Introdução
Tendo por base uma pesquisa sobre a expansão da escolaridade obrigatória na Educação Infantil (EI), no estado do Rio de Janeiro, este artigo apresenta e analisa os temas que foram priorizados durante as entrevistas realizadas com gestores municipais da EI: a compreensão da gestão pública sobre a obrigatoriedade da Educação Infantil; os impactos que essa obrigatoriedade tem gerado nos municípios; os indicativos de uma preocupação com a qualidade no processo de expansão; as respostas das redes municipais quanto ao atendimento das crianças de zero a três anos após as alterações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (BRASIL, 1996).
As entrevistas realizadas em quatro municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro - Duque de Caxias, Niterói, Nova Iguaçu e Belford Roxo. A finalidade das entrevistas foi a de compreender o processo de expansão da pré-escola em cada município, identificando aspectos polêmicos, ambiguidades, avanços e desafios. O texto aborda as sutilezas dos bastidores do processo de expansão - a situação das creches, a construção de novas unidades, gestão, formação de professores, busca ativa de matrículas, entre outras. Ao trabalhar com os enunciados produzidos por diferentes interlocutores, marcados pela dimensão social e histórica, em contextos com condições de produção que se diferenciam, busca-se pistas para compreender o complexo processo político da expansão da EI em cada município. Como se operacionaliza no nível municipal as decisões tomadas pelo governo federal? Como o município se posiciona para enfrentar o desafio da universalização? Qual a relação desse ente com a sociedade? Assim, as entrevistas funcionaram como espaço dialógico de partilha de conhecimentos, que demandou uma compreensão da narrativa como espaço de produção de sentidos entre entrevistador e entrevistados sobre as creches e pré-escolas nas dimensões éticas, políticas e educacionais.
O artigo está estruturado em cinco itens: (a) o primeiro aborda o campo da pesquisa e as opções metodológicas; (b) o segundo traz a percepção dos gestores sobre as famílias usuárias do serviço educacional; (c) o terceiro levanta os sentidos que são atribuídos à demanda de vaga; (d) o quarto item revela as estratégias de expansão e (e) o quinto traz a formação e algumas demandas docentes, seguido das considerações finais.
Campo da pesquisa e opções-metodológicas
Para a seleção dos municípios elegeu-se três vertentes que, em conjunto, podem nos ajudar a compreender como a gestão pública responde a obrigatoriedade da educação infantil e se há interferências de algumas características dos municípios no processo de expansão. São elas: a) o produto interno bruto per capita (PIB per capita), b) o tamanho da população e c) o estágio de atendimento da pré-escola. O PIB per capita representa a capacidade de que cada município em mobilizar recursos para a educação. O tamanho da população diz respeito à complexidade da gestão municipal e, o estágio de atendimento da pré-escola, refere-se à proximidade ou à distância de cada município em relação à meta de universalização. Com estes norteadores selecionamos quatro municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro em pares de similaridade no que tange ao PIB e ao tamanho da população e diferenças em relação à taxa de expansão. Adotamos o período compreendido entre 2010 e 2017 que corresponderia ao que se é esperado de uma política de universalização.
O primeiro par foi formado pelos municípios de Duque de Caxias e Niterói, ambos com população acima de 400 mil habitantes, um PIB superior a 20 mil reais e matrículas da pré-escola de 45% para Duque de Caxias e 115% para Niterói, em 2010, tendo em vista a população de 4 e 5 anos residente. Em 2017, Caxias amplia para 62% e Niterói diminui o percentual de atendimento. O segundo par - Nova Iguaçu e Belford Roxo - tem uma população total de mais de 400 mil habitantes, um PIB per capita em torno de 10 mil reais e matrículas das crianças de 4 e 5 anos na pré-escola em torno de 45%, em 2010. Entretanto, em 2017, têm resultados educacionais (cobertura do atendimento) bastante diferenciados: Nova Iguaçu com expansão de matrículas de 50% e Belford Roxo com 22% de matrículas, no período 2010 - 2017.
Esse caminho metodológico também se justifica pela relativa autonomia dos municípios no processo de descentralização, ou seja, é no âmbito dos municípios que a política acontece. É responsabilidade da política municipal organizar sua própria agenda, demarcando suas prioridades e decisões para o atendimento da demanda da população por Educação Infantil. Contudo, pesquisas sobre a descentralização federativa evidenciam o forte papel indutor do Governo Federal na consecução de políticas municipais como, por exemplo, “mediante mecanismos de transferências de recursos financeiros para os municípios em função de sua adesão a determinadas políticas” (VILASBÔAS, PAIM, 2008, p. 1240). Dessa forma, a efetivação do direito à educação depende em última instância das ações dos gestores públicos.
As entrevistas foram transcritas e um trabalho de leituras e releituras foi realizado para a construção de categorias, criando aproximações e afastamentos, identificando as ambiguidades e tensões. A partir dos textos produzidos, foi possível “cruzar dados, comparar diferentes tipos de discurso, confrontar falas de diferentes sujeitos sobre a mesma realidade [...]” (FONSECA, 1998, p. 64), percebendo como a tessitura social se constrói. Fonseca (1998) sinaliza que através da dimensão social é possível chegar num sistema, ir além do caso individual. Assim, chega-se do particular ao geral, colaborando com a construção de proposições teóricas que sejam aplicáveis a outros contextos, com reflexões importantes no campo das práticas e das políticas. Mostrou-se, ainda, uma opção interessante de pesquisa, pois abriu caminhos para lidarmos com a questão da alteridade, do conhecimento do outro. Isso significa perceber os sujeitos como participantes desse processo histórico-cultural de produção das políticas, dando visibilidade aos desafios, avanços, ambiguidades e tensões da Educação Infantil.
