SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36A lógica do mercado e suas implicações nas políticas e processos de avaliação da Educação superiorDesenvolvimento da prática colaborativa com professoras dos anos iniciais em um estudo de aula índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 26-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.75656 

Artigos

“Eu, leitor de mim”1: saberes narrativos e reflexividade autobiográfica no sertão potiguar

André Magri Ribeiro de Melo* 
http://orcid.org/0000-0001-5410-9317

Míria Gomes de Oliveira* 
http://orcid.org/0000-0002-2237-8499

*Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E-mail: andre.letraslp@gmail.com – E-mail: miriagomes@hotmail.com


RESUMO

O discurso autobiográfico não se limita à narração episódica do vivido, mas encontra seu fundamento na ação humana de configurar narrativamente o curso temporal da experiência. Neste texto, propomo-nos a interpretar as narrativas de jovens leitores do sertão potiguar sobre seus processos de educação literária, enfatizando suas percepções sobre o gesto de compor memórias e narrá-las, além de suas relações com a leitura e a literatura enquanto saberes simbólicos e experiências autoformativas. Interessa-nos compreender suas histórias de leitura a partir das memórias evocadas durante entrevistas autobiográficas individuais, realçando o valor heurístico e autopoiético da narrativa de si. A análise sugere que o ato de se narrar, de performar criticamente a rememoração, efetiva acontecimentos na vida dos jovens leitores, abrindo-lhes à possibilidade de reelaborar o passado, dar novos sentidos ao presente e perspectivar projetos de vida no porvir.

Palavras-chave: Narrativa de si; Memórias de leitura; Educação Literária; Saberes narrativos; Reflexividade autobiográfica

ABSTRACT

The autobiographical discourse is not limited to the episodic narration of what has been lived. It finds its foundation in the human action of narrating configured in the temporal course of experience. In this paper, we propose an interpretation of the narratives of young readers from the backlands of Rio Grande do Norte - Brazil, focusing on their Literary Education processes. The data reveals their perceptions about the gesture of composing memories and narrating them, in addition to their relations to Reading and Literature as symbolic knowledge. We are interested in understanding their literature reading narratives based on the memories evoked during individual interviews, highlighting the heuristic and autopoietic value of the self-narrative. The analysis suggests that the act of narrating plays an important role in young reader’s lives as it brings the possibilities of reframing the past, assigning new meanings to the present and envisioning life projects in the future.

Keywords: Self-narrative; Reading memories; Literary Education; Narrative knowledge; Autobiographical reflexivity

Introdução

Auto-bio-grafar é aparar a si mesmo com suas próprias mãos. Aparar aqui é utilizado em suas múltiplas acepções: segurar; aperfeiçoar; resistir ao sofrimento, cortar o que é excessivo e, particularmente, como se diz no Nordeste do Brasil, aparar é ajudar a nascer. Esse verbo rico de significado permite operar a síntese do sentido de bio-grafar-se, aqui entendido, ao mesmo tempo, como a ação de cuidar de si e de renascer de outra maneira.

Conceição Passeggi, em Memórias, memoriais (2008)

Neste artigo, propomo-nos a analisar o discurso narrativo de jovens da cidade de Ipanguaçu, no sertão potiguar, sobre suas experiências de educação literária, tomando suas entrevistas autobiográficas como objeto de leitura hermenêutica. Nosso objetivo é compreender como esses leitores forjaram representações de si e manusearam o tempo vivido narrativamente. Buscamos desvelar o valor heurístico e autopoiético das narrativas de si diante de sua formação leitora no sertão campesino do Rio Grande do Norte e as ressonâncias de ordem social que marcaram seus relatos individuais. As reflexões epistemológicas tencionam realçar as potencialidades ontológicas do chamado “método biográfico” em pesquisas cujo foco recaia sobre as particularidades das trajetórias histórico-culturais de jovens. Observaremos que o discurso autobiográfico não se limita à narração episódica do vivido, mas encontra seu fundamento na ação humana de configurar narrativamente o curso temporal da experiência. Na pesquisa (auto)biográfica em educação, compreendemos a narrativa de si como dispositivo autoformativo a partir do qual o sujeito que se narra atribui sentidos ao que viveu por meio de performances críticas de autoaprendizagem. Desta forma, a produção discursiva de si está articulada à apropriação de diferentes instrumentos semióticos que são acionados pelo narrador para dar forma à história e ao tempo experienciado; ou, retomando a epígrafe deste texto, para ajudá-lo a aparar-se, cuidar de si, renascer.

Pesquisa (Auto)biográfica: dizer-se como parâmetro epistemológico

Narrador, agente social, autor, indivíduo, escritor, personagem de si, espectro. No Brasil, a crise das instituições tradicionais e dos paradigmas estruturalista e behaviorista, na década de 1980, catalisou os debates sobre o retorno do sujeito ao centro das preocupações da pesquisa em educação, além de posicionar os holofotes na direção das implicações teóricas e práticas que acompanhavam este fazer científico radicalmente crítico à cisão entre pesquisador e objeto, razão e subjetividade, conhecimento e corpo. Inapreensível, fugidio, complexo, indisciplinado - o ser humano não está encerrado em esquemas lógico-matemáticos inflexíveis, mecanismos sociais deterministas ou noções de realidade como verdade aparente.

Na história das ciências, convencionou-se chamar esta travessia paradigmática de virada narrativa, em função do reconhecimento e uso da linguagem - sobretudo do discurso narrativo - como fundamento da transição do paradigma disciplinar das ciências aplicadas ao paradigma transdisciplinar dos atores reflexivos (PINEAU, 2016). Suspensa, balbuciante, indócil, desobediente e, às vezes, incompreensível, a linguagem do sujeito convidado a falar de si representa uma maldição dupla para o campo científico cartesiano instituído: de um lado, o contato com subjetividades e formas de enunciação inéditas ou incomuns entre os cientistas; do outro lado, a flagrante limitação teórico-metodológica das técnicas de escuta e interpretação vigentes para lidar não apenas com um corpus estranhamente vivo, mas com questões éticas e políticas que desvelaram as fragilidades do racionalismo prescritivista na ciência moderna de origem europeia.

