E assim ele se construiu... Notas Introdutórias
Na dialética entre a natureza e o mundo socialmente construído, o organismo humano se transforma. Nesta mesma dialética o homem produz a realidade e com isso se produz a si mesmo.
A socialização tem sido compreendida (SETTON, 2012) como uma noção definidora de um conjunto expressivo de práticas de cultura que constroem e sustentam laços sociais1, mas ela também tem sido entendida pelas relações entre indivíduo e sociedade. Se por um lado, a socialização enfoca as instituições como matrizes de cultura, por outro, ao enfatizar as estratégias de transmissão e transformação dos valores de grupos sociais, assim como investigar as disposições de cultura incorporadas pelos indivíduos em suas trajetórias pessoais, faz com que ela possa ser entendida como um processo “construído coletiva e individualmente e, capaz de dar conta das diferentes maneiras de ser e estar no mundo.” (SETTON, 2012, p. 18).
Neste estudo, propõe-se pensar a socialização como uma interdependência entre estruturas sociais e estruturas mentais de cada indivíduo. Também, acredita-se que a socialização ocorre ao longo da vida (DUBAR, 2005) emancipando-a da infância e conectando-a às mudanças sociais, ou seja, a construção de mundos vividos, que podem ser desconstruídos e reconstruídos ao longo da existência.
As vivências contemporâneas propiciam híbridas experiências socializadoras, afirma Setton (2016). Em relação à música, por exemplo, o indivíduo pode ser submetido aos diversos gêneros e estilos musicais ainda em casa, uma vez que pode haver tradições de cunho religioso, familiar ou comunitário, mas também as mídias se fazendo presentes e submetendo todos aos contextos mundializados pela globalização (ORTIZ, 1994). Nestas experiências, o indivíduo pode gostar de obras musicais legitimadas e também das não legitimadas, e fazer uso de umas ou outras em detrimento dos contextos de sua trajetória de vida.
Entende-se que os gostos e práticas musicais são socialmente construídos (BOURDIEU, 2007) e se relacionam às disposições de cultura homeopaticamente inscritas nos corpos, adquiridas na família, na escola, na religião, no trabalho ou em grupos de amigos que, quer se queira ou não, participam “na construção dos seres e das realidades sociais.” (SETTON, 2012, p. 18). Por isso, a necessidade de se estabelecer as condições em que são produzidos os consumidores culturais e seus gostos, ou ainda, a valorização, ou não, de determinados bens culturais tidos como legítimos ou ilegítimos, cultos ou banais.
Considerando que a música pode ser um instrumento de comunicação entre o universo de subjetividades e da objetividade material que rodeia os indivíduos, como se dão os gostos e práticas musicais dos agentes ao longo de suas diversas e híbridas experiências de socialização? Nesse sentido, e adentrando o universo da educação, uma faculdade de música seria capaz de reconstruir gostos e práticas musicais? E, mais especificamente, como as Licenciaturas em Música têm lidado com as socializações musicais dos estudantes? Como elas têm considerado a relação que os estudantes mantêm com a música e contribuído com novas experiências musicais? Ou seja, as Licenciaturas em Música são capazes de ressocializar2 os indivíduos em sua formação musical?
Desta forma, o objetivo da pesquisa foi pensar a força e condicionamento de uma agência socializadora específica e suas referências, qual seja a Licenciatura em Música, e verificar como esta instituição participa na composição de disposições de habitus e na construção identitária dos jovens professores de música do Estado do Paraná, sul do Brasil.3
E constituiu-se um caminho investigativo... Os Procedimentos
A fim de se pensar o potencial das Licenciaturas em Música em ressocializar o indivíduo em sua formação musical, optou-se por dois olhares, voltados aos discentes destas instituições: primeiramente um olhar mais ampliado, realizando um mapeamento dos gostos culturais desses indivíduos; e outro voltado às variações intraindividuais, no sentido de perceber como estes gostos eram consolidados ou alterados na experiência de formação superior.
