Introdução
O destino humano é fonte de um grande aprendizado. Os gregos foram inauguradores na problematização da realidade vivenciada pelo homem, pois deram início a um processo de autonomia humana diante das forças arquetípicas da psique, os deuses que atuavam não só como figuras do imaginário, mas como intermediários na interpretação do real. Milênios de evolução cultural foram necessários para o salto da modernidade, com seu projeto de esclarecimento, de subjetivação do pensamento (o cogito cartesiano), de emancipação da subjetividade baseada num processo individualizante de racionalização das coisas.
Questionar o seu próprio destino, indagando pelas causas que configuraram o passado, pelas forças que entram ora em conflito, ora em harmonia no presente, pelas possíveis aberturas do futuro, é uma marca inerentemente humana. A experiência de vida investigada pelo próprio indivíduo caracteriza o trabalho biográfico que é tema principal deste artigo. Aprender com o destino implica numa conexão com múltiplas dimensões (reminiscências, sensações, sentimentos, afetos, desejos, valores, expectativas...) conectadas ao âmbito social, cultural, histórico, psíquico, educacional, econômico, etc. Nesse sentido, faz-se necessária uma abordagem transdisciplinar para abarcar o nível de complexidade do que significa o próprio sujeito imerso num processo de aprendizado tendo como objeto sua biografia.
O parâmetro metodológico e teórico deste artigo baseia-se na fenomenologia de Goethe, uma postura investigativa da realidade de si mesmo e do mundo que postula a autotransformação como pré-requisito fundamental na dinâmica de descobertas de si, concomitantemente ao papel do indivíduo na configuração da realidade. A autoeducação pautada nos princípios fenomenológicos goethianos abre perspectivas de potencialização do desenvolvimento das forças cognitivas, afetivas e volitivas do indivíduo, tomando por base - dentro do seu processo analítico-sintético - o destino vivenciado.
A trama e o drama da existência humana
As deusas do destino - as Moiras para os gregos ou as Parcas para os romanos - trançavam os fios que conectavam e rompiam as ligações do ser humano com o mundo. Na configuração da trama revelava-se o drama da existência humana. A deusa Cloto tecia o fio da vida, simbolizando o nascimento da conexão do ser humano com o mundo. A deusa Láquesis trançava os fios e configurava o destino das pessoas. O último corte da tesoura estava reservado à deusa do futuro, Átropos. A inexorabilidade da morte representa o rompimento definitivo do fio que nos une à corporalidade. A consciência de sua própria finitude temporal é característica indelével do âmbito humano. O sujeito é marcado pela consciência de que sua atuação no mundo tem data desconhecida para acontecer. A postura do sujeito moderno, em sua consciência secularizada, afasta-se de uma explicação mítica para o seu destino. O indivíduo torna-se reflexivo e buscador de processos emancipadores, libertadores. Enquanto vivemos, a biografia individual é permeada de desafios, mistérios, impasses, ao mesmo tempo que apresenta acertos e sucessos, mas acima de tudo, ela pode significar uma base de ampliação do aprendizado enquanto a tesoura do futuro ainda não executou sua última tarefa.
Educação é transformação da subjetividade com propósitos estipulados por uma teoria ou método pedagógico, por intenções pedagógicas orientadas segundo os parâmetros sociais e culturais de uma época. A educação biográfica é autoeducação, o próprio sujeito se transforma tendo como parâmetro sua experiência de vida para corrigir rotas, superar impasses e reformular suas tendências individuais. O trabalho biográfico é uma dinamização das reflexões sobre o viver, com o intuito de levantamento de dados, percepção de padrões existenciais, reconhecimento do que foi ou vem sendo típico em sua caminhada existencial. No âmbito reflexivo, o processo biográfico é uma investigação para averiguação e constatação de leis biográficas, de parâmetros arquetípicos que influenciam as contingências experimentadas pelo indivíduo. Entre o universal, a lei arquetípica da biografia, e o particular, o modo como o destino individual se expressa, está o escopo de possíveis transformações a serem realizadas pelo sujeito que intensifica sua relação com o mundo, com a vida.
