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Educar em Revista

versión impresa ISSN 0104-4060versión On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.36  Curitiba  2020  Epub 26-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/0104-4060.76252 

DOSSIÊ - Cultura digital e educação

Integração de tecnologias digitais ao currículo: diálogos sobre desafios e dificuldades1

*Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. E-mail: suely.scherer@ufms.br

**Universidade Federal do Paraná. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: glaucia@ufpr.br


RESUMO

Neste artigo apresentamos alguns resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi o de investigar processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar, identificando desafios e dificuldades que emergem de práticas pedagógicas em processos de integração. As questões que nortearam o desenvolvimento da pesquisa foram: como tecnologias digitais podem ser integradas ao currículo escolar com vistas a inovar práticas pedagógicas e o currículo? Que desafios e dificuldades emergem de práticas pedagógicas em processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar? Que ações de formação de professores podem contribuir com processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar? Para o desenvolvimento da pesquisa, foram realizados estudos sobre integração de tecnologias digitais ao currículo escolar e formação de professores para uso de tecnologias digitais, articulados ao desenvolvimento de ações em escolas. Neste artigo iremos dialogar sobre processos iniciais de integração de tecnologia digital ao currículo investigados em três escolas públicas: um processo foi iniciado em parceria com professoras dos anos iniciais, outro em parceria com professores do Ensino Médio, e um terceiro processo foi desenvolvido em uma disciplina de graduação, no Ensino Superior. Os processos se caracterizam como inovadores, mas ficou evidente a necessidade de ações contínuas de formação de professores e investimento em infraestrutura tecnológica nas escolas para intensificar processos de integração nas escolas investigadas.

Palavras-chave: Tecnologias digitais; Espaços escolares; Formação de professores; Cultura digital

ABSTRACT

The purpose of this article is to present some results of a research, in which the objective was to investigate processes of integration of digital technologies into the school curriculum, identifying challenges and difficulties that emerge from pedagogical practices in integration processes. The questions that guided the development of the research were: How can digital technologies be integrated into the school curriculum with a view to innovating pedagogical practices and the curriculum? What challenges and difficulties emerge from pedagogical practices in processes of integrating digital technologies into the school curriculum? How can teacher education contribute to processes of integrating digital technologies into the school curriculum? For the development of the research, studies were carried out on integrating digital technologies into the school curriculum, and education of teachers to use digital technologies, linked to the development of actions in schools. In this article, we will discuss the initial processes of integrating digital technology into the curriculum investigated in three public schools: one process was started in partnership with teachers from the early years, another in partnership with high school teachers, and a third process was developed in a subject in college level. The processes are characterized as innovative, but the need for continuous teacher training actions and investment in technological infrastructure in schools was evident in order to intensify integration processes in the investigated schools.

Keywords: Digital technologies; School spaces; Teacher training; Digital culture

Um diálogo inicial sobre integração de tecnologias e a proposta de pesquisa

O que se observa é que as tecnologias digitais estão presentes em diferentes espaços da sociedade. E, como afirma Kenski (2003), o uso de tecnologias digitais tem implicado em diversas mudanças nas formas de viver, estudar e trabalhar, alterando substancialmente o modo como realizamos tarefas e a maneira como pensamos sobre elas. Em decorrência disso, as instituições educacionais tornam-se espaços responsáveis por uma educação com e para essas tecnologias.

No entanto, para que a educação em uma cultura digital se efetive em escolas, consideramos necessários - ainda que não suficientes - dois aspectos centrais: o acesso a uma infraestrutura de tecnologia digital básica (acesso à rede de internet, computadores pessoais, laptops e/ou celulares, projetores e lousas digitais etc.), e processos de formação continuada de professores e gestores para integração dessas tecnologias ao currículo. Esses processos pensados no sentido de transformar a cultura escolar, o que implica no desafio de superar, em muitas escolas, uma concepção de aprendizagem orientada pela transmissão de informação, e a ideia do professor como detentor único do conhecimento sistematizado. Outro desafio é alterar a organização da escola, que, em sua maioria, é segmentada em estudos por disciplinas, bimestres, aulas aprisionadas em grades de horários e espaço físico único, com propostas de estudo e interação apenas com um grupo de alunos, separados por turmas, séries, sem interação com outros alunos e professores da mesma escola, ou pessoas da comunidade local e/ou global.

Nesse contexto, Cabero-Almenara (2001) já mencionava algumas dificuldades para a integração de tecnologias digitais no sistema educativo, muito próximas dos desafios que destacamos. Em seu estudo, esse pesquisador mencionou dificuldades relacionadas à presença de tecnologias digitais na escola, como quantidade, qualidade e atualização de equipamentos, manutenção, softwares adaptados a conteúdos curriculares e necessidades educativas. Outra dificuldade apontada foi em relação à formação de professores para usar essa tecnologia, tanto para compreendê-la como para relacioná-la com pressupostos ideológicos e políticos os quais ela transmite.

Sem diminuir a importância de diferentes dificuldades apontadas em pesquisas para integração, Escontrela Mao e Stojanovic Casas (2004) também consideraram que uma das dificuldades para avançarmos na integração de tecnologias digitais ao currículo tem relação com a cultura escolar dominante na escola, portanto, com a necessidade de se repensar a proposta pedagógica da escola como um todo. Nesse sentido, os autores afirmam que não se trata de fazer o mesmo de outra forma, mas de alterar os objetivos de aprendizagem em função das potencialidades e das possibilidades de uso de tecnologias digitais nas práticas pedagógicas.

Nesse contexto, surge o desafio da formação continuada de professores para integração de tecnologias digitais ao currículo. Ao discutir a formação do professor, Almeida e Valente (2011) apontam que uma das principais dificuldades não é a apropriação pelos professores de conhecimentos técnicos das tecnologias, mas a compreensão de diferentes possibilidades de uso em práticas pedagógicas. E que - poderíamos dizer - por vezes estão relacionadas com suas concepções de aprendizagem, como mencionado anteriormente.