A virada linguístico-pragmática, por sua vez, em movimento com a hermenêutica e a semiologia, reivindica a ideia de que o sujeito humano está no mundo onde o discurso funciona socialmente no interior de um complexo de práticas discursivas. Essa virada questiona, por exemplo, como são as práticas sociais que constituem o mundo e a vida nos quais as narrativas de jovens leitores do sertão potiguar são produzidas, reproduzidas e interpretadas. Trata-se de dar “sentido à ideia de que o poder que atravessa o discurso atravessa também a interpretação (e a autointerpretação), a construção da identidade e a autoidentidade”. É imperativo frisar que a consciência de si (tanto na sua formação como na sua modificação) está implicada “nas políticas do discurso”, o que faz emergir uma “política de identidade” e “uma luta política em torno de quem somos” (LARROSA, 2004, p. 14).

As reações que tentaram invalidar o estatuto epistemológico da pesquisa (auto)biográfica não impediram a guinada narrativa na universidade, embora, a princípio, de forma contrabandeada. Nos países anglo-saxões, Biographical Research, e na Alemanha, Biographieforschung, este é um campo investigativo já consolidado. Na França, Recherche biographique en éducation, assim como no Brasil, Pesquisa (Auto)biográfica, e em outros países latino-americanos, Investigación narrativa, ainda se encontra em processo de reconhecimento e expansão. A variedade de nomenclaturas sinaliza a coexistência de diferentes abordagens e enfoques no trabalho com narrativas, o que parece caracterizar um espelhamento da heterogeneidade das fontes biográficas e autobiográficas na constituição do próprio campo investigativo.

Em que pesem suas particularidades, essas tradições de pesquisa herdaram da Hermenêutica (destacando-se os nomes de Wilhelm Dilthey, Hans-Georg Gadamer e Paul Ricouer) e da Fenomenologia (que evidencia as contribuições de Peter Berger, Thomas Luckmann, Wilhelm Schapp e Alfred Schütz) o interesse pela interpretação linguístico-discursiva que damos ao mundo e a nós mesmos, e pelos fenômenos da consciência. Elas compartilham o interesse comum pelo estudo das estratégias de concepção e organização com as quais os indivíduos significam e atuam em suas experiências, produzindo sentidos antes inexistentes e construindo “a consciência histórica de si e de suas aprendizagens nos territórios que habitam e são por eles habitados, mediante processos de biografização” (PASSEGGI; SOUZA; VICENTINI, 2011, p. 372).

A capacidade antropológica de biografizar a partir de uma razão narrativa se dá na construção da experiência. Com isso, a biografização é um traço fundante deste campo de conhecimento, que aspira a um saber singular, que se interroga sobre processos de individuação, subjetivação e construção de si, e as interações que esses fatos biográficos estabelecem com o outro e com o mundo social (DELORY-MOMBERGER, 2016). Trata-se do território da experiência em que a aprendizagem e a constituição sócio-histórica dos narradores são processos permanentemente nutridos pela reflexividade autobiográfica, condição erigida quando o sujeito transpõe a curiosidade ingênua em direção à curiosidade epistemológica, à constituição crítica de si.

O saber biográfico é forjado no trabalho de gênese sócio-individual que o indivíduo realiza sobre si, estruturando sua percepção sobre o mundo social e histórico, ao mesmo tempo em que produz esse mundo e a si mesmo. Este saber inscreve o seu autor na temporalidade biográfica, com sua gramática e sintaxe próprias, fazendo da atividade narrativa o tecido sobre o qual o tempo é bordado humanamente. A construção da experiência, portanto, é o âmago da atividade biográfica, o conhecimento pretendido por ela e a partir da qual é possível explorar os processos de individuação e socialização, questionar suas múltiplas dimensões e melhor compreender as relações entre indivíduos e sociedades (DELORY-MOMBERGER, 2016).

A relação dialógica entre indivíduo e sociedade é um princípio orientador da pesquisa (auto)biográfica e uma de suas aparentes contradições. Sobre essa questão, Ferrarotti (2014) defende que narrar a vida é um esforço paradoxal, zona de trânsito entre a desconstrução e a reestruturação das relações sociais a partir da apropriação particular e de sua interiorização e conversão em estruturas psicológicas. “Quantas biografias serão necessárias para alcançar uma ‘verdade’ sociológica? Que material biográfico será o mais representativo e nos dará, antes dos outros, verdades gerais?”, indaga o sociólogo. Para Ferrarotti, “cada narração autobiográfica relata, num corte horizontal ou vertical, uma prática humana [...] e qualquer prática individual humana é uma atividade sintética, uma totalização ativa de todo o contexto social” (FERRAROTI, 2014, p. 70-71).

O estatuto científico das narrativas autobiográficas, que Ferrarotti chama de coração do paradoxo epistemológico do método biográfico, ampara-se na reivindicação da subjetividade científica. Os traços, rastros, caminhos que tornam trajetórias de vida individuais apresentam-se como via de acesso ao conhecimento científico de um sistema social. Nem sempre linear, essa via se apresenta cifrada, codificada, exigindo do pesquisador posturas metodológicas e conceitos inovadores.

