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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.35 no.77 Curitiba set./out 2019  Epub 25-Out-2019

https://doi.org/10.1590/0104-4060.63019 

DEMANDA CONTÍNUA

As velhas novas perspectivas educativas frente à crise ética

The old new educational perspectives in the front of the ethical crisis

*Universidade Federal da Fronteira Sul. Chapecó, Santa Catarina, Brasil. E-mail: odair.neitzel@uffs.edu.br. http://orcid.org/0000-0001-8121-1149.


RESUMO

O presente artigo é de revisão bibliográfica, de cunho analítico e hermenêutico, com o qual pretendemos realizar uma discussão sobre educação, orientada filosoficamente. Nossa problematização se constrói a partir da constatação de que a sociedade contemporânea, apesar da sofisticação, dos avanços na comunicação e interação, do acesso à informação e ao conhecimento, não deu conta de superar velhas mazelas e problemas humanos. E, por essa razão, muitos problemas novos exigem velhos argumentos, reflexões e conceitos, pois, mesmo se apresentando como novos, são velhas as soluções. Para nossa argumentação, consideramos que esse processo se intensificou naquilo que Giddens conceituou como mecanismos de desencaixe e figuras simbólicas, nos levando a considerar, em tese, que a ficha simbólica mais radical, não abordada por Giddens, é a das redes de comunicação e da relação virtual. Esse processo levou a um agravamento da insegurança ontológica do eu e, por consequência, a uma certa crise ética. Essa perspectiva desafia a educação e a formação humana a se repensar diante da fragilização da autoidentidade. Para tanto, servimo-nos de Foucault e Herbart para defender uma educação como cuidado de si, com vistas ao fortalecimento do caráter moral e a uma existência ética frente à relativização moral.

Palavras-chave: Educação; Segurança ontológica; Ética; Herbart

ABSTRACT

The present article is a bibliographical review, with an analytical and hermeneutical nature, in which we intend to conduct a discussion about education philosophically oriented. Our problematization is based on the observation that contemporary society, despite its sophistication, advances in communication and interaction, access to information and knowledge, has failed to overcome old problems and human problems. And for this reason, many new problems require old arguments, reflections, and concepts, even when presenting themselves as new, solutions are old. For our argument, we consider that this process intensified in what Giddens conceptualized as disengagement mechanisms and symbolic figures, leading us to consider, in thesis, that the most radical symbolic tab, not addressed by Giddens, is that of communication networks and virtual relationship. This process led to the worsening of the ontological insecurity of the self and, consequently, to a certain ethical crisis. This perspective challenges education and human formation to rethink the fragility of self-identity. In order to do so, we use Foucault and Herbart to defend an education as self-care, with a view to strengthening moral character and an ethical existence in the face of moral relativization.

Keywords: Education; Ontological security; Ethic; Herbart

Introdução

Ao partir para esta caminhada reflexiva, queremos justificar a escolha e o título do texto. Pretendemos aqui discutir a possibilidade de buscar novas perspectivas educativas frente à crise ética da contemporaneidade. Faremos isso orientados filosoficamente, e o lugar de onde falamos e para o qual nos voltamos é a educação. Nele nos sentimos à vontade para refletir, uma vez que é a área na qual nos encontramos, pesquisamos e trabalhamos. Nossa orientação filosófica pode ser justificada em Herbart, um dos maiores clássicos da educação. Ele afirma, em um texto de 1802, que criar, construir e desenvolver ideias ou conceitos é uma atividade filosófica, das mais honrosas e das mais difíceis. Afirma Herbart que “Criar, justificar e construir conceitos é uma criação filosófica, das mais nobres, mas também das mais difíceis”1 (H1, p. 288)2. Ou, ainda, que não há um lugar no qual a filosofia se faz tão necessária quanto no espaço diário, no movimento em que nos encontramos com as múltiplas experiências singulares como na educação. “Em nenhum lugar a ponderação filosófica através de idéias em geral é tão necessária como aqui, onde o movimento diário e a experiência individual multifacetada tão poderosa atrai o círculo de percepção para a estreiteza”3 (H1, p. 285).

E esse campo tem nos proporcionado muitas alegrias, mas também, em algumas situações e perspectivas, nos inunda de preocupação e de um sentimento de limitação e impotência. Apresentaremos algumas destas questões nos argumentos que seguem.

De partida é importante que se diga que a ética e a capacidade de moralidade, ao menos neste ensaio, se ligam profundamente à formação humana. Por isso, provocativamente posicionamo-nos em relação ao tema, antepondo à expressão “novas perspectivas” o adjetivo “velhas”. Afinal, tratando-se da crise ética e comportamental, da busca de perspectivas para a educação, o que há de novo? Não seriam velhas as soluções e a temática do novo que sempre retorna? Sendo assim, como, dentro dessas crises, se localiza o novo e o velho?

Precisamos esclarecer essas duas categorias: entendemos por novo aquilo que nos é presente, o inusitado, a ser assimilado e, por isso, desafiador, inovador, porque reconfigura o nosso entendimento de mundo, o modo como vivemos e existimos. Por velho, entendemos aquilo que é desde muito tempo e, apesar de Kronos que a tudo devora, tem força para permanecer em nossas memórias e referências, isto é, para durar. É o caso dos clássicos da filosofia e da pedagogia, que, em sua permanência, constantemente se apresentam para auxiliar a compreender, inclusive o novo. E, nesse sentido, é o velho (de) novo, sem o qual, dificilmente encontramos bases seguras diante do novo, do inusitado, que, em sua emergência, não possui solidez suficiente.