Nesse sentido, Costa e Felizardo (2012) afirmam que a formação continuada pode constituir uma poderosa estratégia para se realizar uma gestão cuidadosa das tensões e dos conflitos ligados às crenças e aos valores dos professores, sendo de suprema importância nos processos de mudança. Além disso, com ações de formação, é possível ajudar os professores a lidar com as barreiras que impedem a integração efetiva das tecnologias em suas práticas, em processos de inovação curricular.

Quanto ao desafio e à dificuldade de acesso a uma infraestrutura básica de tecnologia digital, ainda há muito por investir nas escolas públicas de Educação Básica no Brasil. O que temos observado e acompanhado em muitas escolas que têm internet, é que o acesso é de baixa velocidade e não há rede wi-fi; os computadores disponíveis nas salas de informática - quando é o caso - por vezes estão obsoletos ou em manutenção. Aliado a isso, observamos a proibição do uso de celulares em algumas escolas.

Há programas do governo federal e incentivos de algumas secretarias de educação municipal para investir em tecnologias digitais nas escolas públicas. De programas nacionais, podemos citar os programas lançados nos últimos 15 anos, como o PROINFO Integrado, proposto em 2007, com o objetivo principal de promover o uso pedagógico de tecnologias nas escolas de Educação Básica das redes públicas de ensino nas áreas urbanas e rurais. A proposta do PROINFO Integrado era investir na infraestrutura das escolas, na criação e na ampliação de laboratórios de informática, com a conexão à internet, vinculado ao Projeto Banda Larga em 2008, também do governo. A maioria das salas de informática datam desse período, ou seja, os computadores têm de dez a treze anos.

Em 2007, o governo investiu no projeto experimental “Um computador por Aluno”, sendo que, em 2010, o projeto foi transformado no Programa Um Computador por Aluno (PROUCA), com a distribuição de laptops educacionais para várias escolas. Os laptops, em função de várias restrições e limites de hardware e software, acabaram sendo descartados, até pela falta de manutenção, em praticamente todas as escolas que participaram do Programa.

Por fim, desde 2017, está em vigor o Programa de Inovação Educação Conectada, que fomenta ações para que o ambiente escolar esteja preparado para receber a conexão de internet, e, desse modo, tenha acesso aos conteúdos educacionais digitais. O objetivo é que, até o final de 2020, 80% das escolas públicas urbanas do Brasil tenham acesso à internet de alta velocidade, e 40% das escolas rurais, cobertura via satélite. Mas, ainda há muitas escolas sem ou com conexão de baixa velocidade.

Além desses programas, estados e Distrito Federal podem adquirir o Computador Interativo contendo a lousa digital, com recursos próprios ou de outras fontes, por meio de adesão à ata de registro de preços decorrente de Pregão, realizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).

E, quanto aos Centros de Educação Infantil, na maioria dos estados, não há infraestrutura básica de tecnologia, com internet, tablets, lousa digital, por exemplo. Quanto ao Ensino Superior, as políticas, para a infraestrutura e o uso de tecnologias digitais em cursos superiores, estão mais voltadas à oferta de cursos na modalidade de Educação a Distância ou cursos denominados semipresenciais. No entanto, como, em sua maioria, trata-se de alunos adultos, a depender da região, que têm celulares, é possível pensar a integração curricular via essa tecnologia.

Entretanto, se a infraestrutura de tecnologia é necessária para pensar processos de integração de tecnologias digitais ao currículo, ela está longe de ser suficiente. O que se observa, mesmo em escolas equipadas, são as poucas ações de efetiva integração de tecnologias digitais ao currículo escolar e de propostas pedagógicas inovadoras. O que se observa é o pouco investimento em efetivos processos de formação continuada de professores para essa integração. Há iniciativas pontuais, sem se tornarem programas ou projetos de um estado ou do país, resguardadas as diferenças de cada estado, município, comunidade escolar, escola etc. Nesse contexto, algumas questões nos mobilizam a continuar a investigação dos processos de integração de tecnologias digitais ao currículo: por que são ainda poucas e pontuais as propostas de integração de tecnologias digitais ao currículo em escolas públicas brasileiras? Que desafios e dificuldades movimentam ou paralisam esses processos de integração?

Nesse contexto, é de extrema importância que a comunidade científica e cada comunidade escolar investiguem e discutam continuamente os processos de ensino e de aprendizagem, assim como as possibilidades de integrar a cultura digital ao currículo escolar, aos modos de pensar, agir e produzir conhecimento em cada espaço escolar. Essas investigações e discussões oportunizam pensar juntos em um currículo singular a cada escola e comunidade, produzido a partir das práticas e conhecimentos de seus gestores, professores, alunos e demais membros da comunidade escolar e científica; um currículo que integre movimentos/conhecimentos de outras culturas, da cultura digital, uma vez que a incorporação de variáveis linguísticas e semiológicas, decorrentes da tecnologia digital, pode alterar processos de ensino e de aprendizagem.

Enfim, à vista do contexto exposto, consideramos necessário questionar: como tecnologias digitais podem ser integradas a cada currículo escolar com vistas a inovar continuamente práticas pedagógicas e o currículo? Que desafios e dificuldades emergem de práticas pedagógicas em processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar? Que ações de formação de professores podem contribuir com processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar? Essas são algumas questões que nortearam a pesquisa, cujos dados, em parte, discutimos neste artigo.

A problemática de pesquisa foi constituída por essas questões que emergiram do campo teórico e prático (observadas em algumas instituições educacionais e práticas pedagógicas). O objetivo, neste artigo, é apresentar alguns resultados da pesquisa com base na investigação dos processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar, e na identificação de desafios e dificuldades que emergem de práticas pedagógicas em processos de integração.

A pesquisa é de abordagem qualitativa, na qual, segundo Bogdan e Biklen:

O investigador introduz-se no mundo das pessoas que pretende estudar, tenta conhecê-las, dar-se a conhecer e ganhar a sua confiança, elaborando um registro escrito e sistemático de tudo aquilo que ouve e observa. O material assim recolhido é complementado com outro tipo de dados, como registros escolares, artigos de jornal e fotografias (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 16).