A pesquisa (auto)biográfica questiona, assim, a suposta infalibilidade e rigidez do processo de hipótese-verificação para lançar-se sobre os processos de interação, intercessão e exploração dos entre-lugares, das emoções, dos movimentos lacunares. Convoca-se a presença do sujeito de pesquisa, reconhecendo sua parte criativa e suas construções na vida social. Como atesta a Carta da Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação e da Pesquisa Biográfica em Educação2 (ASIHVIF), publicada, em português brasileiro, no primeiro número da Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica (CARTA DA ASIHVIF NOSSA CARTA, 2016, p. 177), a pesquisa (auto)biográfica aloca as narrativas de si no epicentro da reflexão sobre nossas referências comuns, axiológicas, epistemológicas e metodológicas, cuja finalidade é desenvolver práticas de história de vida por meio da narrativa de vida, a partir de procedimentos que colocam, no centro, o sujeito narrador enquanto aquele que define seu objeto de busca e desenvolve um projeto de compreensão de si, para si e pela mediação do outro.

O ser humano se interpreta e são as formas narrativas nossa principal modalidade de autointerpretação. Desse modo, nos cabe pensar como se dá a relação entre o sujeito - que é tanto o sujeito da autoconsciência como também o sujeito da intersubjetividade, da historicidade, da cultura, da sociedade - e o gênero discursivo da narrativa. Nessa direção, a principal característica do sujeito da narração não é a busca pelo que é, mas o sentido de quem é para si e para os outros. Esta consciência crítica de si é construída com materiais peculiares e sensíveis: as histórias que contamos e as que nos contam; afinal “o sentido de quem somos é análogo à construção e à interpretação de um texto narrativo e, como tal, obtém seu significado tanto das relações de intertextualidade que mantém com outros textos como do seu funcionamento pragmático em um contexto” (LARROSA, 2004, p. 13). Nossa relação com as narrativas que ouvimos, lemos e vemos nos formam à medida que são produzidas no interior de práticas sociais e experiências singulares que se cruzam a todo tempo e significam nossa existência em contextos específicos e coletivos.

Somos um reflexo, nunca completamente claro e transparente, das narrativas que nos cercam e que habitam dentro de nós; somos, necessariamente, um texto em contínua elaboração, combinação de intertextualidades - atravessados por outros textos e outras palavras chamadas à relação conosco - e multimodalidades - posto que essas relações são construídas com diferentes linguagens, formas e meios. Somos construto narrativo, especialmente se compreendemos que a narrativa dá forma às coisas no mundo real e oferece condições de acesso à realidade por meio de traduções e reelaborações a partir da experiência única de cada narrador.

A posição privilegiada do discurso narrativo na biografização de si articula-se também ao tema gerador do trabalho de rememoração e narração dos jovens: a educação literária. Ainda que indissociável da escolarização dos textos literários e do ensino formal de literatura, entendemos a educação literária como um processo ativo de apropriação de artefatos est(éticos) das culturas escritas, orais e imagéticas e configuração crítica de (inter)subjetividades próprias ao leitor e ao mundo social. Ultrapassa-se a formação escolar e os currículos institucionalizados para ampliar o espectro de experiências literárias e pedagógicas do sujeito, contemplando visões de educação e literatura que “animam o pensar a partir, e com, genealogias, racionalidades, conhecimentos, práticas e sistemas civilizatórios e de vida distintos” (WALSH, 2013, p. 28).

Por isso, para além de um inventário de práticas de leitura/escuta e escrita formais, a educação literária nos permite adentrar territórios particulares e próprios a cada leitor porque a experiência literária é vivida a partir dos lugares que ocupam nos grupos que integram e das formas singulares de introjeção dos códigos sociais e culturais. Consequentemente, seus complexos processos de aprendizagem da leitura e da literatura combinam práticas linguístico-discursivas públicas e privadas, particulares e comunitárias, mais ou menos monitoradas socialmente. É nessa perspectiva de não oposição entre indivíduo e sociedade no campo da educação literária que reconhecemos as narrativas de si dos leitores como ações de interpretação, aprendizagem e autoconhecimento tramadas dialogicamente.

Eu, narrador de mim: jovens leitores no sertão potiguar

Ao abordarmos as entrevistas3 com os jovens leitores, foi necessário criticar representações sociais sobre juventude que tendem a inseri-los em um recorte de idade fixado por determinados valores e práticas sociais convencionadas. A definição de juventude apenas em função das condições geracionais ofusca os diferentes modos de ser e estar no mundo vividos pelos jovens narradores e incorre no risco de desvalorizar a experiência singular e comunitária em detrimento de uma estrutura etária que os aprisionaria, se considerada como fator exclusivo de análise.

Entendemos juventude como uma construção sociocultural das sociedades modernas, que passa constantemente por releituras, conformadas por diferentes realidades sociais, culturais e econômicas. Como explica Peralva (2007, p. 13), “as idades da vida, embora ancoradas no desenvolvimento biopsíquico dos indivíduos, não são fenômeno puramente natural, mas social e histórico, datado e inseparável do lento processo de constituição da modernidade”. Também, Velho (2006) aponta que as denominações etário-geracionais são estabelecidas com base nos diferentes modos de negociação da realidade, através dos processos de interação social, influenciados por fatores raciais, de gênero e orientação sexual, socioeconômicos, políticos, territoriais e simbólicos.

Os jovens que ouvimos são cidadãos ipanguaçuenses enredados nessa teia de complexidades. Ouvir suas narrativas, elegendo a educação literária como bússola de suas aventuras autobiográficas, foi o ponto de partida para compreendê-los no seio dos seus movimentos de biografização/autoconhecimento. A maioria dos narradores mora no assentamento Tabuleiro Alto, mas alguns residem nas comunidades de Porto e Pataxó. Tabuleiro Alto e Porto são áreas campesinas pertencentes ao conjunto de terras desapropriadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, em 2008, e loteadas entre os trabalhadores do campo e das águas. Já Pataxó, embora integre o campo, é um dos distritos municipais (territórios relativamente urbanizados, em relação à maioria das comunidades ditas rurais, mas que não são considerados áreas citadinas). Aproximadamente 65% da população municipal vive no campo, enquanto 35% reside no perímetro urbano, uma realidade demográfica que vem se mesclando ao longo do tempo.

