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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 11-Ene-2021

https://doi.org/10.1590/0104-4060.69346 

Artigos

Desenvolvimento da prática colaborativa com professoras dos anos iniciais em um estudo de aula

The Development of Elementary School Teachers’ Collaborative Practice in a Lesson Study

*Universidade Federal da Fronteira Sul. Erechim, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: adrianarichit@gmail.com.

**Universidade de Lisboa. Lisboa, Portugal. E-mail: jpponte@ie.ulisboa.pt. E-mail: mauriluis@gmail.com


RESUMO

O artigo aborda o processo de desenvolvimento da colaboração profissional em um estudo de aula que envolveu seis professoras de escolas públicas da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, pertencentes à 15ª Coordenadoria Regional de Educação (15ª CRE), no planejamento de uma aula, a aula de investigação, sobre o tópico curricular ‘metro’ como unidade de medida. A análise qualitativa e interpretativa baseou-se em gravações de áudio das sessões de planejamento da aula, notas de campo, dados constituídos mediante questionários e entrevistas realizadas com as professoras participantes. Os resultados mostram que a colaboração profissional promovida ao longo do estudo de aula foi favorecida pela dinâmica das diferentes etapas do processo e, especialmente, pela relação entre participantes e professores formadores. A colaboração emergiu no contexto de atividades tais como planejamento da aula de investigação, ampliou-se para o ensino em sala de aula, observação e reflexão sobre a aula de investigação, e foi valorizada face ao encorajamento entre as participantes na medida em que as professoras sentiram-se confiantes, encorajadas e acolhidas no grupo.

Palavras-chave: Colaboração profissional; Anos iniciais; Estudos de aula; Prática profissional

ABSTRACT

This paper addresses the process of development of professional collaboration in a lesson study that involved six elementary school teachers of Brazilian state public schools of schools at Rio Grande do Sul, concerning the ‘metro’ as length measure at grade 4. The participants worked collaboratively planning a lesson about this topic. The methodology is qualitative and interpretative, with data collected by audio records of the planning sessions for the pesson and field notes, conversations and interviews carried out with participating teachers. The results show that the professional collaboration that developed during the lesson study was facilitated by the dynamics of the different steps and, especially, by the relation among participants and teacher educators. Collaboration emerged from activities such as planning, and increased with classroom teaching, observation and reflection, especially given the encouragement and strengthening of the group insofar as teachers felt confident, encouraged and welcomed in the group.

Key words: Professional collaboration; Elementary school; Lesson study; Professional practice

Introdução

A colaboração profissional examinada no contexto dos estudos de aula constitui-se, atualmente, em tema crescentemente investigado em comunidades de pesquisadores de diferentes países (BURROUGHS; LUEBECK, 2010; QUARESMA; PONTE, 2019; RICHIT e PONTE, 2017). Os estudos de aula caracterizam-se como uma abordagem de desenvolvimento profissional de professores centrada na prática letiva, de caráter eminentemente colaborativo e reflexivo (PONTE et al., 2014). Em um estudo de aula, professores trabalham colaborativamente em torno de cinco ações centrais: definição de objetivos para uma aula (a aula de investigação), que trate de dificuldades de aprendizagem dos alunos em um tópico curricular específico, escolhido pela equipe de professores que participa do estudo de aula; planejamento da aula de investigação, em que os professores trabalham na elaboração de atividades diferenciadas para o tópico escolhido e no planejamento cuidadoso dos diferentes momentos da aula de investigação; lecionação da aula de investigação por um professor da equipe, enquanto os demais participantes realizam observações e produzem registros sobre as ações dos alunos na realização das tarefas propostas; reflexão, com análise e discussão sobre os aspectos registrados pelos professores observadores sobre as ações, dúvidas, conjecturas, estratégias e conclusões dos alunos em relação às tarefas propostas; e divulgação da experiência, em que os participantes são encorajados a socializar com outros grupos de professores a experiência e as aprendizagens realizadas. Esta abordagem ganhou destaque em países ocidentais na medida em que foi difundida nos Estados Unidos e os resultados passaram a ser divulgados em língua inglesa (STIGLER; HIEBERT, 1999).

Nessa perspectiva, consideramos relevante analisar e discutir a colaboração pesquisas profissional em estudos de aula, assumindo-a como uma dimensão do desenvolvimento profissional docente (RICHIT; PONTE, 2019), apontando situações e práticas mobilizadoras dessa dimensão, bem como visando compreender como os professores experimentam dinâmicas profissionais colaborativas e como se deram as implicações dessas vivências nas suas práticas. Nessa direção, nos interessamos em examinar o processo de promoção da colaboração profissional em um ciclo de estudo de aula com seis professoras dos anos iniciais de escolaridade, a partir do qual puderam experimentar uma atividade formativa distinta e promover uma prática de sala de aula diferente. Focamos nesse grupo devido ao interesse em compreendermos o processo de desenvolvimento profissional de professores que atuam neste nível de ensino, o dos anos iniciais, e, especialmente, pela ausência, em nível de Brasil, de pesquisas que examinam esse processo no âmbito dos estudos de aula. Sobre isso, destacamos que ao realizarmos uma busca na Scientific Eletronic Library Online (Scielo) e no Banco Digital de Teses e Dissertações (BDTD) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), mediante os descritores de busca “lesson study e formação de professores dos anos iniciais” e “estudos de aula e formação de professores dos anos iniciais”, nenhum trabalho foi retornado.

