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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.35 no.75 Curitiba mayo/agosto 2019  Epub 18-Jul-2019

https://doi.org/10.1590/0104-4060.62199 

DEMANDA CONTÍNUA

Escola, trabalho e gênero: uma experiência da Educação de Jovens e Adultos na rede pública de ensino de Porto Alegre

School, work and gender: an experience of adult education at the public school system of Porto Alegre

Ana Cláudia Ferreira Godinho* 
http://orcid.org/0000-0002-4655-5875

Maria Clara Bueno Fischer* 
http://orcid.org/0000-0003-2289-5282

*Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: anaclaudia.godinho@gmail.com. http://orcid.org/0000-0002-4655-5875. E-mail: mariaclara180211@gmail.com. https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.


RESUMO

O direito à educação é uma pauta antiga para as mulheres, em especial as trabalhadoras. Resgatar esse direito nos bancos escolares da EJA é um desafio para as estudantes que precisam conciliar o estudo com o trabalho remunerado, o trabalho doméstico, os compromissos familiares e outros. A escola também é desafiada a dialogar com saberes produzidos por essas mulheres fora da escola, em suas experiências de vida nas quais o trabalho se faz presente de diferentes formas. Nessa direção, o presente artigo analisa experiências de trabalho artesanal vivenciadas por estudantes mulheres em situação de rua em uma escola pública de EJA em Porto Alegre/RS. Com esse enfoque, realizou-se um estudo qualitativo com observação participante. O referencial teórico articula estudos sobre trabalho e gênero e sobre a educação popular. Conclui-se que compreender os processos educativos que acontecem na experiência de trabalho é uma possibilidade de aprimoramento da aprendizagem escolar, bem como de garantia do direito à educação.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Trabalho e Gênero; Educação Popular; Saberes

ABSTRACT

Women’s right to education is an old agenda, especially for worker women. Rescuing this right at the EJA (Young People and Adults Education Program) school banks is a challenge for female students whom need to combine their studies with paid labor, housework, family commitments and others. It is also a challenge for schools to dialogue with the knowledge produced by women outside the school environment in their daily life experiences, where work is present in different forms. This article analyzes collective work experiences lived by homeless female students in an EJA public school in Porto Alegre, state of Rio Grande do Sul, Brazil. Within this approach, a qualitative study was done with participant observation. The theoretical framework used articulates studies about Work and Gender and Popular Education. It concludes that understanding the educational processes related to the work experience of students creates a possibility for improving education as well as guaranteeing the right to education.

Keywords: Young People and Adults Education Program; Work; Gender; Popular Education; Knowledge

Apresentação

O direito à educação é uma pauta antiga e complexa para as mulheres, em especial as trabalhadoras. Resgatar esse direito nos bancos escolares da EJA é um desafio para as estudantes que precisam conciliar o estudo com o trabalho remunerado, o trabalho doméstico, os compromissos familiares e outros. Também é um desafio para o educador ou educadora estabelecer um diálogo entre o currículo escolar e os saberes produzidos por essas mulheres fora da escola, em suas experiências de vida e luta cotidiana pela sobrevivência, momento em que o trabalho se faz presente de diferentes formas. Analisam-se neste artigo as experiências de trabalho vivenciadas por mulheres estudantes no processo de escolarização na EJA. Nosso objetivo é analisar experiências de trabalho artesanal vivenciadas em uma escola pública de EJA em Porto Alegre/RS.

Para desenvolver o estudo que originou este artigo, realizamos a observação participante, método que privilegia a imersão de quem pesquisa no campo. Sua intenção é apreender a perspectiva das pessoas envolvidas no fenômeno em estudo, as formas de interação humana, interpretação e relações a partir da observação direta e da capacidade de abertura de quem pesquisa para interagir e identificar todos os elementos presentes nas situações concretas que observa (FLICK, 2009).

A observação participante em salas de aula de EJA permitiu refletir sobre as articulações entre os saberes escolares e as experiências de trabalho de mulheres estudantes, as interações das estudantes e as aproximações e os tensionamentos que elas estabelecem entre aquilo que estudam em sala de aula e aquilo que conhecem com base em suas experiências de trabalho. Realizamos a observação participante com registro escrito em diário de campo desde abril de 2016 até o segundo semestre de 2018. Desse modo, foi possível identificar o baixo número de mulheres no quadro discente daquela escola, a grande participação feminina nos grupos do Núcleo de Trabalho Educativo (NET, a maioria delas está no núcleo), além de registrar as experiências pregressas e atuais de trabalho tanto das mulheres como dos homens estudantes da escola.

Essas escolhas teórico-metodológicas têm também relação com as especificidades do público da EJA. O desconhecimento de procedimentos de pesquisa acadêmica e o possível constrangimento causado por questionários ou entrevistas semiestruturadas influenciaram a escolha por buscar conhecer as estudantes e suas experiências de trabalho por meio de interações mais informais, ao longo do trabalho de campo.

Durante todo o período, analisamos os dados com base em orientações de Mattos (2009) sobre a análise indutiva. Tal análise foi aplicada ao estudo etnográfico em espaço escolar pelas pesquisadoras. Conforme Mattos (2009), a primeira etapa é a tematização, que consiste em identificar temas, atividades e características das interações entre as estudantes e as dinâmicas de suas atividades. Assim emergem as categorias descritas conforme a recorrência e a tipicalidade dos fenômenos, eventos, ações e falas.