Os oito leitores entrevistados tinham entre 15 e 22 anos, sendo quatro homens e quatro mulheres, cinco negros e três brancos, todos alunos do Ensino Médio em escolas públicas, à exceção de um que cursava o último ano do Ensino Fundamental quando entrevistado. Mesmo residindo em comunidades rurais, quase todos estudavam em instituições sediadas na cidade de Ipanguaçu ou em seu entorno.

Oriundos de famílias com renda mensal na faixa de um a dois salários mínimos, seus itinerários formativos como leitores convergem em vários aspectos e informam elementos da condição juvenil campesina no sertão: a privação ou acesso restrito a espaços legitimados da cultura escrita, como bibliotecas, teatros, museus, universidades, galerias de arte, cinemas, centros culturais, livrarias, etc., condições precárias de escolarização na infância e na adolescência, a participação em grupos juvenis religiosos (à exceção de uma, que participa de um clube do livro), o contato limitado com a escrita e a leitura em ambientes familiares e a centralidade ocupada pelas escolas públicas municipais em suas histórias de leitura e experiências literárias como momentos-charneira4 de seus processos de biografização.

Na contramão de discursos que responsabilizam exclusivamente a escola pública, os professores e demais profissionais da educação pelos baixos níveis de leitura e letramento no país e pela reprodução de desigualdades sociais e culturais, os processos de educação literária desses jovens campesinos parecem antagonizar, ou no mínimo questionar, esse tipo de crítica. Ainda que o espaço escolar e os sujeitos da educação formal não sejam os únicos fatos biográficos presentes em suas narrativas diante da educação literária, a escola é o espaço de momentos decisivos e marcantes de sua formação: os primeiros livros, os concursos de escrita criativa, a liberdade de escolher o que ler, o contato com universos culturais radicalmente diferentes, a compreensão de si e do outro a partir dos textos literários lidos, o confronto com emoções e sentimentos reprimidos, o exercício da leitura crítica e política da realidade e a presença de professores e colegas leitores, criando afetividades comunitárias no/a partir do ato de ler.

Os avós contadores de histórias, velhos narradores de suas famílias e comunidades, também foram recordados pelos jovens, que se referiram a eles como “guardiões do saber”, “memórias vivas” e “livros humanos”. Desta forma, nossos jovens trazem em suas autobiografias de formação leitora, práticas orais marginalizadas pela cultura escrita hegemônica, articulando-as a diferentes experiências pedagógicas e subjetivas de linguagem. Dentre essas experiências, destacamos mediações de leitura exercidas por mães, familiares, amigos e membros da igreja e estratégias particulares de seleção e leitura/escuta de textos. Em relação à escrita, os sujeitos relataram práticas de escrita criativa e/ou autobiográfica em diários, contos, poemas, crônicas e outros gêneros.

Nesse sentido, o ato de lembrar a própria história de educação literária é político e pedagógico, pois permite que eles entrevejam os efeitos das estruturas que lhes impuseram contextos de subalternidade/subalternização e reconheçam as oportunidades, circunstâncias, táticas e artifícios dos quais lançaram mão para garantir a própria sobrevivência e autoformação. Desse processo de recordação-narrativa do passado, o autoconhecimento aflora como provocação aos dilemas do presente, fissurando “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (ANDRADE, 2006, p. 28).

Ler a si mesmo: educação literária, biograficidade e autoconhecimento

O sujeito biográfico, calcado no entrelugar do lembrar-narrar, é o resultado sempre inacabado de processos em movimento, cujo caráter de imprevisibilidade e ancoragem contextual fazem da memória do narrador um artefato incontornável para entendermos que os acontecimentos narrados são escolhas realizadas no tempo-espaço da vida. Se “a memória é uma ilha de edição”, como escreveu o poeta Waly Salomão (2014), essa seleção não se dá arbitrariamente, mas porque somos capazes de relacionar o recordado a cenas representativas do nosso caminho que ganham mais intensidade quando significados constelares as iluminam.

Isso faz da rememoração uma retomada do passado que abre ao sujeito memorialista possibilidades de se reconhecer e de se elucidar, de burilar uma identidade cujas raízes flutuam e é inesgotável em seus próprios pertencimentos. O depoimento de Camilo5, nosso primeiro leitor, exemplifica o ato de rememorar ao afirmar que fica: “[...] feliz por estar narrando uma história que realmente aconteceu, foram momentos que vivi e ficarão guardados comigo para sempre, nunca pensei que poderia ir tão longe, enfim, estou muito feliz por esse momento nostálgico!”.

Para ele, recordar é um tempo de nostalgia. Ele se dá conta, enquanto narra, de que venceu obstáculos antes intransponíveis e que manter consigo essas lembranças é valioso. Sua postura guarda semelhanças com a do escritor Graciliano Ramos (1976, p. 15), quando escreve no quinto capítulo de Memórias do Cárcere: “quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”.

Esta postura ativa de quem recorda e narra suas lembranças não deve ser confundida com a de um informante ou alguém que apenas depõe sobre algum assunto. Na verdade, o narrador se apropria da situação discursiva da qual participa e, pelo exercício crítico da autoconsciência que atravessa o processo de biografização, tece a urdidura da sua memória hermeneuticamente. Em outras palavras, na relação ouvinte-narrador os jovens não nos apresentaram informes de si, mas interpretações geradas no diálogo entre mediadores biográficos e indivíduos autorreflexivos.

Para o leitor Lucas, dizer de sua educação literária é refletir sobre os processos de tomada de consciência crítica acerca do que vivemos:

[...] o ineditismo disso tudo, de lembrar minha própria história a partir do que eu li. Quando se reflete sobre os livros e histórias que se leu mudamos nossas opiniões e jeitos de ver o mundo porque livros como ‘1968: o ano que não terminou’, ‘O diário de Anne Frank’ e ‘O Cortiço’ nos tornam, de algum jeito, mais críticos e criativos.

