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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.35 no.76 Curitiba jul./ago 2019  Epub 23-Sep-2019

https://doi.org/10.1590/0104-4060.67669 

DOSSIÊ - Cultura Material em História(s): artefatos escolares e saberes

Artefatos da cultura material escolar no Rio Grande do Sul: um estudo das Cartilhas Mestra e Samorim1

Artifacts of the school material culture in Rio Grande do Sul: a study of Cartilha Mestra and Cartilha Samorim

*Universidade Federal de Pelotas. Faculdade de Educação. Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: eteperes@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-0160-1276. E-mail: caroli_brga@yahoo.com.br. https://orcid.org/0000-0002-6171-4125.


RESUMO

Tratando os livros didáticos, em específico as cartilhas para o ensino da leitura e da escrita, como parte constitutiva e importante da cultura material escolar, o objetivo deste artigo é apresentar uma análise comparada da Cartilha Mestra e da Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva, ambas de autoria do professor gaúcho Samorim Gustavo de Andrade, sendo a primeira de 1919/1913, na 12ª edição, e a segunda, a 1ª edição, de 1921. Produzidas no contexto da consolidação do governo positivista no Rio Grande do Sul, da constituição do sistema público de ensino e do crescimento de uma “indústria escolar”, as cartilhas aqui em pauta foram amplamente utilizadas em escolas gaúchas e expressam parte da cultura material escolar do período em questão. Para este artigo, ambos os exemplares indicados foram cotejados tendo o livro como objeto de estudo na perspectiva de uma história de sua edição e da cultura material escolar. O estudo permitiu evidenciar que a Cartilha Samorim é uma versão ampliada da Cartilha Mestra. Contudo, as edições apresentam especificidades, como, por exemplo, o acréscimo, na versão de 1921, da letra cursiva e de textos para o desenvolvimento da fluência da leitura. É provável que as mudanças observadas estivessem articuladas aos discursos da época no que tange aos métodos para o ensino da leitura e da escrita e às demandas sociais e pedagógicas.

Palavras-chave: Cartilha Mestra; Cartilha Samorim; Rio Grande do Sul; Cultura material escolar; Livros didáticos

ABSTRACT

Considering textbooks - specifically primers - as a constitutive and important part of the school material culture, this study aims to present a comparative analysis of Cartilha Mestra and Cartilha Samorim- both of which were written by southern Brazilian professor Samorim Gustavo de Andrade - using the 12th edition of the former, from 1919/1913, and the first edition of the latter, from 1921. Produced in a context of consolidation of the positivist government in the state of Rio Grande do Sul, of the constitution of the public education system, and of the growth of a “school industry”, such primers were widely used in southern Brazilian schools and expressed part of the school material culture of that time. In this article, the two above-mentioned samples were compared having the book as a study object from the perspective of their publishing history and the school material culture. The study found that Cartilha Samorim is an enlarged version of Cartilha Mestra. However, each edition brings particularities, such as the addition of cursive handwriting and texts for the development of reading fluency in the 1921’s version. The observed changes were most likely articulated to the discourse of the time with respect to the approaches for the teaching of reading and writing and to social and pedagogical demands.

Keywords: Cartilha Mestra; Cartilha Samorim; Primers; Rio Grande do Sul; School material culture; Textbooks

Introdução

Compreender a cultura material escolar em um tempo e espaço específicos e suas complexas relações supõe, dentre outras coisas, identificar, caracterizar, descrever e analisar os objetos escolares, seus usos, sentidos, finalidades e temporalidades. Além disso, implica entender que a “análise da cultura material escolar não pode se esgotar no estudo do próprio artefato, ou seja, é necessário entender que os significados não estão nos objetos apenas, mas nas condutas, valores e sentidos que são atribuídos pelos sujeitos que deles fazem uso” (PERES; SOUZA, 2011, p. 55-56). Essa perspectiva permite, também, “olhar a escola na sua globalidade, relacionando-a com as possibilidades que a sociedade lhe confere e com o modo como esta se relaciona com a escola” (FELGUEIRAS, 2005, p. 97).

Para o caso dos livros didáticos, objeto de estudo deste artigo, não é diferente. Quando se trata da análise desse artefato, é preciso procurar entender, também, os propósitos e os sentidos não apenas de quem os utilizou, mas de quem os produziu, editou, comprou e distribuiu, uma vez que “o livro didático é um artefato de expressão humana e um bem econômico” (LUKE, 1988, p. 28). Essa é uma tarefa árdua, sem dúvidas, mas o esforço é fundamental para ampliar o campo de estudos e as investigações que analisam os livros didáticos na perspectiva da cultura material escolar. Assim, não basta descrevê-los, é preciso analisá-los articuladamente aos projetos sociais e pedagógicos do seu tempo e aos cenários políticos e culturais do contexto de sua produção. Considera-se, pois, que a cultura material escolar, em geral, e os livros didáticos, em especial, são compreensíveis na medida em que são relacionados aos sentidos atribuídos a eles pela sociedade e pela própria escola. No caso específico dos livros didáticos, seus conteúdos e mesmo sua materialidade não se explicam por si mesmos, uma vez que não são abstraídos da realidade em que foram produzidos e utilizados.

