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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.35 no.75 Curitiba mayo/agosto 2019  Epub 18-Jul-2019

https://doi.org/10.1590/0104-4060.63749 

DEMANDA CONTÍNUA

Obra completa pombalina: os escritos sobre instrução pública

Luiz Eduardo Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-1610-3835

Ana Lúcia Simões Borges Fonseca* 
http://orcid.org/0000-0003-4285-7064

*Universidade Federal de Sergipe. Sergipe, Aracaju, Brasil. E-mail: luizeduardo@ufs.br. https://orcid.org/0000-0002-1610-3835. E-mail: analucia.sbf@gmail.com. https://orcid.org/0000-0003-4285-7064.


RESUMO

O objetivo deste projeto é estabelecer um cânone dos escritos pombalinos relativos à instrução pública, de modo geral, e ao ensino de Humanidades, de modo particular, responsáveis pelo que se convencionou chamar, na historiografia educacional, de reformas pombalinas, bem como investigar o modo como tais escritos provocaram a fundação e afetaram o desenvolvimento da instrução pública no Brasil. Para tanto, apoiados no suporte teórico da história cultural e dos estudos culturais, valer-nos-emos da historiografia sobre o período, de manuscritos e demais fontes documentais, legislativas, literárias e epistolares, bem como de compêndios e periódicos publicados no período.

Palavras-chave: História da Educação; Humanidades; Marquês de Pombal; Educação Brasileira

ABSTRACT

This article intends to establish a canon of the pombaline writings about public instruction in general, and the teaching of Humanities in particular, which are responsible for what is conventionally called in the educational historiography by the name of pombaline reforms. Additionally, it aims to investigate the way those writings provoked the foundation and affected the development of public instruction in Brazil. To attain such purposes, based on the theoretical support of cultural history and cultural studies, it is used the historiography dedicated to the period, manuscripts and documental, legislative, literary, and epistolary sources, as well as textbooks and periodicals published in the period.

Keywords: History of Education; Humanities; Marquis of Pombal; Brazilian Education

Introdução

Falcon (1993), em seu livro sobre o que denomina A época pombalina, classifica os escritos pombalinos em sete grupos temáticos. O primeiro grupo, conforme o autor, compreende o período que vai de 1738, ano de sua chegada a Londres como diplomata, ainda durante o reinado de D. João V, até 1778, quando o Marquês, depois da morte de D. José I e de sua queda do ministério, defendia-se dos seus adversários políticos; é composto dos escritos sobre as relações econômicas anglo-lusitanas. O segundo grupo compõe-se das “Instruções” produzidas durante os primeiros anos de sua governação e destinadas a diversas autoridades, como as Instrucções regias publicas e secretas encaminhadas ao seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1779), em 31 de maio de 1751, mesmo ano de sua nomeação como Capitão-General e Governador do Pará. O terceiro refere-se às suas obras polêmicas, tais como o Compêndio histórico da Universidade de Coimbra, publicado em 1771; o quarto à legislação; o quinto é composto pela sua correspondência diplomática em geral; o sexto pelas suas Observações secretíssimas; e o sétimo, finalmente, pelo material produzido após a sua queda, em 1777, no qual se encontram seus discursos de louvação do seu próprio governo.

No entanto, o mesmo autor, além de reconhecer o lugar privilegiado, na ideologia ilustrada, do “otimismo jurídico” - isto é, “a crença no poder ilimitado das leis de promoverem o bem-estar e a felicidade dos homens” (FALCON, 1993, p. 113) - é capaz de perceber a importância, para o historiador, da análise das peças legislativas promulgadas durante o governo pombalino, as quais apresentam uma grande dificuldade para que se tenha uma visão de seu conjunto, uma vez que, apesar da grande quantidade de coleções de leis publicadas durante o século XIX, ainda restam muitas peças manuscritas encontráveis apenas em arquivos ou, de maneira fragmentária, em obras como as de Ribeiro (1871) ou de Francisco Trigoso de Aragão Morato, que organizou uma Coleção da legislação impressa e manuscrita que lhe serviu de fonte principal (MARCOS, 2006).

Um aspecto da legislação pombalina que não pode deixar de ser tratado por quem pretenda analisá-la é o seu caráter ilustrado. O senso comum generalizado é o de que o iluminismo português foi incompleto ou imperfeito. Alguns historiadores consideram-no até canhestro, dado o grau de atraso de Portugal em relação às grandes nações europeias, visível pelos viajantes, segundo suas narrativas, principalmente nos traços religiosos, que se mostravam enraizados na mentalidade e nos costumes do povo lusitano, algo que se evidenciava em sua arquitetura e até em suas roupas. Os que assim concebem o iluminismo português geralmente partem do pressuposto de que o iluminismo, ou a ilustração, é algo acabado, quase uma essência, que tem seus modelos perfeitos na França e na Inglaterra, de modo que, tratando-se de um fenômeno genuinamente europeu, não poderia ser bem sucedido fora do seu centro. Desse modo, ignoram a condição de construção discursiva da ilustração e de seus pressupostos básicos, pela historiografia, literatura, filosofia e mesmo pelos documentos oficiais emitidos pelos Estados absolutistas ou por déspotas esclarecidos.

Uma consequência desse tipo de perspectiva é que o estudo da legislação pombalina, por exemplo, só pode ser realizado em termos de defasagem ou atraso com relação a uma certa modernidade europeia, reduzindo-se, portanto, a uma manifestação periférica, realizada em condições precárias. Assim, acaba reproduzindo o próprio discurso da legislação pombalina, uma vez que uma de suas marcas principais é o elevado grau de autoconsciência histórica, desdobrando-se, às vezes, em verdadeiros discursos fundacionais, os quais se concentram na invenção de uma tradição gloriosa do povo lusitano, nas artes, nas armas e nas letras, quando, na época das grandes navegações, que também fora a época cantada pelo poeta de Os Lusíadas, havia conquistado a América, a África e as Índias, deixando boquiabertos os demais povos europeus, inclusive seus rivais ibéricos - os espanhóis. Nesse sentido, a legislação pombalina pode ser vista como uma das estratégias representacionais de construção de uma cultura e uma identidade nacional, para falar como Hall (2005).