Pensando as reminiscências como semblante que envolve a memória - a exemplo de outros processos, como o ressentimento, o esquecimento e o silêncio -, atribuímos a estes “passados importantes que compomos para dar sentido mais satisfatório à nossa vida” um lugar decisivo no modo como ouvimos e interpretamos a narrativa do jovem leitor, que, à medida que nos contava sobre sua história com os livros, marcava o passar do tempo com a busca, consciente ou não, por uma articulação mais consistente entre identidades passadas e presentes (THOMSON, 1997).

As narrativas autobiográficas dos jovens são dependentes não só da memória, mas do tempo, tendo em vista que estão expostas às mudanças em cada experiência de vida. A leitora Alana, refletindo sobre o valor da autonarrativa na evocação das suas experiências de educação literária, assume que não encontra um termo apropriado para definir o processo: “falar, lembrar, recordar... nem sei a palavra”. Contudo, revela que:

Contar detalhes minuciosos dos meus primeiros passos com a leitura está sendo uma experiência inexplicável porque só quando parei para falar sobre isso percebi o quão difícil e bonito foi conhecer melhor o que a leitura tinha para mostrar. Refletir sobre essas questões, tenho certeza, é e vai continuar sendo um acréscimo no currículo da vida, pois falar sobre o que lemos é sempre válido, já que toda e qualquer experiência de leitura nos ajuda a construir novas visões sobre nós e sobre os outros, mesmo que aquilo que lemos não nos agrade, inicialmente [...] com o tempo, nossos olhos nos darão visões mais críticas.

As palavras de Passeggi (2011, p. 103), “narrar é humano”, ecoam nas de Alana. No testemunho, narrar sua relação com a leitura descortinou o processo crítico que integra sua história de leitura. Ao afirmar que essas reflexões somam no “currículo da vida”, a leitora assume a importância da narrativa no presente a partir do qual recorda e narra, argumentando que relembrar suas experiências de educação literária lhe permitiu observar na vida uma faculdade comum à leitura: a possibilidade de ensaiar novos modos de ver e conferir sentido à realidade.

A percepção de Alana sobre o ato de narrar dialoga com o ponto de vista assumido pelo leitor João Neto, que vê na contação de suas próprias histórias a possibilidade de organizar um legado memorialístico:

É prazeroso ouvir histórias, mas também é prazeroso contar nossa história porque é a partir daí que a gente se olha no espelho e consegue, assim como um escritor narra em capítulos, narrar oralmente uma história diferente e inédita, que é a nossa própria história. Eu acredito que em tudo que se faz é necessário parar e refletir. Refletir sobre a relevância do que se faz, sobre as ferramentas que nos ajudam a fazer, sobre o método com que fazemos para que, assim, possamos devolver ao mundo o que a gente lê em forma de ação e transformação e a quem nos abriu as portas para conhecer a leitura, gratidão e reconhecimento.

João recorre à metáfora do espelho para expressar uma exigência do trabalho autobiográfico, qual seja, o confronto com imagens do passado a partir do lugar que ocupamos no presente. O ineditismo que ele certifica à sua história articula-se à compreensão da narrativa de si como artefato em movimento, informada pela singularidade do vivido e inspirada por temporalidades específicas que acompanham o narrador em seu crescimento. O jovem leitor realça também a coerência inerente ao ato de fazer da sua vida um texto, em especial quando diz ser relevante pensar no que (e como) fazemos, além dos efeitos disso para o mundo. Para ele, a agência transformadora da leitura precisa ser lembrada, assim como a gratidão e o reconhecimento às pessoas e espaços que participam da educação de um leitor.

As narrativas dos leitores colocam em questão quem somos como sujeitos autoconscientes e nossa capacidade de refletir biograficamente e reinventar os sentidos que atribuímos às nossas vidas e às experiências que passamos. Para Larrosa (2004, p. 15), as experiências estão inseridas em um complexo jogo de interpretações: “o que somos não é outra coisa senão o modo como nos compreendemos” e esse modo de compreensão é análogo “ao modo como construímos textos sobre nós mesmos” e a forma desses textos depende de “sua relação com outros textos e dos dispositivos sociais nos quais se realizam a produção e a interpretação dos textos de identidade”.

Já a leitora Rafaela reafirma a potência epistemológica da narrativa como uma arte de si e o desafio de autointerpretar-se como um inquietamento que causa deslocamentos subjetivos. Segundo ela, enquanto narrava fragmentos de sua vida como leitora, “[...] problematizava e refletia sobre isso (a literatura) e outras questões, ampliava muito o meu campo de visão, primeiramente como leitora, mas também como pessoa, causando, assim, um inquietamento em mim”.

Além da ideia de escrever suas próprias memórias de leitura, a jovem leitora nos contou que desejava “doar um pouco da minha experiência e desse sentimento aos outros” e revelou:

[...] Comecei a ler livros infantis para crianças da escola da minha comunidade, onde eu me formei leitora, e isso (ler para crianças) está se tornando uma coisa maior, pois com a ajuda de alguns amigos tenho pensado num projeto, que ainda está no papel, de ler em todas escolas da cidade de Ipanguaçu e propagar o amor à literatura, tipo causando uma bola de neve que irá formar cada vez mais leitores, porque leitura é educação e, como já dizia o mestre Paulo Freire: a educação não transforma o mundo, a educação muda as pessoas e as pessoas transformam o mundo.

As palavras inspiradoras de Rafaela corroboram a ideia de que a leitura literária provoca mudanças, primeiramente, em quem lê e, em seguida, na comunidade. Sua interpretação incide sobre a dimensão política da leitura, ao colocar o conhecimento à disposição de quem precisa e de projetos de vida que conjuguem sentidos e aspirações individuais e comunitárias.