De acordo com Bogdan e Biklen (1994), na abordagem qualitativa, os dados são coletados no contexto natural dos participantes, sendo analisados ao longo do processo. Assim, o pesquisador frequenta os locais de estudo, pois está preocupado em compreender as ações desenvolvidas em seu ambiente habitual de ocorrência.

Nesse sentido, neste artigo, discutimos alguns dados produzidos em processos de integração de tecnologias digitais ao currículo de três instituições educacionais, os quais denominamos aqui de escolas. Com esses processos também foram produzidos dados para duas pesquisas de mestrado e duas pesquisas de doutorado, sob a orientação de uma das autoras. A escolha dos dados desses processos de integração foi realizada com a intenção de discutir diferentes processos de integração e de formação de professores vinculados a eles.

A pesquisa foi desenvolvida em movimentos contínuos e articulados entre si, contemplando: estudos sobre a integração de tecnologias digitais ao currículo escolar e a formação de professores; planejamento, desenvolvimento e análise de ações realizadas nas e paras as escolas, em parceria com mestrandos e doutorandos; e seleção e análise de dados para discutir a problemática de integração de tecnologias digitais ao currículo.

Em todas as ações desenvolvidas nas escolas, o movimento dos pesquisadores foi de integração à escola - aos movimentos dos professores e/ou alunos - para conhecê-la e dialogar com seus atores (professores e/ou gestores, alunos), de modo que se considere a história do local e das pessoas, com seus conhecimentos, cultura e ritmos. Um movimento que denominamos pesquisa-integração (que não discutiremos neste artigo), em que o pesquisador se integra aos movimentos do contexto/cenário da pesquisa, aos movimentos dos atores e parceiros de pesquisa, para juntos produzirem dados, no “calor” do contexto, a partir do conhecimento de cada parceiro que, integrados, produzam novos conhecimentos, inovadores em relação ao que já era conhecido por cada integrante.

Apresentado o contexto e a proposta da pesquisa, a seguir discutiremos alguns elementos conceituais, para então dialogar sobre alguns dados produzidos em processos de integração de tecnologias digitais ao currículo.

Um diálogo sobre alguns elementos conceituais: quando falamos em integração…

A problemática da pesquisa aqui apresentada parte da discussão do que seja o processo de integração de tecnologias digitais ao currículo, que não se reduz a inseri-las ou disponibilizá-las no espaço da escola. Há diferença entre integração e inserção de computadores na prática pedagógica do professor, segundo Bittar :

Essa última significa o que tem sido feito na maioria das escolas: coloca-se o computador nas escolas, os professores usam, mas sem que isso provoque uma aprendizagem diferente do que se fazia antes e, mais do que isso, o computador fica sendo um instrumento estranho (alheio) à prática pedagógica, sendo usado em situações incomuns, extraclasses, que não serão avaliadas. [...] integrar um software à prática pedagógica significa que o mesmo “poderá deverá” (sic) ser usado em diversos momentos do processo de ensino, sempre que for necessário e de forma a contribuir com o processo de aprendizagem do aluno (BITTAR, 2010, p. 5).

Nesse sentido, Almeida e Prado (2011) afirmam que tecnologias digitais não serão integradas ao currículo se os professores as usarem somente para atividades que podem ser exploradas com o uso do papel e lápis. Ou seja, essas tecnologias precisam ser pensadas e usadas no sentido de possibilitar que a criança, o adolescente e o adulto criem, fantasiem, pensem, conjecturem, divirtam-se ao aprender diferentes conceitos durante as aulas, integrando linguagens digitais em atividades que constituem o currículo em ação.

Mas, então, em que consiste a integração de tecnologias digitais ao currículo? Essa integração, para nós, é um processo, um movimento contínuo de planejamento e desenvolvimento de aulas e ações na escola, em que se incorpora a linguagem digital - veiculada por meio de diferentes tecnologias digitais (equipamentos, softwares, aplicativos etc.) - e os movimentos de cultura digital a outras linguagens usadas na produção de conhecimento, dessa forma, oportunizando experiências inovadoras de aprendizagem na escola. Essa integração não se caracteriza em apenas uma ou algumas ações pontuais do professor ou da escola, mas também em um processo contínuo de aprendizagem de cada professor e escola em interação com alunos, gestores escolares, currículos prescritos, comunidades escolar e científica, diferentes parceiros (de espaços presenciais e virtuais) on-line, conceitos de diferentes áreas, novas tecnologias etc.

No processo de integração, o olhar não é para a tecnologia digital em si, mas para o processo de aprendizagem de cada aluno, que pode ser favorecido ao vivenciar experiências que incorporem a linguagem digital. Podemos dizer, quando for o caso, que a integração está continuamente acontecendo na prática de um professor ou escola (no sentido dinâmico do processo), pois é movimento contínuo, não finda. Ela se constitui em um processo construído a cada dia, cada prática, com cada turma de alunos, em uma disciplina, na escola. As tecnologias digitais são incorporadas de maneira habitual e natural ao currículo em ação, sem forçar seu uso, sem ser artificial e obrigatório.

Nesse sentido, cada processo de integração é único. Por isso, precisaria ser pensado em cada grupo de professores, gestores, alunos, comunidade escolar e, de forma contínua, em interação com outros grupos, produção científica e cultural, tecnologias, de maneira a considerar currículos prescritos e propor novos currículos. No entanto, consideramos que é importante ter em conta a singularidade de cada professor, aluno, escola, cultura, comunidade. E, a partir da história de cada um e da interação entre elas, iniciarmos processos de integração de tecnologias digitais (que demandam formação contínua de professores, gestores e coordenadores nas escolas) ao currículo, respeitando o tempo de cada um.