Ao longo deste artigo, buscamos argumentar que a relação entre trabalho e gênero na Educação de Jovens e Adultos apresenta particularidades na escola pesquisada. Considerando as especificidades das mulheres em situação de rua que acompanhamos nessa escola, entendemos que o trabalho artesanal é algo desconhecido para os homens e mulheres que compõem o quadro discente da escola, e que a experiência de trabalho desenvolvida na escola corrobora as reflexões de autoras como Eggert (2013), Becker (2014), Brun e Blasi (2016) e Cunha (2010). Tais autoras dedicam-se a investigar os processos educativos produzidos por mulheres das classes populares no trabalho, especificamente em relação à produção artesanal. Esta pesquisa aproxima-se dos estudos dessas autoras no que se refere ao potencial educativo da produção artesanal para a Educação de Jovens e Adultos dentro da perspectiva da educação popular, haja vista que esse tipo de experiência de trabalho pode promover a reflexão sobre o trabalho, as relações de classe, gênero e raça que o constituem, bem como a valorização da produção individual e coletiva desses homens e mulheres cujas existências são marcadas pela exclusão social.

A Educação de Jovens e Adultos - entre assistencialismo e emancipação humana

No Brasil, a Educação de Jovens e Adultos é marcada por práticas pedagógicas bastante diversas e dispersas, baseadas em concepções de sujeito e escolarização divergentes. Um rápido olhar para as salas de aula de EJA ou para os sujeitos envolvidos na sua oferta mostra essas características: programas e projetos governamentais voltados para a elevação de escolaridade, como o Brasil Alfabetizado, o Projovem e o Proeja; ações de voluntariado promovidas por ONGs, igrejas, empresas e organizações empresariais; iniciativas autônomas ou em convênios, organizadas e geridas por movimentos sociais. Algumas dessas experiências reproduzem concepções de EJA presentes nas inúmeras campanhas de alfabetização de adultos, de caráter compensatório e assistencialista, realizadas ao longo do século XX. Tais experiências foram amplamente analisadas por pesquisadores e pesquisadoras da área como Ribeiro, Joia e Di Pierro (2001), Paiva (2003), Oliveira (2007) e Galvão e Di Pierro (2007). Outras defendem a educação como direito humano e concebem seus projetos político-pedagógicos a partir de princípios e concepções da educação popular de base freiriana, com o processo educativo voltado para o protagonismo e a autonomia dos sujeitos, que se dá pelo diálogo e a leitura crítica do mundo.

Nesse cenário, entendemos que a Educação de Jovens e Adultos no Brasil carrega até hoje um conflito de concepções oriundo de sua história. Por um lado, é marcada pela visão assistencialista presente nas campanhas de alfabetização do século XX e, por outro, pela visão emancipatória dos movimentos de educação popular. A escolarização de jovens e adultos na rede pública de ensino não fica alheia a essas marcas históricas da EJA. Por isso, cabe resgatar brevemente o tema para compreendermos os avanços e impasses vivenciados por quem atua nessa modalidade da educação básica nos dias atuais.

A concepção de EJA presente nas campanhas de alfabetização pode ser resumida como: compensatória, por compreender que a pessoa que não estudou quando criança tem um “atraso” na sua trajetória escolar, a ser compensado por meio de um ensino aligeirado e simplificado que acelere sua inserção ou adaptação ao mercado de trabalho; assistencialista, porque muitas vezes é delegada pelo poder público à ação voluntária da sociedade civil, como analisa Di Pierro (2005); e focal, por restringir a escolarização da população jovem e adulta à alfabetização, sem considerar a conclusão da escolaridade básica como um direito de todos os cidadãos e cidadãs e considerando a educação não como um direito humano, mas sim como concessão do Estado ou um ato de caridade da sociedade civil.

O ensino supletivo, estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases n.º 5692, de 1971, embora não restringisse à alfabetização a escolarização de jovens e adultos, também reforçava a visão compensatória e assistencialista presente nas campanhas. O preconceito contra os sujeitos da EJA, vistos como “cegos” e “atrasados” e responsabilizados pelas desigualdades sociais, econômicas e políticas do país (GALVÃO; DI PIERRO, 2007), sustentou a construção de práticas de escolarização aligeiradas e simplificadas do ponto de vista curricular, voltadas exclusivamente à instrumentalização de mão de obra para o mercado de trabalho. Nessa lógica, as especificidades da EJA, do ponto de vista metodológico, não eram objeto de reflexão. A referência tomada das escolas de crianças somada à visão de que pessoas analfabetas possuem o desenvolvimento cognitivo semelhante ao de uma criança originaram práticas pedagógicas infantilizadoras, bem como causaram o silêncio dos cursos de licenciatura acerca desse campo de conhecimento.