No Brasil, a discussão sobre livros didáticos e/ou escolares passa pela compreensão da institucionalização da escola, dos projetos políticos que conduziram a organização e a estrutura dos sistemas educacionais, da necessidade ou não de padronização de materiais e de métodos de ensino, das condições de produção e de impressão e, também, pelo entendimento das razões de ordem econômica, pois é preciso observar que o livro escolar é um [...] “signo cultural na e pela sua materialidade, pela sua natureza objetivada como mercadoria, resultado de uma produção para o mercado” (MUNAKATA, 1997, p. 18).

Desse modo, considerando o contexto gaúcho do final do século XIX e das primeiras décadas do XX, sob o domínio político dos princípios positivistas2, da constituição do sistema público de ensino, da expansão do número de alfabetizados, da criação e do fortalecimento do mercado editorial e pedagógico, este artigo aborda duas cartilhas produzidas e publicadas no Rio Grande do Sul: a Cartilha Mestra e a Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva, de autoria do professor gaúcho Samorim Gustavo de Andrade3. Trata-se de dois livros escolares para o ensino da leitura com ampla circulação no final do século XIX e início do XX, período em que o ensino primário era ministrado de forma paralela tanto nos colégios elementares4 como nos grupos escolares5 e nas predominantes escolas isoladas e que existia um debate acerca da desqualificação docente, da unidade de ensino e da autorização do uso de livros escolares a serem usados no ensino público.

Tendo em vista a importância de compreender a materialidade do livro e os aspectos gráfico-editoriais, os quais são fundamentais na análise de obras didáticas (CHARTIER, 1996, 2000; FRADE, 2010a, 2010b), uma vez que projetos gráfico-editorias e pedagógicos do ensino da leitura e da escrita estão associados na produção de livros didáticos, considerou-se relevante comparar edições das duas cartilhas do professor Samorim Gustavo de Andrade. Logo, trabalhou-se com dois exemplares6, sendo um datado de 1919/19137, na 12ª edição, a Cartilha Mestra, e um de 1921, na sua 1ª edição, qual seja, a Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva8.

Desse modo, tendo como foco de trabalho tratar o livro como objeto de estudo na perspectiva de uma história de sua edição (FRADE, 2006) e como parte importante da cultura material escolar (SOUZA, 2007), procurou-se cotejar, nos dois exemplares, aspectos da proposta pedagógica da obra, a sua estrutura, as capas e a configuração das páginas, entendendo que a materialidade do objeto explica aspectos de uma pedagogia da leitura em circulação em determinado período e as condições concretas, de ordem econômica, técnica e tecnológica, de produção do artefato. Para isso, o artigo foi organizado em duas seções. Na primeira é abordado o contexto de produção e de circulação da Cartilha Mestra; e na segunda são apresentadas as comparações tecidas entre a 12ª edição da Cartilha Mestra (1913/1919) e a 1ª edição da Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva (1921).

O contexto de produção e de circulação da Cartilha Mestra

Na última década do século XIX, assim como nas primeiras do século XX, em função do projeto e dos discursos do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), sob forte influência positivista, o Rio Grande do Sul passou por significativas mudanças de ordem econômica, política, cultural e educacional, dentre elas, a expansão do sistema público de ensino9.

Assim, inúmeros investimentos foram realizados, por parte do estado, a fim de garantir a expansão da escola pública primária entre o final do século XIX e o início do XX. Distintas estratégias foram criadas para controlar e fiscalizar o trabalho das escolas e das professoras primárias, bem como diferentes legislações foram implementadas intencionando regulamentar o sistema de ensino público que estava em vias de consolidação. Além disso, as leis também prescreviam o que e como deveriam ser ensinados os conteúdos escolares, uma vez que havia o entendimento de que os materiais didáticos e os métodos utilizados, por exemplo, poderiam contribuir (ou não) para difundir os princípios de liberdade, igualdade e moralidade defendidos pelo Partido Republicano Rio-Grandense, no contexto da política positivista gaúcha.

Considerando esse cenário, uma das estratégias adotadas pelas autoridades públicas, desde o Império, foi a de determinar quais os livros escolares poderiam ser usados no ensino público. No Regulamento da Instrução Pública do Rio Grande do Sul, de 1869, por exemplo, constava a orientação de que nas aulas públicas do estado deveriam ser utilizados somente livros escolares autorizados. Embora sob a responsabilidade de órgãos diferentes, essa determinação se manteve no Regulamento de 1876, no Decreto nº 89, de 02 de fevereiro de 1897, e no Decreto nº 874, de 28 de fevereiro de 1906, cabendo, assim, aos referidos conselhos aprovar (ou reprovar) os livros escolares e os métodos de ensino (TAMBARA, 2002; ARRIADA; NOGUEIRA, 2014; PERES; MICHEL, 2018).