É isso também que, de algum modo, sustenta nossa tese de que por trás do véu frenético do fluxo da novidade, atrás da cortina do devir que se impõe como verdade a quem andarilha pelo mundo, estão algumas velhas premissas que se reafirmam como referenciais à existência humana. Ignorá-las implica sérios riscos à vida e à felicidade humana, pois não são argumentos forjados ao acaso, mas saberes que podem tornar as pessoas capazes de praticar o bem, a concórdia, e contribuir para uma vida melhor, mais pacífica e justa. Saberes que permitirão fazer frente à negação e objetificação do ser humano, ao preconceito e a tudo que é odioso. Talvez signifique dizer que, mesmo que tenhamos a impressão de estarmos mergulhados na busca por novas perspectivas para questões e problemas que nos assolam, somente com a ajuda da história do pensamento humano encontraremos respostas razoáveis e esclarecedoras que sinalizem para os horizontes a serem seguidos.

Ainda a critério de introdução, traremos à discussão a percepção de Liessmann (2011), um diagnóstico da sociedade contemporânea, retratado em seu livro Theorie der Unbildung (Teoria da deformação). Afirma, o autor, que uma sociedade que se deseja reconhecer como do conhecimento deveria nos deixar orgulhosos e felizes. Deveria ser uma sociedade em que poderíamos crer que as pessoas agem com razoabilidade, compreensivas, com desprendimento, com reflexões demoradas, profundas, inteligentes, curiosas e sedentas do verdadeiro saber, refletindo criticamente sobre suas ações. Deveria ser uma sociedade em que as pessoas teriam domínio sobre a irracionalidade e a ideologia, sobre crendices e todo tipo de egoísmo, fascismo, ódio, sobre todo tipo de pensamento destituído de espírito de humanidade (LIESSMANN, 2011).

Liessmann (2011) aponta que, contrariamente a essa percepção, não vivemos em uma sociedade do conhecimento e não somos “uma sociedade esclarecida” (p. 26). Isto é evidenciado pelo ódio, pela visão restrita das coisas, não menor que em outras sociedades de outros tempos. Não há uma busca de autoconhecimento e conhecimento crítico das coisas, dos fatos e de si mesmo. Paradoxalmente, na sociedade do conhecimento talvez a regra não seja lançar saber e verdade alguma, mas gerar confusão, desinformar, fragmentar, de modo que o conhecimento se desvaneça diante dos olhos da maioria. É a sociedade da pós-verdade.

Poderíamos de partida afirmar, então, que apesar dos inúmeros avanços ligados ao desenvolvimento tecnológico, a humanidade, de modo geral, é acometida por um conjunto de mazelas, patologias sociais que afetam também, por sua vez, os processos de formação e constituição dos sujeitos. As mazelas sempre existiram, porém o que muda é a intensidade e o modo como afetam os sujeitos e sua constituição na atualidade. Isso em função daquilo que se tornou o espaço constitutivo dos sujeitos e da constituição espiritual humana - as redes de comunicação virtual -, seguidas pelo hiperconsumismo, pelo imediatismo, individualismo etc. E isso justifica que olhemos para o passado, o que já sabemos, e façamos uma análise de como chegamos a esse momento de suposta crise ética e comportamental. E, assim, nos encaminhamos para revisitar alguns lugares do passado distantes, e não tão distantes, para localizar as joias do pensamento humano, fomentar a reflexão e avançar na educação das novas gerações que habitarão esse mundo.

Efemeridade e insegurança

Entendemos por ambiente o espaço no qual nascemos, em que emergimos no mundo e no qual permanecemos em um breve período espaço-temporal. Nesse sopro de vida, temos a chance de produzir uma história singular, de iniciar uma nova página no grande livro da humanidade. Neste mundo, no qual nascemos, estão as condições e as possibilidades para que cada um de nós, nele realizando sua trajetória, realize seus feitos e façanhas. Emergimos determinados e determinantes, pois agimos e sofremos as inferências desse mundo. Então a questão que se coloca é: que mundo é esse em que o sujeito emerge na atualidade? Em seguida, precisamos nos perguntar: de acordo com esse mundo, como é que o sujeito realiza esse processo de constituição de uma identidade?

O mundo é uma instituição linguística social humana e é por meio dela que as identidades dos sujeitos se constituem em um processo chamado por Antony Giddens (2002) de “reflexividade”. Giddens, com recurso aos estudos de Winnicott, conseguiu perceber, nos processos constitutivos do sujeito, um momento fundamental da constituição das autoidentidades e que nos auxilia a compreender algumas questões provocativas da atualidade. É no espaço institucional simbólico e comunicativo que se encontram as possibilidades, os riscos e as limitações para os sujeitos se constituírem e existirem enquanto tal. As possibilidades estão na riqueza apresentada, nas mais diversas manifestações da cultura humana, sua disponibilidade, potencializadas pelos sofisticados meios de interação e comunicação. Seus riscos podem ser localizados no perigo do inexorável movimento pelo qual os sujeitos são tragados para dentro do frenesi efêmero e constante da informação, dificultando às pessoas que tomem necessária distância libertadora, que se distanciam desse fluxo intenso de informações. Sem essa descontinuidade, é difícil ao sujeito encontrar referências estáveis, realizar a subjetivação e o exercício sobre si, necessário para a constituição do verdadeiro si mesmo.