Em contrapartida, a educação popular contribuiu para compreender os sujeitos da EJA não pelo viés da falta ou pelo preconceito, mas sim como sujeitos da cultura, da história e da política; pessoas que produzem, mobilizam e refletem sobre os saberes produzidos a partir das experiências humanas em que se envolvem ao longo da vida. Tais experiências são atravessadas pela condição de classe, gênero, raça/etnia, geracional e outras e por isso são referidas, por Freire (1992), como saber de experiência feito. Os educandos e educandas, nessa perspectiva, são vistos como sujeitos da cultura, da história, da política, bem como da educação. Essa concepção de sujeito da EJA faz parte do que Soares e Soares (2014) definem como o legado da educação popular, ao abordarem as especificidades da EJA. Atualmente, tal legado tem efeitos não só na modalidade, mas no conjunto da educação pública brasileira, haja vista que esse reconhecimento dos educandos e educandas como protagonistas de aprendizagens e de saberes (e com isso a afirmação de sua centralidade no processo educativo) contribuiu para que os sujeitos e coletivos das classes populares afirmassem suas identidades e suas demandas por educação e lutassem para que suas histórias, culturas e saberes adentrassem o currículo (ARROYO, 2011, 2014, 2017).

As repercussões das experiências de educação popular produzidas no Brasil podem ser identificadas no currículo, ao contribuir para que os sujeitos da EJA se contraponham às relações de poder verticais presentes nas sociedades de classes, em que os saberes ligados às experiências humanas produzidas pelas classes populares não são reconhecidos socialmente. No contexto escolar, esse processo de valorização e reconhecimento de determinados saberes está relacionado à historicidade da escola. Sua legitimação como instituição responsável por garantir o acesso ao patrimônio de saberes produzido pela humanidade é consolidada no contexto do positivismo, o que acarreta a interpretação de que somente os saberes científicos - tomando como referência a ciência cartesiana - seriam relevantes para a formação humana1.

Nessa perspectiva, a educação popular marca a alfabetização e a educação de jovens e adultos por criar metodologias atentas às suas especificidades. A esse respeito, Oliveira (2007) destaca que a partir do trabalho de Freire e de Moacir de Góes, em referência à campanha De pé no chão também se aprende a ler, “começou a emergir a consciência de que alfabetizar adultos requeria o desenvolvimento de um trabalho diferente daquele destinado às crianças nas escolas regulares. As necessidades e possibilidades daqueles educandos exigiam o desenvolvimento de propostas adequadas a elas” (p. 85). Desse modo, conforme as concepções pedagógicas da educação popular, o educando ou educanda ocupa o centro do processo educativo e está em diálogo com o/a educador/a. Este/a tem a função de contribuir para a práxis, ou seja, o ir e vir entre a prática e a reflexão sobre ela, o que permite ao educando ou à educanda distanciar-se das próprias práticas cotidianas para problematizar as relações sócio-histórico-culturais que condicionam seu modo de viver e agir no mundo.

Essas concepções divergentes de sujeito e escolarização são presentes na EJA até mesmo no interior da escola pública, como indicam estudos anteriores (GODINHO, 2007; 2012). Nesse cenário, estudar os saberes de estudantes acerca de suas experiências de trabalho contribui para o debate acerca das especificidades da EJA e seus sujeitos e, com isso, avança na elaboração de práticas escolares emancipatórias que resgatem e atualizem concepções de sujeito, educação, práxis, diálogo, entre outras produzidas pela educação popular. Essas especificidades da modalidade estão diretamente ligadas à diversidade dos sujeitos e de suas trajetórias e demandas formativas, mas nessa heterogeneidade os sujeitos aproximam-se no que diz respeito aos processos de desigualdade presentes na sociedade brasileira. Ao abordar a redefinição da identidade da EJA com o reconhecimento da diversidade dos sujeitos que constituem esse campo educacional, Di Pierro (2005) salienta que esse reconhecimento abriu espaço para a busca das especificidades de cada grupo que demanda o direito à educação.

Reconhecer a diversidade dos sujeitos não acarreta o esquecimento das desigualdades e hierarquias presentes na sociedade brasileira, amplamente problematizadas pela educação popular. A articulação entre desigualdade e diversidade para a compreensão dos sujeitos da alfabetização e escolarização de jovens e adultos no Brasil é um caminho possível para a contemplação das trajetórias e dos saberes produzidos por estudantes de EJA, sem apagar sua história, sua cultura e suas identidades (ARROYO, 2011).

Frente a essa diversidade, o trabalho pode ser compreendido como um importante elo entre esses sujeitos, o que não significa apagar as marcas de gênero, classe, raça/etnia, entre outras, sob o termo “trabalhadores”. Na verdade, o que pretendemos é olhar o trabalho como um lugar importante - não o único - de produção de saberes em que homens e mulheres produzem a vida. Em sua diversidade de experiências de vida, de trajetórias formativas e identidades culturais, étnico-raciais, de gênero e geracionais, a presença do trabalho desde a tenra idade - e, em muitos casos, como motivador da interrupção dos estudos escolares - é muitas vezes um elo entre homens e mulheres na sala de aula. Sendo assim, compreender suas experiências de trabalho e os saberes produzidos a partir dessas experiências é pertinente à problematização das práticas escolares na EJA, a fim de avançar no desenvolvimento de processos de escolarização voltados para a emancipação humana e a garantia de condições mínimas para a democracia, como o direito à educação.