Especificamente sobre os materiais utilizados para ensinar a ler e a escrever, destaca-se que, embora nas primeiras décadas do século XIX eles tivessem diferentes materialidades e suportes tais como tabelas, folhetos, impressos com letra manuscrita, livros de doutrina cristã, gramáticas, entre outros10, as cartilhas e os livros de leitura passaram a ser predominantes para o ensino na fase inicial da escolarização no decorrer do século. Desse modo, é importante atentar para as diferentes materialidades, formatos e definições que foram, no decorrer dos séculos, caracterizando e constituindo o livro escolar e/ou didático, pois é preciso considerar que “tudo parece ser uma questão de contexto, de uso, até de estilo” (CHOPPIN, 2009, p. 19).

No que tange à denominação desses materiais no período investigado, as cartilhas e os primeiros livros de leitura eram tratados, não raras vezes, como sinônimos (TRINDADE, 2001). Segundo a autora supracitada, é a partir de 1913 que aparecem nos registros dos Relatórios da Instrução Pública do Rio Grande do Sul a orientação de que o primeiro livro de leitura fosse usado posteriormente à cartilha, especialmente por possuir textos mais extensos para o desenvolvimento da fluência em leitura.

Em consonância com os estudos da referida autora, identificou-se nas pesquisas realizadas a predominância da distribuição e da circulação de alguns títulos de cartilhas e de primeiros livros de leitura específicos para determinados períodos (PERES; MICHEL, 2018). Entretanto, isso não significa que não havia outros livros para o ensino da leitura e da escrita em circulação em relação àqueles predominantes. Assim, considerando o período pesquisado de 1873 a 1920, observou-se a distribuição, por parte do estado, às escolas públicas gaúchas do Primeiro Livro de Abílio César Borges, anteriormente à República, embora a permanência de circulação e de uso desse material tenha sido para além desse período; a predominância do fornecimento da Cartilha Nacional, de Hilário Ribeiro, a partir de 1880. Concomitante a essa última, desde 1886, identificou-se a circulação da Cartilha Maternal, do português João de Deus, e, a partir de 1896, o fornecimento da Cartilha Mestra, do professor Samorim Gustavo de Andrade (PERES; MICHEL, 2018).

Sobre a circulação desses livros é interessante ressaltar, como destacado por Frade (2016), que a discussão dos materiais didáticos utilizados nas salas de aulas supõe a relação com as políticas e com a organização educacional de cada momento e contexto social, isto é, principalmente com as reformas propostas e as orientações das diretorias de instrução pública de cada estado, assim como com as concepções acerca do ensino e com as perspectivas de leitura e de escrita vigentes em cada momento histórico. Desse modo, a análise desses diferentes livros escolares permite, ao mesmo tempo, captar as propostas pedagógicas para o ensino da leitura que circularam no Rio Grande do Sul como também compreender que esses artefatos culturais não existem “soltos, sem gêneses e, consequentemente, sem valor social e político” (ABREU JUNIOR, 2005, p. 161). Nesse sentido é que se indagou: por que a Cartilha Mestra, desde o final do século XIX, mais especificamente desde 1896, e posteriormente sua versão modificada, a Cartilha Samorim, obtiveram aprovação do estado gaúcho e foram compradas e enviadas às escolas públicas em quantidades expressivas? Seriam apenas por razões de ordem pedagógica, uma vez que se tratavam de cartilhas que adotavam o método João de Deus, consonante com a legislação da época vigente no estado gaúcho? Há outras razões que explicam a adoção desses livros no contexto do ensino primário do Rio Grande do Sul?

Vale salientar que dentre as obras anteriormente mencionadas, a Cartilha Mestra foi o livro escolar para o ensino da leitura e da escrita com maior número de registro de entrada, entre os anos de 1898 e 1903, no Almoxarifado da Instrução Pública do estado, atingindo a cifra de 73.031 exemplares no total para o período mencionado. Em anos posteriores, a existência da referida cartilha nas aulas públicas do estado também foi identificada no inventário de uma professora, qual seja, no documento “Aula publica mixta, localisada entre “Casa Branca” e “Capão da Fumaça” no municipio de Porto Alegre”, dos anos de 1912 e de 1913, indicando a permanência de seu uso nos anos iniciais do século XX.

Não é pouco provável que o interesse das autoridades gaúchas nesse material estivesse circunscrito à similaridade com o método João de Deus, cujo uso nas salas de aulas gaúchas passou a ser indicado no Decreto nº 239, de 1899, como método oficial de ensino da leitura. Havia, também, razões de ordem econômica, haja vista que em relação aos demais livros para o ensino da leitura fornecidos pelo estado à época, a Cartilha Mestra tinha um dos menores custos aos cofres públicos. É exemplar, nesse sentido, os registros dos contratos dos fornecedores de materiais escolares ao estado que permitem evidenciar os valores de compra de cada uma das obras didáticas. Enquanto no ano de 1898, a Cartilha Maternal, de João de Deus, custava 2.500 réis aos cofres públicos, a Cartilha Mestra, de Samorim, era comprada por 500 réis (PERES; MICHEL, 2018). Observa-se com esse dado que a cultura material escolar é determinada, em diferentes contextos, por diversos fatores, dentre eles o econômico, especialmente em momentos de crescimento dos sistemas públicos de ensino, de aumento do número de escolas e de matrículas, como foi o caso da educação pública gaúcha para o período em pauta em que, no ano de 1900, por exemplo, o índice da população escolar equivalia a “4,1% da população geral do estado e a 41,6% da população em idade escolar”, e “em 1910 o índice da população escolar subiu para 5,3% em relação à população geral e 53% sobre a população em idade escolar” (GIOLO, 1997, p. 317)11.