A fluidez e a efemeridade levam, em muitas situações, a tomar como referências frases rápidas, clichês, que se apresentam como soluções quase mágicas e sem muito esforço, fáceis e imediatas, para problemas das mais diversas esferas. Por exemplo: “Você só precisa querer”; “você precisa só pensar positivamente”; “você deve fazer...”. Esquece-se que esse sujeito, se o desejamos capaz de autonomia e moralidade, de pensamento, parafraseando Hannah Arendt (2014), necessita realizar um processo árduo e contínuo de formação humana. Autonomia e liberdade intelectual não são compradas em prateleiras de mercado. Não se trata simplesmente de desejar uma vida melhor, mas de construir as condições pessoais, materiais e sociais para tal. E essa constituição, essa capacidade de pensar e querer constitui-se lentamente, sem solipsismos e individualismos narcísicos. Pensar, aprender, cuidar de si e exercitar o espírito são trabalhos que cobram seu preço, exigem que empenhemos nossos esforços, são fatigosos, constantes e sempre inacabados. Mas é justamente nesse exercício que nos constituímos e não meramente nos instrumentalizamos. Isso nos torna humanos, capazes de moralidade, e é o que nos oferta a maior satisfação e dignidade humana. Ou seja, é o que nos diferencia das outras espécies, como pensantes, lógicos, racionais, livres e responsáveis pelo nosso destino4.

Vivemos um momento fortemente marcado pela presença das redes sociais e da comunicação virtual. São muitos os benefícios e as comodidades que essas tecnologias proporcionam na comunicação, interação e socialização do conhecimento, entre outras benesses. Mas, em se tratando de formação humana, por que essa sociedade tão sofisticada não conseguiu consolidar a formação ética, humana e solidária? Por que há tanto ódio? O fato é que essa sociedade também pode causar danos, aumentar a sensação de insegurança e ansiedade, ser um espaço potencial de riscos à existência, à vida psíquica e emocional humana. Ao que tudo indica, os sofisticados meios de comunicação disponibilizaram o conhecimento e a informação, mas eles são acessados como uma espécie de instrumentalização de si e não como transfiguração em si desses saberes, não se verteram em pensamento.

Nesse sentido, ousamos afirmar, inspirados novamente em Giddens (2002), que as redes sociais são provavelmente a “ficha simbólica” mais sofisticada e agressiva do movimento de desencaixe e da reflexividade. Desencaixe é o fenômeno pelo qual os sujeitos são deslocados “das relações sociais dos contextos locais” ao mesmo tempo em que ocorre a “rearticulação através de partes indeterminadas do espaço-tempo” (2002, p. 24). As pessoas estão desvinculadas das relações locais e passam a se relacionar desencaixadas em termos de tempo-espaço, o que significa que são desconectadas das questões culturais, políticas e morais concernentes à sua realidade imediata.

Os aspectos positivos desse movimento residem na liberação dos sujeitos de aspectos opressivos de suas realidades, abrindo um horizonte de possibilidades (a liberação de costumes e hábitos, como o patriarcalismo, o fundamentalismo religioso, por exemplo). Mas também há aspectos negativos inclusive nessa positividade, principalmente pela instabilidade, insegurança, pelo estranhamento frente às sempre renovadas exigências para que o sujeito escolha e se posicione, de acordo com múltiplas ofertas de possibilidades de identidades culturais, sociais, políticas etc. (HALL, 2005), e, o mais grave, sem o distanciamento e a reflexividade crítica necessários. Em outros termos, é a exigência constante da reflexividade que provoca a insegurança ontológica do eu (GIDDENS, 2002). Os sujeitos são obrigados a escolher constante e intensamente, como reflexão das opções, um caos informacional e intoxicante, apresentado ininterruptamente ao sujeito. O fato é que não se trata de escolhas livres e pensadas. Há pouca liberdade e pensamento aqui e, provavelmente, a liberdade é uma das maiores ilusões da sociedade contemporânea. Não se trata de escolhas livres, que resultam da deliberação criativa do sujeito a partir do seu pensamento, pois não criam as opções, somente elegem, entre muitas coisas estranhas, tendo pouca ou nenhuma afinidade com muito do que escolhe. E isso por si só é altamente arriscado para a vida social e humana. Quando o sujeito se manifesta, são poucos que o escutam. As redes sociais se tornaram um lugar de muitos gritos (ou de todos) e de poucos ouvidos.

Segundo Giddens (2002), não é mais o local que impõe coisas e normativas, mas o próprio sujeito é impelido a eleger aquilo que é constitutivo de si com a ilusão de que realiza uma escolha livre. É o que Giddens chama de “intrusão de eventos distantes na consciência cotidiana” (GIDDENS, 2002, p. 31). E pondera: “nas condições da modernidade, os meios de comunicação não espelham realidades, mas em parte as formam” (GIDDENS, 2002, p. 32). Ou que “os sistemas abstratos passam a estar centralmente envolvidos não só na ordem institucional da modernidade, mas também na formação e continuidade do eu” (GIDDENS, 2002, p. 37). E nisso reside talvez o motivo dos maiores tormentos da atualidade: a ausência, neste espaço, de bases estáveis e confiáveis para a realização da continuidade do eu.