O trabalho e a escola de EJA

As aproximações entre as experiências de trabalho de estudantes da EJA podem ser percebidas quando esses narram as suas experiências de trabalho: a inserção precoce no mundo do trabalho e a dificuldade de acesso à escola são exemplos recorrentes nas falas de jovens e adultos que retomam a escolaridade na EJA. Entretanto, algumas falas indicam problemas específicos das mulheres, cujas experiências de trabalho acumulam atividades remuneradas e não remuneradas (estas desenvolvidas no âmbito familiar). Sendo assim, a relação entre trabalho e escola vivenciada pelas mulheres apresenta aspectos que evidenciam uma sobrecarga de atividades difícil de conciliar: a incompatibilidade entre os tempos de escolarização, de trabalho remunerado e de trabalho doméstico não remunerado; e, por exemplo, a redistribuição do trabalho doméstico não remunerado somente com as outras mulheres da família e, assim, preservando os homens dessas tarefas.

Ao mesmo tempo, o trabalho é visto como a garantia de sobrevivência e a autonomia financeira que possibilita às mulheres saírem de relacionamentos violentos, entre outras interpretações que atribuem uma dimensão positiva a essa atividade. Essas motivações parecem estar diretamente ligadas ao predomínio de mulheres nas salas de aula de EJA: embora o número de matrículas de homens e mulheres seja muito próximo, mais mulheres do que homens permanecem na escola e a evasão dos homens gera o predomínio de mulheres nos cursos de educação básica dessa modalidade.

Ao pensar sobre as contribuições do campo “trabalho e educação” para a afirmação da EJA como direito, Fischer e Godinho (2014) analisam que

Num sentido amplo, a incorporação do patrimônio de discussão teórico-prática a respeito do trabalho como princípio educativo tem contribuído para o aprofundamento do entendimento da EJA como educação e não restrita ao ensino de jovens e adultos (…). O trabalho, quando reconhecido como central para a formação humana, é intrinsecamente educativo. Esta perspectiva confere outro olhar para a dimensão profissional para e nas políticas voltadas a jovens e adultos (p. 6).

Esse olhar não restringe o papel da escola ao de treinamento de mão de obra para atender às demandas do capital, mas, ao contrário, vê na escola um grande potencial para problematizar o trabalho em sua totalidade, abrangendo as relações sócio-histórico-culturais que constituem o trabalho e a relação que o trabalhador e a trabalhadora estabelecem com sua atividade, bem como as identidades que produzem a partir dessa relação.

Por isso, entendemos ser relevante para esta pesquisa problematizar o trabalho em suas dimensões ontológica e histórica. Se o ser humano cria as condições de vida que atenderão às suas necessidades básicas (transformando a natureza e a si mesmo ao trabalhar), o trabalho, ao mesmo tempo, é uma atividade humana que se constitui de acordo com as relações sociais estabelecidas durante a sua existência. Historicamente, as formas de trabalho foram utilizadas por uma classe social detentora dos meios de produção da vida para exploração e dominação dos trabalhadores. O mesmo ocorreu com as formas pelas quais grupos sociais foram separados e hierarquizados conforme seu gênero e raça2. Sendo assim, em consonância com os estudos sobre trabalho e gênero, entendemos o trabalho como uma experiência humana situada nas relações sociais de classe, gênero e raça, tomando-as como objeto a partir da noção de consubstancialidade criada pela feminista materialista francesa Danièle Kergoat, no final dos anos 1970. Sua definição, nas palavras de Kergoat (2016), é:

[o termo consubstancialidade] Ele significa a unidade de substância entre três entidades distintas, convida a pensar o mesmo e o diferente em um só movimento: 1) não obstante sejam distintas, as relações sociais têm propriedades comuns - daí o emprego do conceito marxiano de relação social com seu conteúdo dialético e materialista para pensar, também, o sexo e a raça; 2) as relações sociais, embora distintas, não podem ser entendidas separadamente, sob o risco de serem reificadas (p. 20).

Com essa definição baseada no conceito de relação social, a pesquisadora distingue a consubstancialidade da noção de interseccionalidade, que toma classe, gênero e raça como categorias. Além desse aspecto, Kergoat (2016) afirma que os objetivos da consubstancialidade são dois:

[...] o primeiro é o de conhecimento dos mecanismos de opressão, o qual requer que sua complexidade não seja negada, mas, ao contrário, que seja tomada como objeto central de análise. O segundo objetivo é - para falar de maneira rápida - o da saída desses sistemas tendo a emancipação como horizonte (p. 20).

Estudamos a relação entre trabalho e educação dentro da perspectiva da consubstancialidade entre classe, raça e gênero, por compreendermos que essas relações sociais adquirem formas específicas de opressão na vida das estudantes de EJA que acompanhamos ao longo desta pesquisa. Compreender essas especificidades ajuda-nos a pensar na escolarização dessas mulheres como uma prática social capaz de contribuir para a emancipação humana, incluídas as especificidades das condições humanas de mulheres em situação de rua. Ou seja, pensar sobre o humano não significa reproduzir uma ideia universal de ser humano, em que as relações sociais de classe, raça e gênero fiquem invisibilizadas.