Portanto, fez-se necessário um recorte investigativo a fim de tornar a dimensão da pesquisa viável ao tempo que se tinha disponível para realiza-la. Optou-se pelas Licenciaturas em Música das Instituições de Ensino Superior (IES) do Estado do Paraná, por ser a região onde se efetivava a prática docente da pesquisadora. Desta forma, todas as instituições que ofereciam o referido curso na modalidade presencial foram mapeadas.
O Estado do Paraná localiza-se na região sul do Brasil, e faz divisa com São Paulo, ao Norte, Santa Catarina ao Sul, Mato Grosso do Sul a Noroeste, Argentina a Sudoeste, Paraguai a Oeste e o oceano Atlântico banha o leste do estado. Conforme o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), o estado contém 399 municípios agrupados em 10 mesorregiões.
Para o levantamento das instituições que oferecem o curso de Licenciatura em Música no estado, recorreu-se ao site do Ministério da Educação, e-MEC, disponível no link: http://emec.mec.gov.br/. Assim como para o detalhamento por instituições e cursos, a fim de cumprir os critérios de inclusão na pesquisa, os quais previam abranger os cursos de licenciatura em música na modalidade presencial no estado.
Com este filtro, as instituições selecionadas para o presente estudo somaram 8 no total, as quais seguem apresentadas: 1) Universidade Federal do Paraná (UFPR); 2) Universidade Estadual de Londrina (UEL); 3) Universidade Estadual de Maringá (UEM); 4) Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR); 5) Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) - Campus I: Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP); 6) Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) - Campus II: Faculdade de Artes do Paraná (FAP); 7) Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); 8) Centro Universitário Cesumar de Maringá (UNICESUMAR).
Em seguida buscou-se conhecer as instituições selecionadas, a partir da leitura da história dessas IES, e de notícias sobre sua importância e influência nos locais onde se encontram situadas; também da leitura dos currículos dos cursos e visualização dos conceitos dos indicadores avaliativos do MEC. Esse levantamento foi realizado via Internet e objetivou contextualizar as instituições em foco no estudo, não se caracterizando como uma análise documental.
O olhar permitiu, no entanto, verificar que os cursos de Licenciatura em Música vêm acontecendo no Paraná especialmente em instituições públicas, que apresentam reconhecimento social por serem instituições influentes e impactantes nas regiões onde estão localizadas, mobilizando desenvolvimento científico (pesquisas e ensino), social (com hospitais-escola e escolas de aplicação, entre outros) e cultural (com orquestras e demais grupos performáticos e artísticos). Os conceitos avaliativos do MEC, IGC - Índice Geral de Cursos da instituição; o CI - Conceito Institucional; e o CC - Conceito de Curso, variaram entre 3 e 4. Os currículos haviam sido atualizados e apresentavam abertura para diversos gêneros e estilos musicais.
Em seguida entrou-se em contato com as instituições e com os coordenadores dos cursos de Licenciatura em Música, e, após conversa com os gestores, agendou-se um encontro, em horário de aula, para que os estudantes respondessem a um questionário que objetivava o mapeamento dos gostos e práticas de cultura desses jovens em processo de formação4. Esse questionário foi aplicado no segundo semestre de 2015.
O instrumento de coleta de informações (questionário) contou com seções que verificavam os dados pessoais dos investigados, características socioeconômicas, práticas de cultura e gostos culturais, totalizando 257 itens. Para o tratamento analítico destas informações foram utilizadas as seguintes técnicas estatísticas (com auxílio do software SPSS): Análise Estatística Descritiva, Análise de Correspondências Múltiplas (ACM) e articulação da ACM com a Análise de Clusters.