Curiosamente, a constatação de Giddens não é tão recente e não leva em consideração a amplitude atual do fenômeno das redes sociais e dos sofisticados meios de comunicação e interação da atualidade. E, nesse sentido, é um exemplo clássico de uma quase velha percepção que serve para ver o novo. O que se percebe é uma radicalização do processo de separação entre as noções de tempo e espaço, de desencaixe e de reflexividade, mas que tem revelado novos elementos e agravado o fator da ansiedade e da insegurança ontológica do eu.

O sujeito está em um processo constante e dinâmico de constituição de si. Constante porque a experiência humana não cessa; dinâmico porque se altera conforme se alterna o mundo ao qual se conecta. Ora, essa formação de si não é somente um processo constante de instrumentalização do sujeito para atuar no mundo material, mas, acima de tudo, um processo de constituição de seu espírito. É isso que permite que ele realize escolhas, se oriente em direção ao bem humano, dê conta das dificuldades e dos desafios que a própria existência impõe. A vida, portanto, exige uma formação do sujeito que o torne capaz de interpretar e dar conta dessas situações ou, segundo Hannah Arendt (2014), capaz de pensar. Nisso reside o que nos inquieta na atualidade: a formação humana adequada aos novos tempos.

Para tanto, ao que tudo indica, é fundamental o que Giddens chama de “segurança ontológica do eu”. Através dessa segurança será capaz de realizar o processo de continuidade do eu, de “pôr entre parênteses” as novas vivências. Esse exercício consiste em colocar sob seu entendimento, sob seu domínio, o que é novo, de tal modo que além desses parênteses está o caos e, ao mesmo tempo, o campo potencial no qual o sujeito precisa aventurar-se para ampliar a autoidentidade. O caos representa certa “perda do sentido da realidade mesma das coisas e das outras pessoas” (GIDDENS, 2002, p. 40). E a dificuldade está justamente em dar conta de “pôr entre parênteses uma gama potencialmente quase infinita de possibilidades abertas ao indivíduo” (GIDDENS, 2002, p. 40). A dificuldade se dá pela ausência de referenciais estáveis e seguros, uma vez que essa realidade entorpece e dificulta sua percepção.

O fato é que os referenciais baseados nos sistemas especializados, entre outros, não têm gerado a necessária segurança nas tomadas de decisão, sendo pontos de apoio e segurança dentro do espaço potencial para que os sujeitos se lancem intensamente às novas vivências. Essa fragilidade gera um profundo estado de insegurança e ansiedade. Ou seja, se nas sociedades tradicionais havia um pequeno número de escolhas que o sujeito precisava fazer, extremamente solidificado, identificável em um pequeno leque de opções disponíveis, na atualidade, segundo Giddens, o processo é uma ampla gama de opções e escolhas diárias que o sujeito carece fazer, exigindo que decida e faça inúmeras escolhas o tempo todo em um espaço potencial marcado por uma cultura, relações, valores relativos e sem muita permanência. E esse contexto joga em desfavor da educação, ou seja, encontra-se na contramão de todo processo formativo. Diante de muitas opções e escolhas frenéticas, poderíamos concordar com Bauman (2010, p. 45): “Num mundo como este [de frenéticas mudanças], o conhecimento é destinado a perseguir eternamente objetos sempre fugidios que, como se não bastasse, começam a se dissolver no momento em que são aprendidos”.

A excessiva quantidade de opções e a necessidade de escolha deturpam e causam dificuldade em prestar atenção naquilo que escolhemos. Impedem que visualizemos o que jaz como pano de fundo desse movimento impetuoso. Impedem que se verifiquem conceitos, orientações das ofertas massivas e exigências de tomada constante de posição. Por isso mesmo oferece dificuldades de entendimento, domínio e segurança do “pôr entre parênteses”. Ao que tudo indica, escapa a esse abismo quem possui uma sólida formação crítica e humana. Sem essa formação, não se tem a capacidade do distanciamento, da análise profunda, para compreender e se posicionar adequadamente diante daquilo que é ofertado. Ingressar nesse campo fluido é pisar em terreno escorregadio, instável, sem pontos de ancoragem para arriscar-se no campo potencial e ampliar a autoidentidade.

Esse processo tem consequências danosas sob várias perspectivas e, como parece evidente, também provoca danos para o campo da ética, da política, assim como para o campo psíquico e existencial. Consequentemente existem sujeitos com caráter e identidade fragilizados, com dificuldades em construir valores e conceitos sólidos que sejam bons para si e para os outros. Há uma limitação no desenvolvimento das identidades e, portanto, o alcance de sua compreensão do mundo é curto e limitado.

Diante desses argumentos, torna-se importante que compreendamos um pouco mais como se constitui a segurança do eu. O ponto-chave é o sentimento de confiança5. Segundo Giddens (2002, p. 41), a confiança é o “fundamento existencial da realidade num sentido emocional, e de certa forma também no cognitivo”. Esse sentimento “se funda na crença na confiabilidade das pessoas, adquirida nas primeiras experiências da criança”. É o que pode ser compreendido como “confiança básica” (GIDDENS, 2002, p. 41). É nele que se “constitui o nexo original de onde emerge uma orientação afetiva-cognitiva combinada em relação aos outros, ao mundo dos objetos e à auto-identidade” (GIDDENS, 2002, p. 41). São essas relações os pontos estáveis, duráveis, que permitem à criança sentir confiança no movimento de lançar-se ao espaço potencial e dar continuidade ao eu. São as relações com familiares, pais, amigos, educadores que se apresentam com certa constância. Essas relações são responsáveis por vincular a identidade individual à identidade social, favorecendo escolhas individuais baseadas no coletivo e construindo o ser mais seguro de si mesmo ou, em outras palavras, confiante em si mesmo.