A colaboração profissional em estudos de aula

A colaboração, enquanto dimensão basilar da cultura profissional, constitui-se em tema crescentemente investigado na atualidade, por oportunizar o desenvolvimento profissional de professores na medida em que promove novas aprendizagens profissionais, mobilizando mudanças nas práticas de sala de aula (RICHIT; PONTE, 2019). Por cultura profissional nos referimos aos modos pelos quais os professores se relacionam e agem, traduzidos, especialmente, nas “práticas que utilizam, nas crenças que estão subjacentes a sua forma de entender o trabalho realizado e que realizam, assim como as rotinas que os motivam nas actuações com a escola, com outros professores e, naturalmente, com os alunos” (FIALHO; SARROEIRA, 2012, p. 4). As culturas profissionais refletem, por um lado, o processo de socialização do professor na profissão (DUBAR, 1997) e, por outro, o sentimento de pertença a esta profissão (DAY, 1999), a uma determinada escola e, assim, a uma cultura profissional particular. Portanto, o processo de desenvolvimento profissional do professor é fortemente influenciado pela cultura profissional predominante, seja na escola ou no grupo disciplinar ao qual pertence (MARCELO, 2009), pois as formas de cultura predominantes na escola, as regras, as crenças, os modos de atuar, são (ou não) assimilados pelo conjunto de professores, repercutindo no seu “ser professor” (FIALHO; SARROEIRA, 2012).

Examinando as culturas em contextos educativos, Hargreaves (1998) diferencia quatro formas de culturas profissionais por meio das quais o trabalho do professor é concretizado e legitimado, nomeadamente: individualismo, colegialidade artificial, balcanização e colaboração, sendo esta última o foco de nosso estudo. A colaboração, para Andy Hargreaves, caracteriza a interação, em seu sentido mais estrito, que se estabelece entre os professores, à medida que estão envolvidos em uma atividade comum, partilhando objetivos também comuns. Caracteriza, portanto, um processo que envolve um grupo de professores interagindo de forma colaborativa em torno de uma questão relacionada ao interesse de todos e que pressupõe engajamento voluntário, cooperação, confiança entre os membros e liderança compartilhada (RICHIT; PONTE, 2019).

Em um estudo aprofundado sobre as culturas colaborativas das escolas, Lima (2002, p. 07) esclarece que a colaboração profissional, embora não se constitua em novidade em cenários profissionais distintos, no contexto educacional tem sido fortemente defendida, por constituir-se em um modo viável e “ideal de se promover o desenvolvimento profissional de professores ao longo da carreira, a aprendizagem de excelência para os alunos e a transformação das escolas em autênticas comunidades de aprendizagem”.

Boavida e Ponte (2002, p. 04) acrescentam que a colaboração envolve uma “negociação cuidadosa, tomada conjunta de decisões, comunicação efectiva e aprendizagem mútua num empreendimento que se foca na promoção do diálogo profissional”. Nessa perspectiva, a colaboração pressupõe igualdade e ajuda mútua entre os participantes na concretização de um trabalho que promove o crescimento de todos, distinguindo-se da cooperação, onde o foco é a realização de um trabalho coletivo para alcançar um objetivo que, na maioria das vezes, está realacionado a um fim externo.

Relativamente à distinção entre cooperação e colaboração, Hord (1986) esclarece que nas relações cooperativas, as ações dos participantes podem ser mais ou menos agradáveis para o outro, mas não necessariamente beneficiam ao coletivo. Na colaboração, por outro lado, cada participante envolve-se com uma atividade de interesse comum e da qual todas as pessoas envolvidas se beneficiam (HORD, 1986). Wagner (1997). Acrescenta que a colaboração representa uma forma particular de cooperação que envolve a realização de um trabalho conjunto, em face ao qual todos os envolvidos aprofundam mutuamente seu conhecimento profissional. Por fim, Day (1999) destaca que enquanto na cooperação as relações de poder e os papeis dos participantes não são questionados, a colaboração envolve negociação cuidadosa, tomada conjunta de decisões, comunicação efetiva e aprendizagem mútua em um empreendimento que se sustenta na efetivação do diálogo profissional.

Borges (2007, p. 370-371), por seu lado, considera que uma “cultura de colaboração profissional é aquela em que tudo, o bom, o mau, a incerteza, a certeza, se partilham, são discutidos, em que se procura o apoio e a ajuda necessários para aprender”. Thurler (2001, p. 75) assinala que “a colaboração se fundamenta em ‘bons sentimentos’, mas isto não é suficiente nos momentos mais críticos da prática profissional”. Para além disso, Thurler (2001, p. 62) identifica o individualismo como um “modo paradoxal de ‘cooperação’ que confere à colaboração um caráter excepcional e marginal, o que condiciona a fraca abertura dos professores a projectos colectivos”. E Hargreaves (1998, p. 209) ressalta que a confiança que emerge da partilha e do apoio colegial entre professores “condiz a uma maior disponibilidade para fazer experiências e para correr riscos e, com estes, a um empenhamento dos docentes num aperfeiçoamento contínuo, enquanto parte integrante das suas obrigações profissionais”. Por fim, Teixeira (1995, p. 161) esclarece que o professor é, “sobretudo, um profissional da relação”, pois na organização educativa, o bem-estar profissional e o desenvolvimento de práticas inovadoras e mudança dependem, fundamentalmente, das relações profissionais que se estabelecem (ou não) entre os professores.

Para além desses aspectos, Bolzan (2002, p. 63) pontua que em um grupo colaborativo a “construção compartilhada de conhecimento favorece a autonomia dos participantes, possibilitando a eles irem além do que seria possível se estivessem trabalhando individualmente”. E mediante a autonomia desenvolvida no grupo, segundo Gama e Fiorentini (2009), o professor tem a oportunidade de realizar atividades profissionais de forma mais autônoma e ativa devido ao suporte e incentivo externo recebido. É nessa perspectiva, portanto, que o interesse por examinar a colaboração profissional docente no contexto dos estudos de aula tem se intensificado.

Dentre os estudos que se dedicam a examinar a colaboração profissional em estudos de aula, destacamos o trabalho de Robinson e Leiknin (2012), que analisaram duas aulas conduzidas por um professor de matemática participante em um ciclo de estudo de aula em uma escola de Israel. Como resultados, apontam que os estudos de aula oportunizaram aos professores desenvolver a noção de observação colaborativa, consciência colaborativa e a discussão/reflexão colaborativa, elementos estes concebidos como mecanismos de desenvolvimento profissional do professor.

Na mesma perspectiva, Wake, Swan e Foster (2016) examinam ciclos de estudos de aula desenvolvidos por equipes de professores de diferentes escolas inglesas, buscando evidenciar as aprendizagens profissionais promovidas mediante o desenvolvimento de processos de resolução de problemas, usando as lentes da teoria da atividade histórica e cultural. O estudo mostra que a elaboração de atividades para a aula de investigação, realizado de forma colaborativa, constitui-se em importante mecanismo de desenvolvimento profissional, pois oportuniza aos professores elaborar, discutir, avaliar e modificar tarefas.