Após a tabulação dos dados obtidos com a aplicação do inquérito por questionário, foram organizadas 120 variáveis de análise, e então realizada a análise descritiva, com análise de frequência e tabulações cruzadas. Em seguida aplicou-se a Análise de Correspondências Múltiplas (ACM) com o objetivo de explorar as relações entre as múltiplas variáveis categorizadas (CARVALHO, 2016). A ACM permitiu identificar configurações privilegiadas entre as categorias e, nesse sentido, definir perfis caracterizadores de gostos e escolhas culturais, evidenciando uma complexidade nesta formação e prática. As dimensões decorrentes da ACM, entendidas como eixos estruturantes dos tipos, foram posteriormente usadas para agregar os indivíduos consoantes ao seu perfil. Para o efeito foi aplicada a Análise de Clusters.
Todavia, como cada indivíduo é um “depositário de disposições de pensamentos, sentimentos e ações, que são produtos de suas experiências socializadoras múltiplas” (LAHIRE, 2004, p. X)5, buscou-se capturar mudanças de gostos e práticas de cultura ocorridas desde as respostas aos questionários, para posteriormente analisar o papel socializador das universidades durante o percurso acadêmico. Desta forma, finalizadas as análises estatísticas, retomou-se o mapeamento do gosto cultural, a fim de selecionar agentes para participarem da segunda fase do estudo. Esta análise utilizou a técnica de “entrevistas em profundidade”, com um roteiro semiestruturado, realizadas no final do primeiro semestre de 2017, quase dois anos após as respostas aos questionários.
Em virtude dos achados na primeira etapa analítica e dos objetivos da pesquisa, estabeleceu-se como critério de inclusão para a participação na segunda fase do estudo: 1) Contemplar os 5 perfis e as 4 tipologias de preferências musicais; 2) Abranger de forma equitativa as 8 instituições em análise; 3) Abranger os diversos tipos de rendimento e condições de moradia. As entrevistas foram gravadas por meio do software Audacity, e transcritas com o auxílio do InqScribe. Procedeu-se a análise com o auxílio do software Atlas.ti 8.0, na qual, buscou-se capturar categorias sociológicas, surgidas das falas, e que respondessem a questão investigativa. Inspirou-se e apoiou-se em ferramentas conceituais e técnicas como a “Imaginação Sociológica” (MILLS, 1969), os “Retratos Sociológicos” (LAHIRE, 2004) e a “Análise de Conteúdo” (BARDIN, 1977).
Do olhar ampliado à individuação dos indivíduos... As Análises:
Na perspectiva de entender como as Licenciaturas em Música participaram na construção identitária e afetaram a formação musical, se realizou dois olhares: um mais ampliado, para os gostos e práticas culturais dos estudantes das 8 instituições em foco; e outro, para as variações intraindividuais dos indivíduos pesquisados.
Uma análise estatística descritiva permitiu aferir o perfil dos indivíduos, evidenciando um grupo de jovens, especialmente de classe média, com gostos musicais ecléticos, composto de gêneros eruditos e populares. Os sujeitos transitavam em sonoridades populares, como o choro, a bossa nova, o rock, gospel, música sertaneja, entre outros; também lidavam com a música erudita e com as étnicas.
Eles encontravam-se envolvidos com algumas outras práticas de cultura, como teatro e cinema, por exemplo, mas especialmente com o universo musical, com práticas bem delineadas dentro desse campo. Todos tocavam ao menos um instrumento musical e praticavam diversas atividades na área da música, como orquestras, bandas, conjuntos, corais e grupos de pesquisa em música.
Na sequência, procedeu-se a uma série de Análises de Correspondências Múltiplas (ACM), combinada com Análise de Clusters, sendo possível identificar relações entre as variáveis qualitativas. Primeiramente, verificou-se que, nas práticas e representações individuais, existe uma divisão eminente entre música erudita e música popular. De fato, os gêneros musicais citados apresentam funções e modos de ouvir diferenciados.
