamos que o processo de Ensino-aprendizagem das escolas de alto rendimento é operacional, ajusta-se à política de responsabilização do estado do Ceará aplica. Nesse sentido, os resultados do desempenho da criança do 2º ano do Ensino Fundamental são hipervalorizados. Tendo em vista sua repercussão na premiação escolar, as crianças do 2º ano do Ensino Fundamental são consideradas um “numerário” ou uma “moeda” corrente, que no imaginário coletivo representa o capital intelectual, que o sistema produz. A partir desse entendimento, a criança ocupa lugar de objeto passivo, receptora e reprodutora de conhecimentos que precisam ser preparados, formatados e configurados para ter maior valor no âmbito da política de accountability escolar.
No ambiente das escolas de alto rendimento é cada vez mais presente o ideário de aprender-se para os testes padronizados, com a finalidade de atingir-se metas e resultados de desempenho discente. A ênfase no Spaece-Alfa tende a distorcer as finalidades da Educação, desvaloriza o desenvolvimento metacognitivo e socioafetivo da criança, degradando os valores humanísticos constituídos nas relações sociais dentro do ambiente escolar, não respeita a maturidade e o ritmo da aprendizagem infantil, bem como as necessidades e os desejos do aprendiz, impõe um ideal de aluno e de criança.
Concluímos que há uma hipervalorização de aprendizagem unilateral, memorística, assimilativa, com vistas a intensificar a apreensão dos conteúdos curriculares e das operações mentais contidas na Matrix do Spaece-Alfa. Com efeito, a criança acaba por ocupar um lugar passivo, de receptora e reprodutora de conhecimentos.
Diante desse cenário, nos cabe publicizar os achados da referida pesquisa, a fim de alargarmos as discussões no espaço social. Consideramos que o referido estudo não se deve esgotar nesse escrito, mas, sim, lançar luz ao tema e motivar novos diálogos e pesquisas, inclusive acerca dos impactos da pandemia nesse processo de avaliação e responsabilização.
Dessa forma, podemos envolver todos aqueles que se preocupam com o futuro das crianças, sejam eles pais, professores, pedagogos e políticos, no sentido de superarmos o ideário do modelo educacional Homo economicus, ou homem econômico, do ato educativo para o bem econômico, e nos apropriarmos de uma Educação valorativa, humanística e lúdica, que evidencie o desenvolvimento integral da criança.