Para além disso, Burroughs e Luebeck (2010) ressaltam que os estudos de aula permitem aos professores, em suas práticas profissionais, desenvolverem trabalho colaborativo, o qual caracteriza-se pela partilha de objetivos, pela discussão de ideias e pelo desenvolvimento conjunto de recursos de ensino. De forma complementar, Richit e Ponte (2019) destacam que a colaboração em estudos de aula tem oportunizado aos professores participantes realizar aprendizagens profissionais, ressignificar conhecimentos e práticas profissionais, experimentar novas formas de ensinar e, especialmente, experimentar dinâmicas distintas do usual isolamento que caracteriza a docência, tais como o planejamento em colaboração, a reflexão colaborativa sobre o ensino em sala de aula, a liderança compartilhada e, especialmente, a docência compartilhada.

Portanto, o processo desenvolvimento pessoal e profissional do professor é influenciado, sobretudo, “pela maneira como o professor entra e vive a profissão, pela maneira como se relaciona com o(s) coletivo(s), seja o grupo, escola ou comunidade, pelas características pessoais do sujeito, e, sobretudo, pela interrelação e interdependência entre elas” (PATRÍCIO, 2002, p. 260). Nessa perspectiva, os contextos colaborativos se constituem, efetivamente, em espaços de conhecimento e crescimento para o professor, uma vez que “o desenvolvimento professional deve ouvir e promover a voz dos professores, estabelecer oportunidades para que confrontem as suas concepções e crenças subjacentes as suas práticas” (FULLAN; HARGREAVES, 1992, p. 5).

Metodologia do estudo

Esta investigação qualitativa tem uma natureza interpretativa e analítica, apoiada em procedimentos tais como questionários, entrevistas, conversas, registros e notas de campo (DENZIN; LINCOLN, 2000), mediante a qual examinamos o processo de promoção da colaboração profissional com professoras dos anos iniciais do ensino fundamental participantes em um estudo de aula realizado no ano letivo de 2018. Envolveram-se na experiência seis professoras de escolas públicas da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, no Brasil, pertencentes à 15ª Coordenadoria Regional de Educação (15ª CRE), órgão da Secretaria da Educação do Estado do Rio Grande do Sul, nomeadamente: Carla, Erika, Janaína, Ivy, Rania e Yasmin (nomes fictícios). As professoras possuem experiência profissional compreendida entre 5 e 20 anos, sobretudo nos anos iniciais de escolaridade.

O estudo de aula foi realizado nos meses de agosto a novembro de 2018, sob a coordenação de uma equipe de pesquisadores do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Matemática e Tecnologias - GEPEM@T, da Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS. As atividades foram distribuídas em dez encontros de três horas cada, realizados quinzenalmente nas dependências da 15ª CRE. As professoras trabalharam ao longo desses encontros no planejamento de uma aula, a aula de investigação, a partir da qual buscavam promover a compreensão do conceito de “metro” com uma turma do 4º ano do ensino fundamental.

Após a finalização de cada um dos encontros de planejamento foi realizada uma minuciosa descrição das atividades e do trabalho realizado pela equipe de participantes. Além disso, foram analisadas as produções escritas das professoras, constituídas a partir das atividades do estudo de aula, especialmente as reflexões sobre cada um dos encontros (diários de bordo), assim como o plano da aula de investigação. Da mesma forma, as reflexões das professoras e a avaliação que fizeram sobre a experiência formativa na reflexão sobre a aula foram transcritas e integradas ao material empírico do estudo, que foi analisado, interpretado e discutido (ERICKSON, 1986), buscando-se explicitar o processo que viabilizou a promoção da colaboração profissional.

A dinamização do estudo de aula

O ciclo de estudo de aula foi dinamizado buscando-se, entre outras coisas, promover a colaboração entre as participantes. As atividades de cada sessão, previamente definidas e negociadas com o grupo no primeiro encontro do estudo de aula, foram conduzidas pelos formadores de modo a promover o diálogo, a partilha, a confiança e a reflexão. O quadro 1 explicita as atividades centrais dos encontros.

QUADRO 1 ENCONTROS E TEMÁTICAS CENTRAIS DE CADA ENCONTRO 

Enc. Data Temáticas centrais
1º. 30/08/2018 Apresentação do grupo e suas expectativas. Breve introdução aos estudos de aula. Apresentação, negociação e aprovação do programa e cronograma do estudo de aula.
2º. 13/09/2018 Apresentação minuciosa dos estudos de aula. Leitura e discussão do texto "O estudo de aula como processo de desenvolvimento profissional de professores". Definição do tópico da matemática a ser aprofundado no estudo de aula (decidiu-se pela unidade de medida metro).
3º. 27/09/2018 Definição de objetivos para a aula de investigação. Análise das abordagens adotadas em materiais didáticos sobre o tópico curricular "metro". Análise das orientações curriculares sobre esse tópico (Base Nacional Comum Curricular).
4º. 04/10/2018 Discussão do texto "Abordagem exploratória no ensino da matemática". Seleção e discussão de tarefas matemáticas sobre o tópico "metro".
5º. 18/10/2018 Definição do contexto para o desenvolvimento das tarefas matemáticas relacionadas ao tópico "metro": Gincana Soletrando. Elaboração da primeira tarefa.
6º. 25/10/2018 Análise da primeira tarefa e antecipação de possíveis dúvidas dos alunos. Elaboração da segunda tarefa.
7º. 08/11/2018 Discussão do texto "O raciocínio matemático dos alunos". Análise, discussão e reformulação da segunda tarefa.
8º. 22/11/2018 Testagem das tarefas da aula de investigação. Discussão sobre os aspectos interessantes e as fragilidades da tarefa apontados pela professora que as resolveu. Ajustes finais.
9º. 29/11/2018 Aula de investigação (dividida em duas aulas de duas horas cada)
10º. 06/12/2018 Sessão de reflexão. Avaliação da atividade formativa. Encerramento.