A transdisciplinaridade é necessária à abordagem biográfica porque nesse nível de aprendizado, todas as dimensões circunscritas à configuração de uma biografia possuem seus papéis determinantes, tanto os fatores externos do destino (a época, a sociedade, a economia, a genética ...) quanto os fatores internos do destino (a personalidade, o caráter, as tendências, as aspirações ...). Como fonte de pesquisa, a biografia vem sendo explorada por sociólogos, psicólogos, filósofos e pedagogos. A abordagem transdisciplinar é apropriada a uma filosofia da educação devido à impossibilidade de qualquer reducionismo de algum conhecimento especializado para abarcar o espectro de fatores que envolvem uma biografia. Caberia, inclusive, um neologismo para não reduzir a compreensão da biografia em sua mera expressão biológica, delimitada por processos fisiológicos que iniciam com a concepção e findam com a morte. Uma antropografia definiria melhor o conceito de trabalho biográfico aqui exposto, porque destaca a marca antropológica do vir a ser existencial, em que a contemplação de si é base para uma postura investigativa que abre para reinvenção de novos modos de ser. Além disso, uma antropografia destaca a inscrição humana no decurso existencial. No embate com as tendências do seu destino, o homem inaugura novas realidades quando de fato realiza a sua emancipação.
O trabalho biográfico tornou-se fonte de pesquisa, inclusive, no âmbito educacional e, aos poucos, vem fazendo parte da formação de professores. A investigação do percurso biográfico é uma pesquisa de fundamento transdisciplinar que envolve as dimensões sociológicas, etnológicas, psíquicas, históricas, culturais e espirituais do ser humano. O trabalho biográfico estimula a autorreflexão do indivíduo sobre sua própria história de vida, confrontando-o com o passado para uma reconstrução de sua existência, tendo como eixo as múltiplas possibilidades de transformação do presente, abrindo perspectivas futuras de mudança de rota existencial e de metamorfose de padrões que se manifestam no destino. O processo de um trabalho biográfico, aplicado à intencionalidade pedagógica, diferencia-se pela ênfase na potencialidade de aprendizado que o indivíduo efetiva quando se insere na contemplação, valorização e configuração do seu destino. Paschelke (2013, p. 76-81) elenca três fatores importantes na aplicação prática com biografias com o intuito de estimular o desenvolvimento psicológico, social e existencial da pessoa: o trabalho biográfico como desenvolvimento da personalidade, como função de formação continuada (que acompanha a vida independentemente da inserção num processo educativo institucionalizado) e como instrumento de profissionalização na formação de professores.
A confrontação consciente com os caminhos de vida pessoais evita que o indivíduo resvale em meras especulações sobre “o objeto destino”, pois o sujeito que vive a experiência do seu destino nunca se separa do “objeto” que é triplamente constituído: passado, presente e futuro. Então, a contemplação do destino já é um fator estimulador do desenvolvimento da personalidade, que se vê imersa num processo de revalorização e reconstrução de si mesma, frente aos desafios postos pela jornada do viver. Dentro da formação de educadores, o trabalho biográfico incentiva a potencialização do aprendizado dos futuros professores. “Recebe aqui importância central, a autoatividade do educando que é colocado diante da tarefa de desenvolver uma questão de pesquisa baseada nos interesses cognitivos pessoais” (PASCHELKE, 2013, p. 81). A exigência do aprendizado não vem de parâmetros estipulados pelo currículo externo e pedagógico, mas do currículo do destino, pelos temas apresentados como impasses existenciais. A origem etimológica de currículo remete a caminho, percurso, termo muito próximo do destino como caminho de vida. O percurso (curriculum) da vida apresenta, invariavelmente, desafios de compreensão do mundo e de força para atuação que um indivíduo ainda não possui. Alcançar níveis mais elevados de compreensão e elaborar estratégias mais amplas de atuação fazem parte de um processo contínuo de aprendizado, independentemente da posição social que alguém ocupa, da sua idade, da sua origem cultural.
O trabalho biográfico envolve uma gama temática muito ampla. Na formação de educadores, por exemplo, temas relacionados à educação, ao desenvolvimento humano e ao aprendizado são privilegiados. Stiller (1999, p.200), em seu artigo “O aprendizado biográfico na aula de pedagogia” elenca possibilidades para a formação de professores, mostrando direções de investigação que podem ser abordadas nos cursos de licenciatura. “O caso especial didático do nosso ramo torna necessário e possível pesquisar em todas as áreas, baseando-se nas ancoragens biográficas e experiências das alunas e dos alunos, mas também nas experiências biográficas de nós como educadores.”1 O indivíduo pode acessar sua potencialidade autotransformativa no trabalho biográfico em diferentes âmbitos: a biografia do processo educacional, a biografia do aprendizado, a biografia do desenvolvimento próprio, a biografia das ameaças e impasses vividos, a biografia da evolução da personalidade.