Outro aspecto central deste estudo é pensar o trabalho enquanto atividade humana e, portanto, em sua dimensão educativa, haja vista que, ao trabalhar, o ser humano aprende sobre seu fazer e sobre si; ao transformar as condições de sua existência, adapta a natureza à necessidade humana, ao invés de se adaptar às condições existentes. Essa atividade humana sobre a natureza é o trabalho, e por ser uma atividade humana, sua natureza social origina transformações históricas, sociais e culturais que não podem ser ignoradas. As formas que o trabalho vem assumindo no capitalismo desde o taylorismo/fordismo até os modelos pós-fordistas são responsáveis por processos cada vez mais intensos de exploração dos trabalhadores/as e de alienação de seus saberes sobre o próprio trabalho. Problematizar essas contradições e os modos como o capitalismo atualiza seus mecanismos de acumulação às custas da força, dos saberes, da saúde e mesmo da vida do trabalhador é uma importante contribuição para a escolarização de jovens e adultos em sua ênfase na reflexão crítica da vida e do mundo.

Os saberes produzidos nessa atividade, portanto, são importantes para pessoas jovens e adultas com baixa ou nenhuma escolaridade, haja vista que esses saberes são mobilizados constantemente em suas atividades escolares quando ingressam na EJA. Reconhecer os saberes produzidos no trabalho não significa, no entanto, idealizá-los ou negar os aspectos históricos que fazem com que o trabalho no capitalismo signifique dor, exploração e alienação da classe trabalhadora. A visão dialética do trabalho implica considerar como as experiências de trabalho de estudantes de EJA se situam sócio, histórico e culturalmente no contexto de transformações profundas do mundo do trabalho. Nesse sentido, temos buscado compreender quais são essas experiências. Ao encontrarmos o predomínio de mulheres adultas em salas de aula de EJA, um aspecto que temos considerado é a relação entre trabalho e gênero.

A escola, o trabalho e a rua

A experiência analisada é de uma escola pública da rede municipal de ensino de Porto Alegre. O que nos interessa nessa experiência é o trabalho que se realiza na própria escola, em que estudantes de todas as turmas se agrupam em oficinas de produção artesanal. Nesses grupos, que fazem parte do que a escola denomina Núcleo de Trabalho Educativo, a experiência de trabalho é de dentro para fora, ou seja, os/as estudantes experimentam a atividade produtiva que se articula cotidianamente com outros processos educativos presentes na escola.

Nesse estabelecimento de ensino, o trabalho está presente de diferentes formas. A primeira é comum a toda escola de EJA: o trabalho se faz presente na memória dos e das estudantes por meio das lembranças de experiências de trabalho anteriores à entrada na escola da EJA. Essas lembranças frequentemente são narradas em sala de aula e, assim, tornam-se objeto de reflexão e aproximação com os conteúdos escolares. Durante a pesquisa que originou este artigo, identificamos que algumas estudantes, antes de ingressarem na escola, nunca tiveram experiência de trabalho formal nem informal. Outras tiveram experiências principalmente como catadoras de materiais recicláveis, guardadoras de carro ou cuidadoras de criança. Trata-se, portanto, de atividades informais, de trabalho precário, como definido por Hirata (2001) a partir dos critérios de ausência de proteção trabalhista, baixa remuneração e pouca ou nenhuma qualificação profissional.

Há também a experiência de trabalho concomitante aos estudos. Em sua maioria, os/as estudantes estão envolvidos em projetos de trabalho realizados pelos/as educadores ou pela universidade em projetos de extensão social desenvolvidos na escola.

Dentre essas atividades, detivemo-nos, neste artigo, no Núcleo de Trabalho Educativo. Em seu projeto político-pedagógico, a escola organizou um núcleo voltado ao trabalho artesanal, dividido em papel artesanal e cerâmica. Nesse núcleo, os/as estudantes aprendem a técnica escolhida e trabalham de modo coletivo. Sua produção é comercializada em eventos organizados pela escola e em feiras de artesanato, como a feira organizada no campus central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Essa experiência foi objeto de estudo de Santos (2018). O pesquisador descreve a criação do núcleo, bem como o contexto político de Porto Alegre, quando a escola foi construída por educadores e educadoras identificados com os princípios e diretrizes da educação popular e da escola cidadã, nos anos 1990. Santos observa também as atividades do núcleo e entrevista docentes e estudantes sobre essa experiência.

Entretanto, a presença do trabalho não se restringe ao núcleo. O trabalho realizado na escola acontece de diversos modos. Além do Núcleo de Trabalho Educativo, que é uma iniciativa da escola, há outros projetos de iniciativa de outros grupos, como é o caso do Movimento Nacional de Moradores de Rua, que, em conjunto com uma organização não governamental presta apoio na elaboração de um jornal planejado, redigido e distribuído pela população em situação de rua. Além disso, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por meio de projetos de extensão, realiza oficinas de fotografia e horta, e o Centro de Assessoria Multiprofissional - Camp -, colaborou com a formação sobre economia solidária para os grupos do NTE.

Ao acompanhar as atividades de trabalho desses projetos, entendemos que as técnicas do trabalho artesanal não fazem parte do repertório de saberes desses homens e mulheres. Não se trata, portanto, de resgatar experiências familiares, lembranças de aprendizados produzidos principalmente pelas mulheres adultas e idosas, como ocorre em muitas experiências estudadas por Eggert (2013) e Brun e Blasi (2016), por exemplo3.