Ao falar em inovação ou práticas inovadoras, orientamo-nos pelos estudos de Huberman (1973), que considera inovação uma ação que se realiza com o objetivo de incorporar uma mudança, sendo essa aceita e utilizada no espaço das escolas, no caso dessa proposta de pesquisa. Ao discutir inovação e uso de tecnologias na escola, ainda consideramos, como Groenwald e Ruiz (2006, p. 5), que “A utilização das novas tecnologias, na educação, implica em um processo de inovação pedagógica que justifique a necessidade desta incorporação, e que deve levar a uma melhora no processo de ensino e aprendizagem”.

Nesse sentido, a motivação dos alunos precisa ser instigada pela atividade proposta com uso de determinada tecnologia, e não apenas pelo uso da tecnologia em si. Como afirma Salvat (2000), em um processo de integração, o visível da tecnologia não é a tecnologia, mas a atividade que se está realizando.

Ao integrá-las ao currículo escolar, as tecnologias digitais são parte constituinte das práticas pedagógicas e dos ambientes de aprendizagem na escola, de modo que não são compreendidas somente como recursos, equipamentos, máquinas, mas também como espaços digitais de aprendizagem. Em cada aula ou prática pedagógica, esses espaços se transformam e transformam o currículo em ação, em um processo que podemos denominar de acoplamento estrutural. Para Maturana e Varela,

Desde que uma unidade não entre numa interação destrutiva com seu meio, nós, como observadores, necessariamente veremos entre a estrutura do meio e da unidade uma compatibilidade ou comensurabilidade. Existindo tal compatibilidade, meio e unidade atuam como fontes mútuas de perturbação e desencadeiam mudanças mútuas de estado, num processo contínuo que designamos com o nome de acoplamento estrutural…[...] (MATURANA; VARELA, 1995, p. 133-134).

A unidade no processo de integração de tecnologias seria o currículo escolar, e os espaços digitais acessados a partir das tecnologias seriam o meio. Quando os autores falam em perturbações, referem-se às interações que desencadeiam mudanças de estado, que, para nós, se traduziriam em mudanças no ambiente de aprendizagem constituído por professores e alunos em uma sala de aula e/ou escola. Essas mudanças ocorrem continuamente, por meio de mudanças ocorridas na unidade currículo, em função de diretrizes, orientações curriculares, descobertas científicas e do próprio acoplamento. Também ocorrem no meio (espaços digitais) a partir do surgimento de novas tecnologias, seja com novos equipamentos, novas funções, novos aplicativos, softwares etc. Daí considerarmos que integração de tecnologias digitais ao currículo é um processo dinâmico e contínuo, não uma característica estática de uma prática pedagógica presa numa ação pontual.

Na qualidade de processo, concordamos com Sánchez (2003) que a integração de tecnologias digitais ao currículo, às práticas pedagógicas dos professores, pode ocorrer em três níveis diferentes, os quais preferimos denominar de estágios de integração de tecnologias ao currículo, são eles: preparo, uso e integração. No primeiro nível de integração, discutido em Sánchez (2003), o do preparo, o professor está preocupado em conhecer o funcionamento de tecnologias e sua administração em sala de aula. Dessa forma, ele começa a analisar funcionalidades de computadores, projetores, lousa digital, aplicativos, softwares e possibilidades de uso em sala de aula.

O segundo nível de integração é o uso. Nesse nível de integração, o professor usa tecnologias nas aulas, mas o objetivo não está em inovar o currículo ou os processos de aprendizagem, está em usar as tecnologias. Nesse nível, poderíamos afirmar, a partir do que discute Salvat (2000), que o visível ainda é a tecnologia, o seu uso, não a atividade proposta com uso da tecnologia.

No terceiro nível, denominado por Sánchez (2003) de integração, o professor, a partir do objetivo de aprendizagem, planeja e propõe atividades com tecnologias. As atividades são realizadas e orientadas por objetivos de aprendizagem em espaços digitais de aprendizagem. Nesse nível, as tecnologias são invisíveis, e o que é visível é a atividade (SALVAT, 2000). Estágio de integração em que o uso de tecnologias digitais começa a se tornar natural na escola. No entanto, consideramos que o processo de integração não se encerra no terceiro nível, dada a complexidade do currículo, a diversidade de tecnologias, do acoplamento entre currículo e tecnologias digitais, além das possibilidades de se propor atividades com uso de tecnologias que possam favorecer a aprendizagem de cada aluno, grupo etc.

É importante mencionar ainda a compreensão de currículo que orienta nossos estudos e pesquisas:

[...] não se restringe à transferência e aplicação do conteúdo prescrito em documentos de referência para repassar ao aluno no contexto da sala de aula. O currículo se desenvolve na reconstrução desse conteúdo prescrito nos processos de representação, atribuição de significado e negociação de sentidos, que ocorrem primeiro no momento em que os professores elaboram o planejamento de suas disciplinas levando em conta as características concretas do seu contexto de trabalho, as necessidades e potencialidades de seus alunos, suas preferências e seu modo de realizar o trabalho pedagógico (ALMEIDA; VALENTE, 2011, p. 15).

Diante do exposto, considera-se que a integração de tecnologias digitais ao currículo implica em uma nova organização curricular que considera novos tempos e espaços de aprendizagem, novas práticas pedagógicas, com a proposição de um currículo prescrito mais flexível e mudanças no espaço da sala e da instituição educacional como um todo.

Assim, para discutir integração de tecnologias digitais ao currículo escolar, é fundamental discutir a formação de professores e gestores. Ao considerar que cada processo de integração é único, é importante que a formação continuada de professores e gestores aconteça de maneira imbricada às práticas pedagógicas vivenciadas na escola, “[...] na reflexão sobre as mesmas, na identificação das mudanças ocorridas, das dificuldades enfrentadas e das decisões necessárias para que essas práticas possam se concretizar” (ALMEIDA; PRADO, 2011, p. 38-39). Nesse sentido, investigamos processos de integração de tecnologias digitais ao currículo, integrados aos processos de formação continuada de professores, como veremos a seguir.

Um diálogo sobre alguns processos de integração...