A legislação pombalina foi aplicada em toda a extensão dos territórios da América portuguesa, tal como se configuraram depois do Tratado de Madri, de 17502. O tratado, pela primeira vez, levava em consideração o princípio jurídico do usucapião (Uti Possidetis), segundo o qual a terra pertence a quem a ocupa. Com o acordo, Portugal assegurava a posse da maior parte da Bacia Amazônica e a Espanha ficava com a maior parte da baixa do Prata, assentando-se, desse modo, as bases para a futura demarcação geopolítica do território brasileiro (ALMEIDA, 1990).

Com efeito, foi pelas mãos do ministro todo-poderoso, que representava, ao mesmo tempo, o rei e o Estado, que se projetaram as leis reformistas relativas ao mais rico e extenso domínio português. A gestão dos recursos econômicos, a reorganização administrativa colonial e os meios de educação e cultura foram campos privilegiados da intervenção pombalina. Para reforçar a sua política centralista e antiautonomista em relação aos territórios coloniais, Pombal expulsou os jesuítas, impediu a formação de elites locais e de quadros intelectuais, extinguiu a rede de colégios da Companhia de Jesus impedindo a fundação de universidades em território colonial, e impôs obstáculos para a criação de uma imprensa periódica ou mesmo de simples tipografias para editar livros.3

Política de língua

A primeira peça legislativa pombalina referente à sua política de língua é a Lei do Diretório, expedida em 3 de maio de 1757 e confirmada pelo Alvará de 27 de agosto de 1758, que estendeu os efeitos da lei, antes restrita ao Estado do Grão-Pará e Maranhão, para todas as colônias de Portugal. Nesse que talvez seja um dos mais importantes documentos de política linguística do século XVIII, pelo seu pioneirismo, extensão e riqueza de informações históricas, estão presentes os principais aspectos da legislação pombalina: a construção discursiva da noção de uma Europa polida e civilizada, que se contrapõe ao suposto atraso da administração temporal e da pedagogia jesuítica; o regalismo, que se apresenta como uma paradoxal união entre a sociedade civil, o Estado absolutista e a fé cristã; a moderna pedagogia, da qual um dos traços principais é a suavidade do método, em contraste com os castigos e rigores do ensino tradicional; e finalmente a autoconsciência histórica, que se desdobra na invenção de uma tradição do povo lusitano, remontando, assim, aos tempos das grandes navegações do século XVI. Esse último aspecto é o mais importante, pois é a partir dele que serão construídas as bases para a formalização do discurso nacionalista português, bem como a consolidação da ideia de nação e identidade nacional (RENAN, 2006; ANDERSON, 2008). Ao que parece, sem a política pombalina não teríamos um país tão extenso unido pela fala de uma só língua, independentemente do julgamento que possamos fazer das consequências antropológicas e culturais dessa que pode ser considerada tanto uma das grandes agressões imperialistas do século XVIII quanto uma espécie de “milagre” da colonização portuguesa.

Para evitar simplificações, é preciso enfatizar que, mesmo depois de cem anos passados da Lei do Diretório, de 1757, com a qual se buscou oficializar o uso e o ensino da língua portuguesa, em detrimento da imensa variedade linguística dos índios e negros africanos que habitavam o país, a língua geral4 continuou a ser usada até finais do século XIX. Mais eloquente ainda é o caso das ex-colônias portuguesas da Ásia e da África, onde, mesmo depois da redescoberta da língua como “força imperial”, quando da organização da Agência Geral das Colônias, durante o governo de Salazar (1889-1970), e de sua independência, que proporcionou a criação de escolas, liceus e universidades, a percentagem de falantes da língua portuguesa permaneceu abaixo dos cinquenta por cento5. Desse modo, convém sempre relembrar, como recomendava Renan (2006) já no final do século XIX, que as línguas não podem servir de lastro para a constituição das nações modernas, mesmo porque as comunidades dinásticas nunca deixaram de autorizar casamentos de príncipes que falavam línguas diferentes, sem contar que sempre houve regiões geograficamente contíguas que conviveram harmoniosamente com o multiculturalismo e com o multilinguismo (GELLNER, 1983). Mesmo assim, a política linguística pombalina, que obrigou, por meio de leis, o uso e depois o ensino da língua portuguesa em todos os domínios portugueses, foi, sem dúvida, fundamental para o processo de unificação linguística do país, que, afinal, só foi se consolidar no século XX.

Embora as consequências da Lei do Diretório estejam longe de ser um assunto consensual, não restam dúvidas de que ela foi um instrumento eficaz para favorecer os interesses coloniais portugueses. Não podemos dizer o mesmo da população “nativa”, a quem ela era dirigida. O decreto da liberdade dos índios e a desagregação das aldeias missionárias, antes protegidas pelos religiosos, abriu caminho para a voracidade dos colonos, que acabaram por dizimar, de várias maneiras, a população que ainda conservava sua identidade cultural e social (NETO, 1988). O antijesuitismo promovido pela legislação pombalina chegava a prever que, se os jesuítas não fossem atalhados a tempo, nem todos os exércitos da Europa coligados os conseguiriam dominar. Não por acaso, a primeira razão invocada para a sua expulsão é a questão do Brasil e dos problemas surgidos em torno da aplicação do Tratado dos Limites.

O trabalho de cristianização ficaria sob a responsabilidade do prelado da diocese, por se tratar de matéria “meramente espiritual”. Já com relação à “Civilidade dos Indios”, que ficaria sob a competência exclusiva dos Diretores, a primeira medida a ser tomada era o estabelecimento da obrigatoriedade do uso da “Lingua do Principe” (PORTUGAL, 1830, p. 508-509). O texto da lei apresenta dois movimentos. O primeiro diz respeito ao conceito iluminista de “nação polida”, ou civilizada, na medida em que denuncia a vontade do legislador de colocar o reino de Portugal na condição de uma nação, tal como as “demais Nações polidas do mundo”. Para isso, o Estado teria que se valer de uma Língua Nacional, a “Lingua do Principe”, para se afirmar perante os outros - as demais nações e os “Povos conquistados” -, construindo assim uma identidade nacional. O segundo movimento refere-se ao obstáculo que teria de ser enfrentado para a imposição da língua portuguesa: a “língua geral”. Para o legislador, tratava-se de uma “invenção verdadeiramente abominável, e diabólica” dos jesuítas, para fazer com que os índios fossem privados da civilização e permanecessem rústicos e bárbaros.