O aprendizado biográfico pode ser realizado em dois caminhos distintos: primeiro, quando o sujeito aborda a própria biografia (trabalho biográfico), segundo, quando a pesquisa e o estudo exploram a vida de outra pessoa (pesquisa de biografias) (STILLER, 1999, p.189). Dessa maneira, abrem-se diferentes perspectivas de abordagem. No trabalho biográfico, há uma unidade entre biografia como vida, todas as formas de registro da existência vivida (textos, imagens, voz gravada...) e processo de formação. Na pesquisa de biografias alheias, a principal fonte de dados normalmente é textual; o que não exclui fotos, documentários, vídeos. Ambos os caminhos são construção social de identidade e integração em contextos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais. O trabalho biográfico encaminha a pesquisa para uma autorreflexão com o intuito de inserir o sujeito autopesquisante num processo de transformação. A pesquisa de biografias alheias conduz a uma análise de histórias de vida que permite um escopo ampliado de aprendizado. Ambos os caminhos são situações de aprendizado interativo, contextualizado, que solicita elaboração comunicativa e narrativa. O trabalho biográfico objetiva a autocompreensão, a competência autobiográfica e a configuração do destino. A pesquisa de outras biografias almeja a compreensão da vida alheia e a competência hermenêutica e empática. Ambos os caminhos proporcionam objetivação a partir de perspectivas e quadros temáticos e por meio de procedimentos planejados e controlados.
O desenvolvimento humano pode ficar estancado quando as barreiras e as forças contrárias (tanto internas quanto externas) prevalecem na vida de um indivíduo. Quando os educadores, em seu processo de formação que dura a vida toda, são confrontados com sua própria biografia, invariavelmente as forças adversas ao desenvolvimento tornam-se tema a ser elaborado, mas “sem a luta pessoal constante para superar essas forças na sua própria vida, o educador não vai se relacionar de forma educativa com as potencialidades humanas dos seus educandos” (RÖHR, 2007, p.68). O trabalho biográfico docente com essas forças, cujo ponto de partida é a autorreflexão, irradia em seu campo de atuação (a sala de aula). O princípio socrático da vida bem vivida, ou seja, a vida examinada e refletida, fundamenta as bases da autoeducação do processo biográfico. A abordagem autobiográfica, aqui referida, não enfatiza tanto objetivos de ordem teórica ou práticas, mas privilegia objetivos emancipatórios que repercutem na atividade profissional docente e na sua existência como um todo. A abordagem biográfica permite o vislumbre de uma biografia educativa, de uma narrativa que constrói autocompreensão dos processos de aprendizagem do próprio autor/narrador. Por outro lado, a narrativa sobre o próprio processo de formação realizado explora um trecho da existência no qual a pessoa esteve inserida num processo formativo.
Desse modo, tanto a biografia educativa quanto a narrativa de formação procuram trazer à tona peculiaridades da vida do professor por meio de etapas metodológicas relacionadas ao paradigma identitário. Os principais focos de interesse do pesquisador que utilize a biografia educativa, nesta perspectiva, são os seguintes: (1) trabalho introspectivo; (2) distanciamento de si; (3) reflexão. (SOUZA, 2007, p.76)
A vida como processo de evolução da interioridade humana é abordada por Lievegoed (1994, p.166), que analisa as fases da vida e descreve os diferentes aspectos qualitativos do mundo interior na sua relação com a realidade objetiva: “Um caminho saudável do desenvolvimento somente pode ser percorrido através do equilíbrio entre o caminho de exteriorização e o de interiorização, nessa ordem.” O centro da psique, o eu, é instigado a uma vida de exercício, ou de meditação como denomina o autor citado acima, no sentido de assumir uma postura aberta à criação de novas possibilidades de relação com a existência.
Com relação a si mesmo, o caminho do treinamento interior começa com a criação de uma vida interior rica, no sentido de abrir-se para a filosofia, a religião, a ciência, a arte, a natureza, a educação e assim por diante. É somente nesta vida interior rica - que também pode revelar-se no silêncio da natureza, pois o importante não é a quantidade, mas a profundidade da experiência - que uma vida de concentração e meditação pode prosseguir para qualquer finalidade útil. (LIEVEGOED, 1994, p.164)
Esse caminho de treinamento interior é, para Göschel (2012), a pesquisa e a formação da personalidade enfocando o mito biográfico como imagem pedagógica diretriz. O mito biográfico é constituído por toda a gama de imagens efetivas da identidade, juntamente com sua narratividade e a estrutura de um estilo personalizado de condução existencial. Uma imagem efetiva é aquela metáfora que constrói a ponte entre o estilo pessoal de interpretar a realidade vivenciada e o campo de ação do sujeito. Na efetividade da imagem, ocorre uma identificação entre o eu e a imagem, o eu se sente sendo a imagem e esta proporciona a força real que concretiza a ação transformadora da realidade.