Apesar dos gostos serem bastante ecléticos, as preferências musicais puderam ser agrupadas (Figura 1) em 4 tipos: 1) Apreciadores de Música Erudita; 2) Apreciadores de Rock, 3) Apreciadores de MPB e Jazz, e 4) Apreciadores de Música Tradicional - que envolvia o sertanejo de raiz, as músicas folclóricas e étnicas, a música religiosa, o gospel, etc.
Além disso, considerou-se interessante verificar se existiam associações entre os tipos de indivíduos com diferentes preferências musicais e as instituições em análise e, para a finalidade procedeu-se a uma Análise de Correspondências Simples (Figura 2). O teste do qui-quadrado permitiu concluir que, admitindo-se um erro de 6%, a relação entre as duas variáveis é significativa (χ2(21) = 31,252, p = 0,06) com valor de 0,255.

Fonte: BUENO, P. A. R. (2017).
Figura 2 Associações entre os tipos de preferências musicais e as Instituições
O que os dados revelaram foi uma condição de possibilidade, na acepção de Bourdieu (2001). Ou seja, as instituições que mais agregam os apreciadores de música tradicional foram a UEM e PUCPR, mas isso não quer dizer que não existam apreciadores de outros gêneros ou estilos musicais nestas instituições, nem, tão pouco, que não existam apreciadores de música tradicional em outras instituições. Ao contrário, existem indivíduos dos quatro tipos em todas as instituições. Esse comportamento estatístico se estabelece com todas as associações encontradas nessa etapa analítica.
Em relação às práticas de cultura (como visitas a museus, concertos, galerias de arte, bares, audiência televisiva, jogo de videogames, etc.), o grupo se dividiu entre aqueles que investem maiores gastos financeiros (Tabela 1) e os que investem menores gastos financeiros. Foram agrupados em uma dimensão aqueles que frequentam museus, galerias, concertos e praticam, com frequência, pequenas viagens. O outro grupo se formou com adeptos de práticas como cinema, shopping, igrejas e leituras. Desta maneira, foi possível averiguar que o conceito bourdiesiano de capital, ou seja, os capitais econômico, cultural, social e simbólico, permanecem relevantes para o estudo e entendimento de gosto e práticas de cultura.
Tabela 1 Contribuições das variáveis da ACM de frequência às práticas de cultura
Variáveis | Dimensões | |||
1 | 2 | |||
Medidas discriminação | Contribuição % | Medidas discriminação | Contribuição % | |
Museus | 0,413 | 13,7 | 0,030 | 1,4 |
Teatros | 0,403 | 13,3 | 0,186 | 8,5 |
Pequenas Viagens | 0,333 | 11,0 | 0,237 | 10,8 |
Frequência de leituras | 0,118 | 3,9 | 0,156 | 7,1 |
Cinema | 0,235 | 7,8 | 0,430 | 19,6 |
Bares/Pubs | 0,491 | 16,2 | 0,136 | 6,2 |
Restaurantes | 0,400 | 13,2 | 0,243 | 11,1 |
Shopping | 0,038 | 1,3 | 0,254 | 11,6 |
Cerimônias Religiosas | 0,067 | 2,2 | 0,191 | 8,7 |
Frequência de audiência televisiva | 0,026 | 0,9 | 0,227 | 10,3 |
Meditação | 0,141 | 4,7 | 0,048 | 2,2 |
Atividades Físicas | 0,119 | 3,9 | 0,030 | 1,4 |
Último espet.mus.popular | 0,240 | 7,9 | 0,029 | 1,3 |
Total | 3,025 | 100,0 | 2,197 | 100,0 |
Inércia | 0,228 | 0,189 |
Fonte: BUENO, P. A. R. (2017).
Ainda foi possível localizar (Figura 3) um conjunto de indivíduos com envolvimento em práticas corporais, como atividades físicas e meditação. Esse grupo, por sua vez, deteve o maior número de frequentadores de shows populares.