Os planos de Rafaela, animados pelo pensamento freiriano, aproximam a educação literária à formação humana integral, encadeando compromisso coletivo, justiça social e formação de leitores. O evidente apreço e amor pela literatura parece movê-la a pensar estratégias políticas para difundir seus saberes literários através de experiências literárias positivas, que estimulando outros talvez possa mudar o mundo, ao modo cabralino de tecer manhãs. Seu relato sugere que a narrativa de si oportuniza ao sujeito não apenas a possibilidade de reelaborar o passado, mas de construir projetos e perspectivas futuros. Contando as próprias histórias, edificamos nossa identidade e nos (re)conhecemos no que contamos sobre nós mesmos. Se essas histórias são verdadeiras ou não, é um problema que não interessa à pesquisa (auto)biográfica; porque tanto a ficção como a história nos conferem identidades. A trama narrativa fiada pela imaginação ocupa, no relato da leitora Lariza, um lugar central quando ela diz que:

Não tem como não relacionar um livro, ou uma história, a alguma coisa cotidiana [...] por mais fantasioso que ele seja. A gente inventa, a mente é um negócio maravilhoso! Com a fantasia, a gente acaba trazendo conhecimentos até mesmo do imaginário para nossa realidade. Na fantasia, tem os monstros e na vida real existem monstros também. Nas histórias, a gente vê como superar eles e no dia a dia é possível também vencê-los. Não quero dizer que todo final sempre é feliz, mas que finais alternativos são possíveis, finais diferentes, mudar os finais, escrever sua própria história. É possível.

Nas palavras de Lariza, percebemos que os acontecimentos da sua história de leitura não são simples ocorrências, mas componente narrativo próprio da sua existência. Ricoeur (1994), em Tempo e Narrativa, diz que o tempo se converte em tempo humano à medida que o organizamos como narrativa. Esta, por sua vez, tem significado para quem narra porque nela figuram os traços da experiência temporal. O caráter narrativo da interpretação dos acontecimentos só pode ser acessado quando compreendemos que um acontecimento não é apenas uma ocorrência, um fato corriqueiro, mas um componente narrativo, pois a nossa própria existência é indissociável dos modos através dos quais somos capazes de dar conta de nós mesmos.

O sentimento é um aspecto fundamental à memória e à elaboração narrativa de si - elementos que compõem a biograficidade, pois sem ele as lembranças podem assumir a imagem de mera repetição, quando, na verdade, precisam vir à luz como reaparição (BOSI, 1987). Rafaela fortalece esse argumento quando enuncia:

[...] alguém já disse que recordar parece um viver novamente, e reviver minhas memórias desde a infância até os dias atuais, atrelando tudo isso à literatura, fez nascer um sentimento bom em mim, brotar um desejo profundo de que todos pudessem passar por isso: ter recordações, lembrar de uma irmã lendo pra você dormir, chorar pela morte de um personagem.

Para ela, lembrar e sentir são experiências sincrônicas e produziram nela a esperança de que outros também pudessem experimentá-las. A jovem expõe a dimensão subjetiva da memória e coloca sua narrativa a serviço do lapidar sensível e afetuoso de si mesma.

Para João Neto, mais um dos leitores, “relembrar é viver”. O jovem da comunidade de Pataxó, ao recordar suas experiências literárias, disse que “foi como construir um verdadeiro memorial” por meio do qual “seguia as linhas” que o “levaram à construção do indivíduo” que era “ali”. Sua fala remete à fenomenologia da lembrança como imagem e ao estofo social da memória, que simbolizam mais que a justaposição entre quadros sociais e imagens evocadas. Ao narrar que enquanto lembrava cenas da sua vida parecia construir um memorial, ele destaca sua trajetória como substância da pessoa que era naquele momento. Seu realce está nos itinerários percorridos e inscritos nas tramas sociais, afinal “no interior da lembrança, no cerne da imagem evocada, trabalham noções gerais, veiculadas pela linguagem” que, pelo seu “caráter objetivo, transobjetivo”, fazem com que essas imagens resistam no tempo e se transformem em lembranças (BOSI, 1987, p. 22).

A escavação sobre as terras de si mesmo, da qual fala Benjamin (2012), não tem efeitos apenas no agora, mas levam o sujeito que narra a reorientar e projetar-se em devir, tal qual sugere Emanuel: “acredito que relembrar o que vivi me ajuda a refletir sobre minha formação como leitor hoje e no futuro”. O cuidado de si nas narrativas autobiográficas e na produção da memória é intrinsecamente terapêutico, pois se propõe a buscar no núcleo do lembrado a força para mover o sujeito na sua lida com a própria vida, fazendo das lembranças a energia que vivifica o espírito e as comunidades, como insinua o jovem leitor ao supor que “caso eu desanime ou pense em desistir, vou me lembrar e refletir bastante sobre os livros e as pessoas que estiveram ao meu lado durante o descobrimento de mim e da literatura”.

Feita de clarões e fragmentos, a memória é constituída de destaques que marcaram uma história, e sua arte vem de alhures. Na narrativa de Lara, “a experiência de pensar o passado foi maravilhosa e me emociono enquanto penso nisso porque o que estou narrando não são apenas lembranças, mas o que eu sou”. A autoconsciência opera no discurso dela revelando os efeitos do lembrar que iluminam seu próprio olhar sobre si. Sua ponderação em relação ao trabalho sobre a memória é importantíssima, pois revela que longe de estar apenas lembrando e informando fatos, ela está, a partir do que lembra, olhando e refazendo imagens sobre quem é, tornando-se biográfica, decantando a capacidade de integrar novas experiências àquelas que já teve.