Considerando essas assertivas e a importância que as cartilhas tiveram na história da educação primária do Rio Grande do Sul, apresenta-se, na próxima seção, a análise das duas obras do autor gaúcho mencionado, na perspectiva de compreendê-las no contexto das alterações político-educacionais e das disputas em torno das pedagogias do ensino da leitura, dos métodos de ensino e das transformações na cultura material escolar.

As cartilhas Mestra e Samorim: uma proposta para o ensino da leitura no contexto da educação gaúcha no final do século XIX e início do XX

A Cartilha Mestra ou Primeiro Livro de Leitura é de autoria de Samorim Gustavo de Andrade, como reiteradamente mencionado. Ela foi submetida à avaliação do Conselho de Instrução Pública no ano de 1895 em um exemplar manuscrito. Posteriormente à aprovação, as autoridades gaúchas solicitaram a impressão do material, apreciando novamente a obra em 1896. No mesmo ano, então, passou a ser distribuída às escolas públicas do Rio Grande do Sul (TRINDADE, 2001; PERES; MICHEL, 2018).

No ano de 1901, Samorim requereu a aprovação do Conselho de Instrução às inovações feitas em seus livros de leitura, sendo eles aprovados para melhoramento (TRINDADE, 2001). Após esse período, a Cartilha Mestra continuou circulando e sendo usada nas escolas públicas do estado, sendo que no ano de 1921, 25 anos após a sua primeira edição, foi publicado um novo livro para o ensino da leitura de autoria de Samorim, intitulado Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva. Segundo Trindade (2001), essa obra “nada mais é do que a própria Cartilha Mestra [...] ampliada pela inclusão de mais palavras, frases e textos” (p. 238). Entretanto, se por um lado, uma análise cuidadosa permite afirmar que ambas as edições seguem a mesma proposta pedagógica para o ensino da leitura, isto é, o método João de Deus, por outro lado, é visível, ao comparar as versões, que a edição de 1921 apresenta mudanças significativas em relação à edição de 1913, razão principal para o desenvolvimento do estudo aqui apresentado.

A Cartilha Mestra era, segundo o próprio autor, uma produção inspirada no método do poeta português João de Deus. Esse método, materializado na Cartilha Maternal, circulou e foi utilizado no Rio Grande do Sul desde o ano de 1886, sendo recomendado na legislação de 1899 para o ensino da leitura em todo o estado. Segundo Oliveira (1998) e Trindade (2001), o método João de Deus consistia em apresentar as dificuldades da língua de forma gradual, assim, primeiramente deveriam ser ensinadas as vogais - a, e, i, o, u. Na sequência, as consoantes certas - v, f, t, d, b, p, l, k, q - e as consoantes incertas - c, g, r, z, s, x, m, n. Posteriormente, as consoantes compostas certas - th, rh, nh, lh, ph -, e a consoante composta incerta - y -, e por fim, o alfabeto maiúsculo e minúsculo em letra de imprensa. As autoras ressaltam ainda que esse era um método fundado na língua viva, na pronunciação das palavras como entidades globais com significado próprio.

Desse modo, comparando os dois exemplares de autoria de Samorim, é perceptível que em ambas as versões o autor seguiu a proposição do método João de Deus, apresentando nas duas edições a mesma sequência de letras e de valores no decorrer das lições - trabalhando as dificuldades da língua de forma gradual e ensinando primeiro as vogais, depois as consoantes certas, as consoantes incertas e, por fim, as consoantes compostas certas e incertas. É perceptível também que, assim como na Cartilha Maternal, Samorim manteve em suas duas obras o destaque gráfico nas palavras inteiras, sendo que cada sílaba foi escrita com caracteres diferentes, lisos e lavrados, diferenciando, assim, as sílabas trabalhadas em cada lição, como mostra a Figura 1. Segundo Frade (2016), a opção de não separar as sílabas por hífens, recurso habitual em outros livros para o ensino da leitura do período, estava relacionado às operações mentais de análise e de síntese necessárias aos estudantes para o aprendizado da leitura. Pedagogia da leitura e aspectos gráficos-editoriais, como se destacou, somam-se aqui na configuração do livro.

FONTE: Cartilha Mestra (1913, p. 9).

FIGURA 1 SÉTIMA LIÇÃO DA CARTILHA MESTRA 

Ressalta-se que tais semelhanças representam o anseio do autor em manter certa “fidelidade” à Cartilha Maternal, na intencionalidade de ter seu livro aprovado e indicado para uso nas escolas públicas gaúchas, uma vez que, assim, atenderia as exigências das orientações legais para o ensino da leitura no estado gaúcho.