Para dialogarmos, neste artigo, sobre processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar, optamos por dialogar sobre alguns dados produzidos em três escolas. Um dos processos2 de integração foi iniciado em parceria com um grupo de professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental em uma escola pública localizada em uma zona urbana (processo que resultou na pesquisa de mestrado de Bárbara Drielle Roncoletta Corrêa e na de doutorado, em andamento, de Ivanete Fátima Blauth). O segundo foi iniciado em parceria com um grupo de professores do Ensino Médio, em uma escola pública, localizada em uma zona rural (processo de uma pesquisa de mestrado em andamento de Jacson José Rosa da Silva). O terceiro processo foi realizado em parceria com uma doutoranda, cuja pesquisa de doutorado (LOPES, 2020) não foi discutir o processo de integração, apesar da pesquisa ser orientada por um processo de integração de tecnologias digitais ao currículo de uma disciplina de Matemática, em um curso superior, de uma universidade pública. Todas as ações foram realizadas na região de Campo Grande-MS, como parte de uma pesquisa maior, coordenada por uma das autoras deste artigo.

O processo de integração iniciado em parceria com o grupo de professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental constituiu-se a partir de uma proposta de formação continuada em serviço, cujo objetivo foi o de constituir, com o grupo de professoras e gestores da escola, um processo de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar dos anos iniciais. O processo de formação foi desenvolvido nos anos de 2017 a 2018, no espaço da escola, e contou com a adesão de cinco professoras e a ação mais direta de três pesquisadoras nos encontros (incluindo uma das autoras). A pesquisa e as ações de formação envolveram outras pesquisadoras (incluindo a segunda autora), direção e coordenadoras pedagógicas, em diferentes momentos.

Os dados produzidos nesta pesquisa constituíram-se a partir de anotações das pesquisadoras, diários de campo e gravações de áudio dos encontros de formação entre pesquisadoras e professoras ao longo desses dois anos na escola. As ações de formação consistiram em reuniões quinzenais na escola para o planejamento e a avaliação de aulas, a observação e o acompanhamento de aulas. Também foram realizadas reuniões coletivas mensais e oficinas para explorar o uso de alguma tecnologia a partir do interesse das professoras. Nessas reuniões, discutia-se atividades que poderiam favorecer a integração de tecnologias digitais ao currículo; sendo que após cada quinzena, antes de planejar novas ações, avaliava-se as aulas desenvolvidas. Nosso diálogo aqui parte do registro de falas das professoras em diferentes reuniões.

Um desafio apontado pelas professoras nesse processo e também observado por nós, pesquisadoras, foi a organização de tempo para a seleção de materiais e tecnologias digitais a serem usados em aula, como jogos, aplicativos, simuladores, vídeos e tecnologias digitais. Isso porque se buscava por materiais digitais coerentes com cada turma, de modo que oportunizassem aulas que os alunos pudessem explorar, produzir e conjecturar ao construir conceitos previstos nas orientações curriculares da rede municipal de educação, a partir da linguagem digital, em diferentes áreas do conhecimento (Português, Matemática, Ciências, História e Geografia).

Um outro desafio foi o de garantir uma estrutura tecnológica básica, em cada sala de aula, na escola, para colocar em prática ideias e aulas discutidas durante os encontros. Afinal, embora nossas conversas partissem do que era viável realizar na escola, com as tecnologias existentes, as professoras tiveram dificuldades em realizar aulas planejadas devido à falta de conexão com a internet; ou porque um aplicativo ou jogo, que iríamos usar em aula, não funcionasse na hora determinada. Além disso, o fato de a escola somente dispor de uma lousa digital e dois projetores para serem usados por, aproximadamente, dez a quinze turmas por período, dificultava o seu uso nas aulas em horários planejados pelas professoras.

Algumas dessas dificuldades em relação à infraestrutura foram resolvidas, ao longo do período que estávamos na escola, das seguintes formas: algumas professoras compraram o seu próprio projetor; outras negociaram com todo o grupo de professores o pagamento mensal de uma rede wi-fi para terem acesso à internet em suas salas de aula; ou, ainda, usaram seus celulares em sala e notebooks, compartilhando com os alunos em algumas atividades. Neste, tinham mais autonomia, evitando a dependência de horários definidos para usarem as tecnologias.

O fato dos professores investirem na compra de tecnologias para realizarem o seu trabalho não é a melhor alternativa. Entretanto, não se encontrou outra junto aos gestores para se investir na compra de equipamentos, em ambientes mais digitais na escola. Aos poucos, as professoras foram desejando ter disponível as tecnologias para usar quando fosse necessário, pois o currículo em ação não reproduz um planejamento de aula. Ele se funda na ação. Assim, elas foram desejando um novo projeto de sala de aula, de modo que não era mais suficiente uma sala com quadro e carteiras, pois havia tecnologias que poderiam mudar espaços de aula, formas de aprender, ensinar, enfim, mudar o currículo escolar.

Sabemos que não é suficiente ter a tecnologia digital na escola para que ela seja integrada ao currículo; mas, sem a presença dela, não é possível integrá-la! Ou seja, sua presença não é suficiente mas necessária. Daí, a necessidade de políticas públicas para o investimento em infraestrutura mínima de tecnologias na escola, quais sejam: acesso à internet de alta velocidade em todas as salas e espaços da escola, projetores e/ou lousas digitais acoplados a um notebook, em todas as salas, com projeto de manutenção e reposição considerando o uso e o tempo de vida das tecnologias. Um pouco mais que o mínimo seria ter notebooks disponíveis para cada turma e modelos comerciais de qualidade (pois de nada adianta trabalharmos com modelos de computadores descartáveis em pouco tempo).