Procedeu-se à ACM, uma análise de Clusters, visando localizar perfis de consumidores culturais, e obtiveram-se 3 tipologias (Figura 4): 1) Grande adesão às práticas de cultura em análise; 2) Adesão esporádica e 3) Pequena adesão.

Fonte: BUENO, P. A. R. (2017).
Figura 4 Disposição de cada indivíduo segundo a tipologia de frequência
A partir desses resultados, realizou-se uma ACM global combinada com análise de Clusters para identificar perfis culturais. Foi possível obter 5 perfis (Figura 5) de homogeneidade: 1) os Consumidores Culturais, 2) as Culturas de Saídas, 3) o Culto à Música, 4) as Saídas Restritas e, 5) a Cultura Tecnológica.
O grupo dos indivíduos pertencentes aos “Consumidores Culturais” (Tipo 1) agregou os indivíduos que mais frequentam as atividades culturais como um todo, envolvendo maiores gastos financeiros. Os apreciadores de MPB, Jazz e Choro concentraram-se especialmente nesse perfil. O perfil “Culturas de Saída” (Tipo 2) concentrou aqueles que mais se envolvem com saídas em bares, restaurantes com música ao vivo, festas e atividades de lazer onde são executados sons eletrônicos, etc. Corresponde também aos indivíduos com maiores gastos em atividades culturais e agregou especialmente os apreciadores de música tradicional, como o sertanejo, por exemplo. O terceiro perfil, “Culto à Música” (Tipo 3), concentrou especialmente os apreciadores de música erudita. Um perfil composto por indivíduos que pouco aderem às práticas de cultura como um todo, mas são adeptos das atividades relacionadas ao universo musical, citando, por exemplo, frequência a concertos. O perfil “Saídas Restritas” (Tipo 4) agregou indivíduos com adesões esporádicas às práticas de cultura em análise e, semelhante ao perfil anterior (culto à música), com atividades restritas ao universo musical, mas com preferências musicais para o estilo rock. Não obstante, os indivíduos não citaram concerto assistido no último ano. Finalmente, o quinto perfil “Cultura Tecnológica” (Tipo 5) agregou os indivíduos que mais fazem uso das telas e tecnologias digitais, os quais são especialmente apreciadores de rock.
Procurou-se ainda aferir se havia associações entre os perfis dos cinco tipos e as variáveis sociodemográficas, a fim de perceber se alguma delas era importante na diferenciação destes perfis.
Verificou-se que apenas as variáveis “Rendimento” e “Tipo de habitação” diferenciam significativamente os cinco tipos (χ2 (12) = 21,006, p = 0,050 e χ2 (4) = 48,405, p < 0,001, respectivamente), ou seja, somente as variáveis relacionadas ao capital econômico promoveram distinções neste estudo.
Finalmente, relacionaram-se os cinco tipos com diferentes gostos culturais e as instituições às quais pertenciam os indivíduos em análise. Verificou-se que existiam diferenças significativas entre a instituição de pertença e os perfis de gosto cultural (χ2 (28) = 43,288, p = 0,029). Através de uma Análise de Correspondências Simples foi possível observar as associações privilegiadas, conforme se observa no Figura 6.

Fonte: BUENO, P. A. R. (2017).
Figura 6 - Associação entre os perfis de gosto cultural e as Instituições
Verificou-se existir associação entre os formandos da UEL e da FAP com o tipo 1 (Consumidores Culturais). A UNICESUMAR, a UEM e a UEPG situam-se entre os tipos 2 (Culturas de Saída) e o 5 (Cultura Tecnológica). A UFPR e a EMBAP associaram-se, especialmente, ao tipo 3 (Culto à Música). Os formandos da UEPG são assimiláveis aos tipos 2, 5 e 4 (Saídas Restritas). Enquanto que a PUCPR aos tipos 1, 4 e 5.