Percepção sobre as famílias: “Eles não querem nem abrir o portão, querem jogar pelo muro”
A EI é a etapa educacional cuja base do trabalho pedagógico se constrói, fundamentalmente, na relação com as famílias, o que significa dizer que nessa relação reside o processo formativo da criança. A relevância da relação família-escola é evidenciada em diversas pesquisas, documentos oficiais e na própria legislação.
O período de ingresso das crianças nas escolas de EI tem sido objeto de pesquisas que procuram estudar o processo de transição casa-escola. Até o início dos anos 1990 a literatura referia-se a tal processo como “período de adaptação”; hoje ele tem sido identificado como “processo de acolhimento, inserção ou recepção” das crianças e de suas famílias. A mudança de nomenclatura comporta uma perspectiva conceitual segundo a qual o acolhimento, ou o ato de “levar em consideração, receber”, é o sentido que deve ser dado ao ingresso da criança e de suas famílias a escola. Receber é se colocar disponível para aceitar suas características, expectativas, anseios e dúvidas sobre o processo que se inicia ou reinicia. Corsaro e Molinari (2005) referem-se a essa transição como um conjunto de processos coletivos que ocorrem em contextos sociais ou institucionais. Embora não descarte a importância da constituição individual para o desenvolvimento da pessoa, enfatiza que o atravessamento do coletivo tem um papel central. Outro conceito relevante para a discussão da transição casa-escola seria aquele referente aos eventos primários. Trata-se de eventos que preparam para mudanças, inevitáveis em processos de transição e possuem caráter de ritos de passagem.
Thin (2006) chama atenção para divergências entre o modo de socialização escolar e das famílias de classe popular, que podem ser obstáculos do processo de escolarização das crianças pobres. Mesmo diante das pesquisas no campo da infância que reforçam a importância da família, dando ênfase ao seu direito garantido na legislação, ainda parece ser grande o desafio dessa relação nos contextos de EI, como evidencia um dos gestores entrevistados.
Infelizmente, eu acho que é a realidade do nosso país. Às vezes aquela mãe que precisa muito, que trabalha, está fora. E aquela mãe que foi lá e fez o cadastro [...]. Aí ela arranja uma declaração que trabalha em casa de família, porque é aceito, a lei faz a gente aceitar. O filho está lá e ela está na esquina tomando a cerveja o dia todo, porque ganha bolsa família, ganha não sei o quê... Com esse dinheiro elas acabam não comprando coisas para o filho, isso é uma realidade do nosso país. Às vezes, a mãe que precisa de fato, de direito, que trabalha fora, ela fica à margem da sociedade (Hélio, dez./2016, p. 13)1.
A partir desse relato é relevante indagar sobre o ponto de (des)encontro entre a herança sociocultural que a família traz e a cultura da instituição, que poderá ou não dialogar nesse processo de institucionalização. Narrativa que carrega a concepção de que há famílias que deveriam ter mais direito que outras e que o Estado, a partir de programa de transferência direta de renda, direcionado às famílias em situação de pobreza, fomenta o desemprego e o abandono dos filhos. Sobre a visão que os gestores têm em relação à família, em outros dois momentos da entrevista, encontra-se os seguintes relatos: “Elas vão para as escolas de shortinho, com o lenço aqui, e deixa lá o filho, assim com sol e vai dormir. [...] eu acho que tinha que mudar essa política”; também mencionam, mais uma vez, que as mães burlam o sistema para garantir a matrícula: “Ela arrumou uma declaração que trabalha na sua casa [...]. Tinha que ter assistente social para ir visitar” (Hélio, dez./2016, p. 13).
Os eventos destacados evidenciam o distanciamento e a assimetria na relação com as famílias, a existência de uma visão preconceituosa com as mães, vistas como ausentes, não cuidadosas com os seus filhos, uma influência negativa às crianças e, também, em relação a própria etapa educacional. A antiga produção de estereótipos sociais e preconceitos é, mais uma vez, identificada nessa relação, e tem sido responsável pela perpetuação dessa dinâmica de exclusão social das classes populares (PATTO, 1999). Escola e família parecem ser tomadas como opositoras, tendo a mulher/mãe como foco das principais críticas, percebida como responsável exclusiva pela criança (a figura paterna não é mencionada em nenhuma entrevista).
A compreensão desse conflito apenas pela dimensão socioeconômica não é suficiente. Nobert Elias e John Scotson (2000), em um estudo intitulado Estabelecidos e os Outsiders, apontam que as relações de poder não podem ser explicadas apenas por diferenças econômicas, étnicas, educativas, nem pela atividade profissional desenvolvida pelos sujeitos. Identificou-se que a manutenção dessa distinção pode ser mantida pela coesão social do grupo dominante, pela ocupação em cargos importantes, posições de prestígio. De acordo com esse estudo, essa realidade desigual era produzida por meio de constantes mecanismos de estigmatização nas relações entre estabelecidos e outsiders, como a caracterização dos outsiders como ruins, anômicos, desagradáveis.
As instituições parecem colocar os gestores num lugar de prestígio, colaborando para a manutenção dessa relação de estabelecidos e outsiders: os profissionais da educação detentores dos conhecimentos científicos e morais necessários à educação das crianças; enquanto as mães de classe popular como pessoas de menor valor, uma influência negativa às crianças, sem caráter, sem moral. Ressalta-se que essa narrativa decorre de um dos municípios com menor capacidade de expansão - nesse sentido, pela carência do número de vagas, atribui-se ao outro as mazelas que deveriam ser tomadas pela secretaria de educação para a implantação de uma política educacional de qualidade.