Para dialogarmos um pouco mais sobre esse processo de integração, possibilidades e desafios, trazemos uma fala de uma das professoras, regente de uma turma do 1º ano do Ensino Fundamental:

A internet funcionou. Pegava duas barrinhas (se referindo a marcação do nível de conexão), às vezes dava uma travada, mas melhor do que nada. Internet disponível é outra vida. Eu estava explicando das contribuições dos índios. Estava falando da mandioca, falei do pé da mandioca. Um aluno perguntou: -Professora, como é o pé de mandioca? [...] Nunca tinham visto…[...]. Eu fui lá pesquisar (se referindo ao uso do navegador, a partir de seu notebook e projetor instalados na sala), e fui mostrando imagens [...]. Isso é bom, porque usamos a internet quando vai surgindo a dúvida. Como eu vou desenhar um pé de mandioca, pintar? Se não tem esse recurso, não fica real. Então fui pesquisando, eles (os alunos) foram perguntando outras coisas, a aula flui.... (Profª. do 1º ano).

Essa fala evidencia como a professora modificou a sua aula a partir da pergunta de um aluno, com o uso da internet que estava acessível na sala. Essa ação mostra como a professora, atenta ao processo de aprendizagem dos alunos, explora um conceito a partir de uma dinâmica presente na cultura digital, de navegação e busca de informações, no caso, de imagens na internet. A tecnologia estava presente nessa aula, mas, invisível no sentido apontado por Salvat (2000), pois o objetivo da professora e dos alunos era identificar características da mandioca, não usar um navegador de internet e projetar imagens.

Além de movimentos como esse em sala de aula, também observamos mudanças em relação ao uso de sala de tecnologias durante o processo de integração. Ao iniciarmos a ação de formação, as professoras que usavam a sala de informática era mais para levar os alunos para jogarem, em uma ação desconectada com a aula em sala. Assim, para as crianças, o tempo nessa sala era para jogar ou realizar alguma atividade sem muita importância para logo serem “liberadas” para jogar. O desafio das professoras foi mudar “este hábito” e construir com as crianças a ideia de aulas também naquele espaço, as quais poderiam ser divertidas. Essa mudança de “hábito” resgatamos em uma fala da professora regente de uma turma do 3º ano, ao final do primeiro ano do processo de integração: “Depois de determinado tempo, as crianças começaram a entender que podiam ir para sala de informática e fazer atividade diferenciadas, e que isso não era chato, era uma forma de aprendizagem também, e elas começaram a aceitar mais.” (Profª. do 3º ano).

Outra experiência interessante dessa professora foi com o uso do seu celular em sala, como uma ação natural, de busca de informação rápida, entre outras funções a partir de dúvidas dos alunos. Ela comentou que esse movimento começou quando, em um dia, um de seus alunos fez uma pergunta e ela comentou que iria verificar e trazer a resposta no dia seguinte. O aluno questionou: “Por que a professora não ‘procura no celular’ agora?” Naquele momento ela percebeu como, para os alunos, aquela tecnologia era natural e também tinha a função de “apresentar respostas”.

E esse é um pouco sobre o início de um processo de integração, entre tantos outros movimentos realizados pelas professoras em diferentes aulas. Elas foram, aos poucos, de maneira natural, integrando tecnologias digitais às suas práticas pedagógicas, com uso de softwares, aplicativos, projetores, lousas, computadores, navegadores, vídeos, celulares etc.

Quanto ao processo de integração iniciado em parceria com o grupo de professores do Ensino Médio, ele também se iniciou a partir de um convite a todos os professores do Ensino Médio da escola para discutirem e proporem ações para integração de tecnologias digitais ao currículo prescrito para suas disciplinas. A proposta configurou uma ação de formação continuada não formalizada, organizada em reuniões de planejamento, parceria no desenvolvimento de aulas com tecnologias, durante o ano de 2019. Os dados foram produzidos a partir da gravação das reuniões de planejamento e avaliação, do uso de questionários para identificação de perfis, dos diários de campo durante as observações e parcerias nas aulas, e dos registros dos alunos e professores produzidos em diferentes espaços virtuais.

As reuniões nesta escola foram realizadas entre professores e orientador pedagógico da escola (um dos pesquisadores) nos horários de planejamento dos professores, com a orientação de uma pesquisadora da universidade (uma das autoras deste artigo). No primeiro semestre, foram realizados questionários para identificar o perfil dos alunos das três turmas, uma de cada ano do Ensino Médio, de uma escola rural, com um total de 40 alunos, com idades entre 14 e 45 anos. Também foi realizado um questionário para saber do perfil dos professores, dialogar sobre a proposta de discutir o uso de tecnologias a partir de movimentos de integração ao currículo e constituir o grupo de professores que se envolveriam com as ações. Três professores aceitaram o desafio, a professora de Língua Portuguesa, o professor de Física e o professor de Matemática. Esses professores e mais o orientador pedagógico da escola constituíram um grupo para estudar possibilidades de integração de tecnologias digitais ao currículo do Ensino Médio.

Em diálogo inicial com os professores, os três afirmaram que raramente trabalhavam em suas aulas com uso de tecnologia digital. O professor de matemática nunca havia usado, tinha dificuldade com o uso de tecnologia. O professor de física algumas vezes usava slides; e a professora de Língua Portuguesa afirmou inicialmente que usar tecnologias dava muito trabalho e raramente propunha seu uso em sala de aula, além de conhecer poucos recursos. Mas todos consideraram importante o uso de tecnologias em aula em função do perfil dos alunos que, mesmo residindo em área rural, usavam diariamente celulares e as redes sociais (dos 34 alunos que responderam ao questionário, 31 tinham celular, 30 com acesso à internet).

O processo iniciou com o planejamento e desenvolvimento de aulas no segundo semestre letivo de 2019. A professora de língua portuguesa, em função do conteúdo previsto no currículo prescrito das três turmas do Ensino Médio para o segundo semestre, iniciou planejando ações para explorar diferentes gêneros textuais (diferentes turmas, diferentes gêneros). Ela escolheu textos que contemplassem o cotidiano dos alunos (sugestão de uma das alunas). A seguir uma fala da professora, um mês após iniciado o processo, em uma das reuniões de planejamento:

Me interessei pelo Google Docs (foi criado um gmail para as três turmas para acessarem a plataforma), pois é uma ferramenta em que os alunos podem construir suas tipologias textuais em conjunto, com autoria, incrementando elementos que acharem úteis advindos de pesquisas na internet. [...] Além do mais, eles podem acessar de qualquer lugar e em qualquer momento pelos seus celulares. Outra coisa que é interessante, é que posso acompanhar simultaneamente como está sendo o processo de construção das produções, e posso acessar isso de qualquer lugar. Vai e ajudar muito na hora de avaliar, pois estarei mais a par do processo e não só do produto final. (Profª. de Língua Portuguesa).