Desse modo, ao contrário da empreitada dos jesuítas, que faziam uso da “língua geral” em suas práticas pedagógicas e catequéticas, a Lei do Diretório dava um primeiro passo para a constituição do português como Língua Nacional, algo tornado possível pela sua gramatização (AUROUX, 1992) e escolarização (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001), que serviram de suporte para a construção de uma identidade nacional portuguesa, a qual só poderia ser consolidada, na visão do legislador, mediante o apagamento sistemático de toda a variedade linguística então existente, proibindo os meninos e meninas, bem como a população indígena, de usarem da “lingua propria das suas Nações, ou da chamada Geral”.

Como a “Lingua do Principe” era a “base fundamental da Civilidade”, determinava-se a criação, em todas as povoações, de “duas Escólas publicas”, uma para os meninos e outra para as meninas, nas quais os Mestres deveriam ensinar a “Doutrina Christã”, ler, escrever e contar, “na fórma, que se pratica em todas as Escólas das Nações civilisadas” - nas escolas de meninas, o contar seria substituído pelo “fiar, fazer renda, costura”, e mais os “ministerios próprios daquelle sexo”. Os Mestres e Mestras, que deveriam ser “Pessoas dotadas de bons costumes, prudencia, e capacidade”, seriam pagos pelos pais ou tutores dos alunos, “concorrendo cada hum delles com a porção, que se lhes arbitrar, ou em dinheiro, ou em effeitos, que será sempre com attenção á grande miseria, ou pobreza, a que elles presentemente se achão reduzidos”. As meninas, na falta de Mestras, frequentariam as escolas dos meninos até os dez anos de idade (PORTUGAL, 1830, p. 509).

O responsável pela redação do Diretório foi o irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1770-1779), executor das “Instruções Régias Públicas e Secretas” emitidas pelo ministro em 31 de maio de 1751, no mesmo ano em que havia sido nomeado Capitão-General e Governador do Pará, com a Ordem Régia de 19 de abril6. Ao que tudo indica, a execução da Lei do Diretório coube ao Governador Melo e Castro, substituto de Mendonça Furtado, que, pelo Decreto de 19 de julho de 1759, foi nomeado Secretário de Estado Adjunto do Conde de Oeiras. Quanto ao alcance de tal política, especialmente depois do Alvará de Confirmação de 27 de agosto de 1758, no Grão-Pará ou nas outras capitanias, a questão ainda se coloca como um desafio à historiografia.

Contudo, a chave para a compreensão da aplicação da Lei do Diretório foi sugerida por Andrade (1978, p. 12), que disponibilizou um verdadeiro achado do Arquivo Histórico Ultramarino, na caixa de Pernambuco: uma Breve instrucçam para ensignar a Doutrina Christã, ler e escrever aos Meninos e ao mesmo tempo os principios da lingua Portugueza e sua orthografia, de letra semelhante à do texto do Diretório corrigido por Luís Diogo Lobo da Silva. Para o autor, bastaria encontrar o ofício que acompanhou o documento para considerá-lo o único exemplar de compêndio usado nas aulas de Pernambuco de 1759-1760. Com efeito, trata-se de um Catecismo usado como cartilha para o ensino da língua, bem ao modo dos então existentes: o Cathecismo pequeno da doctrina e instriçam que os christaãos ham de creer e obrar, para conseguir a benaventurança eterna, de D. Diogo Ortiz, de 1504, e a Grammática da lingua portuguesa com os mandamentos da santa madre Igreja, de João de Barros, de 1540.

Se em 1757 a Lei do Diretório enfatizava a necessidade da imposição da “Lingua do Principe”, proibindo que meninos e meninas usassem “da língua própria das suas Nações”, já em 1827, alguns anos depois do Reino do Brasil ter negociado, por intermédio da Inglaterra, sua independência, a Lei de 15 de outubro, mandando criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do Império, estabelecia, em seu artigo sexto, a “gramática da língua nacional” - isto é, portuguesa - entre as matérias a serem ensinadas pelos professores (BRASIL, 1878, p. 72).

As reformas pombalinas no campo da instrução pública não só provocaram a institucionalização do ensino do português, com a Lei do Diretório, de 1757, mas também reformularam o ensino de latim e retórica, pelo Alvará de 1759. Nesse mesmo ano, foram publicados os Estatutos da Aula do Comércio e, dois anos depois, foram publicados os Estatutos do Real Colégio dos Nobres, documentos que acabaram por instituir, ainda que indiretamente, as línguas vivas como matéria de ensino na instrução comercial e militar, inicialmente em Portugal, e depois no Brasil, com a vinda da família real, em 18087. O Alvará de 30 de setembro de 1770, por sua vez, tornou obrigatório o ensino da gramática da língua portuguesa nas aulas de latim, e dois anos depois, com a Lei de 6 de novembro de 1772, regulamentou-se a criação e administração das chamadas “Escolas Menores” - ou de “primeiras letras”, como passaram a se chamar no Brasil - em Portugal e seus domínios.