A relevância de uma imagem se torna aparente quando ela é retirada do estado pré-reflexivo da consciência e é articulada como metáfora. Somente nesta forma articulada acessível à reflexão, a imagem pode servir como instrumento do conhecimento no sentido de uma ciência contemplativa do espírito, que quer abrir níveis de percepção do sentimento e de encontro da vontade com o mundo ao acesso consciente, reflexivo e intencional. (GÖSCHEL, 2012, p. 220)2.
A complexidade do trabalho biográfico envolve aqui a inclusão de aspectos multidimensionais da imagem, porque ela evoca qualidades na relação do eu com o seu vir a ser expresso em sua biografia. O eu é solicitado a encarar seu contexto e estar aberto à configuração única da situação vivida, sem apelar para padrões de uma suposta razão uniforme. O indivíduo é solicitado a um engajamento integral de suas forças psíquicas (cognitivas, afetivas e volitivas) na resolução de impasses biográficos.
A narrativa expressa a criação de uma linguagem. Quando o próprio sujeito narrador explora a análise fenomenológica de sua narratividade, o autoconhecimento se efetiva dentro de uma construção linguística da experiência de vida, revista e reavaliada na importância que a linguagem possui como mediadora do vivido. A história de vida apresenta relações de espaço, tempo, identidade e causalidade. A trama e o drama da existência ganham voz na narrativa. “Nas histórias, os significados não são formados abstrata e genericamente, mas individualizados e ancorados numa situação concreta, em um contexto específico” (GÖSCHEL, 2012, p. 223)3. O trabalho biográfico indica aqui uma aproximação às demandas pós-modernas, de um mundo líquido, em que a individualização se tornou questão sociológica, psicológica, filosófica e educacional.
Aprender a viver na contemporaneidade implica na assunção de uma postura aberta para novas visões da vida, pois os desafios sem precedentes envolvem a busca por novas soluções. Bauman (2011, p.75), em seu artigo “O mundo é inóspito à educação?”, resume assim a inexorabilidade da condição individual atual: “Nesse novo mundo, espera-se que os seres humanos busquem soluções privadas para os problemas gerados pela sociedade, e não soluções coletivas para os problemas privados”. Há aqui uma inversão ética, a coletividade vem deixando de ser o parâmetro de valores e baliza para solução de problemas, abrindo espaço para o indivíduo ser a fonte de referência. Por isso, Göschel (2012, p. 227-234) inclui um terceiro aspecto inerente ao processo biográfico: a necessidade da personalidade criar seu estilo próprio de vida como postura existencial fundamental diante do mundo. A palavra estilo não deve ser compreendida no nível superficial do senso comum, mas como cosmovisão individual, nesse sentido, a personalidade precisa desenvolver uma filosofia existencial própria que lhe dê suporte. “A aproximação à cosmovisão, que como estilo entra na figura-símbolo imagético-narrativa da compreensão, ocorre através de um processo de formação de sentido ancorado em experiências-chave biográficas” (GÖSCHEL, 2012, p. 229)4. Uma filosofia da educação - uma educação filosófica - torna-se, assim, base articuladora para embasamento do centro da vida psíquica, o eu, de tal modo que este adquira ao longo do processo existencial subsídios efetivos para superação de impasses e desafios do destino.
O que se apresenta dentro da formação de significado imagético-narrativo no estilo como postura fundamental existencial é, no lado ontológico, a posição (pré-reflexiva-inconsciente ou intencional-consciente) do eu transcendental individual em relação a este processo universal do mundo, que constitui sua existência empírica, e assim também sua própria corporalidade e biografia: sua filosofia, tanto no sentido existencial-pragmático quanto no existencial-epistemológico. (GÖSCHEL, 2012, p.233)5
O trabalho biográfico focaliza o potencial autoeducativo do eu, ou seja, a gama de transformações possíveis que são de fato concretizadas quando as forças do eu (da interioridade humana) são ativadas. Como apontam Bueno, Chamlian, Sousa e Catani (2006, p. 388), os estudos sobre a história de vida individual apresentam grande dispersão temática e metodológica devido à aplicação de diversos referenciais e fontes teóricas oriundas de diferentes saberes especializados, dentro de disciplinas específicas. “Os teóricos que dão sustentação aos trabalhos têm sido buscados em vários campos disciplinares, fazendo-se empréstimos conceituais e combinações as mais variadas, nem sempre isentas de ambiguidades quanto às denominações metodológicas utilizadas.” O trabalho biográfico não deveria ser confundido com mera abordagem sobre histórias de vida, mas como processo intensificado de aprendizado tendo por base o estudo do destino humano.