Um fato observável é que gostos e práticas com apelos relacionados a questões de caráter mais globais se relacionam a um número maior de instituições. Como o caso do tipo 5 “Cultura Tecnológica” que se relacionou aos pesquisados das 4 instituições: UEM, UEPG, UNICESUMAR e PUCPR.
De fato, os tipos com diferentes perfis de gosto cultural eram pertencentes às diversas instituições. Um olhar mais individualizado, para cada objeto (indivíduo) agrupado em cada tipo, permitiu aferir que existem casos e exceções em todos os contextos. Como havia sido alertado por Bourdieu (2012), os agrupamentos expostos numa ACM apresentam uma condição de possibilidade, e não, necessariamente, uma determinação.
Ou seja, a análise estatística permitiu verificar gostos e práticas bastante diversificados (diferenciando-os tanto em gêneros e estilos como em investimentos financeiros), assim como agrupando os indivíduos com características de gostos e práticas de cultura semelhantes, localizando-os nas diferentes instituições investigadas.
Como as universidades contribuíram para a composição dos gostos e práticas fez-se possível aferir com o olhar voltado aos processos socializadores individuais. Lahire (2004, p. 322) acredita que o estudo de coletivos leva à tipificação de grupos, mas que a “descida progressiva para indivíduos singulares leva a ver as diferenças invisíveis de longe”. Portanto, mudou-se de escala no olhar.
Por meio de uma análise de caráter qualitativo, em entrevistas em profundidade, foi possível verificar potência socializadora das instituições universitárias, que influíram nas composições de gostos e práticas, mas especialmente evidenciou-se um fato novo, a potência das instituições na construção de identidades profissionais.
O que se encontrou foram pluralidades de formas de socialização, que promoveram a construção de identidades com disposições híbridas de habitus, forjadas a partir de diversas matrizes de cultura e em interações humanas significativas.
A trajetória de vida de cada indivíduo foi marcada pela presença da música. Situações permeadas de afetos colaboraram para a construção de uma linguagem na área. Essa linguagem foi sendo aprimorada a cada fase da vida, num tempo vivido, à medida que os acontecimentos permitiram certas condições de possibilidades.
Luís, Renato, Lucas, Igor, Amanda, Augusto, Samantha, Pablo, Clarisse, Pedro, Sabrina, Antônio, Letícia, Paloma, Miguel, Bianca e Rodrigo foram os nomes fictícios dos 17 entrevistados selecionados para a segunda fase do estudo, a fase do olhar para as variações individuais, ou seja, a fase de um olhar micro, voltado ao indivíduo. Em todos os tipos e perfis as falas evidenciaram situações relacionadas a quatro dimensões do processo socializador que se encontraram interconectadas.
A primeira categoria analítica nomeou-se Do Afeto à Linguagem Musical. Todas as entrevistas relataram situações de afeto permeando os fazeres musicais. Simmel (1983, 2001) descreve como as emoções participam nas interações humanas e construções de identidade, e desta forma interfere também na construção dos mundos vividos e na sociedade. Ele entende isso como forças duais existentes no jogo indivíduo e sociedade. Nesse sentido, as emoções agiram no consenso e no conflito, formatando perfis de gostos e práticas.
Quando Simmel (2001) fala de emoções, ele as analisa de forma ampla, pensa não apenas no afeto, no amor, na paixão ou no prazer, mas pensa também na raiva, no medo, na insegurança... As falas fizeram emergir a discussão sobre a importância das emoções nas formações identitárias, que propiciaram engajamento ou não com determinados tipos de música e de fazeres musicais.
Os indivíduos relataram diversas lembranças afetuosas relacionadas às memórias musicais. Brincadeiras nas latas de tinta do pai, no piano da mãe, tardes nos braços do avô assistindo a concertos na TV, dentre outras falas associadas à socialização primária dos indivíduos. Na adolescência, as lembranças de bandas com os colegas, sobre o que os indivíduos ainda mencionaram vínculos, as apresentações da fanfarra, o convite para ingressar na orquestra... Diversas situações, com vínculos emocionais, que promovem o contato e o aprendizado de uma linguagem simbólica própria: a música. Nesse sentido, as IES também contribuíram afetando as emoções e maneiras como os indivíduos percebiam os diversos tipos de música, fazendo-os se aproximarem ou se afastarem de determinadas compreensões e práticas de cultura.