Para além dessas similaridades, no entanto, existem algumas diferenças entre as obras de Samorim e a Cartilha Maternal, do autor português João de Deus, que merecem ser destacadas: (i) a ausência de notas explicativas aos professores antes de cada lição e/ou ao final da cartilha orientando como as lições deveriam ser desenvolvidas, bem como a omissão de maiores esclarecimentos acerca do método de ensino para a leitura. Há, somente, raras notas nas próprias páginas das lições e quando estas aparecem são frases curtas que reforçam, na maior parte das vezes, os valores sonoros da letra; (ii) o desdobramento em mais de uma lição de alguns dos valores fônicos que são trabalhados em uma única lição na Cartilha Maternal; (iii) o uso de acentos “aproximados” aos valores fonéticos das vogais para apresentá-las incluindo, assim, desde a primeira lição os valores “abertos” e “fechados” das vogais; (iv) a inserção de frases desde a segunda lição, sendo estas formadas tanto pelas palavras aprendidas nas próprias lições como nas anteriores; (v) a antecipação do ensino da letra L para o conjunto das consoantes certas e a apresentação das letras K e Q, juntas no conjunto das consoantes incertas (TRINDADE, 2001).

Assim, embora o autor tenha seguido as orientações do método João de Deus, a referência explícita a esse método é feita somente na folha de rosto da Cartilha Mestra; já a edição de 1921 não faz menção ao “genuino methodo de João de Deus”. Isso se explica porque, no referido ano, provavelmente, tanto a cartilha como o autor alcançaram notoriedade no estado gaúcho, uma vez que o livro já tinha uma ampla circulação no Rio Grande do Sul, assim como já era reconhecida a similaridade do método que ancorava as duas cartilhas com o proposto por João de Deus. Corrobora essa assertiva o nome do autor estar em destaque nas capas das duas edições aqui analisadas, a identificação, na folha de rosto, na edição de 1919/1913, do uso da cartilha “não só para as escolas publicas dos Estados do Rio Grande do Sul, Ceará e Rio Grande do Norte, como também para as escolas regimentaes do exercito”, a indicação, na edição de 1921, de que se tratava de uma obra didática do mesmo autor da Cartilha Mestra. Com a mesma intenção, mas com a descrição de outro mérito, na Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva, editada em 1921, verifica-se, logo abaixo do título, uma referência explícita ao prestígio que a Cartilha Mestra havia adquirido ao ser premiada em uma Exposição Universal, como se observa na figura apresentada a seguir:

FONTE: Cartilha Mestra (12ª ed.,1913) e Cartilha Samorim (1ª ed., 1921).

FIGURA 2 FOLHA DE ROSTO DA CARTILHA MESTRA E CAPA DA CARTILHA SAMORIM - RECREATIVA E INSTRUCTIVA 

A frase redigida abaixo do nome da cartilha “do mesmo autor da ‘Cartilha Mestra’, premiada na Exposição Nacional em 1908” expressa o prestígio da obra, uma vez que os modelos de referência brasileiros se fortaleciam nesses eventos, pois se buscavam tanto neles como nas Exposições Universais, especialmente durante o século XIX, inspirações e soluções para muitos dos problemas do âmbito educacional. Assim, a participação dos países nas Exposições Universais, por exemplo, contribuía para que eles tivessem acesso a um repertório de práticas e modelos pedagógicos, pois as também chamadas Exposições Internacionais “[...] ensinavam, festivamente, a ciência de se exibir, a pedagogia de se mostrar e a didática de bem-ver [...]” (WARDE, 2000, p. 40). Para o caso brasileiro, a participação nesses eventos possibilitou “[...] maior contato com o processo de consolidação da educação como signo de civilização, de progresso, da sociedade moderna [...]” (BASTOS, 2000, p. 104). Desse modo, a identificação, na capa da cartilha, de ter recebido uma premiação em uma Exposição Nacional era um reconhecimento importante e concedia ao livro maior credibilidade e legitimidade.

Destaca-se ainda, consoantes à perspectiva de Frade e Maciel (2006), que esses dados servem como protocolos de leitura para os professores, pois demonstram o prestígio do impresso, do autor e do uso do método à época, o que, sem dúvida, possibilitava, além de maior credibilidade, como indicado, maior chance de venda do livro. Tratava-se, pois, de uma estratégia utilizada na “indústria escolar” que para o caso do Rio Grande do Sul estava em plena expansão no período. É preciso lembrar que nas primeiras décadas do século XX houve um aumento do número de escolas e de matrículas, sendo que o quantitativo de instituições públicas praticamente duplicou entre os anos de 1895 e 1910, uma vez que havia respectivamente nessas datas em torno de 625 e 1.000 escolas. Do mesmo modo, o número de matrículas ampliou de 28.775, em 1895, para 64.000, em 1910 (GIOLO, 1997). Ou seja, um aumento significativo que ajuda a explicar o crescimento de uma “indústria escolar” no contexto da educação gaúcha, entendida como tempo e espaço de investimento, produção, venda/compra, distribuição de materiais didáticos, entre eles os livros escolares.

Os aspectos mencionados até aqui demonstram que, apesar de não ter ocorrido uma mudança na proposta pedagógica para o ensino da leitura entre a publicação das duas versões das cartilhas do professor Samorim, houve alterações significativas nas capas das duas produções e nos aspectos gráfico-editoriais delas. Enquanto a capa da 12ª edição, de 1913, é composta por palavras e uma ilustração, a 1ª edição, de 1921, apresenta, além de palavras, a impressão de imagens, dentre as quais identifica-se, provavelmente, a foto do autor e o selo da Exposição Nacional de 1908, como pode ser observado na Figura 2 apresentada anteriormente.