FONTE: Elaborado pelos autores a partir da estrutura do estudo de aula concretizado.

No primeiro encontro, posterior à apresentação das professoras e suas expectativas em relação à atividade que se iniciava, realizamos a apresentação da proposta de formação. Inicialmente, foi necessário negociar o cronograma dos encontros (datas e turnos) com as professoras participantes e a equipe gestora das suas escolas de origem. Além disso, foram negociadas algumas atividades previstas no processo, especialmente em relação às leituras e documentos a serem analisados, uma vez que as professoras manifestaram interesse sobre temas relacionados às dificuldades matemáticas dos alunos dos anos iniciais. Também manifestaram interesse em discutir com os formadores algumas diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento curricular em processo de implantação no sistema educativo brasileiro à época. Diante dessas demandas, incluímos atividades de leitura e discussão sobre esses temas em duas sessões de planejamento.

No segundo encontro expomos às professoras a abordagem dos estudos de aula, esclarecendo aspectos históricos e os eventos principais que levaram a sua disseminação em países do ocidente. Em seguida, apresentamos a dinâmica de desenvolvimento do estudo de aula, explicitando as principais etapas que o constituem. Neste momento, mediante a exibição de algumas imagens e de um vídeo sobre a aula de investigação (3ª etapa do estudo de aula), algumas professoras manifestaram um pouco de desconforto. Para atenuar o estranhamento, narramos uma experiência muito positiva que tivemos no ano anterior em um estudo de aula com professores de matemática do ensino médio, pertencentes à mesma rede de ensino e também vinculados à 15ª CRE. Esse relato, além de deixar o grupo mais confortável ao longo do processo, contribuiu para que já nesta segunda sessão do estudo de aula tivéssemos a manifestação de interesse de uma professora para lecionar a aula de investigação (desafio que foi voluntariamente assumido pela professora Janaína). Também nesse encontro, definimos o tópico curricular a ser abordado (metro como unidade de medida de comprimento) e os objetivos para a aula de investigação.

No terceiro encontro iniciamos a elaboração de tarefas matemáticas para a aula de investigação, que principiou com uma análise das abordagens predominantes em materiais didáticos (livros) sobre o tópico “metro”. Neste encontro, observamos que as professoras trabalhavam de forma individualizada nas atividades propostas. Sugerimos, como forma de promover a colaboração entre elas, que os resultados das buscas e análises fossem socializados e discutidos com as pares. Nos encontros seguintes (do 3º ao 8º encontro), destinados ao planejamento da aula de investigação, desenvolvemos as atividades buscando sempre fomentar a partilha, o diálogo, a negociação e a confiança no grupo.

Além disso, a elaboração das atividades e das tarefas para a aula de investigação solicitou uma observação cuidadosa do espaço da escola em que realizaríamos a aula, assim como dos alunos que participariam da atividade, o que acabou envolvendo também a equipe pedagógica da escola no planejamento dessa etapa do estudo de aula.

No nono encontro foi realizada a aula de investigação, a qual foi estruturada em duas aulas de duas horas cada, em dias consecutivos. A abordagem proposta para o tópico envolvia um estudo prévio sobre os instrumentos e procedimentos de medida de comprimento usados pelos familiares dos alunos, a ser socializado com os colegas da turma (aula 1), e; a realização das tarefas elaboradas colaborativamente pelos professores ao longo do estudo de aula, as quais tinham por tema central a realização de uma gincana na escola (aula 2), conforme quadro a seguir.

QUADRO 2 TAREFA PARA A AULA DE INVESTIGAÇÃO (AULA 2) 

TAREFA 1
1. Nossa escola, Escola Brasil (nome fictício), realizará uma atividade de integração: o "Soletrando". Para acomodar um aluno de cada uma das quatro equipes que responderão às questões em cada rodada, vamos dispor de um banco que mede 150 cm de comprimento, no qual os alunos serão acomodados sentados.
a) Qual o espaço, em cm, que cada aluno vai dispor nesse banco para sentar? Represente por meio de desenho e explique como você chegou a esta medida.
b) Supondo que cada aluno, sentado, utilize 30 cm do comprimento do banco. Quantos cm do banco serão ocupados pelos quatro alunos, quando todos estiverem sentados?
c) Vai sobrar ou faltar espaço no banco depois que os quatro alunos estiverem sentados? Justifique sua resposta.
d) É possível colocar mais do que quatro alunos sentados no banco? Justifique sua resposta.
e) A medida de comprimento do banco, que é 150 cm, é maior ou menor que um metro? Justifique sua resposta.
2. Supondo que num determinado momento da atividade dois alunos de cada equipe serão convidados para representar sua equipe, no "Soletrando", respondendo as questões.
a) Qual o total de alunos que representarão as quatro equipes em cada rodada?
b) Um banco de 150 cm será suficiente para acomodar sentados todos os alunos representantes das equipes? Justifique sua resposta.
c) Vai sobrar ou faltar espaço no banco para acomodar, sentados, os representantes das equipes em cada rodada? Explique seu raciocínio.
d) Como resolver essa situação? Represente e explique sua estratégia.

Fonte: Elaborado a partir da aula planejada pelas professoras.

Na realização da aula 1 participaram apenas os formadores, dinamizadores do estudo de aula, e a professora que lecionou a aula de investigação, nomeadamente a professora Janaína. Entretanto, os familiares dos alunos colaboraram com essa aula participando da pesquisa realizada pelos alunos, partilhando suas experiências e recursos de medição nas atividades cotidianas. Na aula 2, participaram as seis professoras envolvidas no estudo de aula e, também, a equipe pedagógica da escola, que colaborou realizando observações das ações dos alunos e auxiliando na atividade externa à sala de aula (caça ao tesouro). Ambas as aulas foram lecionadas por Janaína, entretanto, na segunda aula, quando os alunos retornaram da atividade “caça ao tesouro”, a professora recorreu a um dos formadores para assumir a aula, por sentir-se desafiada naquele momento devido à presença de mais pessoas na sala de aula. Alguns minutos depois, Janaína retomou a aula e a conduziu até o encerramento de todas as atividades. Sobre isto ressaltamos que, à altura, Janaína enfrentava um conflito profissional na escola, que lhe deixou fragilizada ao longo do estudo de aula e causou um certo desconforto no decorrer da 2ª aula de investigação ao defrontar-se com membros da equipe gestora da escola assistindo-a.