O envolvimento com a linguagem musical promoveu o desenvolvimento de outro tipo de afeto, presente nas socializações secundárias: o afeto pela própria linguagem simbólica, traduzido nas falas como “a paixão pela música”. E, desta forma, os indivíduos foram construindo uma maneira de ser e estar no mundo, com desenvolvimento de disposições para a cultura musical.
O aprendizado da linguagem musical foi desenvolvido num tempo vivido, exigindo dedicação, envolvimento e até sacrifícios. Portanto, a segunda categoria em análise foi O Tempo . Com Elias (1998) se entende que a contagem do tempo é uma construção social. Com Bourdieu utiliza-se essa contagem para entender como as disposições são incorporadas. Segundo este autor (2012), os habitus são homeopaticamente incorporados pelos indivíduos em suas trajetórias de vida. Desta forma, o habitus não é estático, mas construído no viver.
As falas revelaram um processo socializador com disposições para a cultura musical sendo construído no decorrer de toda a vida. Os envolvimentos com a música e com o desenvolvimento teórico e técnico na área se iniciaram na infância e permaneceram durante a adolescência e juventude. Foram aulas particulares, participações em ministérios de louvor de igreja, em projetos sociais de música, formação de bandas, violão e voz no barzinho... até chegar na escolha profissional de uma atividade no campo da música.
Os contextos de vida foram favoráveis às disposições para a cultura musical. Por isso, a terceira categoria analítica envolveu Os Contextos Sócio-históricos e as Condições de Possibilidades . Essa categoria da análise revelou que na dimensão sócio-histórica os indivíduos são perpassados por questões de aspectos mais globais e também por outras questões de aspectos mais pessoais da existência de cada um, numa constante rede de interações humanas. Em relação aos gostos e práticas musicais, foi possível identificar manutenções, transformações e rupturas com os antigos gostos e práticas musicais, sob a influência do contato com as instituições e com os indivíduos nela presentes.
Todos os sujeitos investigados na segunda fase (exceto a Sabrina6) citaram o amplo envolvimento com as Tecnologias de Comunicação e Informação. Esse advento interferiu na maneira deles de se relacionarem uns com os outros e com os demais objetos simbólicos. Em relação ao presente estudo, os indivíduos passaram a assistir videoaulas e pesquisar músicas pelo YouTube, a compor playlists, e a buscar cifras no site CifraClub. O perfil das Culturas Tecnológicas foi o que esteve mais presente na maioria das instituições. Vale salientar que a dimensão das tecnologias figurou nas duas etapas analíticas do presente estudo, demonstrando a potência socializadora desta matriz.
A quarta e última categoria encontrada na segunda etapa analítica referiu-se à socialização profissional dos indivíduos entrevistados. Refere-se à categoria Identidade Profissional: Professor de Música. Os indivíduos investigados viveram uma trajetória permeada pela música. No momento da escolha profissional optaram por uma carreira na área. Nesta dimensão o contato com as instituições universitárias se mostrou imprescindível, de fato, os sujeitos afirmam chegar às IES devido à música, mas que as instituições os tornaram professores.
Dubar (2005, p. 142) constrói seu conceito de identidade profissional associando processos biográficos com processos relacionais, ou seja, a identidade profissional seria marcada pela dualidade: a identidade para si mesmo e para o outro. O autor acredita que essa identidade profissional une atos de atribuição (do que dizem que você é) e atos de pertencimento (que você acredita que é). Isso acontece em transações objetivas entre cooperação e reconhecimento, ou conflitos e não reconhecimento, e transações subjetivas de continuidade ou rupturas.