Sobre a mudança do título da obra, Trindade (2001, p. 238) destaca ser perceptível a intenção do autor em atualizar “a cartilha aos novos discursos pedagógicos circulantes sobre a escolarização e a infância”, uma vez que utiliza as expressões Recreativa e Instructiva. Vale ressaltar, nesse sentido, a circulação de ideias em defesa de uma escola e uma pedagogia moderna, as quais deveriam ter como foco um ensino pautado no desenvolvimento da criança de maneira ativa, flexível e recreativa. Essas questões reforçam a ideia de que um objeto escolar precisa ser considerado na interdependência da sua intencionalidade e de seu uso em determinadas situações e condições históricas (SOUZA, 2007).

Ainda em relação ao uso do nome do autor na Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva, frisa-se que não era incomum à época que o nome de um livro fosse registrado em documentos oficiais ou na imprensa com o nome do autor. Logo, não é hipótese infundada considerar que essa alteração tenha sido um esforço do autor em adequar o título da obra ao modo como a Cartilha Mestra ficou conhecida na época, ou seja, pelo seu nome, Cartilha Samorim (TRINDADE, 2001; PERES; MICHEL, 2018). Um objeto escolar, nesse caso específico, um livro, também alcança notoriedade em razão de quem o cria, produz, edita, vende e compra.

No que tange à estrutura das cartilhas, evidencia-se que ambas as edições analisadas são compostas por 36 lições, respeitando, como já salientado, a mesma classificação do método João de Deus. Após essas lições, seguem, nas duas versões, “exercícios de leitura para facilitar o estudo das lettras maiusculas que mais se distinguem das minúsculas correspondentes” (CARTILHA MESTRA, 1913, p. 43). A diferença entre os exemplares está na maneira como as listas de frases para exercitar a leitura está organizada nas páginas das duas edições, pois na Cartilha Mestra as frases são dispostas após a letra do alfabeto que aparece em destaque, sendo cada letra separada por um traço que indica o início e o fim daquela seção de exercícios para a leitura. E na edição de 1921 há o agrupamento de três ou mais letras na mesma seção, assim, as frases para o treino de leitura das letras A, B e C, por exemplo, aparecem juntas.

Confrontando as duas versões, percebe-se que após os exercícios de leitura há, na edição de 1921, textos para o treino e aperfeiçoamento da fluência da leitura. Ao todo são quatro textos que versam, respectivamente, sobre os sentidos corporais, sobre o uso que um menino chamado Carlinhos faz de seus sentidos ao colher um pêssego, sobre o progresso de dois meninos no que faz referência ao desenvolvimento das atividades da cartilha e dos deveres para com Deus. Além dos textos, a Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva ainda apresenta, em 11 páginas, uma série de lições complementares para o treino da leitura de palavras compostas por e, o, os, do, dos, no, nos, vos, chamando a atenção para a maneira como essas letras deveriam ser lidas: i, u, us, du, dus, nu, nus, vus. Como exemplo, destaca-se as seguintes palavras, com a grafia da época: dae, amae, paraguaya, uruguayo, distrahe, contrahe. E possui, ainda, uma página com palavras que tinham “consoantes mudas” para o treino, como é o caso das palavras súbdito, calumnia e escripto.

Outras diferenças entre ambas as edições podem ser destacadas: uma delas é a de que na Cartilha Mestra o alfabeto é apresentado logo no início do livro, após a folha de rosto e a 1ª lição. Ele está representado em letra de imprensa maiúscula e minúscula. Em contrapartida, na versão de 1921, o alfabeto é exposto posteriormente às 36 lições e aos exercícios de frases para o treino da leitura, estando as letras maiúsculas grafadas em letra de imprensa e em letra cursiva e as minúsculas somente em imprensa. A outra diferença verificada entre as versões é o uso da letra cursiva ao longo das 36 lições da edição de 1921. Assim, na primeira lição dessa versão, abaixo das vogais, há, além dos numerais de 1 a 10 (os quais não constavam na 12ª edição da Cartilha Mestra), o acréscimo das vogais em letra cursiva. Nas demais lições desse exemplar, esse tipo de letra aparece tanto no registro da letra que está em destaque na página, a qual era trabalhada na lição, como também na escrita de uma frase. Esse acréscimo pode ser explicado, possivelmente, em razão do debate em torno dos modelos caligráficos em voga no período, uma vez que, conforme Vidal e Esteves (2003), no mesmo período em que a cartilha foi produzida se fortalecia nos países tidos como referência (principalmente a França e os Estados Unidos), e também no Brasil, um debate intenso acerca dos modelos caligráficos vertical, inclinado e muscular, os quais estavam vinculados aos preceitos higienistas e à relevância dos princípios da clareza, da velocidade e da elegância no ato de escrever.