Entretanto, há um conjunto de saberes produzidos pela experiência de vida em situação de rua que a escola valoriza e integra ao trabalho do NTE. Nesse sentido, o trabalho e a rua têm uma relação bastante específica na experiência dessa escola e, em especial, do núcleo. Tanto o Núcleo de Trabalho Educativo quanto os projetos de extensão universitária integram o trabalho e a rua. Essa integração ocorre por meio da produção de fotos e da sua venda pelos participantes desse projeto; da venda dos materiais produzidos pelos grupos do NTE durante feiras e eventos; e semanalmente por meio da participação em uma feira de economia solidária no campus da UFRGS.

A rua, portanto, é incorporada ao trabalho. Desse modo, não existe uma dicotomia entre trabalho e rua em que esta simbolize a vadiagem e a improdutividade. Ao contrário, conhecer a rua é importante para a escolha das imagens que merecem registro (no caso das fotos), dos lugares onde vendê-las, para a abordagem de diferentes tipos de pessoas que se interessam pelos produtos do NTE, bem como para a interação com cada um deles para se obter sucesso na venda.

Em todas essas atividades, as mulheres participam junto aos homens. Não há divisão de tarefas por gênero: todo mundo aprende tudo e realiza todos os tipos de atividade. Isso não significa que não aconteçam discriminações. Estas manifestam-se através de um apelido ou de um comentário debochado com outro colega, ainda que não sejam frequentes. Nos momentos em que isso ocorreu nos encontros do grupo de cerâmica do NTE, por exemplo, tais manifestações foram imediatamente colocadas em pauta pelas docentes, fazendo das falas objeto de reflexão sobre o preconceito e, especificamente, o machismo e a necessidade de respeito entre os participantes do grupo.

O trabalho artesanal, especificamente, contribui para o convívio, o diálogo, a interação, o resgate da produção coletiva baseada na autogestão e na ajuda mútua (valores da economia solidária presentes no Núcleo de Trabalho Educativo). Ao mesmo tempo, contribui para o domínio dos conhecimentos necessários para todo o desenvolvimento das peças ou dos produtos. Cada estudante aprende todas as etapas de produção, assim como aprende a operar as máquinas e os instrumentos de trabalho. Nessa direção, a experiência dessas mulheres aproxima-se da descrição de Silva (2015) sobre o trabalho artesanal das mulheres, entendido como

[...] a realização de trabalhos que foram (e ainda são!) historicamente apartados dos espaços públicos e desconsiderados pela lógica do capital. Pensamos que o artesanato passa por uma dupla exclusão pois, por um lado, constitui-se em uma atividade que não se adequou à produção industrial em massa (alicerce do capitalismo industrial) por sua característica de trabalho manual e criativo e, por outro lado, foi historicamente relegado quase que exclusivamente às mulheres e usado como forma de mantê-las atreladas ao espaço doméstico (p. 251-252).

Embora seja usado como estratégia de reprodução da divisão sexual do trabalho (relegando as mulheres ao espaço doméstico e à vida privada), o trabalho artesanal é uma atividade em que predominam processos educativos criados, mantidos e transmitidos por mulheres, de geração para geração, muitas vezes no contexto familiar (SILVA, 2015). Isso faz dele um processo rico para se compreender as experiências, trajetórias e saberes das mulheres, especialmente das mulheres pobres com baixa escolaridade, para quem a produção artesanal ainda é a principal fonte de trabalho e renda.

Com esse enfoque, as pesquisas sobre os processos educativos do trabalho artesanal realizado por mulheres no Rio Grande do Sul (EGGERT, 2013; SILVA; EGGERT, 2013; CUNHA, 2010) buscam articular a produção artesanal e a narrativa autobiográfica para compreender as aprendizagens produzidas nas experiências de trabalho ao longo das histórias de vida dessas mulheres. Os estudos enfatizam que o trabalho está arraigado na vida, no cotidiano, nas relações familiares dessas trabalhadoras, e os processos educativos do trabalho artesanal têm especificidades que podem ajudar a escola a se (re)criar como espaço de aprendizagem, criação, criatividade, protagonismo, solidariedade de classe, sororidade e emancipação humana. Além disso, esses estudos reforçam a importância de se compreender o trabalho artesanal como produção predominantemente realizada por mulheres e, por isso, associada ao espaço doméstico. Este é historicamente desvalorizado como lugar de segunda importância, invisibilizado e desconsiderado no debate travado no espaço público e, portanto, no âmbito da política. Diante desses aspectos, as pesquisadoras destacam a necessidade de se estudar e valorizar o trabalho artesanal como chave para a elaboração de políticas públicas que contribuam para a autonomia e a garantia de direitos das mulheres das classes populares.

Nessa perspectiva, Brun e Blasi (2016) analisam o bordado do Wandschoner4 como experiência de preservação cultural e autoria artístico-cultural de caráter emancipatório protagonizada pelas mulheres. Nas suas palavras, “a compreensão de que o bordado pode ser um ato libertador passa pelo reconhecimento da autoria da mulher na produção artístico-cultural e dos saberes a ela associados” (p. 337). Com base no potencial de libertação e autoria do bordado, as pesquisadoras relacionaram essa técnica de trabalho artesanal com diferentes técnicas de pesquisa-formação que também propiciam às participantes o reconhecimento de si como protagonistas de experiências e saberes ligados ao trabalho artesanal. Em suas narrativas autobiográficas as bordadeiras puderam refletir sobre o próprio processo de aprendizagem, aproximar a autobiografia de outra pessoa com as suas próprias e identificar aproximações entre as realidades do campo e da cidade. Ao participarem de grupos de bordado e pesquisa-formação, essas mulheres, conforme Brun e Blasi (2016), fazem “olhares retrospectivos de suas histórias de vida e formação, constroem olhares prospectivos, cheios de esperança, amorosidade, coragem e fé” (p. 348).