Podemos observar o currículo sendo vivenciado como processo: alterando modos de produzir conhecimento e movimentos de aula (acessível em todo lugar); avaliando a aprendizagem (a professora ainda afirmou em outros momentos que tinha todas as produções dos alunos na “palma da mão”, a qualquer hora, sem tantos papéis); possibilitando um movimento de construção de um novo currículo, a cada nova situação, em coautoria com os alunos. Sobre as dificuldades no processo a professora comentou:

[...] tem dias que não são fáceis, porque os alunos vêm com dúvidas que nem eu sei responder, porque a ferramenta também é nova para mim. Mas daí, pensamos juntos e acabamos resolvendo o problema. No começo eles tiveram dificuldades em entender o funcionamento do Google Docs, mas aprenderam rápido. Eles ficam empolgados, parece que aquilo é natural pra eles... Parece não, né?! É natural! (Profª. de Língua Portuguesa).

Sobre esse processo inicial, nós trazemos falas de alunos que foram observadas em aulas de língua portuguesa: “Caramba, não sabia que esta palavra escrevia desta forma. Acabei de perceber isso pela correção automática.”; “Se fosse em sala de aula, você iria escrever assim e iria perder nota! [risos]”. Ou seja, um currículo em que a tecnologia digital não era o visível, segundo Salvat (2000), pois o objetivo era conhecer e aprender a escrever textos em diferentes gêneros textuais, a compartilhar as produções com pessoas para além da turma, da escola.

Nesse movimento, os alunos e a professora optaram por criar um espaço no Facebook. Afinal, o movimento de postar, compartilhar, curtir é muito comum aos alunos, faz parte da cultura deles, que também digital. Eles comentavam:

Se não fosse pelo Facebook, nossos textos ficariam só entre nós… [...] os outros participando juntos, curtindo e comentando nossas produções”.

Minha tia comentou meu texto. Isso é bom para eles verem que eu realmente tô estudando e não brincando igual alguns dizem na família. [risos entre eles]”.

As produções foram publicadas e os alunos receberam muitos retornos, inclusive de alunos de uma outra escola onde a professora também trabalhava; um currículo construído na multiplicidade de vozes dos atores que o constituem.

O professor de Física, ao mesmo tempo, por ter no currículo da disciplina a previsão de estudo sobre Termologia, optou por iniciar uma discussão sobre construção de termômetros caseiros com os alunos. No início das atividades, os alunos sugeriram a criação de um grupo de WhatsApp para que pudessem conversar sobre a construção dos termômetros; assim, esse foi um dos espaços de aprendizagem dos alunos. Também usavam a sala de tecnologias, por exemplo, para buscarem um modelo de termômetro a ser construído e que pudesse ser usado em suas casas, nos trabalhos por eles realizados com suas famílias: em plantios, produção de queijos, açúcar mascavo, rapadura, melado etc. Sim, eles tinham por objetivo usar os termômetros e conhecimentos de física para reorganizarem algumas ações de trabalho em seu cotidiano.

O que se observa é que os movimentos de integração ainda foram dentro das disciplinas, nas “caixinhas”, mas caixinhas abertas, compartilhadas, por meio de redes sociais, articulados com a vida desses alunos. Mas o que observamos foi um novo currículo sendo desenhado em diálogo com os alunos pela abertura de professores dessa escola.

Por fim, vamos discutir alguns movimentos da proposta de integração de tecnologias digitais ao currículo de uma disciplina de Matemática, em um curso de graduação, de uma universidade pública. Nesse caso, o processo de pesquisa e integração não iniciou com um convite a todos os professores do curso, pois foi um movimento planejado para ser realizado com uma disciplina de um curso, em que o convite e o desafio foi lançado ao grupo de alunos. As professoras da disciplina foram duas pesquisadoras (uma é autora deste artigo) interessadas em investigar o processo. A turma de alunos aceitou o desafio, e, ao longo do segundo semestre de 2017, a disciplina foi desenvolvida.

Esse processo de integração de tecnologias digitais ao currículo de uma disciplina mostra como um movimento de integração pode estar vinculado a uma escola como um todo (no caso uma instituição de ensino superior), ou à prática pedagógica de um ou mais professores de seus professores. Quando a discutimos para cursos superiores, em especial, em que a autonomia do professor na proposição de metodologias, de exploração de conteúdos da ementa, é maior, pois a partir de uma ementa, de formas diferentes se propor ações, a partir do projeto pedagógico de um curso. No caso da pesquisa de Lopes (2020), com certeza o movimento seria intenso, se fosse um processo de integração de tecnologias digitais ao currículo do curso, ou dos cursos de uma instituição de Ensino Superior. No entanto, seria necessário que, caso muitos ou todos os professores do curso e/ou instituição aderissem ao processo da mesma forma que nas escolas. Isso é um desafio!

A proposta de integração de tecnologias foi desenvolvida na disciplina de Matemática I, em uma proposta de educação bimodal (parte presencial e parte a distância), com ações sendo desenvolvidas por meio de celulares (todos os alunos tinham celular). A interação entre os sujeitos no espaço virtual aconteceu em um grupo do WhatsApp e acesso aos materiais didáticos (produzidos pelas professoras ou selecionados de sites a partir do objetivo das aulas) na plataforma GeoGebra (Plataforma GeoGebra é uma plataforma em que é possível disponibilizar vários materiais didáticos criados a partir do software GeoGebra, um software de geometria dinâmica).