Todavia, não há, na Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva, referência alguma para a inserção do uso da letra cursiva nessa nova publicação; contudo, é possível inferir a partir desse dado que o uso da letra cursiva na edição de 1921 indica também para o ensino simultâneo da leitura e da escrita, diferente do que era proposto na Cartilha Mestra em que o autor se deteve ao ensino da leitura. É provável que essa alteração também estivesse articulada à revisão dos métodos de leitura e de escrita e da produção dos livros escolares no período, uma vez que outras cartilhas que circulavam na mesma época da Cartilha Mestra, como, por exemplo, a Cartilha Nacional, de Hilário Ribeiro, já defendiam e apresentavam o ensino simultâneo da leitura e da escrita e o uso da letra cursiva no decorrer das lições.

Se forem consideradas as indicações de Chartier (1999), de que os comerciantes de livros valorizam o consumidor do produto, é possível salientar, ainda, que a Cartilha Samorim possuía um mercado consumidor importante, professores/as e autoridades públicas que compravam e/ou usavam esses livros para o ensino da leitura e da escrita na escola primária. Nessa perspectiva, portanto, a obra precisava estar adequada às exigências pedagógicas do período, caso contrário, teria pouca aceitação e circulação. Para o caso do Rio Grande do Sul, o professor Samorim Gustavo de Andrade, ao produzir a primeira cartilha e propor as modificações no caso da segunda, conseguiu atender as exigências do “mercado consumidor” da escola gaúcha.

Vale ressaltar que, apesar de a letra cursiva ter sido inserida nas lições da Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva, a configuração de página das duas versões é similar, existindo alterações somente quanto ao número de palavras e de imagens apresentadas em cada lição. Assim, destaca-se que cada página apresenta uma lição, a qual é composta por imagens, a palavra referente à imagem e frases. Segundo Trindade (2001), a presença de frases e o uso de imagens desde as primeiras lições da obra diferenciavam as obras de Samorim das demais cartilhas da época. Ainda sobre a utilização das imagens associadas às respectivas palavras, é válido enfatizar que de acordo com os discursos da época, pautados no método intuitivo, essa estratégia favorecia e acelerava a compreensão das crianças12.

Portanto, na configuração de página das obras de Samorim, na parte superior era apresentada a letra a ser ensinada, uma imagem e a palavra correspondente à imagem; a seguir, na parte central da página, palavras compostas por essa letra e suas variações silábicas, sendo utilizados os caracteres lisos e lavrados para o destaque das sílabas que compõem as palavras. Cada lição possuía, ainda, uma frase disposta ao final da página em letra de imprensa, separada das demais palavras por um traço. Na edição de 1921, por sua vez, constavam, ainda, na parte superior da página, a letra a ser trabalhada em formato cursiva, e, na parte inferior da página, a frase em letra cursiva. A Figura 3 ilustra essa configuração de página:

FONTE: Cartilha Mestra (12ª ed.,1913) e Cartilha Samorim (1ª ed., 1921).

FIGURA 3 QUARTA LIÇÃO DA CARTILHA MESTRA E QUARTA LIÇÃO DA CARTILHA SAMORIM 

Como lembra Frade (2010a, p. 173), “nos manuais para o ensino da leitura e da escrita do final do século XIX e início do século XX, parece haver uma força pedagógica que define certa visualidade nos livros”. A Cartilha Mestra e a Cartilha Samorim indicam que essa “força pedagógica” que definiu a visualidade de ambas as edições e as opções gráfico-editoriais estavam associadas, fundamentalmente, ao método intuitivo, uma vez que observar e trabalhar eram características centrais no método intuitivo: “observar significa progredir da percepção para a idéia, do concreto para o abstrato, dos sentidos para a inteligência, dos dados para o julgamento” (VALDEMARIN, 2004, p. 69). Trabalhar consiste em fazer do ensino e da educação na infância uma oportunidade para a realização de atividades concretas, similares àquelas da vida adulta. Aliando observação e trabalho em uma mesma atividade, o método intuitivo pretendia direcionar o desenvolvimento da criança de modo que a observação gerasse o raciocínio e o trabalho preparasse o futuro produtor, tornando indissociáveis pensar e construir (VALDEMARIN, 2004).

Constata-se, diante do estudo e da comparação realizada entre as duas versões, que se trata de dois livros escolares para o ensino da leitura com ampla circulação no final do século XIX e início do XX; no entanto, ainda que ambas as edições estejam pautadas na mesma proposta pedagógica para o ensino da leitura, é perceptível que a edição de 1921 apresenta mudanças significativas em relação à edição de 1913 no que tange especialmente à capa, à estrutura e aos tipos de letras a serem ensinadas. As mudanças observadas nesses dois artefatos implicam na ressalva de que, ao se pesquisar a cultura material escolar, e no caso aqui apresentado, os livros didáticos, é preciso atentar para o debate acerca do uso do material no período, quem o produziu, o editou e o distribuiu, uma vez que isso amplia a análise da materialidade para além da sua dimensão específica e da configuração gráfica, articulando-o a determinados contextos históricos, sociais e pedagógicos.