O potencial de aplicação da temática biográfica na educação é imenso e ainda não foi explorado em toda a sua gama. Os estudos sobre biografias de seres humanos poderiam fazer parte do currículo, colaborando de modo transdisciplinar no ensino, uma vez que a biografia humana representa um fenômeno de múltiplas dimensões. Não há vida individual fora de um contexto social, isolada de uma temporalidade cultural, independente de relações econômicas e políticas. Uma vida individual expressa um todo biológico-genético, uma estrutura psíquica e constituinte da personalidade, um processo de socialização que incorporou modelos de pensamentos, sentimentos e vontades de uma determinada época, local e grupos sociais. Ao mesmo tempo, uma biografia humana evidencia traços únicos, características indeléveis e genuínas que demarcam e configuram uma individualidade. Uma história de vida individual é uma fonte de aprendizado em todos esses aspectos, rica em exemplos e descrições do vivido que podem servir de base comparativa e fonte inspirativa para o exercício da autobiografia, da análise que o próprio sujeito constrói com base no que foi vivenciado em seu destino. O processo autobiográfico, o próprio sujeito narrando sua história, analisando sua própria narrativa e interpretando sua jornada existencial, colabora para a paulatina formação de um estilo de vinculação e reformulação do seu destino.
Como indicado acima, a formação de um estilo envolve a configuração de uma filosofia que embase a articulação individual com a existência. A fenomenologia de Goethe pode contribuir para a formação do estilo de atuação do eu no mundo por meio da sua cosmovisão, que pressupõe a compreensão do que se tornou manifesto no destino como fruto do fenômeno primordial, composto pelo princípio da polaridade e da potencialização.
Fenomenologia goethiana e biografia
A fenomenologia de Goethe é uma postura investigativa em busca do reconhecimento do fenômeno primordial na manifestação fenomênica, partindo de princípios como observação, sequenciamento congruente, julgamento sintonizado à qualidade do objeto, versatilidade da intencionalidade da consciência e experiência da evidência (BACH JR., 2017, p. 119-122). Aplicada à pesquisa biográfica, a fenomenologia goethiana é fundamento para reformulações na postura de vida do indivíduo. O evento, o fato, o ocorrido, tanto interna quanto externamente, perfazem o rol de elementos a serem pesquisados, pois apareceram, vieram à luz no sentido originalmente etimológico da palavra fenômeno. Do encontro entre a realidade interna vivida e a realidade externa experimentada, nasce uma cadência de harmonias e conflitos que vão cambiando ao longo do tempo, conforme a dinâmica intrínseca do mundo psíquico e do mundo-da-vida. O fenômeno primordial configura-se pela polaridade, cada manifestação fenomênica comporta intrinsecamente as confluências de dois princípios opostos (HOFFMANN, 2013, p. 129-132). O destino é uma polaridade, um encontro entre interioridade e exterioridade.
A fenomenologia de Goethe é uma superação da dicotomização da realidade entre subjetividade e objetividade. As pesquisas científicas de Goethe eram orientadas pelo conceito de polaridade, implicando numa cosmovisão que incorpora os conceitos de expansão e contração, análise e síntese, luz e escuridão, como correlatos e complementares entre si e não como opostos. A proposta de embasar o trabalho biográfico tendo como suporte a fenomenologia goethiana visa à superação da dicotomia interioridade e exterioridade, subjetividade e objetividade. Pois, um processo biográfico bem efetivado significa justamente uma dinâmica pendular entre introspecção e extroversão, com o intuito de superar a tendência psíquica pretérita. O exercício biográfico é uma dinâmica que transita entre os âmbitos introvertido e extrovertido. O extrovertido é chamado à introspecção, o introvertido à extroversão. O sujeito em seu estado ordinário é convocado à superação de si. A fenomenologia goethiana extrapola a zona de conforto subjetiva, seu princípio de intensificação obtém parâmetros palpáveis quando o sujeito consegue reconhecer os níveis de autoconhecimento obtidos em processos autotransformativos. O autoconhecimento deixa de ser mera reprodução de tendências tipológicas, baseadas no passado, para abrir-se à autodescoberta de caminhos inéditos em estilos de vida que vão se inaugurando. Para quem já superou o paradigma simplificador e linear, que possui a noção unilateral da vida como uma corrente única do passado para o