E esse sentimento de confiança que gera a “coragem de ser”, realizar escolhas, de se apresentar e aparecer para o mundo, como diria Arendt (2014), está profundamente relacionada à “atenção amorosa das primeiras pessoas a cuidarem da criança. A confiança básica liga de maneira decisiva a auto-identidade à apreciação dos outros” (GIDDENS, 2002, p. 41). Herbart chama isso de autoridade amorosa, como procurou mostrar recentemente Dalbosco (2018). É nessa relação com as pessoas ou responsáveis que se constitui a confiança básica, constitutiva do eu.

O fato é que não se trata especificamente da quantidade e qualidade do amor que destina. Trata-se, porém, de desenvolver bases seguras para a criança. E, nesse caso, trata-se da repetição, da presença constante, do hábito, da rotina. É com esses pilares, então, que a criança vai ao mundo, pois quando encontra ou identifica esses referenciais nele, sabe de si mesma e, desse modo, se amplia.

A construção da confinação básica é, portanto, o tendão de Aquiles, o alicerce sob o qual o sujeito desenvolve sua identidade. Ela permite abrir um campo possível de novas experiências sem que a criança se desestabilize psiquicamente, sendo capaz de pôr entre parênteses a dimensão espaço-temporal que se coloca entre si e inclusive os que lhe inspiram confiança. Essa segurança diante do espaço potencial é o estabelecimento de relações rotineiras, hábitos, que implicam certo domínio de uma situação mundana que se apresenta. Ou seja, precisa-se de um tempo para a assimilação e compreensão da situação e pô-la entre parênteses.

A segurança, pela qual o sujeito se sente confiante para lançar-se a novas experiências e realizar a ampliação de sua identidade, permite que o sujeito realize saudavelmente a reflexividade necessária para alcançar a sua autonomia. Implica a manutenção de certos conhecimentos, hábitos e rotinas de convivência, orientações para a vida e a organização social, que são extremamente importantes para a constituição das autoidentidades. Mas, ter essas experiências e conhecimento não basta, é necessário que o sujeito os subjetive e transfigure em si. Só assim elas figuram como um “baluarte crucial contra as ansiedades ameaçadoras, mas por isso mesmo é um fenômeno intrinsecamente cheio de tensões” (GIDDENS, 2002, p. 42). Destaca-se aqui a expressão “baluarte”, termo usado para designar uma muralha, uma fortificação em torno de algo. A fortificação se faz com os tijolos, e o trabalho progressivo e constante sobre a própria muralha em torno da cidadela: conhecimento e cuidado de si.

Com esses argumentos retornamos ao contexto da atualidade e lançamos a pergunta: quais são os fundamentos ou parâmetros estáveis que, como relações, rotinas e hábitos, oferecem elementos seguros para a constituição de uma segurança ontológica do eu? Por que há, em nosso tempo, um aumento dos estados de ansiedade, de insegurança e, consequentemente, de estados patológicos, como a depressão? Provavelmente está ligado ao fato de que, diante do espaço potencial, com proposições, significados, sentidos e orientações que não oferecem bases estáveis, o sujeito se torna incapaz de encontrar pontos que o liguem a ele, elegendo, mas não decidindo. E, portanto, não encontra nesse espaço uma continuidade segura do eu.

Lançar-se no espaço potencial implica correr riscos, enfrentar perigos e o estranhamento que a novidade causa. E nesse movimento a confiança básica é fundamental, gerando a confiança necessária para que o sujeito faça o processo de reflexividade constitutiva da autoidentidade. A formação humana, a ampliação de nossa liberdade e autonomia implicam em se lançar e se desafiar em direção ao desconhecido. E, nesse processo, a confiança básica é o elemento inoculador que assume a função de proteger o sujeito contra a desestabilização psicoemocional diante das ameaças e dos perigos com os quais a existencial golpeia o sujeito.

Educação e fortalecimento do caráter

Afirma Giddens que a confiança básica é o “principal suporte emocional de uma carapaça defensiva ou casulo protetor que todos os indivíduos normais carregam como meio de prosseguir com os assuntos cotidianos” (2002, p. 43). É nesse processo que o sujeito alcança a sua autonomia, sua capacidade de moralidade. Cabe então à educação e à ação pedagógica fortalecer os sujeitos em seu caráter, que constituam a sua armadura protetora, para poder se lançar ao espaço potencial desconhecido e imprevisível, ao qual o impulso vital simplesmente nos empurra a todo instante. Pondera Smaniotto (2017) ser função da educação auxiliar na transformação de “humanos em humanos melhores, não competitivamente, mas melhores consigo e com os de sua espécie e com a natureza” (p. 151).