Tais pesquisas contribuem para refletir sobre as aproximações possíveis entre o trabalho artesanal e a escola, por considerarem que os processos de aprendizagem que as mulheres criam nesse tipo de experiência de trabalho se configuram de modos bastante específicos, o que Cunha (2010) definiu como “pedagogia da não formalidade”. Nesse sentido, o que acontece no trabalho artesanal tem muito a dizer sobre os modos como as mulheres aprendem fora da escola, em contextos em que a aprendizagem está integrada com a produção, a criação, a interação humana, a tentativa e o erro, a escolha, a experimentação e a repetição.

As experiências acompanhadas nessa escola levaram-nos a refletir sobre as possibilidades de (re)criação do trabalho, de seus valores e de seu sentido na vida pessoal dessas estudantes. A organização de grupos de trabalho artesanal acolhe todo e qualquer estudante que tenha interesse em participar, sem distinção de gênero. Sendo assim, encontramos nos dois grupos acompanhados - cerâmica e papel - o predomínio de homens. Havia uma ou, no máximo, duas estudantes mulheres a cada encontro, o que não causou surpresa, tendo em vista que na escola os estudantes homens são maioria. Esse aspecto é relevante para pensarmos que o interesse de homens por atividades artesanais sugere um avanço, naquela escola, no que se refere à superação de uma ideia pré-concebida de que artesanato seja “coisinha de mulher” (EGGERT, 2004), ou seja, uma atividade sem importância, indigna da dedicação de um homem.

A partir do trabalho artesanal realizado no grupo da cerâmica, os estudantes aprendem enquanto produzem peças de decoração e utilitários em cerâmica e participam de todo o processo produtivo, inclusive da definição de preço das peças e da sua comercialização. Cada participante decide o tipo de peça que fará a cada encontro, e a professora supervisiona e auxilia cada participante conforme perceba alguma dificuldade, algum erro ou quando sua ajuda é solicitada. Ao final da produção, as peças ficam expostas na sala (há visitantes que, ao conhecer a escola, se interessam e compram algum item) e são comercializadas nas festas escolares, na feira da UFRGS (que acontece às terças-feiras no campus central), bem como em outros eventos aos quais a escola é convidada a participar. O valor das vendas é distribuído aos participantes de acordo com as peças, ou seja, cada participante fica com o valor correspondente à venda das peças que ele ou ela produziu. Encontramos, portanto, elementos do trabalho associado: o espaço de produção é coletivo, os espaços de comercialização também; há autonomia para cada estudante decidir o que vai produzir, seu ritmo de trabalho, sua interação com os colegas e as professoras durante a atividade; a colaboração no cuidado dos equipamentos, na organização da sala e outros5.

Já no grupo do papel artesanal, encontramos outro modo de organização do trabalho. Cada participante realiza uma etapa da produção: enquanto uma pessoa corta o papel a ser reciclado (primeira etapa da produção), outra costura um caderno ou agenda (etapa final da produção). Em outro encontro, as posições alteram-se e assim cada participante aprende a fazer todas as etapas. Ao final, com o produto concluído, o grupo não define um “dono do trabalho”, pois ele passou pelas mãos de mais de uma pessoa.

Ao analisar a experiência desses grupos do NTE, destacamos o potencial desses espaços para a integração entre a escola, o trabalho e a rua. Nessa direção, as atividades do núcleo, por envolverem a produção artesanal, contribuem para a valorização de uma atividade historicamente associada às mulheres e ao espaço doméstico. A integração de homens e mulheres em grupos de produção artesanal contribui para desnaturalizar a associação entre o artesanato e as mulheres, por serem consideradas socialmente como as representantes oficiais do espaço doméstico. Nesse sentido, a experiência de trabalho desenvolvida na escola acompanhada é pautada pela valorização do trabalho artesanal e de seus participantes - homens e mulheres - como sujeitos com autonomia e protagonismo na produção e na gestão do trabalho. Além disso, a escola resgata princípios e aspectos metodológicos da educação popular e os atualiza ao conformá-los às condições específicas da educação escolar, do público-alvo daquele estabelecimento de ensino, assim como do tempo histórico em que se encontra.

Palavras finais

Diante da fragmentação e dispersão das experiências analisadas na história da Educação de Jovens e Adultos, encontrar uma escola que resgata princípios da educação popular é um alento para pesquisadores dessa área. As atividades que acompanhamos no projeto de pesquisa que originou este artigo enfatizam a relação entre escola e trabalho com estudantes da Educação de Jovens e Adultos. Possuem, no entanto, uma especificidade: a de apresentar mulheres que se encontram em situação de rua. Essa característica influenciou diretamente suas experiências de trabalho anteriores ao ingresso na escola, limitadas a atividades marcadas pela precariedade e a informalidade.