futuro, não lhe é estranho o reconhecimento de que o presente é um choque entre o futuro e o passado. Um paradigma ampliado pela fenomenologia goethiana inclui a polaridade da corrente temporal, a direção invertida do futuro para o presente, expressa nos anseios humanos - boa parte inconscientes - e que paulatinamente vão se manifestando no vir a ser humano. O conceito de polaridade - como princípio intrínseco a todo e qualquer fenômeno - impede qualquer hierarquia ou prioridade de um elemento sobre o outro. Assim, a subjetividade não é nem melhor, nem menor que a objetividade. Na observação de um trabalho biográfico embasado na fenomenologia goethiana torna-se importante tanto o movimento de singularização [Verselbstung] quanto o movimento de dessingularização [Entselbstung]. Na singularização, há o exercício de autodeterminação do indivíduo, um processo onde o sujeito estabelece sua identidade (si-mesmo, Selbst) a partir de sua interioridade. Na dessingularização, o foco passa a ser a sintonia com o mundo, a entrega abnegada do eu na sua tarefa de configurar a realidade. A fenomenologia de Goethe evita exatamente a escolha entre subjetividade e objetividade, pois a realidade (o destino, a existência) não está isolada em nenhuma das duas, mas é a dinâmica entre ambas. “Neste contexto, a tarefa que deve levar a cabo uma aplicação científica da teoria epistemológica de Goethe torna-se evidente: a confirmação da realidade que ocorre no movimento de pulsação entre singularização e dessingularização” (LINDHOLM, 2008, p. 77)6.
Intensificação é a junção de dois princípios que compõem uma polaridade, como passado e futuro, por exemplo. No trabalho biográfico, intensificação é a arte do encontro, é a arte de criar presença, de viver num presente integralizante do pretérito e do vindouro. Na modernidade dominada pelo deus Chronos, pela noção cronológica do tempo em sua dimensão mensurável, sequencial, há escasso espaço para o conceito qualitativo da presença, do encontro, que se faz pelo momento oportuno, pelo deus Kairós. A autoeducação biográfica mergulha o eu nas tensões produzidas pelos pares de princípios opostos - polaridades - apresentados pelo destino. O grau de autotransformação que o eu perpassa ao elaborar cada polaridade indica a potencialização, o nível de individualização no modo como a individualidade singulariza suas vivências. A biografia apresenta impasses entre fidelidade e traição, confiança e desconfiança, liberdade e necessidade, idealidade e realidade, amor e poder, saúde e doença, entre outros. “Quando o ser humano se confronta com o mundo dos fenômenos, ele chega a um aperfeiçoamento no sentido da ‘intensificação’ de Goethe, que resulta da vivência e da elaboração de elementos opostos, de polaridades” (TREICHLER, 1995, p. 18)7.
Os temas existenciais retornam, podem se reapresentar na biografia em ritmos de meses, anos. A pesquisa fenomenológica goethiana busca pela evidência do típico, das tendências que retornam ao longo do tempo. O ressurgimento de um conflito, de uma doença ou de qualquer tipo de desafio biográfico é oportunidade de desenvolvimento da individualidade humana. Uma referência clássica nos estudos biográficos é a compreensão do ritmo de sete anos, os setênios da biografia (NEIDER, 2016, p.79-90). Observar o percurso existencial e chegar a um reconhecimento de patamares de qualidades distintas da vida humana a cada setênio, é um dos objetivos do trabalho biográfico pautado na fenomenologia goethiana. O reconhecimento da evidência fenomenológica tem como pré-requisito um processo continuado e exercitado de observação do destino, a conscientização de que as manifestações biográficas apresentam um sequenciamento, a busca pela identificação de uma congruência interna no sequenciamento do que se tornou fenômeno biográfico, a formação de um corpo de conceitos que dê suporte a um julgamento adequado à vivência biográfica, o desenvolvimento de uma articulação epistemológica que expresse a versatilidade da intencionalidade da consciência. O ressurgimento de temas biográficos é pertinente à jornada existencial individual, a pesquisa fenomenológica é uma postura de desvendamento de níveis sub ou inconscientes para o aprimoramento do indivíduo.
A revivescência traz consigo a possibilidade da intensificação, ao mesmo tempo em que o ser se manifesta mais plenamente do que antes. Quando através da mudança rítmica de polaridades, estas chegam a um equilíbrio, surge sempre de novo o 'espaço' para a manifestação gradual do ser. (TREICHLER, 1995, p.18)8.