Na décima sessão realizamos a reflexão sobre a aula de investigação analisando e discutindo os aspectos observados sobre as ações dos alunos na resolução das tarefas e, também, sobre a aula e seus encaminhamentos. Os aspectos predominantes nas reflexões dos professores relacionavam-se às aprendizagens dos alunos. Ao final, realizamos uma avaliação geral do estudo de aula, em face a qual importantes aspectos foram destacados pelas professoras, sobretudo em relação à experiência de colaboração profissional que vivenciaram no processo e as mudanças que marcaram o processo de idealizar o concretizar uma aula.

Promovendo a colaboração em um estudo de aula

A rotina profissional das participantes, marcada pelo isolamento e individualismo (segundo as próprias professoras), foi abalada quando o grupo foi desafiado a envolver-se no estudo de aula. Para além do estranhamento manifestado em relação à dinâmica de desenvolvimento do estudo de aula, as professoras surpreenderam-se com o fato de trabalharem de forma coletiva e dialogada no planejamento da aula de investigação, de participarem da concretização do ensino em sala de aula (auxiliando nas atividades iniciais e realizando observações sobre as ações dos alunos) e, especialmente, apoiando e encorajando umas às outras na superação dos desafios e conflitos profissionais vivenciados à época. Assim, a construção da colaboração profissional no âmbito desta experiência principiou na etapa do planejamento da aula, intensificou-se com a aula de investigação e respectiva reflexão, e culminou com a sua valorização devido ao encorajamento mútuo entre as pares.

O despontar da colaboração

O isolamento e individualismo predominantes na cultura profissional das professoras, especialmente em relação ao planejamento profissional e às práticas de sala de aula, foi manifestado em diversas intervenções no decorrer do estudo de aula. A professora Erika evidencia as possibilidades do trabalho colaborativo para o planejamento profissional indicando que isto não faz parte da sua rotina:

Ao concluirmos nossos encontros, fiquei muito contente com o que pude aprender no planejamento das aulas. Acho que deveríamos nos encontrar mais vezes. Sinto falta desse planejamento coletivo no dia a dia. No início eu estava um pouco confusa com o real objetivo do Estudo de Aula, mas no decorrer dos encontros pude compreender a importância do planejamento das aulas e, principalmente, as observações e a avaliação da aplicação da aula (Erika, novembro de 2018, diário de bordo do professor).

Nessa direção, Ivy contrapõe a colaboração ao individualismo predominante na profissão docente, especialmente nas redes de ensino da região, ressaltando a importância do coletivo para a qualidade do planejamento profissional:

[No dia a dia] a gente está sozinha, a gente é sozinha, a gente pensa sozinha, a gente analisa sozinha, e a gente acha algum caminho. Agora o que a gente fez aqui no grupo [no estudo de aula] é pensar junto e refletir sobre aquilo em conjunto, são várias cabeças pensando junto, são várias pessoas analisando a mesma questão, pensando a mesma aula. E esse foi o diferencial. As coisas podem acontecer tal e qual, mas é diferente você planejar, você pensar, você aplicar, você analisar. É diferente você ter um grupo. E agora o nosso grupo vai ser diferenciado por isso lá na escola (Ivy, novembro de 2018, gravação de áudio).

Ivy reafirma o individualismo predominante na escola, sobretudo no planejamento profissional, e conclui que a experiência no estudo de aula as oportunizou constituir um grupo diferente na escola em que trabalham.

Portanto, os depoimentos das professoras revelam o predomínio de práticas fortemente individualizadas na profissão docente. Esse aspecto foi evidenciado logo nas primeiras sessões do estudo de aula, à medida que as professoras mostravam-se inclinadas a realizar as atividades de forma individual. Sobre isso, ressaltamos que ao perceber que o grupo não estava habituado a trabalhar de forma colaborativa, os formadores ocuparam-se em promover dinâmicas promovedoras da interação, diálogo e trabalho coletivo:

O grupo mostrou-se disperso e confuso em relação ao trabalho que deveria realizar. Havia uma certa dificuldade em trabalhar coletivamente. Orientamos, então, as professoras a buscar materiais e atividades relacionadas ao tópico abordado, para discutir com as pares. O resultado dessa busca foi socializado e discutido no grupo, de modo que cada [professora] realizasse considerações sobre o que era apresentado. [...]. Além disso, estimulamos o grupo a planejar as atividades matemáticas, formulando e reformulando-as, nos encontros presenciais (Notas de campo, agosto de 2018).

O estudo coletivo foi bem avaliado pelas professoras, conforme destaca Ranya, para a qual o planejamento em grupo, centrado em sessões de estudo, é uma necessidade que já tem sido informada aos órgãos gestores da educação, pois a mudança no ensino é um processo que se faz na escola, pelos professores:

Eu já sugeri isso várias vezes para a Secretaria da Educação. Eu disse para eles: “vocês não precisam trazer aqui palestrantes para nos dizer que temos de fazer. Organizem grupos de estudo nas escolas. O processo se faz. Não precisa vir pronto. [...]. Nós precisamos de tempo para nos encontrar, estudar e planejar: planejamento coletivo. Se nós fossemos agora. Nós vamos voltar para a escola e nós não podemos nos encontrar. Quando sentar? Como sentar para planejar [se a gente]? Para isto dar certo, precisamos ter tempo para isso (Ranya, novembro de 2018, gravação de áudio).

Outro importante aspecto foi destacado nas sessões de planejamento da aula de investigação; Pelo fato dos encontros realizarem-se quinzenalmente, a sistematização das tarefas matemáticas para a aula de investigação, que constituiriam o plano de aula, ficava restrita aos momentos presenciais. Por vezes, o tempo era escasso para retomar aquilo que havia sido discutido e decidido no encontro anterior e realizar a sistematização. Visando auxiliar as professoras, orientamos o grupo a usar recursos de edição compartilhada de documentos, nomeadamente o Google Drive, ensinando-as a utilizá-lo e fomentando a edição e revisão das atividades, contidas no arquivo, no intervalo entre as sessões presenciais.