A memória oral composta e performada na narrativa de si, nesse caso, não se compromete com a unilateralidade institucional da chamada “memória oficial” porque as contradições e os paradoxos são parte dela e uma de suas maiores riquezas. Ao dialogar com a reconstrução do vivido e a autorreflexão, Lara, como os demais jovens, elaborou uma narrativa que escapa aos objetivos de correntes ortodoxas da teoria da história e ilustra o que se conhece, hoje, como história das sensibilidades ou história das mentalidades. As atenções, nesse tipo de discurso, se voltam não para a verificação de fatos narrados, mas para as paixões, as pulsões e a emoção que impregnam os episódios partilhados pelo narrador. Esse tipo de abordagem da memória e do fato biográfico já é tradicional na literatura, em obras que convocam à superfície os rejeitos desprezados pela chamada história oficial.

Considerações finais

A relação que buscamos estabelecer com os jovens orientou-se pela compreensão do papel da educação literária como um processo político-pedagógico, incontornável à libertação dos indivíduos por meio da autoconsciência crítica, transformadora, e pela concepção de linguagem como produção social constitutiva das interações entre os sujeitos e na qual o dialogismo é a pedra de toque do sentido do discurso.

Os pontos de intersecção entre as duas perspectivas provocaram-nos a estabelecer modos de comunicação e associação não-violentos com os narradores, que priorizassem seu direito à palavra e à enunciação de si e garantissem condições mínimas de conforto, confiabilidade e empatia para que compartilhassem conosco suas histórias.

Os processos de escuta, mediação, transcrição e interpretação das narrativas revelaram que os discursos autobiográficos dos jovens leitores entrevistados não se limitam a “produtos” do ato de narrar, mas têm poder de efetivação sobre o narrado. Percebemos nos relatos dos leitores, quando se referiam à vida das suas famílias, dos seus colegas de escola, dos amigos ou mesmo de personagens dos livros lidos ou das histórias que escutaram em espaços de fabulação coletivos, as vinculações entre o que contavam sobre os outros e o que elaboravam discursivamente sobre si, de modo que seus itinerários de vida não podem ser enunciados à parte dos sujeitos reais ou simbólicos que se colaram à pele das suas próprias memórias.

O objeto dos seus discursos aponta para várias direções: os espaços sociais que ocupam, os grupos que integram, as relações que estabelecem com eles, o papel dos livros e das narrativas no cotidiano, a centralidade da escola nos processos de educação literária, a relação com a oralidade e os contadores de histórias de suas comunidades, etc. No entanto, são eles o centro a partir do qual relembram, refinam a memória, elaboram a sua enunciação, configuram suas narrativas e produzem saberes autorreflexivos. É em relação ao sujeito que narra que seu discurso autobiográfico vai se costurando à realidade social.

O caráter fragmentário, lacunar e elíptico de uma história de vida compõe um dos principais argumentos de nosso estudo. Não objetivávamos verificar procedências, linearidades ou homogeneidades no que foi narrado pelos jovens com quem conversamos. Buscar verdades que preexistissem à elaboração da narrativa incorreria em instrumentalizá-la acriticamente, esvaziando-a da sua força de a(m)paro e relegando-a a um lugar secundário no desenvolvimento da pesquisa e na nossa relação com os sujeitos colaboradores.

Estamos pensando com e através de narrativas sobre como os jovens respondem àquilo que os chega, que os atinge, que os constrói. Não há parcialidade nos indivíduos que os divide em, ora sociais, ora individuais, posto que somos totalmente sociais e totalmente individuais. Essa conclusão só é possível porque a condição de hibridez e movência que compõe nossas identidades permite que elas se choquem, se conversem, se dissipem, se diluam, se articulem e se unam dentro de cada cena social da qual participamos.

Tal entendimento acerca da produção de sociabilidades dos indivíduos fragiliza os olhares de suspeição lançados às fontes autobiográficas que acabam colando estigmas a essa abordagem: o “intimismo” dos sujeitos, o “apartamento” dos problemas sociais que a narrativa individual causaria, a “ilusão” sobre si mesmo, a pretensa “negação” aos códigos e modos de existir partilhados no seio de comunidades culturais e a “alienação” quanto às desigualdades econômicas e sociais.

Interessada nas configurações singulares e nas construções de forma e sentido que os narradores dão à sua experiência, a pesquisa (auto)biográfica em educação não se limita a coletar dados nem se propõe a dissecar as narrativas, submetê-las ao escrutínio histórico ou mesmo elegê-las como tomos lineares, absolutos e reais da vida. Na pesquisa que deu origem a este texto, negritamos aspectos que contribuíram não apenas para o êxito do trabalho, como também para nossa própria autoformação: a mudança na relação entre pesquisador e sujeitos da pesquisa, o tipo de informação coletada/produzida durante o estudo, os instrumentos de leitura e interpretação dos fatos biográficos e dos processos de biografização, o foco no particular, a ressignificação da entrevista narrativa como entrevista autobiográfica e o reconhecimento de outros tipos de saberes/conhecimentos.

Na fronteira entre o singular e o plural no campo da memória e da organização narrativa do fato biográfico, reiteramos que a vivência particular de uma experiência que é narrada dialoga com os acontecimentos vividos em coletividades das quais o sujeito se sente parte, o que torna a construção mnemônica e os saberes narrativos uma atividade condicionada também pelas formas de pertencimento sócio-histórico, racial, de gênero, regional e cultural de quem lembra e narra. Amálgama de histórias, cada pessoa guarda múltiplas faces da sua vida que ganham sentidos renovados quando refletidas e selecionadas a partir das malhas do passado para significarem o presente. O exercício crítico de forja da memória e configuração narrativa é uma ação afirmativa sobre si nas dobras do tempo; é trabalho psicossocial de poder, conflito, contradição, mas, sobretudo, de revolução mediada pela reflexividade biográfica e pelo autoconhecimento.