Por um lado, realizar o processo biográfico é um convite à radicalidade em nome da valorização da existência humana. Por outro lado, para se descobrir o melhor viver, Goethe explorava em sua biografia o melhor “morrer”. Isso foi registrado no poema “Anseio Bem-Aventurado” [Selige Senhsucht] (GOETHE, 1990, p.21-22). O princípio de intensificação da vida realiza-se pela lei: “morra e venha a ser”. Evidentemente, não se trata aqui de morte no sentido fisiológico da palavra, onde as funções de manutenção da vida biológica cessam. Pelo contrário, Goethe refere-se a uma morte existencial que abrange um modo de viver que precisa abrir espaço, deixar de atuar, para que no vazio que surge, um novo modo de viver possa se estabelecer.
A fenomenologia da natureza de Goethe captou o elemento essencial da manifestação dos seres viventes, a dinâmica da polaridade entre contração e expansão, inspiração e expiração, forças centrípetas e centrífugas. Ampliada à abordagem biográfica, a fenomenologia goethiana investe o eu dentro desse movimento pendular entre dois elementos opostos que são correlatos e complementares, no qual um processo que finda é necessário para que outra venha a ser. Num sentido ampliado, a tesoura de Átropos é o encerramento de todo e qualquer processo existencial. O passado nos ensina que o futuro já tinha reservado uma série de processos existenciais que foram se encerrando ao longo do tempo, para que novas relações pudessem vir à tona. A postura moderna de Goethe em relação ao percurso biográfico não espera pela tesoura de Átropos, mas imbui o próprio sujeito na autonomia do “uso da tesoura”. Ou seja, a morte existencial produz vir a ser, cria vida, é a assunção de um eu na sua responsabilidade pela vida num sentido elevado.
A aplicação prática da fenomenologia de Goethe no processo biográfico significa o reconhecimento de que a existência humana passa por metamorfoses (BURKHARD, 2002, p.189-194). Fatos, eventos, reações psíquicas vão se repetindo ao longo do tempo, ou seja, certos temas existenciais tornam-se típicos em uma biografia. Porém, a repetição é uma nova manifestação passível de ser metamorfoseada, isto é, uma nova chance para a individualidade trabalhar-se interiormente, de tal maneira que as influências externas e as tendências internas não exerçam papel tão determinante como nos padrões pretéritos. A fenomenologia de Goethe pode, então, servir de suporte metodológico no processo de aprendizado que o sujeito realiza ao articular reflexões sobre o passado, ponderações sobre o presente e transformações que lhe abram perspectivas futuras. Nesse sentido, a fenomenologia goethiana colabora para uma educação biográfica.
Como método participativo, a fenomenologia é efetivada quando exercitada, referendando um aspecto qualitativo no processo de construção do conhecimento: a qualidade do saber depende da profundidade da relação estabelecida com o objeto do conhecimento. O objeto em questão, a biografia humana, requer um aprimoramento da percepção. Um estudo do que se manifestou em ritmo na existência individual potencializa a percepção dos fatores implícitos à configuração do destino. Como toda biografia é multidimensional, é psíquica, histórica, social, cultural, a intencionalidade da consciência precisa ser versátil, ou seja, adquirir a capacidade de transitar entre diferentes perspectivas para a captação panorâmica do todo da existência humana. A versatilidade da intencionalidade da consciência repercute na formação de uma filosofia existencial, para abarcar os diferentes aspectos da existência e as distintas áreas que configuram o destino. A transdisciplinaridade da fenomenologia de Goethe corrobora com a necessidade epistemológica e metodológica para a abordagem da biografia humana, cuja complexidade exige a diversidade de perspectivas, de “olhares” e de modos de interpretação. O sujeito que analisa sua história está sempre intrinsecamente conectado ao sujeito que cria a linguagem da sua narrativa, ao sujeito que construiu a percepção e a valorização do vivido, ao sujeito que interpreta e configura sua realidade. As pesquisas sobre biografias e histórias de vida, em termos gerais, apresentam dispersão temática e metodológica. Por um lado, isso ocorre pelo vasto campo de possibilidades de abordagem que não se restringe às expectativas do paradigma disciplinar, que sempre exige delimitações e reduções em seus procedimentos. Por outro lado, a diversidade de temas e métodos de abordagem representa a própria condição da pesquisa científica em seus diferentes ramos especializados, que se desenvolvem em paralelo ou até mesmo isoladamente. No entanto, a diversidade de abordagens é para a perspectiva fenomenológica goethiana exatamente uma necessidade da pesquisa. A compreensão do que significa a repercussão dos processos psicológicos, históricos, sociais, econômicos e antropológicos na própria vida, potencializa o modo de interpretação do que foi experienciado. A educação biográfica assume o desafio de tornar consciente toda a gama de fatores que influem no destino individual, para capacitação do sujeito - como eu empírico e como eu existencial - em passar a ser um núcleo psíquico que assimila a dinâmica do seu contexto e elabora estratégias de atuação no seu entorno.