Do que foi apresentado, destacamos e retemos para a argumentação que segue a necessidade de constituir identidades fortificadas, construir um baluarte em torno do eu, gerar a confiança básica, confiança sem a qual inevitavelmente se fragilizam as personalidades, limitando e comprometendo-as em seus processos de reflexividade e constituição. Personalidades fragilizadas, por sua vez, se recolhem do mundo, escondem-se em seu casulo narcísico, gerando a crise ética e, quiçá, comportamental. Com essa tese, apontamos para a crise ética da atualidade, localizada na fragilidade constitutiva dos sujeitos e da segurança ontológica do eu. Sinalizamos, assim, como tarefa fundamental da educação a necessidade de fortalecer o caráter dos sujeitos como caminho para o estabelecimento de identidades autônomas e fortes. Resta saber: como é possível a educação fortalecer o caráter?

É preciso ter claro que a autonomia só se desenvolve com autonomia. Não é possível desenvolver um caráter forte se sequestrarmos do sujeito a possibilidade de desenvolver-se com autonomia. Isso significa que não é pela imposição e transmissão de valores, de disciplinamento exterior que fortalecemos o caráter ético dos sujeitos. Fiscalização e coerção exterior fragilizam o caráter e não é uma opção formativa. O caráter é determinado predominantemente por vontade interior autônoma. Mas também não implica abandonar o sujeito a sua própria sorte, sem oferecer o suporte necessário para se desenvolver. Qual é, então, o caminho da segurança ontológica do eu na atualidade?

Fortalecer e equipar o sujeito, dotá-lo com a capacidade para enfrentar o mundo virtuosamente, de acordo com os princípios fundamentais humanos. Essa não é uma premissa nova e recente, mas pertence àqueles velhos saberes válidos há muito tempo. Desde os pensadores da antiguidade havia essa defesa. A constituição do caráter moral passava pela constituição do caráter como uma fortaleza interior.

Nesse sentido, cabe à educação ocupar-se com fortalecer e estabilizar o caráter dos sujeitos, ou, concordando com Giddens, de desenvolver a segurança ontológica do eu. Entre os antigos, na tradição greco-romana, estava muito claro que a constituição de sujeitos autônomos, livres, justos e bons passava inevitavelmente pela constituição de uma subjetividade equipada, fortalecida e preparada para enfrentar as diversas situações da existência, não como instrumentalização, mas como formação fundamental. E isso passa por uma opção de vida filosófica, em escolher como modo de vida a ocupação consigo mesmo, com seu desenvolvimento, tendo como fim uma vida sábia e equilibrada.

Foucault faz um trabalho interessante de resgate dessa perspectiva, mostrando a importância do conhecimento como logos e o exercício espiritual não religioso sobre si mesmo como meio de fortificação do sujeito. Como “armadura, quer mais frequentemente ainda da muralha e da fortaleza atrás das quais podem se refugiar os guerreiros quando em perigo” (2010a, p. 289). Ainda nesse sentido, “quando o sujeito se sente ameaçado na rasa labuta da vida cotidiana, o logos deve estar presente: fortaleza, cidadela alçada em sua altura e na qual nos refugiamos” (FOUCAULT, 2010a, p. 290).

Devemos reparar, no entanto, que não se trata, em absoluto, de uma mera formação técnica. Ela é necessária, mas, por si só, não implica formação ética. Não se trata de sobrecarregar os sujeitos com informações e saberes técnicos protocolares. O conhecimento enquanto logos é de extrema importância, mas carece que o sujeito se prepare constantemente, desenvolva sua espiritualidade enquanto tal para acessar a verdade, que é sempre do próprio sujeito, de si mesmo. Só nos conhecemos em um trabalho constante sobre nós mesmos. Ou seja, é necessário que se realize o processo de interiorização e transfiguração deste saber em si mesmo. Ora, o conhecimento instrumental e técnico por si só, é destituído dessa dimensão ética. A ética exige formação enquanto Bildung na acepção clássica do termo. Consiste em desenvolver a Sittlichkeit como imaginava Herbart (1887), da semblância, uma estética do caráter, ou estilística, a partir de si mesmo, que implica se tornar capaz de agir com moralidade, orientando-se para o bem do mundo e, desse modo, o próprio bem.

Portanto, uma formação moral envolve exercitar o seu espírito, para se tornar, a partir do conhecimento múltiplo, capaz de moralidade. É preciso que esse conhecimento seja subjetivado e se transfigure no próprio sujeito. E, para tanto, é necessário um conjunto de exercícios espirituais em sentido amplo e não restritivamente religioso. Dentro dessa temática, são exemplares as abordagens que encontramos em Michel Foucault (2010b) e Pierre Hadot (2014). Esses pensadores resgatam a filosofia greco-romana e nela mostram uma tradição do cuidado de si, que fora sobrepujada na Modernidade pelo conhecimento técnico e analítico. Foucault (2010b) e Hadot (2014) realizam o resgate de vários exercícios espirituais da Antiguidade. Dentre eles destacamos os exercícios espirituais em Marco Aurélio (2002), do exame de consciência, da prática da escrita sob forma de diário, do exercício de depreciação ou pessimismo diante de pessoas e situações de arrogância e onipotência.

Sêneca faz na Carta 113 das Cartas à Lucílio a seguinte afirmação:

Não imagines nunca que poderás proteger-te com armas dadas pela fortuna; luta, isso sim, com as tuas. A fortuna não fornece a ninguém meios de defesa contra ela própria. Por isso é que os homens estão bem defendidos contra os inimigos, mas se veem inertes perante a fortuna (SÊNECA, 2014, p. 626).