Os indivíduos investigados relataram atos de atribuição e pertencimento, envolvendo reconhecimentos recíprocos e conflitos. Nesse sentido, com a participação ampla nas atividades universitárias, eles foram compondo uma forma de lidar com a música e com a educação musical, com experiências e expectativas de um devir no campo.
As socializações universitárias aconteceram por diversos meios: as disciplinas, os projetos de extensão, as pesquisas e o capital social adquirido pela presença na instituição e reconhecimento das pessoas ligadas a ela. Os cursos de Licenciatura em Música corroboraram o sentimento de pertença ao universo da música e da educação musical, assim como houve atos de atribuição com transações objetivas de reconhecimento e empregabilidade em escolas, instituições especializadas, grupos musicais e orquestras. Todavia, seria relevante destacar que não se observou apenas sinergias, ao contrário, houve algumas rupturas, como os vividos por Igor e Augusto, que se desligaram da docência na área da música; e Pablo e Antônio, que aguardavam recolocação no mercado de trabalho.
Enquanto os indivíduos iam compondo suas identidades de professores de música, também foram constituindo a continuidade do campo social da música e da educação musical, ou seja, as ações e os pensamentos dos jovens professores foram reconstruindo seu entorno, que se materializava, naquele tempo vivido, em influências nas próprias licenciaturas investigadas, uma vez que eram estes indivíduos que traziam os repertórios musicais para as aulas, assim como propostas de intervenções pedagógicas para serem aplicadas nos estágios ou nas próprias realidades docentes vivenciadas por cada um deles.
A construção social do professor de música... Conclusão
A presente pesquisa corroborou os estudos que verificam que os indivíduos são socializados a partir das diversas matrizes de cultura. Social e historicamente situadas, num tempo vivido, e por meio de relações repletas de emoção, os licenciandos desenvolveram o conhecimento de uma linguagem simbólica, específica - da música, e da educação musical - e puderam construir-se enquanto professores e professoras de música.
Mais especificamente, é possível afirmar que as Licenciaturas em Música do Estado do Paraná foram capazes de promover uma percepção mais crítica e reflexiva acerca do universo musical, que implicou na manutenção, transformação e ruptura de gostos e práticas musicais, mas, especialmente, as Licenciaturas em Música participaram na construção da identidade profissional de Educador Musical entre seus egressos.
Contudo é forçoso lembrar que os indivíduos, e com eles a sociedade, não são acabados, nem estáticos, o fluxo constante de se fazer, desfazer e refazer, permanece sendo construído. Relembrando os ensinamentos de Simmel (1983, 2001), os humanos, em suas interações, produzem e reproduzem a sociedade. Os indivíduos, na perspectiva desse autor, exercem influências mútuas, determinações recíprocas e, por isso, se encontram conectados, e se constroem na realidade social, concretizando interesses e objetivos. De fato, o estudo dos processos socializadores admite a dualidade de estruturas e mentalidades. Na acepção de Dubar (2005), as identidades sociais são produzidas pelas trajetórias dos indivíduos, mas também são, sobretudo, produtoras da história futura.
As instituições, por meio de suas representações e ideais, concretizadas em currículos e práticas didáticas, assim como em seus contextos amplos - como os projetos de extensão (grupos de choro, orquestras, etc.), grupos de pesquisa, PIBID, disciplinas optativas (inclusive as de outros cursos), vivências diversas em seus espaços físicos (as conversas de corredores, as experiências musicais nas cantinas), o capital social constituído... enfim, o universo de possibilidades que a universidade oferece - foram capazes de reconstruir gostos e práticas musicais e imprimir nos indivíduos novas concepções de música e de respeito aos diversos repertórios; assim como foram fundamentais na constituição da identidade de professor de música, e na constituição de uma rede de relações, que pode ser chamada de sociabilidade.