O trabalho biográfico perpassa fases de desenvolvimento interno. Primeiramente, a pesquisa do sujeito inicia com observação das reminiscências, os primeiros resultados são relatos, o primeiro nível da pesquisa é uma descrição baseada numa linguagem narrativa. Num segundo momento, a pesquisa passa para a própria análise do conteúdo narrado com o objetivo de captar padrões que ocorreram ou vem ocorrendo no percurso existencial. A própria narrativa revela os temas importantes, os aspectos da vida que permanecem em destaque são oferecidos pela dinâmica do narrador. O exercício de resgatar as vivências vai se aprimorando ao longo do tempo, as imagens ganham detalhes, os sentimentos experimentados nas circunstâncias vividas afloram e se acrescentam às descrições, o narrador permanece imerso num processo de aprender, no presente, a ser em relação ao seu passado. A terceira fase se caracteriza pela conquista de distanciamento de si mesmo, o eu passa a ver-se como um personagem numa história alheia. O distanciamento permite um novo panorama para que o papel da subjetividade transpareça. Desse modo, a compreensão profunda da biografia não resvala apenas nas considerações sobre os fatores externos, mas passa a enxergar a vivência como encontro entre as forças da interioridade e da exterioridade. A terceira fase permite uma formação dos juízos que o eu executa diante da vida, ao identificar se ideias, desejos e vontades foram sendo apropriadas pelo eu, ou se o eu foi sendo apropriado por essas ideias e desejos. A distinção entre estes dois fatores perfaz o processo de formação da identidade.
Considerações finais
O reconhecimento do destino como encontro, ora conflituoso, ora harmonioso, entre a interioridade da pessoa em constante processo de formação, e a exterioridade nas constantes mudanças das circunstâncias, é o fio condutor do trabalho biográfico que possui ampla aplicação prática no aprimoramento da personalidade em sua dimensão introspectiva e social. O drama e a trama da existência humana se concretizam em três movimentos: as relações de um ser humano nascem, se desenvolvem e finalizam sua existência. Na Antiguidade, esses fatores eram atribuídos aos deuses, às forças arquetípicas da psique humana. O trabalho biográfico é uma elaboração secularizada da consciência humana em relação ao destino vivido, colocando as forças cognitivas, afetivas e volitivas do sujeito em exercício evolutivo.
Os ideais modernos de autonomia e de emancipação do sujeito tornam-se, assim, guias orientadores do trabalho biográfico como ferramenta para a autoeducação. O percurso (curriculum) de vida passa a ser a base estimuladora para o aprendizado. O estímulo vincula-se ao interesse subjetivo que permanece intrinsecamente conectado ao que é necessidade existencial de superação e transcendência. Para a educação, a pesquisa individual sobre as próprias experiências de vida, sobre a situação presente e sobre o trabalho de articulação de estratégias para configurar um novo destino, abre inúmeras perspectivas de abordagens e de aplicação no processo de ensino e aprendizagem. Além disso, o estudo de biografias aponta para um amplo espectro de aprendizagem, cujo foco transdisciplinar pode enriquecer o processo educacional.
A fenomenologia de Goethe pode ser suporte metodológico para a pesquisa (auto)biográfica, pois apreende a dinâmica da construção do conhecimento como transdiciplinaridade, onde o sujeito cognoscente precisa se autotransformar para a adequada apreensão do fenômeno. Quando o objeto do conhecimento é a própria biografia, a fenomenologia goethiana apresenta uma diversidade de procedimentos metodológicos e epistemológicos para embasar o sujeito no grau de complexidade e transdisciplinaridade do fenômeno biográfico.
Os movimentos cíclicos e rítmicos que se expressam em uma biografia como contração e expansão, subjetivação e objetivação, individualização e socialização, são a “respiração” existencial. O trabalho biográfico visa à percepção dessa “respiração” intrínseca da vida para permitir que a existência individual passe por metamorfoses, em que os padrões e tendências são transcendidos, e a individualidade passa a se expressar no mundo de outra maneira, de tal modo que ganha paulatinamente níveis mais profundos de singularização - de vínculo com sua própria identidade - e um espectro mais amplo de atuação no mundo em seu processo de autorrealização.