Na escola acompanhada, destacou-se a integração entre educação e trabalho não como formação instrumental de mão de obra para postos com baixa qualificação e baixa remuneração (como acontece em muitos projetos), mas sim como um trabalho associado, com princípios de autonomia, autogestão, solidariedade, sororidade e emancipação humana. Também é importante destacar o reconhecimento da rua não em seu sentido pejorativo, comumente reproduzido como sinônimo de vadiagem, perigo e crime, mas sim como espaço público em que os estudantes circulam para vender peças de cerâmica, cadernos e agendas artesanais, fotografias e jornais que produzem nos projetos dos quais participam na escola.

A observação participante permitiu acompanhar atividades de produção artesanal que nos conduziram a reflexões sobre a valorização desse trabalho, historicamente associado ao espaço doméstico e às mulheres e, por isso, considerado como “coisinha de mulher” (EGGERT, 2004), ou seja, como atividade de segunda importância. Na contramão desse preconceito ainda presente nos dias atuais, a escola promove o trabalho artesanal nos grupos do NTE, de modo a contribuir para a sua visibilização e sua valorização não apenas como alternativa de renda para seus participantes, mas também como atividade de criação, produção de conhecimento, cultura e arte.

Com este texto, pretendemos contribuir para a reflexão sobre as experiências de escolarização de jovens e adultos que considerem os processos educativos não escolares como fonte de informação e diálogo. Nessa direção, as bases epistemológicas e político-pedagógicas da educação popular têm fundamentado experiências de EJA na escola pública, a fim de promover propostas educativas que efetivamente garantam para os e as estudantes o direito à aprendizagem, entendendo que isso não se reduz ao aumento de matrículas, mas abrange a qualidade da educação, uma escola em que o quadro discente reconheça-se como protagonista da escola, da sala de aula e da própria aprendizagem.

Compreender como os/as estudantes aprendem na experiência de trabalho é uma possibilidade de aprimorar os processos que acontecem em sala de aula, ao aproximar a escola dos espaços de produção e reprodução da vida. O trabalho, em suas diferentes formas, contribui para o resgate da dimensão ontológica, ou seja, daquilo que o ser humano cria com base em suas experiências de vida, nos saberes que acumulou sobre o mundo e sobre si mesmo.

Além disso, a educação de jovens e adultos cumpre um papel importante no resgate de direitos por mulheres das classes populares e, em especial, dos grupos mais estigmatizados da sociedade, como é o caso da população em situação de rua. Neste estudo ficou evidente que a escola, quando articulada com outros equipamentos públicos, como os Centros de Referência em Assistência Social - Cras -, os postos e unidades básicas do Sistema Único de Saúde - SUS - e outros, exerce um auxílio muito importante para estudantes da EJA, no que se refere ao acesso a direitos básicos, como saúde, assistência social, moradia, trabalho e outros. A orientação e o acompanhamento daqueles/as estudantes que fazem parte de grupos sociais mais vulnerabilizados podem ser fundamentais na reorganização de suas vidas, como suporte para acessar benefícios sociais que demandam um domínio da burocracia estatal bastante difícil de desvendar sozinhos.

Por fim, destacamos a gravidade do momento político atual, em que as políticas públicas de educação e assistência social encontram-se ameaçadas pelos cortes do governo federal nessas áreas. Retirar políticas públicas que atendem minimamente esses grupos significa condená-los à segregação social e abandonar à própria sorte a população em situação de rua.

1Essas reflexões permanecem em debate na EJA. Ao analisar a organização curricular dessa modalidade, Oliveira (2007) avalia que um dos problemas do currículo é a falta de diálogo com os sujeitos e seus saberes, o que indica a permanência da abordagem formalista nas escolas, que privilegia o saber teórico em detrimento do prático; da ênfase no especialista, ao invés do sujeito que vive a experiência; e o trabalho intelectual em detrimento do trabalho manual. Essa priorização de saberes respaldados pelo cientificismo “tem permitido a legitimação de interpretações dadas como eternas, porque cientificamente comprovadas, dos diversos processos sociais dinâmicos e singulares vividos nos diversos espaços/tempos sociais” (p. 92).

2Conforme Saviani (2007), a divisão de classes na Antiguidade clássica é responsável pela separação entre trabalho e educação, duas atividades humanas indissociáveis para a manutenção da vida, mas que historicamente se desvincularam em função da propriedade privada.

3Essas e outras pesquisadoras têm discutido a relação entre o trabalho artesanal e a experiência de aprendizagens e os processos educativos não escolares de mulheres das classes populares e, para tanto, abordam esses temas pelo viés da hermenêutica feminista.

4Técnica utilizada por moradoras de Ivoti, município do interior do Rio Grande do Sul. Esse tipo de artesanato, conforme as pesquisadoras, resgata saberes de imigrantes alemães que vivem no município.

5Esse ajuste sobre a venda das peças pode estar relacionado com os conflitos e a desconfiança de que, conforme alguns momentos que presenciamos na escola, entre os estudantes há o receio de serem enganados ou roubados (informação recorrente nas suas falas). Em sala de aula, mais de uma vez, presenciamos discussões entre estudantes em relação a esse tipo de desconfiança. Por isso, é bastante compreensível que a divisão do dinheiro das vendas seja feita de um modo que evite desentendimentos no grupo da cerâmica. De modo diferente, no grupo do papel, o valor das vendas é repartido entre todos e todas as participantes.

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Recebido: 23 de Janeiro de 2019; Aceito: 23 de Maio de 2019

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