Inicialmente as professoras tiveram dificuldade em utilizar os recursos de comunicação, assim como recursos de armazenamento e edição de arquivos usados no Curso (Moodle). Entretanto, na etapa de planejamento da aula de investigação, o grupo passou a usar o recurso Google Drive, por meio do qual [as professoras] desenvolveram uma perspectiva diferente de colaboração à medida que passaram a trabalhar de forma partilhada nas atividades para a aula de investigação, que eram disponibilizadas nesse recurso. Segundo as professoras, essa experiência foi ótima, pois puderam realizar as atividades do estudo de aula de forma compartilhada mesmo cada uma estando em um lugar diferente. Uma professora afirmou: “Este recurso ajudou muito, pois todas podiam trabalhar no plano de aula e acompanhar aquilo que cada uma escrevia” (Setembro de 2018, notas de campo).

Este encaminhamento oportunizou ampliar as vivências de colaboração durante a elaboração do plano de aula, concretizando, portanto, a escrita colaborativa, que é uma atividade difícil e complexa, especialmente para os professores imersos em culturas profissionais assentadas no individualismo. No contexto da experiência promovida com as professoras, o planejamento profissional foi marcado pelo diálogo, partilha, estudo coletivo e edição compartilhada do plano de aula, contexto este permeado pelo respeito às ideias das participantes em relação às atividades que estavam sendo elaboradas, assim como suas angústias profissionais.

[Em várias sessões nos dedicamos ao] planejamento para a realização da aula de investigação, sentamos e dialogamos. Inicialmente, a professora regente da turma nos deu algumas descrições da turma e da escola, tais como: número de alunos, espaço disponível para a realização da aula de investigação. Discutimos algumas ideias de atividades (Yasmin, outubro de 2018, diário de bordo).

Em síntese, o planejamento profissional, viabilizado pela dinâmica do estudo de aula, constituiu-se em contexto para o despontar da colaboração, oportunizando às professoras aprender com as colegas, assim como pensar e planejar uma aula (a aula de investigação), que foi analisada e discutida pelo grupo e melhorada a cada sessão. Permitiu-lhes realizar atividades profissionais, tais como a socialização de informações sobre os alunos e suas características dos contextos sociais e familiares e, especialmente, a escrita colaborativa de modo muito diferente do individualismo a que estavam habituadas. Tal processo foi condicionado, sobretudo, pelo modo como os formadores conduziram o estudo de aula e como trabalharam no sentido de superar as hierarquias entre formadores e participantes, assim como na promoção de um contexto de confiança e apoio que lhes permitiu enfrentar desafios profissionais.

A expansão da colaboração

A dinâmica do estudo de aula permitiu estender as vivências colaborativas para o ensino em sala de aula, nomeadamente na realização da aula de investigação. Para as professoras, o fato de estarem envolvidas na concretização do ensino em sala de aula, viabilizado pela aula de investigação, foi um diferencial no estudo de aula. Ressaltam que o grupo colaborou não apenas na etapa de pensar e planejar a aula mas, principalmente, na sua realização, de modo que todos assumiram importantes funções em diferentes momentos desse processo:

Diferentemente dos Estudos de Aula já aplicados anteriormente, este se desenvolveu em dois dias, cujas atividades foram iniciadas com a participação de pessoas da comunidade escolar, com a realização de uma entrevista objetivando resgatar as formas de medidas que eram utilizadas no passado (Janaína, outubro de 2018, diário de bordo).

Para a viabilização da aula de investigação, todas as professoras se envolveram de forma intensa e prolongada. Primeiramente, a equipe realizou uma análise sobre os alunos e os contextos familiares, com vista a planejar a atividade inicial da aula de investigação, que consistiu em um levantamento sobre as estratégias e instrumentos de medida usados pelos familiares dos alunos. Em seguida, foi realizado um levantamento criterioso sobre o espaço físico externo e interno da escola, para planejar uma atividade denominada ‘caça ao tesouro’, para a qual os alunos utilizariam unidades de medidas de comprimento para interpretar o mapa do tesouro e o encontrá-lo:

Uma coisa que me marcou foi que todas nós fomos para a sala de aula, e todos se envolveram em alguma coisa. Quando os alunos fizeram “o” caça ao tesouro, todos participaram, até os funcionários e a direção da escola. Depois, quando os alunos fizeram as atividades na sala, a gente estava muito envolvida. É como se todas estivessem dando a aula. (Ivy, novembro de 2018, gravação áudio).

A realização da caça ao tesouro, na aula de investigação, também colocou todos os professores observadores e a equipe pedagógica da escola a auxiliar os alunos. A equipe pedagógica da escola participou, também, da aula de investigação, realizando observações das ações dos alunos e sobre a própria dinâmica da aula. Além disso, outro aspecto que contribuiu para a extensão da colaboração diz respeito à oportunidade dessas profissionais aprenderem a partir da observação das colegas:

Como a gente aprende ouvindo, como a gente aprende com as pares, olhando a colega dar a aula. E tem que vir alguém dos Estados Unidos, ou outro país, para nos mostrar a importância disso que a gente já sabe, mas que deixa de fazer. Só fato de a gente se ouvir, de reportar [o que fizemos] já é uma grande aprendizagem (Ranya, novembro de 2018, gravação áudio).

Por fim, a colaboração concretizou-se também no desenvolvimento da aula de investigação, na medida em que Janaína buscou apoio junto aos formadores quando sentiu-se desafiada no papel que havia assumido:

Eu estava segura não é porque que eu tenho toda essa segurança, mas é porque vocês me passaram essa tranquilidade. E eu sabia que quando não me saísse as palavras eu podia dizer, profe me ajuda aí, como aconteceu, quando eu comecei a falar da história das unidades de medida e disse: “Profe, você quer assumir agora?” E você foi lá e assumiu. Porque às vezes faltam as palavras e é bom ter alguém ali, um suporte, uma segurança, alguém que podemos contar. E eu sabia que vocês não estavam lá para avaliar, porque vocês deixaram claro que o objetivo da aula da investigação não seria avaliar o aluno, e nem avaliar o professor, que seria um estudo sobre aquilo que os alunos iriam fazer. E a gente aprende com isso (Janaína, novembro de 2018, gravação áudio).