As Humanidades

Como observou Carvalho (1978, p. 42), em seu livro já clássico sobre As reformas pombalinas da instrução pública, antes da reforma do ensino de humanidades promovida pelo Alvará de 28 de junho de 1759, o gabinete de D. José I buscou solucionar, por meio da instrução pública, os problemas mais urgentes do reino português, criando as condições necessárias para a realização dos esforços de recuperação econômica empreendidos pelo governo. A chamada Lei Geral dos Estudos Menores é indiscutivelmente a mais importante peça legislativa pombalina sobre o ensino de línguas. Com tal reforma, que deu novo sentido ao ensino de Humanidades, tornando o estudo da gramática e da retórica mais compatível com as modernas orientações linguísticas e pedagógicas do chamado “século das luzes”, a educação passou oficialmente a ser gerida pelo Estado, que por sua vez tornou-se responsável por controlar a seleção e a carreira dos professores, institucionalizando assim a profissão docente. Chama a atenção, no Alvará, o lugar de destaque ocupado pela “cultura das Sciencias” no discurso pombalino, uma vez que dela dependia “a felicidade das Monarchias”, que se faria conservar pela pureza da religião e a igualdade da justiça. Desse modo, se a ciência era útil ao Estado de Direito - a Justiça -, também o seria para a fé cristã, na medida em que, por meio dos “Estudos publicos”, poderia fazer com que os “Vassallos” de El Rei progredissem, em proveito da Pátria e da Igreja (PORTUGAL, 1830, p. 673).

Uma das principais características do discurso da legislação pombalina se apresenta ao leitor já no início do preâmbulo da lei: a união entre a fé cristã, a monarquia e o Estado moderno. Para equacionar as relações entre esses termos aparentemente tão díspares, são adotadas as estratégias discursivas necessárias para a construção imaginária da nação portuguesa: os mitos fundacionais e a invenção da tradição (HALL, 2005). No caso português, de uma tradição em que os reis fomentavam os estudos públicos em nome das ciências, as quais davam sustentação à monarquia e à igreja. Com efeito, a fé no progresso, o entusiasmo filosófico e a busca da felicidade e da razão não impediram a presença da religião, especialmente do cristianismo, numa espécie de “cristianismo ilustrado”, no qual a fé em Deus é a condição para a virtude e a felicidade, como esclarece Falcon (1993, p. 97-98).

Assim, para se imaginar a nação, foi necessário não somente que as comunidades religiosas e dinásticas entrassem em relativo declínio, mas também que uma nova maneira de apreender o mundo fosse configurada, passando a história a ser concebida como uma cadeia de causas e efeitos, o que implicava uma separação radical entre as noções de passado e presente. Foi quando a concepção medieval de tempo - na qual passado, presente e futuro se confundiam - deu lugar a um “tempo vazio e homogêneo”, fazendo com que a ideia de simultaneidade se tornasse possível (ANDERSON, 2008, p. 54). Tal ideia serviu de suporte aos dois gêneros que proporcionaram, no século XVIII, os meios técnicos necessários para se “re-presentar” - ou “narrar”, como quer Bhabha (2006) - as “comunidades imaginadas” correspondentes à nação - o jornal e o romance, no caso inglês, por exemplo. No caso da governação pombalina, a narrativa da nação portuguesa se fazia valer sobretudo pela legislação.

O Alvará de 28 de junho de 1759 é também um libelo contra os jesuítas, cujo “Methodo” estava levando, segundo o legislador, os reinos e domínios de Portugal à ruína, e “não só das Artes, e Sciencias, mas até da mesma Monarchia, e da Religião”. Desse modo, os discípulos de Inácio de Loyola aparecem como os grandes causadores do estado calamitoso em que se encontravam as “Letras Humanas”, “base de todas as Sciencias”. Tal antijesuitismo, como explica Carvalho (1978, p. 41), deveu-se mais aos conflitos entre o gabinete de D. José I e a Cúria Romana do que ao suposto atraso do programa pedagógico dos jesuítas, pois há muito tempo os intelectuais portugueses estavam convencidos dos inconvenientes que trazia para a economia lusitana o acúmulo de bens imóveis e demais privilégios desfrutados pelas ordens religiosas. Conforme Falcon (1993, p. 424), a luta contra os jesuítas era a manifestação da rejeição de Pombal com relação à dominação aristocrática, que no nível econômico estava em perfeita harmonia com o que os jesuítas representavam no nível ideológico. É de se notar a habilidade retórica do legislador, que, depois de relacionar os jesuítas a um atraso cultural e pedagógico que se contrapunha às nações civilizadas da Europa, faz de Portugal um precursor da modernidade europeia, evocando para isso um tempo mítico - o século XVI - no qual a “nação portuguesa”, concebida retrospectivamente, em forma de narrativa cronológica, fazia-se respeitar numa comunidade internacionalmente reconhecida: a “Republica das Letras”. É em nome dessa tradição inventada que o legislador ordena, paradoxalmente, que se restitua “o methodo antigo, reduzido aos termos simples, claros e de maior facilidade que se pratica atualmente nas nações mais polidas da Europa” (PORTUGAL, 1830, p. 674-675).

O Alvará, como se sabe, estabeleceu também o cargo de Diretor dos Estudos, autoridade responsável por sua execução e a quem os professores estavam submetidos. De sua aprovação dependia poder alguém exercer o magistério, depois do exame de suas qualidades morais e intelectuais (PORTUGAL, 1830). Com a instituição do Diretor dos Estudos, consolida-se o processo de estatização do ensino, pois pela primeira vez são regulamentados procedimentos uniformes na seleção e designação dos docentes, que passam a ser funcionários do Estado. Da mesma forma, a exigência da licença para ensinar consolida o processo de profissionalização da atividade docente, estabelecendo um cânone de competências técnicas e intelectuais, bem como um esboço de carreira, algo que, segundo Nóvoa (1991), vai servir de instrumento de afirmação dos professores, na luta pela melhoria do seu status social. Assim, com a Lei Geral dos Estudos Menores, de 1759, a profissão docente se institucionaliza em Portugal e seus domínios, sendo regulamentadas as Aulas Régias e a seleção e nomeação dos Professores Régios, que passam a ser funcionários e representantes do Estado português.

No Alvará também há “Instrucções para os Professores de Gramática Latina, Grega, Hebraica e de Retórica”, assinadas pelo Conde de Oeiras. Tais “Instrucções” apresentam-se não somente como guia dos professores, orientando-lhes quanto ao “tempo das lições”, às “horas da classe” ou aos procedimentos a serem tomados no caso da indisciplina dos alunos ou do seu adiantamento dos estudos, mas também como uma genuína peça de erudição, tanto do ponto de vista pedagógico quanto do linguístico e literário, uma vez que indica os compêndios a serem usados - ou proibidos - pelos estudantes e os livros de consulta dos professores, construindo assim o cânone escolar ideal para o novo perfil do Estado português.