1Este artigo foi elaborado a partir da dissertação “Caleidoscópios da memória: os jovens e a literatura no sertão potiguar”, resultado de pesquisa realizada entre os anos de 2016 e 2018, em nível de mestrado, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação de Míria Gomes de Oliveira e coorientação de Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

2Associação Internacional das Histórias de Vida em Formação e da Pesquisa Biográfica em Educação.

3Na experiência desta pesquisa, foram entrevistados jovens que aceitaram falar da sua vida, pondo em movimento sentidos do corpo e do espírito próprios às relações humanas. Realizou-se uma entrevista com cada sujeito, além das conversas que antecederam e sucederam esse momento. As entrevistas ocorreram entre abril e junho de 2017 em locais e horários escolhidos pelos jovens leitores, estratégia que objetivava reconhecer as temporalidades inerentes à entrevista narrativa tomando como centro as opções e limites dos sujeitos nos planos espaçotemporais. Ratificamos que a entrevista autobiográfica e/ou narrativa leva em consideração que o ser humano sempre encontrou formas de contar histórias e de falar da sua vida, ou de outras, em virtude das suas capacidades de narrar. O primeiro pressuposto nesse tipo de entrevista é que as experiências humanas podem ser enunciadas narrativamente a partir de uma pergunta geradora que impulsiona os sujeitos a falarem das suas trajetórias com certa profundidade, mobilizando-os à evocação de lembranças das suas histórias de forma singular (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002). Esse trabalho de rememoração permitiu a pesquisa e a interpretação de processos interculturais inscritos nas experiências dos sujeitos narradores, como os de educação literária.

4Para Josso (2010), a experiência que forma implica uma articulação consciente que é elaborada entre atividade, sensibilidade, afetividade e ideação, processo que simboliza aprendizagens, atitudes, comportamentos, pensamentos, saberes-fazeres, que caracterizam uma subjetividade, mas não só; corporificam uma identidade. Daí emerge o conceito de momento-charneira, que se caracteriza como um momento decisivo na vida do sujeito, um divisor de águas entre certa realidade e seus desdobramentos.

5Usamos o nome e outros dados que identificam os jovens participantes da pesquisa com o consentimento deles, conforme expresso em termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) assinados pelos próprios indivíduos ou por seus responsáveis legais. Os jovens manifestaram o desejo de ver seus nomes reais sendo mencionados no texto sob o argumento de que gostariam de se reconhecer e serem reconhecidos nas suas narrativas.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. 33. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Rua de mão única. v. 2. São Paulo: Brasiliense, 2012. [ Links ]

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz; Editora da USP, 1987. [ Links ]

CARTA da ASIHVIF nossa carta. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto) Biográfica, Salvador, v. 01, n. 1, p. 177-179, jan/abr. 2016. Disponível em: file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio%20UFPR/Downloads/2674-Texto%20do%20artigo-7043-1-10-20160826.pdf. Acesso em: 15 out. 2020. [ Links ]

DELORY-MOMBERGER, Christine. A pesquisa biográfica ou a construção compartilhada de um saber do singular. Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, Salvador, v. 1, n. 1, p. 133-147, jan./abr. 2016. [ Links ]

FERRAROTTI, Franco. História e histórias de vida: o método biográfico nas Ciências Sociais. Natal: EDUFRN, 2014. [ Links ]

JOSSO, Marie-Christine. Experiências de vida e formação. 2. ed. São Paulo: Paulos; Natal: EDUFRN, 2010. [ Links ]

JOVCHELOVITCH, Sandra; BAUER, Martin W. Entrevista narrativa. In: BAUER, Martin. W.; GASKELL, George. (org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2002. p. 90-113. [ Links ]

LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. [ Links ]

MELO, André Magri Ribeiro de. Caleidoscópios da memória: os jovens e a literatura no sertão potiguar. 2018. 272 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018. [ Links ]

PASSEGGI, Maria da Conceição. A pesquisa (auto)biográfica em educação: princípios epistemológicos, eixos e direcionamentos da investigação científica. In: VASCONCELOS, Fátima; ATEM, Érica. (org.). ALTERidade: o outro como problema. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011. p. 13-39. [ Links ]

PASSEGGI, Maria da Conceição; SOUZA, Elizeu Clementino de; VICENTINI, Paula Perin. Entre a vida e a formação: pesquisa (auto)biográfica, docência e profissionalização. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 01, p. 369-386, 2011. [ Links ]

PASSEGI, Maria da Conceição. Mediação biográfica: figuras antropológicas do narrador e do formador. In: PASSEGGI, Maria da Conceição; BARBOSA, Tatyana Mabel Nobre Barbosa. Memórias, memoriais: pesquisa e formação docente. Natal: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. p. 43-59. [ Links ]

PERALVA, Angelina Teixeira. O jovem como modelo cultural. In: FÁVERO, Osmar et al. (org.). Juventude e Contemporaneidade. Brasília: UNESCO, MEC, ANPEd, 2007. p. 13-27. [ Links ]

PINEAU, Gaston. Prefácio. Narrativas autobioformativas. In: BRAGANÇA, Inês Ferreira de Souza; ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto; FERREIRA, Márcia Santos (org.). Perspectivas epistêmico-metodológicas da pesquisa (auto)biográfica. Curitiba: CRV, 2016. p. 11-16. [ Links ]

RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 1976. [ Links ]

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. [ Links ]

SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. [ Links ]

THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória. Questões sobre a relação entre a História Oral e as Memórias. Revista Projeto História, São Paulo, v. 15, p. 51-84, abr. 1997. [ Links ]

VELHO, Gilberto. Juventude, projetos e trajetórias na sociedade contemporânea. In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes; EUGÊNIO, Fernanda (org.). Culturas Jovens novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 192 a 201. [ Links ]

WALSH, Catherine (org.). Pedagogías Decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Ecuador: Ediciones Abya Yala, 2013. [ Links ]

Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 09 de Outubro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado