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versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 11-Feb-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.70085 

Dossiê

Arranjos institucionais para a gestão da educação em territórios da Bahia: tensões entre o público e o privado

Maura da Silva Miranda* 
http://orcid.org/0000-0001-6228-4940

Maria Couto Cunha* 
http://orcid.org/0000-0002-2081-7232

Rodrigo da Silva Pereira* 
http://orcid.org/0000-0003-0371-3789

*Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: mauravalente@yahoo.com.br. E-mail: mariacoutocunha@gmail.com. E-mail: rodrigosilvapereira@ufba.br.


RESUMO

O artigo apresenta os primeiros resultados de pesquisa que investiga uma nova forma de gestão dos sistemas educacionais a partir da promoção de arranjos institucionais de gestão territorial da educação por meio dos Consórcios Públicos (CP) e Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADE) em parceria público-privada, frente às lacunas conceituais e operacionais do regime de colaboração e das formas de cooperação do federalismo brasileiro e diante do silenciamento do governo federal sobre a instituição do Sistema Nacional de Educação. A partir da análise de documentos e entrevistas semiestruturadas com sujeitos envolvidos no processo, o estudo busca investigar sob que ordenamentos jurídicos, concepções e interesses políticos tais arranjos se fundamentam, como eles vêm sendo disseminados no país, demonstrando as iniciativas em curso no estado da Bahia com os Consórcios Públicos sob a iniciativa governamental. Os resultados preliminares sinalizam o crescimento de parcerias público-privadas no âmbito dos preceitos da Nova Gestão Pública que sustentam a conformação dos arranjos, por meio de redes de governança corporativa da política educacional que apresentam resistência a pautas progressistas, com interesses na ruptura dos processos democráticos vislumbrando, na gestão da educação, por intermédio dos ADEs, uma estratégia de mercado para consolidação do alcance dos seus interesses lucrativos.

Palavras-chave: Consórcios Públicos; Arranjos de Desenvolvimento da Educação; Gestão territorial; Gestão compartilhada da educação

ABSTRACT

The article presents the first results of a research that investigates a new way of managing educational systems through the promotion of institutional arrangements for territorial management of education through Public Consortia (CP) and Education Development Arrangements (ADE) in public-private partnership. This is to be seen the background of conceptual and operational gaps of the collaboration regime and the forms of cooperation of Brazilian federalism and the silence of the federal government over the institution of the National Education System. From the analysis of documents and semi-structured interviews with subjects involved in the process, the study seeks to investigate under which legal systems, conceptions and political interests such arrangements are based, as they have been disseminated in the country, demonstrating the ongoing initiatives in the state of Bahia with the Public Consortia under the governmental initiative. The preliminary results indicate the growth of public-private partnerships within the scope of the New Public Management principles that support the conformation of the arrangements, through corporate governance networks of educational policy that are resistant to progressive guidelines, with interests in the rupture of democratic processes in the management of education, through the ADEs, a market strategy to consolidate the reach of their profitable goals.

Keywords: Public Consortium; Education Development Arrangements; Territorial management; Education shared management

Introdução

O presente estudo tem como propósito discutir os fundamentos teóricos e políticos em que dão base à institucionalização de arranjos de gestão de políticas públicas no espaço territorial, disseminados no Brasil e implementados na Bahia, tendo como foco o debate da gestão das políticas educacionais.

Nos últimos anos, o território vem sendo percebido como uma possibilidade potencial para a institucionalização de arranjos de gestão compartilhada de políticas públicas, como possibilidade de promover a articulação e participação social na prestação dos serviços à população, orientados pelo princípio da colaboração recíproca entre entes federados para alcançar o direito às políticas sociais e sua finalidades públicas.

Porém, paradoxalmente, grupos hegemônicos, vinculados a grandes empresas, vêm empregando esse mesmo discurso de gestão descentralizada para disseminar projetos de corte neoliberal, na arena pública estatal, esfumaçando as fronteiras entre o público e o privado, por meio de redes de governança, em consonância com os preceitos da Nova Gestão Pública, entendida aqui como uma estratégia neoliberal do atual período particular de desenvolvimento do capitalismo e que tem, como objetivo, a apropriação de parcelas significativas do fundo público para atender seus interesses (PEREIRA, 2019).

O desafio que se coloca para estudos e discussões, neste trabalho, é a necessidade de compreensão de como e com que interesses o Estado brasileiro e o governo da Bahia vêm regulamentando a gestão da educação no espaço territorial por meio de formatos de administração indireta, através dos CPs e dos ADEs de parceria Público-Privada (PP), como estratégias de colaboração e cooperação no federalismo brasileiro.

Para isso, discute no primeiro momento os marcos legais para a gestão da educação no federalismo brasileiro. No segundo, discute as bases conceituais e políticas que fundamentam o território como espaço de políticas públicas, entre elas a política de arranjos educacionais. Em seguida busca distinguir os dois formatos de arranjos regulamentados no país, sendo um público, por meio dos Consórcios Públicos (CP), e outro privado, por meio do Arranjo de Desenvolvimento de Educação (ADE). Ao discorrer sobre os CPs analisa como esse arranjo vem se desenvolvendo no cenário político-administrativo do estado da Bahia.

O interesse da investigação é perceber as diferenças e as confluências que existem entre os dois modelos: um de base democratizante, que defende o território enquanto espaço de inclusão social e outro de base neoliberal, em que o discurso político do direito e da democratização da gestão acomoda interesses de agentes políticos e do empresariado, que vislumbram, na descentralização da gestão da educação territorial, um negócio rentável.

A gestão da educação municipal no federalismo brasileiro

Um dos discursos presentes no Brasil nas últimas décadas em matéria educacional é o de que as limitações técnico-financeiras que muitos municípios apresentam para assegurar o direito à educação pública de qualidade são decorrentes de um federalismo complexo, ainda com lacunas em sua regulamentação, devido à ausência de um Sistema Nacional de Educação que materialize o Pacto Federativo, estabelecido na Constituição de 1988, que deveria fixar normas para: a) a regulamentação das formas de cooperação federativas para o efetivo cumprimento das funções redistributiva e supletiva da União no combate às desigualdades educacionais regionais; b) a operacionalização do regime de colaboração entre os entes federados, de forma a promover a gestão compartilhada entre os sistemas de ensino e garantir o equilíbrio na repartição das responsabilidades concorrentes e prioritárias de cada ente federado, em matéria educacional.

Segundo Cury (2010), a regulamentação para a cooperação federativa no Brasil por meio da instituição de um Sistema Nacional de Educação (SNE) trata-se de matéria da mais alta importância e significado para o conjunto das ações públicas e, em especial, para a manutenção e desenvolvimento do ensino. A criação de um SNE tem sido defendida desde os Pioneiros da Educação na década de 30, e ganha força, sobretudo, a partir da Conferência Nacional de Educação - CONAE, 2010.

Como encaminhamento para atender as recomendações da CONAE 2010, foi criada em 2011 no Ministério da Educação (MEC), a Secretaria de Articulação dos Sistemas de Ensino (SASE), cuja principal finalidade foi o aprofundamento de estudos para a formulação de uma proposta de regulamentação do SNE, suficientemente colaborativo e cooperativo, capaz de garantir uma gestão sistêmica e o financiamento equitativo da política educacional. Essa tarefa exigiu da SASE esforços e diálogos constantes com as instituições representativas da educação nacional, como a União dos Dirigentes Nacionais de Educação (UNDIME), a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), o Conselho Nacional de Dirigentes Estaduais de Educação (CONSED), o Conselho Nacional de Educação (CNE), o Fórum Nacional de Educação (FNE), dentre outros. No bojo das discussões e estudos realizados, tanto a SASE quanto o CNE passaram a propor a instituição de arranjos educacionais nos espaços territoriais, por meio de novas relações interfederativas horizontais de associativismo municipal, por meio de dois principais modelos: os Consórcios Públicos e os Arranjos de Desenvolvimento da Educação, em parceria público-privada.

O Parecer CNE nº 09/2011, homologado pelo MEC, aprovou a regulamentação desses arranjos educacionais, propondo que eles poderiam contribuir diretamente para reduzir as descontinuidades das políticas públicas na área de educação, superar as dificuldades da ausência de equipes técnicas especializadas nos municípios, possibilitar a elaboração de planos e projetos de financiamento da educação e acelerar o desenvolvimento educacional. Os arranjos, públicos ou privados, são compreendidos como mais uma forma de colocar em prática o regime de colaboração e podem congregar a participação do Estado, da União, de instituições privadas, organizações não governamentais, que assumam “o objetivo comum de contribuir para o desenvolvimento da educação em determinado território, sem que haja para isso a necessidade de transferência de recursos públicos para tais instituições” (PARECER CNE/CEB Nº 09/2011).

No entanto, é questionável que os modelos de gestão educacional por meio de arranjos educacionais territoriais tenham sido aprovados no país, antes e independente da aprovação do Sistema Nacional de Educação. Somente com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), pela Lei 13.005/2014, é que a institucionalização do SNE, passou a ser agenda principal na pauta educacional, constando, no art. 13, como uma demanda institucional do poder público, e na Estratégia 9 da Meta 20 do Plano, a ser cumprida no prazo de dois anos, a partir da publicação dessa lei. O PNE prevê a regulamentação do SNE, via lei complementar, do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal de forma a estabelecer as normas para a cooperação federativa entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

Para contribuir com o alcance dessa meta do PNE, em 2014, foi apresentado à Câmara o PLP 413/14, de autoria do deputado Ságuas Moraes, do PT do Mato Grosso. O projeto estabelece a existência de uma Comissão Tripartite da União, estados e municípios, para a definição conjunta do valor-aluno mínimo anual, necessário para se garantir uma educação de qualidade nos municípios e nos estados. Em junho de 2015, o MEC, por meio da SASE, contando com a contribuição de Carlos Augusto Abicalil (OEI), Carlos Roberto Jamil Cury (PUC/MG), Luiz Fernandes Dourado (UFG e CNE) e Romualdo Luiz Portela Oliveira (USP) formaliza o documento Instituir um Sistema Nacional de Educação: agenda obrigatória para o país, orientando que a instituição do Sistema Nacional de Educação deve ocorrer a partir de um conjunto articulado de quatro dimensões: alterações na LDB, adequação dos sistemas de ensino às normas nacionais, regulamentação do art. 23 da Constituição Federal, com a Lei de Responsabilidade Educacional e adequação das regras de financiamento. E em 2016, o Fórum Nacional de Educação (FNE) sistematiza, no Documento Propositivo para o Debate Ampliado aprovado em 01/04/2016, propondo definições para o SNE, a partir de elementos oriundos das Conferências Nacionais de Educação - CONAEs 2010 e 2014.

Todavia, apesar dos esforços, findo o prazo estabelecido no PNE para instituir o SNE, que seria o ano de 2016, esse debate ainda continua sem decisão. Desde 2017, tramita na Câmara o PLP 448/17, formalizado pelo relator da Comissão de Educação, deputado Glauber Braga, do PSOL do Rio de Janeiro, que integrou ao projeto as contribuições das proposições anteriores. A proposta de regulamentação do SNE, a partir do referido projeto de lei, estabelece diretrizes para a cooperação federativa, prevendo que o valor investido para a garantia do padrão de qualidade educacional seja definido inicialmente pelo mecanismo CAQi - Custo Aluno-Qualidade Inicial -, e posteriormente modificado pelo CAQ - Custo Aluno-Qualidade. Essas bases de cálculos demonstram quanto o Brasil precisa investir por aluno ao ano, em cada etapa e modalidade da educação básica, e definem a suplementação da União para estados e municípios de menor arrecadação. Sabe-se que, dada as fortes desigualdades no país, muitos estados e municípios precisarão de suplementação para assegurar os investimentos necessários para o cumprimento das metas do PNE. Porém, devido às mudanças ocorridas no país recentemente, que culminou com um golpe jurídico-parlamentar em 2016, a intervenção autoritária no Conselho e no Fórum Nacionais de Educação e a consequente aprovação da Emenda Constitucional 95/2016 que congelou o aumento do gastos públicos nos próximos 20 anos, essa agenda foi retirada da pauta de urgências dos debates da educação nacional.

Depois de quase uma década de debates e proposições democráticas, o resultado pode ser assim resumido: assistimos, de um lado, uma grande mobilização nacional para institucionalização do SNE a partir das demandas das CONAEs dos anos de 2010 e 2014; e, de outro lado, o silenciamento da Câmara Federal no que se refere à institucionalização de um Sistema Nacional para definição do regime de colaboração vertical entre os entes federados para a definição das responsabilidades de cada um em matéria educacional (art. 211 da CF) e à regulamentação da cooperação federativa (art. 23 da CF) para a definição da política de financiamento.

Paralelo a esses movimentos, vimos a pressão de grupos empresariais, com o apoio da SASE, do CNE e aval do próprio MEC para a aprovação dos arranjos institucionais horizontais entre os entes subnacionais nos espaços territoriais. Nesse sentido, o que existe no campo de possibilidades de gestão educacional, legalmente regulamentados no país hoje, são os arranjos de desenvolvimento de educação de corte territorial. Diante desse contexto, a presente pesquisa buscou investigar como esses arranjos estão sendo disseminados no Brasil e implementados em territórios da Bahia.

O território enquanto espaço de gestão de políticas públicas

O espaço territorial tem se apresentado como um lugar propício para a institucionalização dos arranjos institucionais, de forma a assegurar a formulação e a gestão das políticas públicas. O marco referencial brasileiro para a organização político-administrativa do Estado em territórios remete ao conceito de espaço geográfico na visão de Milton Santos, que o concebe como um conjunto indissociável de sistemas de objetos materiais, sistemas de ações técnicas, aspectos formais de organização social e aspectos simbólicos, que não devem ser considerados isoladamente (SANTOS, 1999). Baseado no autor, o território vem sendo percebido com um espaço potencial para a gestão compartilhada de políticas públicas, com possibilidades de promover a articulação, a negociação, a participação social e uma nova democracia deliberativa.

Em 2003, o Ministério de Desenvolvimento Agrário inicia no país uma série de discussões para a implantação de políticas públicas que tinham os territórios como espaço de gestão. O governo federal, com o objetivo de atender a territórios no Brasil que tinham índices econômicos sociais menos favoráveis, iniciou um processo de diagnóstico e planejamento de políticas adequadas aos diversos espaços territoriais.

Essa nova perspectiva de gestão territorial disseminada no Brasil revelou os territórios rurais na Bahia e, em 2007, incentiva o governo deste estado a trabalhar com o conceito de identidade, de pertencimento, dividindo a Bahia politicamente em 26 territórios, denominados de Territórios de Identidade. Esses territórios passaram a ser a unidade de planejamento do estado. A partir de 2012, eles passam a totalizar 27 territórios, constituídos a partir das especificidades de cada região. Na concepção do governo da Bahia, a gestão compartilhada no espaço territorial possibilita o aumento da capacidade de realização dos governos municipais e maior eficiência no uso dos recursos públicos, assegurando a continuidade das políticas no contexto de cada Território de Identidade (BAHIA/SEPLAN, 2013).

Em todos os territórios baianos, passaram a ser disseminados modelos institucionais de desenvolvimento, entre eles os Consórcios Públicos e os ADEs de parceria público-privada. A partir do discurso dos textos das políticas e dos sujeitos sociais envolvidos, a nossa pesquisa buscou perceber como tais arranjos estão sendo desenvolvidos na Bahia, e discutir quais as relações desses modelos de gestão territorial e seus projetos de educação. Importa analisá-los separadamente.

Modelo de arranjo público: experiências na Bahia de Consórcios Públicos

O Consórcio Público (CP) como forma de associativismo apenas entre entes federados tem o objetivo de promover o desenvolvimento territorial por meio de uma gestão compartilhada, visando à eficiência da gestão dos serviços públicos. Nas últimas décadas tem sido crescente o número de CPs firmados entre municípios no Brasil, decorrentes das novas regulamentações desse formato de gestão na administração indireta do Estado. Mas, apesar de essa ampliação no número de consórcios ser um fenômeno recente, os CPs não são novidades no Estado brasileiro. Desde a primeira Constituição Federal, em 1891, eles já existiam, embora se constituíssem apenas como contratos entre municípios ou estados (PRATES, 2010). Na CF de 1937, os consórcios passaram à condição de associação de municípios, como pessoa jurídica de direito público. A CF de 1946 ampliou a visão desse formato de gestão como estratégia de cooperação federativa regional. Com o golpe militar em 1964, a gestão do Estado foi centralizada e, nesse período, com a CF de 1967, os CPs foram desestruturados, passando a ter um caráter meramente administrativo, sem personalidade jurídica (RIBEIRO, 2006).

Com a redemocratização brasileira na década de 80 e a aprovação da CF de 1988, os municípios constituíram-se em entes federados, sendo-lhes transferidas competências político-administrativas de serviços públicos em diversas áreas, tornando imperativa a busca por captação de recursos para o desenvolvimento local. O texto constitucional abriu possibilidades de diversos formatos de consórcios, convênios, associação, contratos de serviços. Em 1998, a Emenda Constitucional nº 19 alterou o art. 241 da CF indicando a necessidade da normatização precisa dos formatos de CP. Por meio do art. 26 dessa emenda, tornou-se possível a edição de lei específica para a gestão consorciada, a Lei nº 11.107/2005.

Por meio dessa lei, os Consórcios Públicos foram normatizados tornando-se um modelo de arranjo robusto de gestão compartilhada, por meio do qual os municípios podem realizar ações conjuntas que, sozinhos, encontrariam dificuldades e limitações. A partir desse novo ordenamento jurídico, o consórcio se constituiu em um importante modelo de articulação territorial no Brasil. Muitos municípios, desejosos de fortalecer o diálogo institucional e promover uma articulação cooperativa, tem se organizado em consórcios para definição de agendas comuns e captação de recursos na gestão das políticas públicas no âmbito territorial.

A Lei 11.107/2005 foi regulamentada pelo Decreto nº 6.017, de 17 de janeiro de 2007, que define o consórcio da seguinte forma:

Pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na forma da Lei nº 11.107, de 2005, para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum, constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos (BRASIL, Decreto 6.017/07).

As recentes legislações enfatizam o interesse público dos CPs e ampliaram consideravelmente suas áreas de atuação, a saber: gestão associada de serviços públicos; prestação de serviços, assistência técnica, execução de obras e fornecimentos de bens; compartilhamento de instrumentos, equipamentos, pessoal, licitação e admissão de pessoal; produção de informações e estudos técnicos; intercâmbio de experiências entre os consorciados; administração dos serviços e recursos consorciados; assistência técnica, extensão, treinamento, pesquisa e ações de políticas de desenvolvimento socioeconômico local e regional, incluindo aí a gestão das políticas educacionais. Essa ampliação das possibilidades de atuação dos consórcios fez com que os municípios se articulassem na busca de parcerias por meio desse formato. Muitos municípios, visando fortalecer o diálogo institucional e promover a articulação cooperativa, têm se organizado em CP para definição de agendas comuns e captação de recursos para a gestão das políticas públicas (RAMOS; ABRÚCIO, 2012).

Em 2010, o Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão passou a orientar a formação de consórcios no país, afirmando que a gestão consorciada, além de possibilitar o compartilhamento do poder, pode produzir capital social local com a participação de associações civis, sindicatos, imprensa e lideranças políticas na gestão das políticas, constituindo uma rede colaborativa de relações institucionais capazes de combater a fragmentação e a descontinuidade das políticas públicas em contextos locais.

Por seu turno, através da Portaria conjunta da Secretaria de Planejamento (SEPLAN) e da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDUR) nº 003 de 13 de setembro de 2010, o governo da Bahia criou um Grupo de Trabalho (GT), visando apoiar a formação de Consórcios Públicos. O GT, composto por técnicos da SEPLAN e da SEDUR e da Superintendência de Planejamento Estratégico é coordenado pela Diretoria de Planejamento Territorial (BAHIA/SEPLAN, 2013).

Por meio da institucionalização dessas políticas e articulação entre secretarias de governo e sociedade civil dos territórios, o estado mobilizou a implantação de Consórcios Públicos nos Territórios de Identidade, totalizando, no ano de 2013, 30 Consórcios Públicos de direito público, constituídos ou em formação (BAHIA/SEPLAN, 2013). Em cada Território de Identidade existe pelo menos um Consórcio Público, podendo atuar em diversas áreas. A SEPLAN, juntamente com a SEDUR, ao formatar a política de incentivo à formação de Consórcios Públicos do estado vem prestando assessoramento aos municípios com o objetivo de capacitar os gestores municipais para a formação de arranjos consorciados. Vê-se que a gestão consorciada vem sendo fortemente implantada nos Territórios de Identidade da Bahia nos últimos anos. Para desenvolver as políticas nos territórios, a SEPLAN conta com instrumentos próprios de planejamento, formalizados a partir de escutas sociais do Plano Plurianual (PPA) e das proposições dos Colegiados Territoriais de Desenvolvimento Sustentável (CODETERs) e o Conselho Estadual de Desenvolvimento Territorial (CEDETER), que são órgãos de caráter consultivo e de assessoramento, vinculados à SEPLAN, cuja finalidade é subsidiar a elaboração de propostas de políticas públicas para o desenvolvimento territorial sustentável e solidário no estado da Bahia.

É importante acrescentar que, na implantação e implementação dos CPs no estado da Bahia, a Educação não tem sido adequadamente considerada. Os estudos e pesquisas têm revelado que a atuação dos CPs na Bahia tem se fortalecido bastante, sobretudo nas áreas de agricultura, meio ambiente, saúde e infraestrutura. Mas, na área educacional, as experiências ainda são muito tímidas. Dentre os 30 consórcios existentes nos Territórios de Identidade da Bahia, oito preveem em seus estatutos o desenvolvimento de políticas na área educacional e, destes, merecem destaque apenas quatro, cujas atividades na área educacional têm sido bastante limitadas. Em entrevistas realizadas com gestores da SEPLAN, sobre a atuação dos CPs na área educacional, o Gestor 1 responde:

Não digo que a SEPLAN desconhece essas orientações do CNE para atuação do CP na educação. A atuação dos CPs com os instrumentos de gestão educacional - PNE, PEE, PAR - talvez algum CP tenha alguma ação isolada, mas de forma articulada com a Secretaria de Educação e a SEPLAN, com toda essa sistemática, acredito que não exista ainda.

Observa-se com essa fala que o desenvolvimento dos Territórios de Identidade na Bahia não tem colocado a educação pública em pauta, como política estratégica para seu modelo de desenvolvimento territorial. Por seu turno, a pasta de Educação do governo baiano também não tem se articulado com esse movimento. Em entrevista com membro do CEDETER, o conselheiro 1 enfatiza:

Nas demais áreas, os CPs atuam de forma bem coesa e direcionada. Os municípios têm algumas metas dentro do pacto federativo a serem cumpridas, e os CPs, por terem capilaridade, podem desenvolver políticas que o Estado, a União e os municípios sozinhos encontrariam dificuldades. Na educação, não é bem assim, exige outro nível de planejamento, tem que ter um trabalho militante das instituições educacionais. Existe uma omissão ou desinformação. Esperava-se que a Secretaria de Educação do Estado pensasse suas diretrizes políticas de educação para o desenvolvimento territorial em parceria com os consórcios. Ouso a dizer que não se sabe ao certo qual o modelo de educação que daria conta de promover o desenvolvimento dos territórios.

Percebe-se aqui a necessidade de articulação entre as políticas de educação e de desenvolvimento territorial. Essa ausência de articulação no espaço territorial, por sua vez, revelou-se como um reflexo da necessidade de uma maior articulação entre as políticas da SEPLAN e a Secretaria Estadual da Educação.

Em atenção aos discursos explícitos e implícitos no texto da política de Consórcios Públicos para o desenvolvimento territorial, verifica-se que está em pauta um projeto de estado democratizante, que visa à construção de territórios fortalecidos, com a participação ativa dos sujeitos sociais na construção de uma agenda de desenvolvimento local. Todavia, os discursos dos atores sociais e agentes políticos, a partir de suas experiências no desenvolvimento dessa agenda, revelam muitos desafios a serem superados, os quais passam pela articulação política necessária para promover o desenvolvimento endógeno dos territórios. Essa articulação precisa ser empreendida, sobretudo, pelas equipes técnicas das secretarias e dos consórcios.

A discussão de uma gestão sistêmica da educação territorial não pode estar apenas na agenda dos movimentos sociais, porque há outras demandas mais urgentes para estes sujeitos e porque essa é uma área complexa que exige conhecimento aprofundado. Então, ao que parece, faltam sujeitos e instituições para se debruçarem de forma mais sistemática nesse campo, conforme fala do conselheiro do CEDETER:

Os professores, os Núcleos Territoriais e mesmo as Universidades, participam muito. Há escutas territoriais em audiências públicas para realizar os planejamentos territoriais. Os sindicatos da educação discutem salários dos professores, mas não costumam discutir o fazer educação. Há muito poucas pessoas nos debates territoriais em matéria da educação. Os gestores dos CEPETS são as pessoas que mais desenvolvem esse papel. Mas, os NTEs não atuam muito nesse desenvolvimento territorial.

Embora a fala do sujeito apresente contradições sobre o “fazer educação” que, em nossa opinião, também passa pela valorização dos profissionais da educação, a partir da análise dos sujeitos que atuam diretamente na implementação da política de consórcios na Bahia, vê-se a necessidade de uma coesão institucional, partindo da própria Secretaria de Educação do Estado, para o fortalecimento dos arranjos consorciados da educação nos territórios, sobretudo, a partir do diálogo com os professores e universidades, que possam confluir em verdadeiras redes públicas de direção e execução das políticas educacionais territoriais.

Contudo, essa falta de coesão, aliada aos interesses de uma lógica capitalista de administração do Estado, configurada na Nova Gestão Pública (PEREIRA, 2019), as limitações dos CPs na área educacional, ante às inúmeras demandas de formação, orientação e assessoramento técnico na área educacional de muitos municípios, são elementos que despertam o interesse em firmar contratos com esses entes federados, em outros formatos de gestão, que favorecem parcerias público-privadas como é o caso dos Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADE).

Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADE) em parceria público-privada

Enquanto os Consórcios Públicos na Bahia não têm compreendido a educação como pauta estratégica para promover o desenvolvimento dos territórios, agentes da iniciativa privada nacionais, regionais e internacionais, como fundações e institutos, com o discurso de promoção da governança local, vêm se articulando e propondo o formato de Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADE) para atuarem ativamente na educação.

A mobilização para o avanço desse processo conta com o apoio da União Europeia e com o financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) e incentivos do Compromisso Todos Pela Educação1 e do Projeto Brasil Municípios2, por intermédio da construção de redes de governança. Esse modelo de gestão tem sido conceituado como governança corporativa da política educacional (CLADE, 2014; PEREIRA, 2019), reunindo um conjunto de elementos classificados por Ball e Yodell (2007) como um processo de formas de privatização acobertada da educação.

Tal processo também se coaduna aos preceitos da Nova Gestão Pública, modelo peculiar de administração do Estado, no qual os critérios de eficiência e eficácia, oriundos do modelo privado-mercantil, subsomem as funções públicas de administração e gestão, redefinindo o papel do Estado e impusionando a diluição das barreiras entre público e privado (VERGER; NORMAND, 2015).

A proposição do ADE origina-se no período de lançamento, por parte do governo federal, do Plano de Desenvolvimento de Educação (PDE) em 2007, quando o empresariado paulista tende a apoiar um conjunto de medidas para incentivar o fluxo empresarial na gestão educacional, que culminou no movimento Todos Pela Educação (TPE). O movimento conta com uma coordenação nacional, com apoio da Rede Globo, dentre outras Emissoras de Rádio e Jornais, Fundação Victor Civita, Fundação Ayrton Senna, Fundação Bradesco, Fundação Itaú, Instituto Votorantim, dentre outras empresas.

Na Bahia, a proposta de formalização de ADE inicia-se em 2009, sendo o primeiro estado da Federação a materializar esse arranjo. Tendo como entidades parcerias diversas instituições, entre elas o Instituto Votorantim, foi criado o ADE do Recôncavo Baiano, composto por 12 Municípios. Embora a iniciativa não tenha logrado êxitos significativos na Bahia, a experiência foi disseminada depois em Pernambuco, Pará, Tocantins, Sergipe, Paraná, Espírito Santo e São Paulo. O resultado das pesquisas em documentos públicos tem revelado que o número de ADE no país cresceu muito nos últimos anos3. O movimento Todos Pela Educação incentivou e orientou muitos municípios brasileiros a organizarem-se em redes educativas sob o discurso de que essas redes promoveriam a governança local.

O movimento TPE ganhou adesão do Conselho Nacional de Procuradores Gerais do Ministério Público. Em 2010, foi criada uma comissão na Câmara de Educação Básica - CEB, do Conselho Nacional de Educação - CNE, por meio da Portaria nº 7/2010 com a finalidade de analisar a proposta dos ADEs como um modelo de fortalecimento do regime de colaboração. Após a aprovação do Parecer CNE nº 09/2011, o CNE publicou a Resolução CNE nº 01/de 2012 que regulamenta a atuação dos ADE nos territórios e afirma em seu art. 1º que o formato da gestão em ADE pretende contribuir na estruturação e aceleração de um Sistema Nacional de Educação (BRASIL/RESOLUÇÃO CNE nº 1/2012).

O CNE considera que, por meio de um planejamento integrado dos ADEs em âmbito territorial, os municípios podem realizar ações como: planejamento da rede física escolar, cessão mútua de servidores, gestão do transporte escolar, políticas de formação continuada, organização de um sistema de avaliação, captação de recursos para prestação associada de serviços, estruturação de Planos Intermunicipais de Educação visando ao desenvolvimento integrado do território e a redução de disparidades sociais e econômicas locais. Dessa forma os municípios de menor capacidade técnica podem se valer desses planos na elaboração e execução de suas metas educacionais.

O CNE define o ADE como uma forma de colaboração territorial basicamente horizontal. Nesse sentido, sua implementação deveria priorizar a identificação das instituições e organizações educacionais endógenas que existem e atuam nos espaços territoriais. Porém, observa-se que a formação dos ADEs no Brasil não tem tido esse foco democratizante de considerar em sua institucionalização as organizações sociais dos territórios nessa articulação. O que se tem visto é uma série de grandes empresas nacionais e internacionais, da área empresarial, ocupando espaços para atuar na gestão compartilhada da educação. O modelo de ADE que vem sendo implantado no país caracteriza-se como uma gestão em parceria público-privada, por meio da qual fundações, institutos, dentre outras entidades do terceiro setor, sob a égide do princípio de subsidiariedade, vem passando a ter um papel significativo na gestão da coisa pública, imprimindo os preceitos da Nova Gestão Pública na educação (VERGER; NORMAND, 2015).

Considerando que tais empresas possuem natureza jurídica privada, cujo propósito de existência é a obtenção de lucro, nota-se aqui um conflito de interesses. O que essas empresas vislumbram na gestão compartilhada da educação com o Estado não é a garantia de direitos da população, mas a possibilidade de um grande negócio.

Pesquisas (ARAÚJO, 2012; 2013) alertam para o fato de que as formas de colaboração do ADE - baseando-se em conceitos de territorialidade, associativismo intermunicipal voluntário, redes, com parcerias público-privadas, com ideais de protagonismo local e visão estratégica, de matriz empresarial - pode representar uma tendência a suprimir a responsabilização compartilhada da União no desenvolvimento da educação básica. O ADE, segundo a autora, reforça o ideal de municipalização do ensino fundamental, sem alterar, qualitativamente, a política de financiamento por parte da União para os entes federados. Sobre esse fato, Araújo (2012) alerta que esses formatos de ADEs de base empresarial vêm imprimindo a lógica dos Arranjos Produtivos Locais numa perspectiva neoliberal, provocando com isso, a despolitização do regime de colaboração.

Vale observar que é preciso aprofundar o debate sobre a caracterização e finalidades públicas de organizações sociais, oriundas de movimentos sociais, que podem contribuir nos arranjos. No contexto baiano, por exemplo, existem organizações instaladas nos próprios territórios que podem atuar como protagonistas dessas ações, como são os do Movimento de Organização Comunitária (MOC), com sede em Feira de Santana, que atua na política de Educação do Campo; e da Fundação APAEB, com sede em Valente, que, na área educacional atua na implementação de políticas educacionais voltadas para a pedagogia da alternância em Escolas Famílias Agrícolas e com formação de professores sobre rede de proteção infantil.

Tais instituições, embora sejam pessoa jurídica de direito privado, são organizações de interesse público constituídas por sujeitos locais, como missão e compromissos sociais e democráticos, voltados ao desenvolvimento das territorialidades. Portanto, o que queremos apontar é que, mesmo optando-se por tal forma de arranjo, há possibilidades de que elas sejam pensadas a partir de democratização do Estado e da educação, ao mesmo tempo em que não se fortaleça interesses privados-mercantis nesse processo.

Outro elemento, que consideramos central, refere-se à participação da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) na formulação, constituição, direção e execução das políticas educacionais nos territórios e em conjuntos com municípios. A UNEB é a maior instituição pública de ensino superior do estado, conta com 24 campi em todos os territórios de identidade e pode contribuir de maneira significativa nesse processo. Ocorre que, como vimos na fala de um dos entrevistados, embora os professores e a universidade venham participando das oitivas públicas sobre os consórcios, o estado têm negligenciado tais contribuições. Elemento que aponta certa preferência das autoridades públicas estaduais pela lógica de convênios com o setor privado em detrimento do próprio setor público.

Gestão territorial compartilhada da educação e democracia

Compreendendo a lógica do estado capitalista, nesse período particular do seu desenvolvimento, e como ele se movimenta na construção de um projeto hegemônico-conservador (PEREIRA; SILVA, 2018), é possível conhecer melhor as bases em que se assentam a proposta de ADE para a gestão da educação pública no Brasil, em sua dimensão política mais ampla. O país vive no tempo presente, políticas educacionais que buscam redefinir os rumos da educação nacional e tais movimentos, no campo político e jurídico, precisam ser acompanhados a partir das demandas dos contextos locais, cabendo à Academia, aos pesquisadores, aos educadores e aos movimentos representativos da sociedade civil um posicionamento nas arenas de debates, de saber e poder, para, a partir das reflexões coletivas, entender o papel e os interesses do Estado brasileiro com a política de arranjos, refletindo sobre a viabilidade e os perigos dessas novas propostas de gestão para a educação.

É preciso esclarecer a serviço de que e de quem o Estado brasileiro se articula, por meio de discursos oficiais e de seus órgãos executivos e normativos em matéria educacional, para assegurar o direito à educação por meio dos formatos de arranjos institucionais e não por meio de um SNE regulamentado conforme as recomendações das CONAEs. É urgente e necessária a pesquisa sobre as reais possibilidades de operacionalização do regime de colaboração e das formas de cooperação por meio desses arranjos recentemente instituídos no estado e no país.

Investigar as experiências locais e propostas de gestão compartilhada entre os entes públicos, em nossa visão, deve ser acompanhada das reflexões sobre as redefinições dos novos ordenamentos jurídicos da superestrutura do estado capitalista contemporâneo, suas estratégias de acomodação no espaço-tempo presente. Em meio a regulações difusas da gestão da educação, em um estado capitalista que possui interesses de mercado, mas também é tencionado a assegurar direitos e garantir a democracia, Dagnino (2004) sinaliza uma crise discursiva em movimento, resultado do que ela chama de “confluência perversa” entre, de um lado, um projeto neoliberal, com a emergência de um projeto de estado mínimo que se isenta progressivamente de seu papel de garantidor de direitos, através do encolhimento de suas responsabilidades sociais e sua transferência para a sociedade civil e a iniciativa privada; e, de outro, um projeto democratizante que surge da resistência dos movimentos sociais para o aprofundamento democrático, que se expressa na criação de espaços públicos de discussões e decisões e na crescente participação da sociedade civil na gestão pública, cujo marco formal é a Constituição de 1988. Ambos trazem o território como espaço de negociação e articulação política.

Para Dagnino (2004), a perversidade dessa confluência estaria assentada no fato de que, embora os dois projetos apontem e intencionem rumos para direções opostas e até antagônicas, ambos apresentam em seus discursos os ideais de uma sociedade civil ativa e propositiva, com interesses aparentemente comuns de participação, cidadania e democracia. Mas, segundo a autora, de fato não o são. As duas tendências abrigam significados muito distintos, mas apresentam um discurso aparentemente homogêneo, que obscurece diferenças conceituais e reduz antagonismos existentes. Por conta desse obscurecimento, constroem-se canais por onde avançam as concepções neoliberais, com projetos de iniciativas e interesses privados em terrenos que seriam de esfera pública.

Nesses conflitos semânticos, em que “os deslocamentos de sentido são as armas principais, o terreno da prática política se constitui num terreno minado, onde qualquer passo em falso nos leva ao campo adversário” (DAGNINO, 2004, p. 198). Considerando que a proposta de arranjos acomoda dois modelos de gestão, sendo um público, por meio de CP, e outro de parceria público-privada, se faz necessário que pesquisas avancem para distingui-los, em atenção à confluência difusa que Dagnino nos alerta.

Em atenção ao discurso presente nos documentos que orientam a gestão territorial em arranjo de viés público por meio do CP, observa-se que os ideais de gestão territorial têm como princípios o fortalecimento de modelos de democratização da gestão pública e o fortalecimento do poder local, acomodando ideias que resguardam a gestão participativa, a inclusão dos sujeitos sociais, entidades territoriais endógenas dos territórios, visando à autonomia e emancipação política dos contextos mais localizados, de forma a assegurar sua governabilidade e sustentabilidade institucional. Sua relação se dá entre entes federados, em defesa do interesse público, envolvendo agentes políticos, servidores públicos ou contratados, com previsão de controle social por órgãos como conselhos territoriais e Tribunal de Contas.

Já o arranjo em formato de PPP apresenta interesses difusos entre o público e privado, com participação de uma sociedade civil sem rosto e identidade tímida e exclusão dos sujeitos territoriais que atuam na rede dos movimentos sociais. A participação da população local se dá por contratações esporádicas, algumas regulamentadas pela lei do voluntariado, de caráter temporário. A gestão dessa política garante um protagonismo restrito a agentes do terceiro setor, institutos ou fundações integrantes do ADE. O que se vislumbra é uma exclusão da comunidade territorial e a possibilidade de uma relação de dependência dos atores locais enquanto durar o interesse da instituição em atuar no espaço territorial. Conforme já apresentados anteriormente, nos textos da política há um discurso visando assegurar uma boa governança, articulada por políticas de accountability em torno do alcance de indicadores educacionais. O controle social não conta com a participação da comunidade local por meio de conselhos nem do Tribunal de Contas, a prestação de contas é realizada na Receita Federal, por tratar-se de empresas.

Considerando que o ADE se dá por meio da parceria público-privada, com previsão de se assegurar a transferência de recursos públicos para esses ADEs, configurando uma forma peculiar de apropriação do fundo público para interesses privados-mercantis. Importa aprofundar estudos sobre esse tipo de arranjo, de forma a melhor compreender seu projeto político, tanto no campo jurídico, político, teórico quanto no campo empírico, com vista a desvendar seus princípios e suas reais possibilidades de compor, enquanto instância institucionalizada, uma das formas de gestão colaborativas e cooperativas do SNE.

Algumas considerações

A não institucionalização do Sistema Nacional de Educação como política estratégica para repensar o pacto federativo e pôr em prática a discussão do regime de colaboração entre os entes federados demonstra que o conflito entre interesses públicos e privados, dentro da esfera estatal, têm comprometido a materialização das metas do Plano Nacional de Educação.

Os resultados preliminares da pesquisa revelam que o formato de Consórcios Públicos na área educacional na Bahia necessita ser melhor aprofundado para buscar explorar suas potencialidades e ampliar sua atuação na área para melhor auxiliar as municipalidades no alcance das metas educacionais, sempre observando o princípio da gestão democrática da educação, consubstanciado na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases e no Plano Nacional de Educação.

Por outro lado, os formatos de arranjos público-privados conformam-se no bojo dos parâmetros de eficácia e eficiência, oriundos do mundo empresarial em consonância com os preceitos da Nova Gestão Pública, estratégia neoliberal no âmbito do Estado, para atender às demandas oriundas desse período particular do desenvolvimento capitalista e maximizar a expropriação do fundo público e dos interesses privados-mercantis em contradição com o direito público e subjetivo da educação nacional e com seu princípio democrático.

Aprofundar as reflexões sobre como tais arranjos educacionais têm possibilitado a gestão articulada, visão sistêmica, com potencial de assegurar a cooperação e a colaboração horizontal e vertical na execução das políticas educacionais que visem a consolidação do direito à educação, representando ganhos efetivos para os territórios onde estão inseridos, se revela um estudo de grande interesse público no contexto atual. Sigamos atentos.

1O Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação é um conjunto de medidas para ampliar a qualidade do ensino público brasileiro e representa a conjugação dos esforços da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em regime de colaboração, com a participação das famílias e da comunidade, em proveito da melhoria da qualidade da educação básica (BRASIL/MEC, 2007).

2O Projeto Brasil Municípios é uma iniciativa da Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento (SEGES), cujo objetivo é promover o fortalecimento da gestão municipal no país por meio da formação de gestores e técnicos municipais, de consultoria e assistência técnica aos municípios, visando orientá-los na solução de problemas da gestão municipal, incentivando-os no fomento e desenvolvimento de experiências inovadoras de gestão local, por meio do fortalecimento do associativismo intermunicipal.

3O número de ADEs privados aumentou significativamente no país, passando de 12 municípios em 2009 para 126 em 2012, o que corresponderia a um aumento percentual de 950% (RAMOS; ABRÚCIO, 2012).

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Recebido: 12 de Julho de 2019; Aceito: 26 de Outubro de 2019

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