A Lei Geral dos Estudos Menores foi pensada em perspectiva transcontinental, uma vez que o “novo Methodo” “precisava ser implantado em regiões tão distantes e tão diversas como as capitanias do Brasil colonial e as possessões no Oriente” (ALMEIDA, 1990, p. 4). Mesmo com todas as dificuldades para sua implantação - especialmente no caso brasileiro (ANDRADE, 1978) -, as diretrizes dessa reforma do ensino de Humanidades foram capazes de “dar um novo rumo à educação, tanto na metrópole quanto na colônia, em termos de renovação metodológica, de conteúdos e de organização”, como afirma Hilsdorf (2003, p. 15), invertendo assim a leitura de Azevedo (1971), que descreve a época pós-pombalina em termos de decadência e transição.

Para se ter uma ideia do alcance e continuidade do Alvará de 28 de junho de 1759, cinquenta anos depois, com a publicação da Decisão n. 29, de 14 de julho de 1809, criando uma Cadeira Pública de Aritmética, Álgebra e Geometria, uma de Língua Francesa e outra de Inglesa, o legislador estabelecia que, para o ensino das duas línguas, os professores deveriam seguir, quanto ao “tempo”, “horas das lições” e “attestações” do aproveitamento dos discípulos, o mesmo que se achava estabelecido, “e praticado”, pelos de Gramática Latina. Quanto à influência da legislação pombalina em peças legislativas expedidas no Brasil depois da Independência, pode servir de exemplo a Carta Imperial de 30 de abril de 1828 aprovando os Estatutos da Casa Pia e Colégio de S. Joaquim dos Meninos Órfãos da cidade da Bahia. A carta era dirigida ao Presidente da Província e assinada pelo Inspetor dos Estabelecimentos Literários e Científicos do Brasil, o Visconde de Cairu (1756-1835). Os estatutos, por sua vez, haviam sido enviados por uma representação do provedor e mais mesários e administradores do estabelecimento. A “Educação em geral”, conforme o Capítulo I do Título III, que tratava dos colegiais, tinha como objetivo “aperfeiçoar, e dirigir as faculdades physicas e Moraes do Homem, para utilidade, do individuo que a recebe, e da sociedade civil de que elle é membro”. A referência ao exemplo das “nações illustradas”, bem como o discurso da união entre razão e religião, por exemplo, continua presente.

As matemáticas e as línguas estrangeiras

Foi sob o ministério pombalino que as línguas vivas - isto é, as línguas estrangeiras modernas - foram pela primeira vez objeto de legislação, sendo seu conhecimento indicado e depois exigido nos estabelecimentos destinados à instrução militar, a exemplo do que pode ser observado na Carta de Lei de 7 de março de 1761, com a qual foram publicados os Estatutos do Real Colégio dos Nobres - antigo Colégio das Artes dirigido pelos Jesuítas -, aberto oficialmente em 19 de março de 1766. O Plano de Estudos da nova instituição trazia novidades, pois além das matérias usuais do ensino de Humanidades (latim, grego, retórica, filosofia, teologia), estavam presentes alguns elementos das matemáticas, astronomia e física, e se achava recomendado o estudo das línguas francesa, italiana e inglesa. No Título VIII, dedicado aos seus respectivos professores, a lei repetia o discurso do pensamento pedagógico da época ao defender a utilidade dos muitos livros escritos nas referidas línguas. Quanto ao método de ensino, prescrevia-se o uso repetido de exercícios práticos de “viva voz”, devendo ser poupadas em seus excessos as explicações gramaticais. Os compêndios seriam, ao mesmo tempo, úteis e agradáveis, além de “corretos”, e os professores, embora não precisassem residir no colégio, como os das outras matérias, haveriam de ter “louváveis costumes” (PORTUGAL, 1830, p. 782).

No preâmbulo da lei, estão presentes todos aqueles elementos característicos da legislação pombalina: a associação entre “o bem Espiritual, e a felicidade Temporal dos Estados”, proporcionando “a propagação da Fé, e augmento da Igreja Catholica; e para o serviço dos Soberanos, e utilidade pública dos Póvos”; a autoconsciência histórica, que se confunde com a invenção da tradição de grandes reis protetores das ciências e da instrução, tais como o Infante Dom Henrique, Dom Manuel e D. João III, este responsável pela fundação, na cidade de Coimbra, do “sumptuoso Collegio das Escolas menores das Linguas, e das Artes”, no qual haviam lecionado distintos professores, como André de Gouveia, os irmãos Marçal e Antonio de Sousa, Edmundo Rosset, Vicente Fabricio, Antonio Caiado, Pedro Margalho, Ayres Barbosa, André de Resende, Pedro Nunes e Diogo de Teive; a ideia de nação, relacionada à ideia de uma Europa polida ou civilizada; e a apresentação dos jesuítas como causadores da decadência econômica e cultural da “nação portuguesa”. A esse propósito, o legislador narra com detalhes o episódio da tomada do Colégio pelos padres da Companhia de Jesus (PORTUGAL, 1830, p. 773-775).

Os Estatutos do Real Colégio dos Nobres foram recebidos com entusiasmo, principalmente pelo Diretor Geral dos Estudos D. Tomás de Almeida, que se envolveu muito no projeto e no mesmo ano da publicação dos estatutos enviou várias cópias para todos os governadores e comissários do Brasil (ANDRADE, 1978). Segundo Braga (1898), as Cartas sobre a educação da mocidade (1760), de Ribeiro Sanches, originaram-se de sua correspondência com o Principal de Almeida, Diretor Geral dos Estudos, na qual o médico português propunha como modelo ideal que se podia imitar em seu país a Escola Real Militar de Paris, estabelecida em 1751. Assim, o Real Colégio dos Nobres teria sido inspirado em suas ideias. Tal hipótese é também abraçada por Carvalho (1978). No entanto, o funcionamento da instituição, pelo menos até 1772, quando com a reforma da Universidade de Coimbra foi abolido o ensino das matemáticas no Colégio, parece ter sido marcado pelo fracasso, sendo os professores de francês e inglês contratados somente em 1785. Entre as causas arroladas por Rômulo de Carvalho (1959), estão: a deficiência da administração, o Plano de Estudos inadaptado à idade dos colegiais, o ensino efetuado por professores estrangeiros em língua estrangeira, a situação social dos estudantes, que, habituados às liberdades de sua classe, tinham atitudes incompatíveis com um regime de disciplina, e o desagrado dos professores, que se viam obrigados a acumular funções administrativas. O Colégio foi abolido com um decreto de janeiro de 1838 (RIBEIRO, 1876).

Seus Estatutos são um exemplo evidente das orientações ilustradas da política educacional pombalina. Serviram de modelo para a preparação dos Estatutos do Real Colégio de Mafra, publicados com o Alvará de 18 de agosto de 1772, para os Estatutos da Academia Real Militar do Rio de Janeiro, publicadas com o Decreto de 4 de dezembro de 1810, e para os Estatutos do Real Colégio Militar da Luz, expedido pelo Alvará de 18 de maio de 1816. Podemos rastrear a sua influência até mesmo no Imperial Colégio de Pedro II, pois o Decreto de 02 de dezembro de 1837, ao converter o Seminário de S. Joaquim do Rio de Janeiro em “collegio de instrucção secundaria”, parecia fazer uma opção por este termo específico, em contraposição a Liceu ou Ateneu, como nota Gasparello (2004, p. 49-50), pois no ano anterior o Ministro do Império, em seu relatório apresentado à Assembleia Legislativa, propunha a criação de um Liceu na Corte, onde fossem “reunidas as Escolas, e fixados os Compendios, assim como a disciplina economica, e tudo debaixo das vistas de hum Director”, no intuito de preparar a mocidade para as “Escolas Maiores”. No ano seguinte, na sessão de 22 de julho da Câmara dos Deputados, Paulo Barbosa apresentou um projeto de criação de um Liceu de Humanidades na corte com o mesmo objetivo, como nos informa Haidar (1972), em seu clássico estudo sobre a instrução secundária no Brasil oitocentista.

Para Gasparello (2004, p. 50-52), o governo teria optado pelo termo “Colégio” porque “Liceu”, conforme o Diccionario da lingua portugueza (1789) de Antonio Moraes e Silva, tinha o sentido de “aula de ensino científico”, o que associava o estabelecimento a uma concepção moderna e republicana, diferentemente de “Colégio”, que designava uma cultura clássica e “desinteressada”. Tal distinção, no entanto, não se aplica ao caso brasileiro, se considerarmos as aulas de “ensino científico” dos colégios militares criados durantes os períodos pombalino e joanino, cujo modelo era o Colégio Real dos Nobres de Lisboa. O modelo do novo estabelecimento, como o próprio Vasconcelos admitia, era francês, fato que lhe serviu até de defesa, em sessão de 19 de maio de 1838, na Câmara dos Deputados, perante as acusações de Manuel do Nascimento de que o seu discurso havia sido “fradesco”. Para se defender, o ministro argumentava que o regulamento francês, tendo sido concebido ou restaurado por Napoleão Bonaparte, tinha como objetivo criar militares, e não frades.

Assim, o ensino das línguas estrangeiras, em Portugal, foi instituído no contexto das reformas pombalinas da instrução pública. Nos planos de estudos dos estabelecimentos dedicados à instrução militar, a pedra de toque é o desenvolvimento dado às “Ciências Matemáticas”, importantes para a formação do “perfeito militar”, que teria capacidade e instrução suficientes para lidar com fortificações, bombardeios e táticas de guerra, bem como para a arquitetura e construção civil. Sua consagração como curso acadêmico, em 1772, destaca ainda mais seu relevante papel nos estudos, tanto preparatórios como superiores. Acompanhando seu processo de institucionalização, estão as “Línguas Vivas”, cujo estudo possibilitava o acesso ao que se publicava sobre a matéria nos países estrangeiros, especialmente na França e Inglaterra.

Tal como ocorreu em Portugal no período pombalino, as línguas estrangeiras, no Brasil, acompanharam o processo de institucionalização dos estudos matemáticos, representados principalmente pelas academias militares, centros formadores de um setor da sociedade civil, ou da elite local, que excluía todos os que não fossem “vassalos”, e depois “cidadãos”, isto é, os escravos e os homens livres e despossuídos. Seu estudo, da mesma forma, achava-se justificado como meio de acesso às “Ciências Matemáticas”, pela tradução de obras e autores que não mais as escreviam em Latim, mas nos idiomas de suas respectivas nações. Desse modo, não é por acaso que a criação das primeiras cadeiras públicas de Inglês e Francês no Brasil, em 1809, é declarada no mesmo documento em que a Mesa do Desembargo do Paço dá provimento a uma cadeira de Aritmética, Álgebra e Geometria, assim como não é de estranhar que os colégios e academias militares e de marinha, em Portugal e no Brasil, sejam as primeiras instituições responsáveis pela inserção em seus currículos das línguas estrangeiras.

A reforma universitária

Como afirma Carvalho (1978), a reforma da Universidade de Coimbra constitui o coroamento das medidas pedagógicas ensaiadas pelo gabinete de D. José I desde a secularização das missões do Grão-Pará, decorrente da Lei do Diretório, confirmada pelo Alvará de 17 de agosto de 1758. A tarefa havia sido incumbida à Junta de Providência Literária, criada em 23 de dezembro de 1770, sob a inspeção do Cardeal da Cunha e do Marquês de Pombal, e composta pelo presidente da Real Mesa Censória, D. Manoel do Cenáculo, e pelos doutores Francisco Antonio Marques Giraldes, José de Seabra da Silva, José Ricaldi Pereira de Castro, Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, Manoel Pereira da Silva e João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho.

Em 1771, foi publicado o Compendio histórico da Universidade de Coimbra, obra patrocinada e supervisionada pelo Marquês de Pombal e que constitui um dos maiores monumentos historiográficos produzidos durante a governação pombalina. Nele narram-se detalhadamente os estragos feitos pelos jesuítas na educação portuguesa, os quais haviam causados sérios prejuízos tanto nos Estudos Menores quanto Maiores.