A questão que se põe então é sobre o caminho para alcançar esse bem moral. Para Sêneca, esse caminho passa pela prudência e pela moderação. É preciso fortificar a alma e torná-la resistente à intemperança, que arruína todo tipo de edificação erguida com a virtude. “Fortifiquemo-nos por dentro; se o nosso íntimo estiver bem seguro, podemos ser abalados, mas nunca dominados!” (SÊNECA, 2014, p. 298).

Tratando-se dos problemas educacionais concernentes à temática, esses autores nos trazem à presença novas velhas perspectivas das quais talvez a educação foi esvaziada. Destacamos, aqui, o exercício da escuta atenta, da leitura e da escrita. Plutarco (2008) afirma que não é possível educar ou ensinar algo a um tagarela, já que o tagarela não escuta. Como seria possível então ensinar algo em nossa sociedade de tagarelas, onde todos gritam suas “verdades” aos quatro ventos e ninguém se predispõe à escuta? Ou como ensinar algo em uma sociedade na qual praticamente todos acham que tudo sabem, que tudo conhecem e nada ignoram - nem mesmo ignoram que ignoram algo? Sem ouvir, recolher o logos e prestar atenção em si mesmo, do exercício da escuta silenciosa, não é possível ao sujeito aprender. Da mesma forma, tratando-se do exercício da leitura, não é necessário que se leia tudo o que nos é ofertado. Mas que se selecionem alguns bons textos ou autores com os quais queremos estar em companhia e façamos uma leitura detida, atenta e profunda. Esse nos parece ser o sentido da especialidade: saber algo em profundidade. Não se trata de quantos textos foram lidos, mas de como foram lidos. Não se trata de saber tudo, mas de reconhecer o pouco que se sabe. Não se trata da quantidade, mas a qualidade e profundidade com que nos relacionamos com as ideias e os conceitos presentes em um texto. Resulta em mergulho que nos distancia do mundo imediato, distância que nos permite sua percepção crítica.

Soma-se o importante exercício da escrita. Não de tweets, mas da escrita como um exercício demorado, de diálogo com o próprio texto, de idas e vindas, que em si mesmo possui uma lógica clandestina que trai o próprio autor e assume vida própria como sabiamente mostra Flickinger (2010). Trata-se de um processo pelo qual o sujeito interioriza e constitui suas memórias. A leitura, assim como os outros exercícios espirituais, visa constituir e tornar o espírito do sujeito ativo, mobilizando, descortinando a verdade sobre si mesmo, permitindo perceber-se e conhecer-se em suas dimensões ética, política, cultural, emocional etc. Trata-se do processo de fortificação do caráter.

Trazendo a discussão para o campo da pedagogia e da educação, talvez essa seja a nova velha novidade. Pedagogia aqui entendida não como a restrita e reduzida pedagogia infantil, mas daquilo que os alemães chamam de Allgemeiner Pädagogik, da formação em sentido geral, para a qual, provavelmente, Johann Friedrich Herbart seja o pensador mais autorizado6. Acreditamos que em Herbart há uma base sólida para discutir a educação na contemporaneidade, pois ele defende que a educação tem seu fim no desenvolvimento da capacidade moral dos sujeitos. Para tanto, é preciso zelar para não comprometer, na criança, sua abertura para o mundo, de seu potencial de educabilidade e liberdade, sem, com isso, negligenciar sua condição de dependência do amparo e cuidado adulto, sem abandoná-la a sua própria sorte ou à mercê de todo interesse social e midiático. É o que em Herbart chamamos de governo das crianças, que em momento algum intenciona oprimir a criança, impor saberes ou transmitir conhecimentos, mas protegê-la no processo de desenvolvimento de sua própria identidade.

Torna-se fundamental nesse processo o conceito de ensino educativo. Para Herbart, sempre que se ensina algo simultaneamente estamos educando. E educando, ensinamos. E na atualidade, mais que em qualquer outro tempo, essa deve ser uma diretriz da escola e das instituições de ensino. A escola não pode se negar a tarefa de proporcionar às crianças que se eduquem. Esse processo, contudo, só se dá através do conhecimento amplo e múltiplo. Conhecimento do mundo humano e cósmico. E, nesse sentido, os princípios fundamentais da coexistência humana e ambiental devem perpassar todo processo formativo.

Somente desta riqueza que, além do mais é ainda capaz de uma representação ordenada e comovedora - isto é, de uma construção poética, se me é permitido usar de novo uma expressão ousada - numa palavra - somente do poder estético da circunspecção moral, pode resultar o calor límpido e desapaixonado, compatível com a coragem e a inteligência em relação ao bem, através dos quais a verdadeira moralidade se fortalece em caráter (HERBART, 2010, p. 154-155).

Porém, permitir que a criança acesse o legado cultural humano, fazer esse processo de subjetivação do conhecimento, dos princípios e de ideias para fomentar e desenvolver o interesse múltiplo ainda não é suficiente para a moralidade. É necessário que o sujeito alcance autonomia no uso desse saber, para conduzir-se de acordo com o que garante e possibilita a vida humana em sociedade. Para tanto é preciso que o sujeito desenvolva a autodisciplina. Diferentemente das concepções de disciplina, que foram acertadamente criticadas por Foucault (1999) em obras como Vigiar e Punir, trata-se de uma disciplina que não é dada por forças exteriores de coerção e repressão. Refere-se a fortalecer o caráter interior do sujeito para que ele tenha autodisciplina, capacidade de deliberação e discernimento moral, tornando-se capaz de escolher o bem para si e para os outros, enfrentando todo tipo de egoísmo, individualismo, injustiça e fundamentalismos. Esse processo causa uma descontinuidade, pela qual é permitida ao sujeito tomar certa distância do mundo e, nesse processo, pensar. E, ao pensar, reelaborar o significado do que aprendeu do mundo.