A colaboração, portanto, transcendeu os limites físicos e temporais da escola a partir da aula de investigação, porque além das seis professoras, a equipe pedagógica auxiliou em diferentes momentos, assim como os familiares dos alunos (da turma em que a aula foi lecionada) participaram de forma direta, respondendo a entrevista que versava sobre os procedimentos e instrumentos de medida usados cotidianamente. Da mesma forma, envolveram-se os formadores, que foram chamados pela professora que lecionava a aula de investigação a conduzir a aula. Esta confiança entre formadores e participantes, favorecida pelo modo como os formadores conduziram o processo, foi fundamental para a concretização da colaboração em um nível mais profundo. Nesse sentido, a colaboração estendeu-se para o ensino de sala de aula, transpondo hierarquias e papeis assumidos pelos diferentes profissionais envolvidos no processo educativo na referida escola e no âmbito do estudo de aula. Portanto, a aula de investigação constituiu-se em contexto para que a colaboração profissional fosse ampliada para o ensino em sala de aula, evidenciando as possibilidades de crescimento profissional a partir da superação do isolamento relativo ao trabalho cotidiano com os alunos e da autonomia desenvolvida na concretização de outras atividades profissionais.

Valorização da colaboração

O processo de promoção da colaboração, entretanto, foi valorizado à medida que perpassou as relações pessoais e profissionais. As professoras destacam que o fato dos formadores trabalharem numa relação de igualdade com as participantes, ouvindo as suas angústias e demandas profissionais e, especialmente, apoiando-as e encorajando-as a enfrentar os desafios cotidianos da profissão, levou-as a valorizar a colaboração como contexto para o enfretamento de desafios profissionais. Essa postura dos formadores estabeleceu um nível elevado de confiança no grupo, de modo que passaram a apoiar-se e encorajar-se mutuamente. Ao ampliarem as vivências colaborativas para a dimensão das relações pessoais, o grupo contribuiu para que Janaína, que enfrentava uma situação profissional estressante na época em que realizamos o estudo de aula, não desistisse de participar e que, ao mesmo tempo, assumisse a aula de investigação com grande compromisso e realizasse um brilhante trabalho. Sobre isso, a professora ressaltou que desde o início esteve muito confortável com a lecionação da aula de investigação, etapa esta frequentemente considerada como sendo o principal desafio em um estudo de aula:

Vocês como grupo me passaram essa confiança, essa tranquilidade. Por que no início eu estava muito insegura. Por que vocês já sabem que eu já fui avaliada, já fui criticada pelos meus colegas [referindo-se à crítica recebida de uma gestora da escola]. E aí vocês apareceram, e fizeram essa proposta, eu fiquei com medo. Mas aí vocês explicaram, o que a gente vai fazer lá é um estudo de aula, vai ser legal. Essa segurança que vocês passam para a gente, deixa a gente mais tranquila. Eu me senti em casa, me senti como se não tivesse ninguém na sala de aula. Eu me senti muito tranquila nesse sentido. No começo foi assustador, mas eu fiquei tranquila (Janaína, novembro de 2018, gravação de áudio).

Janaína ressalta, sobretudo, a confiança propiciada pelo grupo, especialmente pelos formadores, que se colocaram como parceiros ao longo de todo o processo, inclusive na realização da aula de investigação, e que isso foi fundamental para que superasse esse desafio e os conflitos vivenciados:

Eu estava segura não é porque que eu tenho toda essa segurança, mas é porque vocês me passaram essa tranquilidade. [...]. Vocês me deixaram segura e tranquila naquele momento. Então, que bom que vocês conduzem o processo dessa forma (Janaína, novembro de 2018, gravação de áudio).

Erika confirma a importância da confiança destacando que, além de superar o desafio de lecionar diante do grupo, Janaína realizou um excelente trabalho com os alunos:

Você viu como o universo conspira a favor das coisas boas. Você estava em um momento frágil. E aí surgiu esse desafio e você foi lá e fez todo aquele trabalho com os alunos (Erika, novembro de 2018, gravação de áudio).

Por fim, Janaína avalia que a experiência foi especial, sobretudo pelo mesmo aspecto apontado pela colega, e que é grata ao grupo por ter-lhe oportunizado este crescimento pessoal e, sobretudo, o enfrentamento de uma situação profissional que lhe causou desconforto e insegurança:

E mesmo que eu não tivesse aprendido nada nessa formação, que não tivesse acrescentado nada na minha carreira profissional, só o fato de a gente estar ali conversando hoje, estar ouvindo as colegas, e vocês colocando a visão de vocês, que é outra realidade, que é de fora, de uma outra experiência, já acrescenta muito, já vale a pena. Eu só tenho a agradecer a vocês, ao grupo por isso (Janaína, novembro de 2018, gravação de áudio).

Portanto, a dinâmica do estudo de aula oportunizou às professoras superarem o individualismo e o isolamento profissional, na medida em que o processo foi orientado para a promoção da colaboração profissional. Nas diversas etapas do estudo de aula, especialmente nas etapas de planejamento e realização da aula de investigação, foram estabelecidas relações profissionais e promovidas atividades que estimularam a colaboração. Esse processo principiou no contexto do planejamento profissional, perpassou o ensino de sala de aula e se consolidou na dimensão pessoal, favorecido pela forma como os formadores conduziram o processo, assim como pela estrutura e dinâmica do estudo de aula, que tem na colaboração um dos principais dispositivos de desenvolvimento profissional de professores.