A Carta de Roboração de 28 de agosto de 1772, que historia todos os episódios relativos à criação da Junta de Providência Literária e à composição do Compendio histórico, tem uma importância fundamental para o desenvolvimento e institucionalização do ensino das línguas estrangeiras modernas em Portugal e seus domínios, uma vez que, com os novos Estatutos da Universidade de Coimbra, além da reformulação do curso teológico, de ciências naturais e filosóficas (medicina e farmácia) e os jurídicos (direito civil e canônico), foram criados dois novos cursos: o filosófico, que substituía o de artes, e o matemático, e o estudo das línguas vivas passou a ser recomendado para os cursos matemático e médico.

O Título II do Livro III, dedicado à preparação para o curso matemático, dividia os estudantes em três classes: os ordinários, que se destinavam ao curso completo (Cap. I, § 3.º); os obrigados, que se destinavam a outras faculdades - os alunos de medicina eram obrigados a cursar três anos do curso (§ 4.º), e os dos cursos teológico e jurídico, o primeiro ano (§ 5.º) -; e os voluntários, categoria relativa aos que quisessem instruir-se por curiosidade, “para ornamento do seu espirito, como muito convém a todas as Classes de Pessoas, e principalmente á Nobreza” (§ 8.º). A idade mínima exigida para ingresso no curso era de 15 anos completos (Cap. II, § 2.º).

Com relação aos estudos preparatórios (Cap. III), os pretendentes deveriam ter o conhecimento completo da língua latina, “que por estes Estatutos se requer, para todas as Faculdades”, bem como alguns rudimentos do grego, embora tal instrução não fosse exigida na matrícula, sendo, contudo, obrigatória para aqueles que quisessem obter o doutoramento no fim do quarto ano de curso (art. 3.º). O artigo seguinte recomendava a “inteligência das línguas vivas da Europa” (PORTUGAL, 1772).

Para ingressar no curso médico, os estudantes deveriam ter a idade mínima de 18 anos completos (Livro III, Cap. I, Tit. I), além do conhecimento necessário da língua latina, “de sorte que a entendam, e escrevam correcta, e desembaraçadamente”, e da língua grega, “para entender quaesquer escriptos de Medicina, cujos termos facultativos são quase todos gregos” (art. 2.º). Os alunos, no entanto, poderiam ser admitidos à matrícula nos dois primeiros anos do curso, caso não tivessem estudado grego, devendo frequentar as aulas do professor daquela língua da Universidade, com a exigência do atestado para cursarem o terceiro ano (§. 2.º). Quanto às línguas vivas, a mesma recomendação era feita no art. 4.º: “Tambem he para desejar, que os Estudantes Medicos se instruam nas Linguas vivas da Europa; principalmente na Ingleza , e Franceza, nas quaes estam escriptas e esse escrevem cada dia muitas Obras importantes de Medicina” (PORTUGAL, 1772).

Na segunda parte dos Estatutos, o legislador justifica a inclusão das ciências matemáticas - e com elas, como instrumento ou via de acesso ao seu conhecimento, as línguas vivas - na Universidade de Coimbra, com o intuito de dar um estatuto acadêmico ao novo curso. Com o curso matemático, qualquer estudante poderia ser admitido na marinha sem exame e teria preferência para os postos de engenharia (§ 10), sendo também sua qualificação necessária para o exercício da profissão de arquiteto (§ 11). Quanto ao magistério, nos lugares onde houvesse matemáticos formados pela Universidade que se dispusessem a ensinar sua ciência, não poderia outra pessoa ensiná-la pública ou particularmente (Liv. III, Tit. III, Cap. I, § 2.º).

As implicações dessa peça legislativa para o ensino de línguas vivas no Brasil são evidentes, pois, se por um lado, a criação das primeiras cadeiras públicas de francês e inglês estava associada aos estudos matemáticos, como já foi dito, por outro, as línguas estrangeiras - primeiro francês e depois inglês- passaram a ser requisito obrigatório para que os estudantes pudessem ter acesso aos estudos cirúrgicos e jurídicos. Com efeito, no dia 23 de fevereiro de 1808, quando foram publicadas as “Instruções para o Lente de Cirurgia”, assinadas pelo Cirurgião-Mor do Reino, que havia nomeado José Manuel Estrela (1760-1840) para a Cadeira de “Cirurgia especulativa e pratica” e José Soares de Castro (1772-1840) para a de “Anatomia e operações cirúrgicas” na mesma data (SANTOS FILHO, 1967, p. 468), o referido lente não poderia admitir “praticantes sem ter conhecimento da Lingua Franceza como se requer no Hospital de Lisboa, pela dispensa que houve no Latim” (CAMPOS, 1941, p. 36). No caso dos cursos jurídicos, que exigiam dos alunos, para seu ingresso, apenas o conhecimento da língua francesa, desde sua criação, em 1827, passaram a exigir também o conhecimento da língua inglesa a partir de 1831.

Algumas considerações

Apesar da importância de toda a legislação pombalina não só para a instrução pública, mas também para vários outros setores do Estado, é preciso relativizar a fúria retórica dos ataques da legislação pombalina, especialmente o Alvará de 1759, contra os jesuítas, se levarmos em conta a ousadia do ministro em tentar minar, por meio de suas intervenções legislativas, de maneira ao mesmo tempo hercúlea e quixotesca, uma longa tradição pedagógica de quase dois séculos. Na última parte do preâmbulo dessa que é a mais importante peça legislativa sobre instrução pública e sobre ensino de humanidades no período pombalino, concentra-se sobre a ordem a ser dada: a “geral reforma”, mas, paradoxalmente, a partir do “Methodo antigo”, isto é, anterior ao da gramática de Álvares, que se praticava nos tempos áureos da nação portuguesa e que, “reduzido aos termos simplices, claros, e de maior facilidade”, “se pratica actualmente pelas Nações polidas da Europa”. Essa é a típica estratégia discursiva da legislação pombalina para a invenção de uma tradição honrosa para a nação lusitana: eleito o inimigo, torna-se ele o responsável pelo estado de atraso e defasagem de Portugal com relação à Europa civilizada. Desse modo, sua memória tem que ser apagada por ser um elemento estranho no desenvolvimento da cultura lusitana, pois representa uma interrupção do processo formativo da “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) do povo português.