Considerações finais

Os dois exemplares das cartilhas foram cotejados na perspectiva do livro como objeto de estudo de uma história de sua edição e na perspectiva da cultura material escolar. Sendo assim, as análises permitiram evidenciar que a Cartilha Samorim é uma versão ampliada da Cartilha Mestra, uma vez que se constatou que ambas seguem a mesma proposta pedagógica e estrutura. No entanto, embora se trate de obras do mesmo autor e, historicamente, sejam consideradas como uma nova edição da mesma cartilha, a versão de 1921 apresenta especificidades em relação à Cartilha Mestra.

Em síntese, podemos dizer que a Cartilha Samorim - Recreativa e Instructiva possui, além das lições e dos exercícios para a leitura apresentados na Cartilha Mestra, o acréscimo da letra cursiva em todas as lições da obra, o que implica na compreensão do ensino simultâneo da leitura e da escrita. Além disso, observou-se a inclusão de quatro textos para o desenvolvimento da fluência da leitura e de uma lição complementar, localizada ao final do livro, com uma série de palavras para o treino específico do valor sonoro de determinadas letras.

Verificou-se, ainda, uma diferença gráfico-editorial no que tange à produção das capas das duas versões analisadas e também uma alteração no título da obra, o que pode ser caracterizado como um esforço do autor em adequar o título da obra ao modo como a Cartilha Mestra ficou conhecida na época, ou seja, pelo seu nome, Samorim.

A partir desses dados, destaca-se que não é improvável que essas mudanças estivessem articuladas ao anseio do autor em revisar e atualizar a cartilha de acordo com os discursos da época no que tange à concepção de criança e aos métodos para o ensino da leitura e da escrita, assim como por demandas sociais e pedagógicas, no contexto da expansão do sistema público de ensino. Assim, pode-se dizer que objetos e artefatos da cultura material escolar, como é o caso dos livros didáticos, transformam-se também de acordo com as tendências pedagógicas, sociais, culturais e políticas de cada época. No caso dos livros, além disso, modificam-se em razão de novas e diferentes políticas editoriais e de acordo com a credibilidade que o autor, a casa editorial, o método propagado, entre outros agentes e agências, vai alcançando. Associado a isso, é preciso considerar que um livro e as modificações nele feitas decorrem, também, das possibilidades técnicas e tecnológicas de cada época e das relações econômicas que circundam o artefato em diferentes momentos históricos. Um livro didático não pode ser analisado fora dessa complexa rede de relações.

1Versão revisada e ampliada de comunicação apresentada no 24º Encontro da Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação (ASPHE), realizado em outubro de 2018 na Unisinos, São Leopoldo/RS. O estudo conta com apoio financeiro do CNPq (Processo 167676/2017-2, Pós-doutorado Junior e Edital Chamada Universal MCTI/CNPq Nº 14/2014).

2Para saber mais sobre isso, ver especialmente Tambara (1995).

3Samorim Gustavo de Andrade nasceu no Rio Grande do Sul. Foi professor de Português, Francês, Italiano e Escrituração Mercantil e autor de livros didáticos (TRINDADE, 2001).

4Com a criação desses colégios, a partir de 1909, passou a funcionar no estado as principais características da denominada escola graduada, instituindo, assim, o ensino seriado com um/a professor/a responsável por cada classe, várias salas de aula funcionando em um único prédio sob a responsabilidade de um diretor, a adoção do ensino intuitivo, o uso mais racional do material didático, entre outros (PERES, 2000).

5Os primeiros grupos escolares foram instalados no estado ano de 1915. Tratava-se de prédios que reuniam aulas isoladas, sob a direção de um dos professores, não podendo exceder a matrícula de 200 alunos, pois nesse caso já configuraria um colégio elementar (PERES, 2000).

6Ambos estão salvaguardados no acervo do grupo de pesquisa Hisales (História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares), que é um centro de memória e de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). O grupo tem procurado estabelecer uma política de recolha, tratamento e guarda de objetos da cultura escolar, constituindo, assim, importantes acervos para a manutenção da história e da memória da alfabetização e para a pesquisa educacional. Mais informações a respeito do Hisales, dos acervos, das ações, dos projetos de pesquisa, de ensino e de extensão, podem ser vistas no site:http://www.ufpel.edu.br/fae/hisales/.

7O exemplar analisado apresenta a data de 1919 na capa e a de 1913 na folha de rosto. Por isso, salienta-se que será utilizada no decorrer do texto a data de 1913.

8Trata-se de uma cópia fotocopiada da edição original.

10Para isso, ver também Frade (2010a; 2016); Galvão e Batista (2009).

11No ano de 1900, a população total do Rio Grande do Sul era de 1.149.070 habitantes. Como não houve censo no ano de 1910, o dado mais próximo localizado é referente ao ano de 1913, quando o número total de habitantes no estado era de 1.626.489 (RIO GRANDE DO SUL, 1900; 1913).

12Desde a segunda metade do século XIX, o método intuitivo foi indicado no discurso educacional brasileiro como o mais adequado para a instrução da população. Preconizava-se a conveniência da educação baseada no ensino pelos sentidos. Segundo Valdemarin (2004), o método pode ser sintetizado em dois termos: observar e trabalhar.

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Recebido: 22 de Abril de 2019; Aceito: 04 de Julho de 2019

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