Com isso se pretende que o sujeito alcance um caráter fortalecido, forte e capaz de acostumar-se a suportar situações de risco, de perigo, de dificuldade, as quais se impõem nas trajetórias existenciais. É o que Herbart denomina de “gewöhnung”, traduzida para o espanhol como “acostumar” e na edição portuguesa como “hábito”. É constituir uma fortaleza moral, se equipar interiormente para a luta moral entre vício e virtude.

Considerações finais

Nossa tese é de que o fortalecimento do caráter do sujeito possa oferecer sua capacidade de descontinuar aquilo que é fluido, pausar a intoxicação informativa, dar o tempo para ocupar-se com o que foi subjetivado. Isso permite maior espaço para um verdadeiro processo formativo - do conhecimento e do saber - que, ao ser subjetivado pelo sujeito, no processo educacional, se converte e se transfigura no sujeito. Trata-se de formação para a moralidade, mas não de moralismo. A Filosofia dá várias pistas e razões para tal, que se traduzem em evitar justamente a negação do sujeito, o adestramento, que na educação se apresenta como extremo relativismo, o esvaziamento da ação pedagógica do conteúdo, principalmente político e social, da instrumentalização do saber, entre outras questões.

Além disso, é preciso frear a invasão dos espaços sociais pela lógica empresarial instrumental estritamente associada a essa perspectiva e reconhecer que ela dissolve e coloca em xeque a formação do sensus communis, do Iudicium (Juízo). A perda de referenciais seguros é que jaz por trás de uma retomada e corrida às igrejas, às ideologias fundamentalistas e fascistas, como se nesses espaços se encontrassem os valores seguros e confiáveis supremos, como se não fossem construções humanas. Como se nesses espaços a tradição estivesse imune à lógica de mercado, dos sistemas do poder e do dinheiro, da burocratização e tecnificação, da objetificação dos sujeitos e das relações e, portanto, a salvo por uma milagrosa intercessão divina sem que entre Deus e os homens estivessem outros homens. A ética é mais essencialmente uma questão humana. Estamos por conta nesse mundo. A responsabilidade pelo mundo em que vivemos é nossa, e esse é nosso fardo.

É preciso fazer frente à retirada dos sujeitos do mundo humano, evitar abandonar a dimensão mundana de pessoas reais, do encontro com os outros em inúmeras esferas da existência intraduzíveis para o mundo virtual. É claro que a virtualidade abre inúmeras novas possibilidades de experiências e vivências que muito nos atraem. O ideal não seria essa perspectiva dual, mas poderia ser uma ampliação e não subjugação de um por outro. O fato é que o velho mundo ainda é muito mais estável e seguro. E essa é a novidade, a perspectiva humana desde sempre constitutiva do humano.

1Cf. “Ideen erzeugen, rechtfertigen und Konstruieren, ist ein philosophisches Geschafft, und zwar von der edelsten, aber auch von der schwierigsten Art”.

2Para as citações de Herbart tomaremos como referências as obras completas (1887), indicadas pela letra “H” adicionadas do número indicador do volume da coletânea, seguida do número de página.

3Cf. “Nirgends ist philosophische Umsicht durch allgemeine Ideen so nötig, als hier, wo das tägliche Trieben und die sich so vielfach einprägende individuelle Erfahrung so mächtig den Gesichtskreis in die Enge zieht”.

4 Gadamer (2012, p. 52) afirma em Verdade e Método que “Wilhelm von Humboldt, com o fino senso que lhe é próprio, já percebe perfeitamente uma diferença de significado entre cultura e formação: mas quando em nosso idioma dizemos ‘formação’ estamos nos referindo a algo mais elevado e mais íntimo, ou seja, o modo de perceber que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, e que se expande harmoniosamente na sensibilidade e no caráter. Sobre a importância da memória, de lembrar e esquecer, da renovação dos espíritos. Memória não somente como uma operação lógico-psicológica, mas como uma prática constitutiva de si”.

5Sobre o tema da confiança é também possível ler o trabalho de Victoria Camps (2012), que trata sobre o lugar das emoções na ética.

6Filósofo e pedagogo que, por falta de leituras adequadas, por um conjunto histórico de interpretações equivocadas, tem sido usado como bode expiatório de um conjunto de teorias. A Pedagogia abriu mão de um dos seus maiores clássicos e, assim, são tomados equivocadamente, sequestrados por teorias esdrúxulas como “escola sem partido” das ideologias políticas brasileiras ultraconservadoras de extrema direita. Herbart jamais concordaria com essa perspectiva. É preciso olhar atentamente alguns dos seus conceitos e fazer uma leitura de seus textos originais, compreender sua proposta de pedagogia enquanto área de saber e de investigação do conhecimento pedagógico.

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Recebido: 28 de Novembro de 2018; Aceito: 15 de Agosto de 2019

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