O que se sobressai, em seus escritos legislativos, é uma espécie de “autoconsciência histórica”, que, segundo Carvalho (1978, p. 54), se constitui como característica principal do iluminismo português, o qual, como faz questão de deixar bem claro, “não é uma fórmula que se impôs, feita e acabada”, mas a expressão de um momento histórico preciso, com todas as suas peculiaridades espaço-temporais. Tal “autoconsciência histórica”, no entanto, ao assumir ares de recuperação de um tempo perdido, configura-se como uma estratégia discursiva para a construção da identidade nacional portuguesa, uma vez que mobiliza mitos fundacionais, elegendo para tanto o século XVI, época da expansão colonial portuguesa e da poesia camoniana. Mais uma vez, o mito da Europa assume o papel de parâmetro civilizatório, na tentativa de dar respaldo à época de ouro da cultura portuguesa, enquanto os padres da Companhia de Jesus representam o atraso da situação presente. Desse modo, a legislação pombalina assume um aspecto redencionista que, ao mesmo tempo em que projeta para o futuro as mudanças estruturais que propõe e ordena, olha para o passado e o (re)escreve, construindo - ou inventando - uma tradição que se mostra em plena harmonia com as diretrizes estabelecidas pela governação pombalina (FRANCO, 2006).

Carvalho (1978, p. 190) conclui o seu estudo pioneiro afirmando o Absolutismo e o Iluminismo das reformas pombalinas da instrução pública, uma vez que a coroa reivindicou para si uma tarefa que até então estava nas mãos dos eclesiásticos e os programas e diretrizes da reforma apresentavam-se como “expressão autêntica do pensamento moderno”, embora, em outras passagens, tenha tentado relativizar esse iluminismo, definindo-o como “eclético” e “reformista” ou “regalista”. Falcon (1993, p. 363) é taxativo ao identificar o caráter ilustrado da legislação pombalina, na qual se encontram “o vocabulário e as formas de pensamente tipicamente ilustrados, a justificar medidas reformistas em franco contraste com as posições fixadas no decorrer de uma longa tradição”. Talvez seja esse o principal paradoxo do iluminismo pombalino: a união entre a fé cristã, a monarquia e o Estado moderno, os quais são os responsáveis por acionar as estratégias discursivas necessárias para a construção imaginária da nação portuguesa: os mitos fundacionais e a invenção da tradição. No caso português, de uma tradição em que os reis fomentavam os estudos públicos em nome das ciências, as quais serviam de sustentação à monarquia e à igreja. Nesse sentido, convém lembrar que a fé no progresso, o entusiasmo filosófico ou a busca da felicidade não impedem a presença do cristianismo, embora de uma espécie de “cristianismo ilustrado”, no qual a fé em Deus é condição para a virtude e para a felicidade. No caso das reformas pombalinas, o discurso de sua legislação apropria-se da religião para colocá-la a serviço do Estado, da escola e da nação portuguesa.

1Este artigo está relacionado ao projeto “Para a construção de um corpus pombalino: Parte I - Os Escritos Historiográficos Pombalinos” (FCT - PTDC/HAR-HIS/32197/2017).

2O Tratado de Madri, de 1750, pôs fim aos conflitos entre as coroas ibéricas e redefiniu as fronteiras entre as possessões portuguesas e espanholas na América, anulando assim o célebre Tratado de Tordesilhas (1494).

3Cumpre-nos registrar tentativas efêmeras de fundação de academias no Brasil. Desde logo com nome bem significativo da criação de uma instituição deste gênero numa colônia foi a Academia Brasílica dos Esquecidos, fundada em São Salvador da Bahia, por iniciativa do Vice-Rei Vasco Fernandes de Menezes, tendo por modelo a referida Academia Portuguesa da História em funcionamento. Com data de fundação de 7 de Março de 1724, tal instituição visava promover o estudo histórico da colônia brasileira e fomentar iniciativas de caráter literário. Com semelhante ideário estatuiu-se, em 1759, a Academia Brasílica dos Renascidos, também em Salvador. A falta de apoio do governo da metrópole acabou por condenar ao definhamento tais tentativas (KANTOR, 2004).

4Conforme Borges (2001, p. 211), em termos históricos, “‘língua geral’ refere-se ao processo linguístico e étnico instaurado no Brasil pelo complexo catequético-colonizador, cujo emprego aponta para três acepções: a) em sentido genérico, diz respeito às línguas surgidas na América do Sul em consequência dos contatos entre agentes das frentes de colonização e os grupos indígenas; b) especificamente, designa as línguas, de base indígena, desenvolvidas e instituídas em São Paulo e na Amazônia, e faladas por uma população supraétnica; c) refere-se também à gramatização dessas línguas”.

5Em 1980, cinco anos, portanto, depois da independência de Moçambique, o Recenseamento Geral da População colocava o português no décimo sexto lugar entre as línguas do país, com apenas vinte e cinco por cento de falantes, dos quais pouco mais de um por cento o usavam como língua materna (PEREIRA, 2009, p. 278).

6Entretanto, em carta datada de 20 de março de 1759, o Ouvidor Geral de Pernambuco, o Desembargador Gama Casco, escrevendo para Sebastião de Carvalho e Melo, refere-se a “hum diritorio” mandado “traduzir da lingoa francesa no nosso idioma e assim mais huma cartilha, para por ella os instroirem os Mestres e director” (ANDRADE, 1978, p. 8-9).

7As línguas vivas tornaram-se depois matéria obrigatória para quem quisesse estudar medicina ou matemática, como se vê na Carta de Roboração de 28 de agosto de 1772, com a qual foram publicados os novos Estatutos da Universidade de Coimbra.

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Recebido: 06 de Dezembro de 2018; Aceito: 02 de Março de 2019

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