Discussão e conclusões

A promoção da colaboração profissional despontou no contexto das sessões de planejamento profissional referente à aula de investigação, em que as professoras vivenciaram uma abordagem de formação voltada ao desenvolvimento profissional (DUBAR, 1997), centrada no ensino da matemática em sala de aula e com foco nas dificuldades dos alunos em um tópico curricular específico, nomeadamente ‘metro’. Esse processo se diferenciou por envolvê-las na discussão de ideias e no desenvolvimento conjunto de recursos de ensino (BURROUGHS; LUEBECK, 2010), bem como por concretizar o trabalho coletivo e dialogado em torno da aula de investigação, das características dos alunos, da estrutura familiar e do contexto da escola. As professoras puderam vivenciar o planejamento colaborativo, que favoreceu o crescimento do grupo à medida que estreitaram as relações entre elas (BORGES, 2007; TEIXEIRA, 1995), com a equipe gestora da escola e, especialmente, com os formadores, oportunizando-as enfrentar situações profissionais externas ao estudo de aula. Um aspecto bastante destacado pelas professoras foi a discussão coletiva em torno das atividades (tarefas matemáticas) da aula de investigação, o estudo colaborativo e a escrita colaborativa, que viabilizaram a elaboração do plano de aula. Esta vivência foi propiciada pelo modo como os formadores orientaram as etapas e atividades do estudo de aula e se fortaleceu, especialmente, na medida em que as professoras se envolveram verdadeiramente no processo.

A concretização da colaboração estendeu-se para o ensino em sala de aula mediante o envolvimento, em diferentes medidas, de todos com a lecionação da aula de investigação, concretizando a liderança e a docência compartilhada (RICHIT; PONTE, 2019). Na aula de investigação, que foi organizada em dois momentos (dias consecutivos), participaram os familiares dos alunos, todos os professores envolvidos no estudo de aula, assim como a equipe pedagógica da escola, concretizando a colaboração em diferentes tempos, espaços e segmentos da comunidade escolar. Além disso, o modo como o processo foi conduzido estabeleceu um nível elevado de confiança mediante a partilha e apoio colegial, que se traduziu em disponibilidade das participantes para correr riscos e experimentar uma nova prática (HARGREAVES, 1998), marcando a todos de uma forma muito positiva, especialmente a professora Janaína, que se entregou pessoal e profissionalmente neste desafio.

Por fim, as vivências de encorajamento e fortalecimento pessoal constituíram-se em contexto para a valorização da colaboração, oportunizando as professoras compartiharem certezas, incertezas, angústias e objetivos, de poderem discutir diferentes temas relacionados ao ensino e de sentirem-se acolhidas naquele grupo (BORGES, 2007). O incentivo e a confiança, manifestados pelas colegas e pelos formadores, as fortaleceram (HARGREAVES, 1998), assim como encorajaram Janaína a assumir a aula de investigação em um momento crítico da profissão (THURLER, 2001). Assim, a confiança que se desenvolveu mediante o respeito e o cuidado com as necessidades, interesses e angústias dos envolvidos no processo, atravessou os níveis pessoal e profissional (HARGREAVES, 1998), favorecendo o crescimento pessoal das participantes e lhes oportunizando maior autonomia na realização de atividades profissionais cotidianas (GAMA; FIORENTINI, 2009). A promoção da colaboração foi viabilizada pela equipe dinamizadora do estudo de aula, que conduziu o processo priorizando o respeito, diálogo, a confiança e o incentivo. Na verdade, a promoção da colaboração em um estudo de aula requer cuidado, atenção e intervenção adequada da equipe dinamizadora, de modo que o grupo sinta-se acolhido, respeitado e valorizado no coletivo, e encorajado a correr riscos e enfrentar conflitos e desafios.

Portanto, a concretização da colaboração profissional com essas professoras as levou a envolverem-se com uma atividade relacionada ao cotidiano da profissão docente (o ensino) de interesse comum, e da qual todas as participantes se beneficiaram (HORD, 1986), pois puderam refletir sobre o ensino de matemática em sala de aula e realizar o planejamento profissional em grupo, de forma dialogada, negociada e partilhada. E este nível de colaboração oportunizou a todos os envolvidos o aprofundamento mútuo do conhecimento profissional (WAGNER, 1997), promovendo o seu desenvolvimento profissional.

Mediante as possibilidades de favorecer aprendizagens profissionais, de promover vivências distintas em termos das habituais culturas docentes e de efetivar mudanças na prática, o estudo de aula constitui-se numa possibilidade concreta de promover mudanças educacionais em distintos níveis de ensino, pois consiste em uma abordagem que prioriza a aprendizagem dos alunos por meio do desenvolvimento dos professores. Assim, inspirados na pioneira experiência japonesa, em que os estudos de aula fazem parte das rotinas das instituições educacionais em todas as redes e níveis de ensino, cujo impacto na aprendizagem dos alunos tem sido evidenciado pelos mecanismos de avaliação institucionais e de larga escala nacionais e internacionais, consideramos que é possível e pertinente implementar estudos de aula no Brasil em escalas maiores do que as experiências pontuais que têm sido concretizadas em várias regiões.

Entretanto, os desafios que se colocam a essa iniciativa são muitos, a começar pela necessidade de se considerar a especificidade da cultura do nosso país, que se difere em muito da realidade do Japão, contexto em que o estudo de aula surgiu e, que, portanto, é um processo que se naturalizou. Outro aspecto a ser observado são as condições de trabalho dos professores, uma vez que a estrutura e a dinâmica do sistema de ensino brasileiro impõem aos docentes muitos obstáculos ao envolvimento em atividades formativas desta natureza, que pressupõem envolvimento intenso e prolongado. Ou seja, devido à carga horária excessiva de trabalho diário, às demandas que advém do ensino em classes constituídas de perfis discentes variados e às exigências dos gestores dos sistemas de ensino, o trabalho diário do professor se alarga para muito além do tempo da sala de aula, impedindo-o de participar de atividades colegiadas em que tenha a possibilidade de estudar, planejar, trabalhar e desafiar-se em um contexto de colaboração.

Agradecimentos

Agradecemos às seis professoras que participaram do estudo de aula, bem como à equipe gestora da 15ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil, por meio da qual a realização do estudo de aula tornou-se possível.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 26 de Dezembro de 2019; Aceito: 24 de Julho de 2020

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Busca realizada em 14 de setembro de 2019.

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