De outro lado, também se encontra uma compreensão que a EI é direito das crianças, prioritariamente, e das mães, independente se são trabalhadoras.
Há alguns anos atrás [...] funcionários da creche queriam colocar uma condição (para matrícula) - que as mães trabalhassem. Mas isso não foi para frente porque na discussão a gente argumentou que o direito é da criança, não é do responsável. Então, a mãe trabalhando ou não trabalhando, não é critério para participar do sorteio (Olívia, abr./2016, p. 7).
O olhar discriminatório dificulta a construção de uma relação positiva, pois não considera a diversidade como um valor. Esse lugar cristalizado que a família ocupa é instituído “pelos dispositivos jurídicos, médicos, psicológicos, religiosos e pedagógicos, enfim, pelos dispositivos disciplinares existentes em nossa sociedade” (SARTI, 2008, p. 23); ditando o que seriam famílias adequadas ou inadequadas. A dificuldade de romper com essa noção idealizada de família deve-se ao fato do discurso dito oficial instituir culturalmente essa compreensão sobre um determinado grupo social. Um trabalho educativo que respeite o princípio da democracia e da participação; com abertura, escuta e valorização da diversidade das culturas familiares. Os eventos apontam para a urgência do enfrentamento desse modelo de relação que parece ser dominante e tão antigo na história da EI.
Olhares para a demanda: “Mas eu não sei se todo mundo foi atendido no município”
Segundo Rua (1997), as políticas públicas resultam do processamento de demandas originárias do meio ambiente e, frequentemente, de demandas originadas no interior do próprio sistema político. Ou seja, elas podem ser reivindicações de bens e serviços, como saúde e educação, entre outras, mas também de participação no sistema político. Assim, o conceito de demanda a que esse texto faz referência diz respeito às aspirações de um conjunto de atores para resolver um determinado problema político. Assim, a pesquisa traz as expectativas de gestores e professores em torno das soluções encontradas, ou não, para o acesso das crianças a uma vaga no sistema público municipal, dentre outras questões.
Nas entrevistas, emerge a constatação do desconhecimento da demanda reprimida no acesso à EI. De acordo com os entrevistados, a gestão não organiza as suas ações a partir do quantitativo da população infantil, não se tem um levantamento do número de crianças que necessitam do atendimento em creches e pré-escolas - “Mas eu não sei se todo mundo foi atendido no município ou se todo mundo que procurou foi atendido.” (Hélio, dez./2016, p. 4); “Todas (crianças) que procuraram estão dentro da escola. Porque muitas não procuram” (Hélio, dez./2016, p. 1). Estudos anteriores também sinalizaram a presença expressiva de municípios que não pensam a política de EI a partir de um diagnóstico da situação da infância. De acordo com Nunes, Corsino e Kramer (2011), em dois momentos diferentes - 1999 e 2009, em uma pesquisa sobre a situação da EI no estado do Rio de Janeiro, grande parte dos informantes das Secretarias Municipais de Educação não sabiam o número de crianças residentes de zero a seis anos, número de matrículas, demanda não atendida, informações essenciais para a gestão da política educacional. Segundo o documento “Planejando a Próxima Década Conhecendo as 20 Metas do Plano Nacional de Educação” (2014):
[...] é essencial o levantamento detalhado da demanda por creche e pré-escola, de modo a materializar o planejamento da expansão, inclusive com os mecanismos de busca ativa de crianças em âmbito municipal, projetando o apoio do estado e da União para a expansão da rede física (no que se refere ao financiamento para reestruturação e aparelhagem da rede) e para a formação inicial e continuada dos profissionais da educação (p. 10-11).
Se alguns municípios desconhecem a demanda, os gestores de uma cidade participante das entrevistas afirmam que não há problemas com vagas - “Sobra vaga” (Paula, fev./2017, p. 1), confirmando a universalização da pré-escola nesse contexto. Essa é uma realidade distante da maioria dos municípios pesquisados. De acordo com uma das entrevistas:
Muitas crianças estão do lado de fora, mas têm casos que as mães não sabem, ou não querem, querem uma unidade mais próxima. Têm esses fatores [...]. Em 2014 tinha 23 mil do lado de fora de 4 e 5 anos [...]. Juntando privada e pública a gente não atende nem a 79% de 4 e 5 anos (Glaucia, ago./2016, p. 2).
A obrigatoriedade tem induzido municípios a criarem estratégias para garantia do acesso à pré-escola, contudo os caminhos escolhidos nem sempre respeitam os direitos das crianças a uma experiência educativa de qualidade. A identificação da ampliação da pré-escola, com a criação de turmas de pré-escola em escolas de Ensino Fundamental (EF), foi relatada nas entrevistas - “Todas elas foram atendidas (pré-escola), onde não foi, a gente botou no Fundamental essas salinhas” (Helio, dez./2016, p. 7); “[...] foram 13 escolas novas. São de Ensino Fundamental construídas com salas de pré-escola” (Glaucia, ago./2016, p. 2).
As entrevistas sinalizam o hiato entre o direito à creche, previstos nos dispositivos legais, e a sua real efetivação na vida das crianças, colocadas num lugar social e histórico de invisibilidade nas políticas sociais. A distância na democratização no acesso à creche e as polêmicas sobre a sua importância, ainda tida como “mal necessário”, sinalizam a cisão histórica entre creche e pré-escola e a necessidade de aprofundar as discussões sobre atendimento às crianças de zero a três anos.
A distância da democratização da creche mostra-se mais expressiva, entendida como a etapa de maior fragilidade, até para os contextos mais privilegiados - “O zero a dois é nosso tendão de Aquiles” (Paula, fev./2017, p. 8); “Só uma (Emei) atende a dois anos” (Glaucia, ago./2016, p.6). Parece que para as políticas as crianças nascem aos dois anos de idade. Essa é uma tendência em todo território nacional - a porcentagem de crianças de 0 a 3 anos na creche é de 35,6%. (OBSERVATÓRIO PNE, 2018)
Analisando as entrevistas, além da oferta insuficiente de vagas na creche, os critérios de matrícula entre creche e pré-escolas são diferentes, reforçando o hiato aqui analisado.
Para a creche a gente tem sorteio. [...] E no sorteio a gente faz uma ata junto ao Conselho Escolar, com a presença da comunidade. Aí faz o sorteio de todos os alunos que estão inscritos. Se a gente tem 100 vagas, a gente faz o sorteio das 500 crianças. E aí elas entram numa fila de espera na Secretaria [...]. Saiu um aluno, o centésimo primeiro é chamado via Secretaria de Educação (Olívia, abr./2016, p. 2).
A exclusão das crianças menores de três anos das políticas públicas educacionais constitui um grave problema social na contemporaneidade. A realidade brasileira ainda está distante de uma realidade de justiça social e igualdade política para as crianças pequenas. Entretanto, é notória a visibilidade que vai ganhando essa primeira etapa da Educação - “A Educação Infantil ficou em destaque, aumentou a visibilidade. Reuniões mensais, reuniões conjuntas com as conveniadas. Participação no Dia do Brincar” (Glaucia, ago./2016, p. 8).
Observa-se um impacto positivo nas mudanças em relação aos critérios de matrículas, principalmente com a indução do Ministério Público na produção de mecanismos de transparência, como a criação do cadastro único, e a pressão para a criação de novas vagas. De acordo com as entrevistas, a obrigatoriedade parece institucionalizar a matrícula, instaurando um processo de busca ativa que pode ajudar os municípios a enfrentar a desigualdade na oferta de vagas para a EI - “Foi ótimo o cadastro único porque antigamente o vereador vinha aqui. A creche tal só tinha duas vagas, uma hipótese. Aí ele (o vereador) queria. Hoje isso não acontece porque ele tem que estar no cadastro único” (Hélio, dez./2016, p. 3). No caso da pré-escola, comentam: “O que a gente fez foi chamada pública. A gente botou cartazes, propaganda nos postos de saúde, na própria escola, nas escolas do sindicato. [...] Ao contrário dos anos anteriores [...] a gente tinha sorteio” (Olívia, abr./2016, p. 1).
A matrícula é online. Toda informatizada e há também polos presenciais para aqueles que não têm acesso. Então, nós temos sempre três dias de polo presencial [...] para contemplar quem não conseguiu fazer, quem errou na hora da digitação, quem fez pelo celular e não entendeu. É para não restar dúvidas (Paula, fev./2017, p. 3).
Enquanto a maioria dos municípios entrevistados aponta para avanços em relação às matrículas, apenas uma cidade não conseguiu instaurar mudanças - “[...] isso é sonho. [...] A única coisa divulgada em jornal é o calendário de matrícula. [...] Tem a portaria de matrícula, colocam cartazes, placas no portão” (Glaucia, ago./2016, p. 3).
Outro aspecto da expansão da escolaridade, que emerge em todas as entrevistas, é a migração de usuários do setor privado para o setor público, que começa desde a creche, segundo os relatos - “Porque a gente teve, não só na creche, mas nos demais anos do Fundamental, [...] uma migração dos alunos que eram de escolas particulares indo para pública” (Entrevista Olívia, abr./ 2016, p. 6); “As mães estão tirando seus filhos da rede particular e trazendo para a rede pública” (Glaucia, ago./2016, p. 5); “A gente vai ouvindo, é mais uma comunicação oral: - Meu filho estudava em escola particular, mas eu precisava de uma vaga, preciso de uma vaga!” (Paula, fev./2017, p. 16).
A etapa passa a ter mais visibilidade e, no cenário de crise, a expressão “público para pobre” se transforma em várias localidades. A chegada no setor público de um grupo social privilegiado suscita uma indagação: será que essa migração será mais um elemento para reverter o imaginário que se tem da creche nos diferentes contextos sociais?
Estratégias de expansão: “Uma freada de arrumação”
A ampliação da pré-escola via criação de turmas em escolas do EF tem sido uma estratégia antiga nas redes públicas (KRAMER; TOLEDO; BARROS, 2014). Isso não deveria ser um problema, já que a EI e EF possuem crianças. Mesmo com suas especificidades, as duas etapas devem atender as necessidades das crianças, garantindo o acesso a brinquedos, a espaços amplos e adequados com mobiliários para as crianças, aos livros de literatura e a materiais diversos. Contudo, observa-se que a criação de vagas nesses contextos nem sempre respeitam as necessidades infantis, podendo o EF tomar uma prioridade diante dos objetivos escolares e suas avaliações obrigatórias como, por exemplo, aprender a ler e a escrever.
As entrevistas revelam como a falta de prestígio da EI e o incremento de novas vagas podem incidir negativamente na qualidade do atendimento - “salinhas”, “Ciep monstruoso”, denunciando que a maior capacidade de expansão de um município se deveu ao esforço de “13 novas escolas”. No fragmento a seguir os espaços para as crianças pequenas são pensados num “Ciep monstruoso”, num “elefante branco”. Quem gostaria de frequentar um espaço que é comparado a um monstro? Mesmo que hipoteticamente, é possível identificar os arranjos precários que são dados para o atendimento à pré-escola.
[...] vamos supor, eu estou no [nome do bairro], uma hipótese. Lá não tinha convênio, nenhuma pré-escola, não tinha nada. Então, eu tinha que criar vaga. Aí, eu tinha um Ciep monstruoso, um elefante branco, que tinha 15 salas e estava ocioso. Então, ali foi criada uma Educação Infantil” (Helio, dez./2016, p. 5).
A estratégia de abrir vagas de EI no EF não é compartilhada por todos os gestores participantes das entrevistas, não sendo considerada a opção mais adequada para as crianças de quatro e cinco anos - “A tendência é ir terminando nossas turmas de Educação Infantil em escolas de Ensino Fundamental. Mas ainda [temos], a universalização é o custo de ter ainda essas turmas” (Paula, fev./2017, p. 2). Em outra entrevista, tem-se o seguinte relato: “A gente inaugurou duas creches e abriu escola. Mas assim, não abriu escola para isso. Abriu escola. E aí organizou a rede de forma que atendesse todo mundo” (Olívia, abr./2016, p. 5).
Os entrevistados apontam diferentes saídas para o cumprimento da universalização: a reorganização de espaços, o fornecimento de Rio Card para famílias que matricularem em instituições distantes de suas moradias - “[...] a gente tem Riocard para acompanhante” (Paula, fev./2017, p. 1). O benefício mencionado resolve em parte a demanda por vagas, já que compromete a dinâmica das famílias. A construção de novas escolas também aparece com uma estratégia de expansão.
Então, a gente foi fazendo, em conjunto com o Programa mais Infância, a gente foi estatizando. E a gente foi construindo e revitalizando a rede municipal de Educação Infantil [...]. Foram 17 Umeis inauguradas de 2013 a 2016 (Paula, fev./2017, p. 10).
Contudo, a gestão nem sempre tem boas condições para enfrentar o desafio da insuficiência de vagas - “Há 12 anos o município não constrói nada [...]. Porque aquelas creches do governo federal a gente perdeu” (Helio, dez./2016, p. 5).
Em consulta ao portal de transparência, no painel obras, verifica-se que esse município teve uma baixíssima capacidade operativa, tanto em relação ao planejamento quanto à execução do que foi acordado nas propostas enviadas ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Dos 15 termos de convênio/contrato assinados entre o município e o Ministério da Educação (MEC), de 2007 até 2018, cada um representando uma construção de creche e/ou pré-escola, foram 12 obras canceladas, uma obra inacabada e duas propostas ainda em fase de planejamento pelo proponente (estas duas últimas iniciaram o acordo em 2013). O montante pago ao município pelo FNDE, pelas 15 escolas a serem construídas, soma 3,638 milhões de reais.
Lidar com convênios do município com o FNDE não é uma tarefa conhecida pelos gestores educacionais que, na maioria dos casos, desconhecem os trâmites necessários para a liberação e execução das obras - “Uma delas [dificuldades] é porque a gente não conseguiu o número de creches que esperava e o Proinfância [...] primeiro eram 28, depois 13, depois 11 e agora de 3 estão passando para nenhuma” (Glaucia, ago./2016, p. 2).
Nas informações sobre as obras, emitidas pelo portal do Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle (Simec), do Governo Federal, é possível constatar que das 23 propostas enviadas pelo município do gestor mencionado acima, 8 foram canceladas, sem que houvesse liberação de recursos. Há 15 propostas de construção na fase de planejamento pelo proponente, com termo de convênio assinado com o FNDE, e, para estas, foi liberado o valor total de 2,860 milhões de reais. O Governo Federal financia a construção, contudo avalia-se que o monitoramento e controle dessas obras é muito falho e, pelo quadro apresentado, é possível atestar não só o desperdício do dinheiro público, mas também como as crianças pequenas estão sendo afetadas pela falta de oportunidades em frequentar uma creche e pré-escola em condições mínimas de qualidade.
Dos 239 projetos de construção de unidades de EI dos municípios do Rio de Janeiro, cadastrados no FNDE, 18% tiveram as suas construções concluídas, 8% estão em execução, 25% estão na fase de planejamento pelo proponente, 5,5% têm as obras paralisadas, 27% das obras foram canceladas, 1,5% são consideradas inacabadas; 3% estão na fase de licitação; 6,7% em reformulação e 4,5% de contratação. O relatório intitulado “Transparência Brasil” (2017) indica que, após 10 anos de funcionamento do programa Proinfância, apenas 37% das obras foram concluídas, 642 foram canceladas e restam ainda 7.453 obras para serem entregues. Esse relatório analisou dados de um total de 12.925 obras de novas creches e escolas pactuadas entre municípios e o FNDE até julho de 2017.
Em artigo sobre infraestrutura escolar e qualidade na EI, Falciano, Santos e Nunes (2016) afirmam que “os maiores desafios da educação infantil são: expandir a cobertura do atendimento e melhorar a qualidade. A relação entre esses dois desafios é indissociável” (p. 886). Mais uma vez é mencionada a importância da implementação das políticas para que cumpram os seus objetivos, ou seja, para a expansão é necessário dispor de espaço físico. A partir do exposto, observa-se que a maior parte dos municípios do Rio de Janeiro não conseguiram construir, emergindo a questão: como fizeram para elevar os índices de atendimento? As pistas podem ser encontradas no depoimento do município da gestora Olívia, por exemplo:
A única medida polêmica que a gente tomou foi para gente foi a multi-idade. Para gente, muito tranquila. Tinha turmas, por exemplo, em lugares mais distantes. E aí a gente transformou em turma multi-idade e fez o atendimento para todo mundo (4 a 5 anos). O que já acontecia muito em escolas do campo. As escolas do campo, 3° e 4° distrito, elas são multi-idade (Olívia, nov. 2016, p. 4).
Propor a organização de grupos com crianças de idade diferentes (turmas multi-idade) não parece ser uma escolha pedagógica, mas uma resposta a não existência de vagas suficientes. Essa insuficiência parece também alcançar as crianças de 0 a 3 anos. O fato de a creche não ser aludida já nos ajuda a entender o não lugar dos bebês e das crianças menores de dois anos no atendimento público.
Desafios da formação docente: “Os professores que se formam se oferecem para dar formação - a prata da casa”
Para onde vamos com a educação das crianças na Educação Infantil? Para que a formação? Para quem contribui? Ao currículo, à elaboração de propostas pedagógicas, às crianças e aos seus direitos, à garantia da qualidade do trabalho, à avaliação ou aos próprios profissionais? Nesse contexto, são muitas as dificuldades, tanto no que se refere às concepções de formação quanto aos instrumentos e procedimentos delineados para sua concretização. Esses pontos guiam as análises e reflexões aqui trazidas, na busca de pistas para formulações políticas mais positivas e proposições.
Entende-se que formação é processo e, por isso, o sujeito-professor ocupa o lugar do fazer-se/desfazer-se contínuo, autor de um diálogo constante entre teoria e prática. Assim, coloca-se em evidência o significado da incompletude do sujeito humano e da dinâmica do processo de conhecer (GUIMARÃES; NUNES; LEITE, 1999, p. 160). Tal perspectiva aponta para a inesgotabilidade da formação, pois, à medida que agimos, interferimos e somos afetados pela própria ação. Por isso, condições para que possamos buscar elaborações teóricas que deem conta de explicar os efeitos e significados da interação e da interlocução - entre formadores e professores, professores e crianças e entre as crianças - são necessárias, para possibilitar uma compreensão mais ampla de nós mesmos e outras maneiras de influir na realidade. Assim, pensar a formação significa considerar o sujeito-professor em sua constituição identitária, ou seja, “refletir a respeito dos seus próprios processos de apropriação do conhecimento, de suas relações com os alunos, de seus dilemas, de suas conquistas e de sua história.” (GUIMARÃES; NUNES; LEITE, 1999, p. 161).
No evento a seguir observa-se o interesse dos profissionais em pensar as práticas, as escolhas assumidas para o trabalho educativo com as crianças, de forma coletiva: “A equipe sentiu necessidade de estudar. [...] Então, a gente criou um caderno que a gente colocava os temas que elas queriam discutir e aí fomos expandindo para diretores, professores e aí vendo a formação continuada, as parcerias” (Gláucia, nov. 2016, p. 6). Os gestores acolhem as necessidades dos profissionais, entendendo que é compromisso da gestão pensar caminhos para a formação. Contudo, a ideia de construção de um “caderno” traz as seguintes perguntas: qual seria o formato desse material? Seria um caderno composto por textos dialógicos, que convidam o professor a fazer perguntas sobre a própria prática ou assumem um formato de “manual”, com prescrições sobre o trabalho docente? Saber qual a visão de mundo que nos orienta e o que significa diante do contexto poder levar a não repetir padrões, mas a formar, transformar, criar. Bakhtin (2003) ajuda a conferir um acabamento a esse processo de ressignificação, advertindo que: A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um determinado complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quando há contato de dois polos opostos (p. 137). Identificou-se, também, uma proposta que tinha como ênfase atuar no contexto das educadoras, o que indica uma compreensão mais complexa desse processo, integrado aos desafios do cotidiano. A partir dessa experiência, novas ações de formação foram implementadas, resultando numa valorização das profissionais participantes.
Com o programa de formação e intervenção nas escolas da Baixada [PUC-BF]. Dessa primeira parceria, a própria Secretaria criou um projeto para as meninas cursarem a Pós [-Graduação] na PUC e com a UFRRJ. [...]. Os professores que se formam se oferecem para dar formação. Prata da casa [...] (Glaucia, nov./2016, p. 8).
O fragmento acima chama atenção para a capilaridade que uma ação de formação pode assumir dentro de uma rede - a garantia de espaços e tempos de formação permitiu que essas profissionais retornassem para as suas escolas com discussões e reflexões que colaborassem com a ressignificação da prática. Cabe destacar a menção das professoras como “meninas”, o que pode indicar a manutenção de um olhar de desprestígio para essas profissionais. Kramer (2005) sinaliza que essa expressão é frequente nas práticas de EI e pergunta que sentidos emergem dessa forma de nomear as professoras, num contexto de luta pela profissionalização. Historicamente, tem-se a opção pelo nome professora, como conquistado na LDB, e uma recusa pelo termo “tia”, exemplo da tentativa de desprofissionalização experimentado nas creches e pré-escolas.
Entende-se que esse processo de subjetivação forjado no cotidiano com as crianças pequenas é marcado ideologicamente por uma concepção de professoras como menores, meninas, menos adultas, o que enfraquece a função social dessas profissionais. A autora citada acima traz questões que parecem ser necessárias ainda hoje:
Se, no processo de constituição da consciência, a palavra alheia se torna palavra própria e, no cotidiano, valores ideológicos e histórias em confronto permanecem tensos na língua, pode-se indagar: haverá réplica ou as professoras continuarão a ser chamadas de ‘meninas’, naturalizando essa expressão e demarcando um papel social dado? Haverá contrapalavras por parte desses profissionais ao serem denominadas ‘meninas’ ou continuarão sendo identificadas com as crianças com as quais trabalham? Será que, assim, as professoras de educação infantil vão se tornando, se formando, se fazendo meninas mais do que adultas, meninas mais do que profissionais, pessoas pequenas, como os sujeitos que cuidam, com quem lidam, que educam? Que significados são expressos na ideologia do cotidiano com a palavra ‘meninas’? O que está reservado ou destinado a essas meninas, crianças no feminino, nem professoras nem mulheres? (KRAMER, 2005, p. 127).
Além dos aspectos analisados, também emergem das entrevistas experiências de formação ainda episódicas
Os temas são escolhidos pela chefia. A gente vê a demanda que precisa e a gente procura trazer alguém que traga um saber sobre aquela temática. Vamos supor, se nesse bimestre eu arranjar 3, vai ter 3, se não arranjar nenhum não vai ter nenhum (Hélio, dez./2016, p. 8).
É, a gente tem uma frustração muito grande nesse tema. A formação de toda rede, ela ficou concentrada num centro de formação [...] o secretário convida doutores e mestres que estão na rede para compor o centro, uma política de formação para os seminários. Mas isso infelizmente não tomou corpo. Para a Educação Infantil, a única formação que a gente tem é o contato que a Coordenadoria de Educação Infantil fez com uma Ong. É a única (Olívia, nov./2016, p. 10).
Mesmo com a tentativa de escutar as demandas dos profissionais, parece que a precariedade não permite que o direito pela formação docente seja efetivado. As respostas dadas para as necessidades de formação contam com ações de boa vontade, indicando a ausência de uma política de formação consistente para a rede. Além disso, chama atenção que em algumas localidades os temas sejam escolhidos pela chefia - quais são os critérios utilizados na eleição das temáticas estudadas? Será que as especificidades da EI são contempladas?
Kishimoto (2002), há mais de uma década, já apontava a falta de especificidade da formação docente para atuar com crianças pequenas. Da mesma forma, Gatti (2012), num estudo sobre como o tema da formação é tratado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (período de 1998/2011), indica poucos avanços e inovações nos cursos de formação inicial e continuada, apontando a definição do perfil do profissional que se deseja formar como um dos desafios que se impõem às políticas. Segundo a autora,
Um dos artigos aborda especificamente o trabalho docente do professor formador de professores, aquele que, no ensino superior, trabalha nas licenciaturas (André et al., 2010). A pesquisa relatada mostrou que as novas características dos estudantes nas licenciaturas e os contornos de algumas políticas educacionais e de situações nas instituições formadoras evidenciam a necessidade mais que urgente da reestruturação dos modelos formativos aí desenvolvidos (p. 435).
No Brasil não são poucos os projetos de formação de professores, principalmente aqueles emanados pelo Ministério da Educação, na esteira da necessidade de políticas de indução que buscam um patamar educacional aceitável. Nos últimos anos, em relação à formação inicial oferecida nas licenciaturas, tanto para os futuros professores quanto para aqueles que estão atuando nas redes de ensino na Educação Básica, o MEC implementou uma série de programas, destacando-se o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), o Exame Nacional de Concurso de Professores, a oferta de formação em ensino a distância (EaD), pela Universidade Aberta do Brasil (UAB). De fato, a pesquisa “Estudo Exploratório sobre o Professor Brasileiro” (2009), publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC), traz indicadores mais positivos em relação à formação dos professores de creches e pré-escolas. São índices que apontam a melhoria dos níveis de certificação; entretanto, não avaliam a qualidade dos programas de formação.
A presença de Planos de Cargos e Carreira também foi mencionada como um elemento importante na busca por qualificação profissional. Percebe-se como interatuam a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos, na concepção de Bakhtin (2006), ou seja, o signo e a situação social estão implicados.
Olha só, o nível de formação dos nossos professores ... Por causa do nosso Plano de Cargos e Carreira incentiva o nosso professor a estudar. Hoje na rede a gente tem professores com uma formação muito boa. Maioria com pós-graduação, mestres, doutores. Então, tem essa rede bem assim, como a gente fala, esperta (risos). E não é só por causa do plano, mas é um perfil de ser uma rede estudiosa (Paula, dez./2016, p. 12).
Outra questão, que se corrobora com desafios levantados em outras investigações é que, a despeito do ideário da gestão democrática onde as estratégias de organização são mais horizontais, a presença de hierarquias nas escolas permanece, mesmo que em níveis mais tênues, resultando em tensões entre os docentes no cotidiano escolar. Na EI esta tensão toma proporções bem mais elevadas, tendo em vista a presença do professor e do auxiliar convivendo no mesmo espaço, com funções bastante semelhantes e com condições de trabalho muito diferenciadas.
É, o nosso regime ele é muito complexo. A gente tem o professor concursado, não tem professor contratado, a gente tem professor concursado na sala, na turma de um, dois, três anos [...]. e o agente de creche, 40 horas. Então na sala de aula a gente tem o professor e o estimulador, ou agente de creche para acompanhar o processo pedagógico. O professor fica só de manhã, 4 horas (Olívia, nov./2016, p. 9).
Sem dúvida é na implementação da política que as intenções da lei vão sendo modificadas pelas condições encontradas em cada município. No EF não se discute mais a necessidade da formação e da habilitação para o magistério. Entretanto, na pré-escola e, principalmente, na creche a situação encontrada, além de heterogênea, é arrumada pelo “jeitinho” - convive-se com decisões políticas formuladas em gestões passadas junto com as novas formas de se compreender a importância do papel do professor no cotidiano das crianças no processo de socialização. Foi possível encontrar propostas mais coerentes com a legislação e com discussões mais recentes no campo da EI coexistindo com realidades mais frágeis, como é o caso das instituições comunitárias.
São dois professores por turma. É a bidocência. Isso, o tempo todo. Inclusive, nós temos que aumentar. De acordo com a modulação. Berçário são três. Três professores. [...]. Um professor, aqui no caso é das escolas comunitárias, e um auxiliar [...]. É, mas aqui é para escola conveniada (Paula, nov./2016, p. 4).
Diante do exposto, o tema da formação docente apresenta avanços importantes, contudo ainda persistem desafios históricos no âmbito da EI que devem ser priorizados nas agendas das políticas municipais.
Considerações finais
A EI, primeira etapa da Educação Básica, faz parte do Sistema de Educação, sendo responsabilidade do Estado garantir esse atendimento a partir de uma política democrática, com uma oferta de qualidade. Mesmo com avanços, o processo de expansão da pré-escola no estado do Rio de Janeiro apresenta fragilidades, com a perpetuação de uma realidade desigual. As entrevistas realizadas com os gestores responsáveis pela EI funcionaram como um espaço rico para a pesquisa, e permitiu pensar desafios e desdobramentos do processo de expansão. Além disso, permitiu aos seus participantes uma experiência formativa ao colocar na cena temas urgentes da política. Nos municípios estudados, a partir dos relatos sobre os modos pelos quais ocorreram a expansão, conclui-se que a relação entre a política de EI e sua operacionalização municipal nem sempre se articula com o esforço de indução da União. Os propósitos do governo municipal, indicados pelos Planos Decenais de Educação, pelos Censos da Educação e pela narrativa dos gestores entrevistados parecem formar um triângulo importante que possibilita compreender o tipo de governabilidade local. Nem sempre as leis federais determinam os propósitos dos municípios. Os modos de governabilidade - fatores eleitorais, político-institucional e interinstitucional - se traduzem na atuação dos conselhos municipais de educação, a existência de projetos de políticas de educação, diagnóstico sobre a população e a população atendida, as parcerias interinstitucionais, o compromisso com a formação docente, o monitoramento e a avaliação dos serviços, as ações judiciais quanto às vagas etc. Adensa esse quadro os planos de carreira; a formação e preparo técnico dos ocupantes dos cargos que envolvem gerência e planejamento, etc.
A clareza dos princípios, aliada à vontade política e à responsabilidade com a coisa pública, sem dúvida, incidem nos modos de governabilidade dos gestores municipais na oferta de uma educação de qualidade.
Com o objetivo de produzir uma síntese, mesmo que provisória, tecida ao longo desse estudo, será organizado, em tópicos, esse percurso analítico com conclusões e proposições para as políticas. As entrevistas evidenciaram:
Um olhar preconceituoso sobre as famílias instituído por diferentes discursos - jurídico, médico, psicológico, pedagógico, religioso - que tem colaborado para a produção de uma noção idealizada de família, não havendo valorização da diversidade das culturas familiares, sendo frágil o princípio de participação. É urgente o enfrentamento desse modelo ideológico de superioridade diante de famílias pobres que buscam vagas em escolas públicas.
A ausência de diagnóstico da situação da infância. Os gestores não conhecem a demanda e não organizam suas ações a partir do número de crianças que necessitam do atendimento.
Que mesmo com a constatação de que a obrigatoriedade da pré-escola tem induzido os municípios a criarem estratégias de expansão, nem sempre as experiências são de qualidade. Muitas respostas são arranjos precários, como “salinhas” em escolas de EF.
A pouca capacidade operativa dos gestores na construção de novas pré-escolas. A gestão nem sempre tem condições para enfrentar a insuficiência de vagas - existe uma dificuldade técnica na realização dos trâmites necessários para a liberação e execução das obras.
A distância da democratização da creche mostra-se expressiva, entendida como a etapa de maior fragilidade, até para os contextos mais privilegiados. Parece que para a política as crianças nascem aos dois anos. As entrevistas sinalizam o hiato entre o direito à creche, previstos nos dispositivos legais, e a sua real efetivação na vida das crianças, colocadas num lugar social e histórico de invisibilidade nas políticas sociais.
A obrigatoriedade de matrícula para a população a partir de 4 anos de idade, proposta pela nova legislação, por si só, não alterou o movimento de expansão ou redução de matrículas da pré-escola nesses municípios. Novos estudos que compreendam os movimentos de flexibilização municipal para o aumento do quantitativo de crianças por turma é necessário.
A convivência de diferentes categorias profissionais na função docente em geral precariza a qualidade da educação. Um dos gestores apontou a importância da implantação da bidocência no trabalho realizado em seu município.
A gestão democrática é ainda uma meta a ser alcançada - a presença de hierarquias nas escolas permanece, mesmo que em níveis mais tênues, resultando em tensões entre os docentes no cotidiano escolar.
A importância de estabelecer parcerias com as universidades na formação docente - tanto no nível de programas de capacitação profissional como de cursos de formação inicial e continuada.