As ações desenvolvidas com os alunos constituíram um ambiente construcionista de aprendizagem para essa disciplina de Matemática I, com uso de celulares, orientadas por estudos sobre o construcionismo realizados por Papert (2008), em que os alunos são sujeitos ativos em todo o processo de aprendizagem. Nas aulas presenciais, todos com seus celulares, a partir de uma dinâmica de espelhamento de tela, as discussões e os estudos foram realizados a partir do compartilhamento das telas de celulares dos alunos, num projetor da sala, em que todos podiam produzir coletivamente, refletindo e alterando produções até chegarem a uma proposta que todos estivessem de acordo. Nas aulas presenciais, os alunos também permaneciam conectados às ações realizadas, à distância, no grupo de WhatsApp da turma e na plataforma Geogebra.

Os resultados apontados na pesquisa de Lopes (2020), em relação a esse processo, indicam a inovação no currículo vivenciado nessa disciplina com base no uso de celulares, possibilitando que alunos acessassem - em diversos lugares (inclusive nas aulas presenciais) e em diferentes tempos - materiais didáticos como aplicativos, livros digitais, vídeos, recursos de espaços virtuais, simuladores. Além disso, a interação com esses materiais e com colegas e professora produziu conhecimento ao dialogar, conjecturar, validar hipóteses, criar registros com e a partir de tecnologias digitais. A produção de vídeos nas aulas a distância, oportunizou a apresentação de processos ou resultados de investigações matemáticas.

Nesse sentido, a gravação de tela do celular e seu compartilhamento com o grupo configuraram uma nova maneira de realizar aulas de matemática mediante o grupo do WhatsApp, evidenciando ganhos em termos de mobilidade e possibilidades de compartilhamento de imagens, textos, arquivos em diferentes formatos, vídeos, gifs, links. A interação com os materiais disponibilizados na plataforma Geogebra, em especial, os simuladores e os objetos de aprendizagem favoreceram a aprendizagem de conceitos de Cálculo em outros movimentos, diferentes dos convencionais.

No entanto, essas tecnologias sozinhas não transformam processos de aprendizagem, daí o sentido da integração delas ao currículo da disciplina, com objetivos de aprendizagem claros, pois o visível não deveria ser a tecnologia - e não o foi -, mas a aprendizagem de conceitos matemáticos, lembrando o que mencionou Salvat (2000). Nesse sentido, ficou evidente o conhecimento das professoras e a importância de sua formação, pois, conforme Lopes (2020), a atitude questionadora e o lançamento de desafios que mobilizassem os alunos foram determinantes para várias ações de aprendizagem dos alunos. Além dessa atitude, a proposta de atividades em uma abordagem construcionista, com questionamentos que possibilitaram momentos de investigação matemática com uso de celulares, também foi determinante de outros movimentos de aula com um currículo integrado à cultura digital.

O que se pode concluir com esse processo de integração é que o “espaço de aulas se tornou um espaço de diálogo, um espaço no qual os alunos puderam apresentar suas hipóteses, conjecturas, explicitando formulações e validações de hipóteses, ao dialogar com as certezas do outro” (LOPES, 2020, p. 174). Dessa maneira, criou-se um espaço de perguntas, experimentações, de respostas, de aprendizagem em que as tecnologias estão acopladas ao currículo, sendo verdadeiramente integradas.

Enfim, é apenas uma disciplina, num curso de graduação, numa universidade pública, e, com uma condição ímpar, pois havia 13 alunos matriculados. E aí nos questionamos: como propor esta dinâmica com turmas de 30, 60 e até 90 alunos, como observamos em algumas universidades? Ou será necessário rever a quantidade de alunos por turma, horários, matrizes curriculares de curso, além da formação de professores ao se pensar em integrar tecnologias digitais ao currículo? São muitas as reflexões a serem realizadas quando discutimos educação, currículo, cultura digital e processos de integração.

Um diálogo sobre o porvir…

Neste artigo apresentamos alguns resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi o de investigar processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar, identificando desafios e dificuldades que emergem de práticas pedagógicas em processos de integração. Assim, dialogamos sobre três processos, para apontar algumas possibilidades de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar, com vistas a inovar práticas pedagógicas e o currículo e identificar alguns desafios e dificuldades.

Nas escolas públicas de Educação Básica onde a pesquisa foi desenvolvida, podemos apontar duas dificuldades mais centrais: a infraestrutura da escola ainda carente de equipamentos e acesso à internet de alta velocidade em todo o espaço; o tempo disponível de professores em função de suas rotinas, por vezes, sufocadas pelos registros burocráticos, pela preparação de aulas, estudos e participação de processos sistematizados de formação para uso de tecnologias digitais; o tempo disponível de formadores e pesquisadores para se dedicarem aos processos de formação no espaço da escola.

Dessas dificuldades, surgem alguns desafios: a proposição de políticas de investimento em infraestruturas mais digitais para as escolas; o investimento em políticas de formação inicial e de formação continuada de professores e gestores, de forma contínua, ininterrupta, que oportunizem construir com os professores propostas de um currículo inovador, a cada dia, para a sua sala de aula, escola, e integradas à cultura digital, à cultura local e global, repensando tempos de trabalho de professores, gestores e formadores.

Quanto aos processos de formação na escola de Educação Básica, o que temos observado em nossas pesquisas é que modelos focados em ações de formação-ação-reflexão têm sido uma boa escolha. O fato de o formador estar no espaço escolar, acompanhando as práticas dos professores e conhecendo seus alunos e a escola, além de oportunizar mais segurança ao professor em início de processo de integração, favorece a formação e a reflexão sobre a prática, na prática e após a prática nas reuniões e grupos de estudo. O desafio é pensar a formação a partir de encontros presenciais na escola e nas reuniões virtuais como parte do tempo de trabalho do professor, em parceria com formadores locais (como foi o caso do orientador pedagógico na escola de Ensino Médio). É pensar que a formação precisa envolver ações de prática na sala de aula, pois, à medida que os professores vão tendo experiências com integração de tecnologias, poderão refletir sobre possíveis inovações curriculares.

Outro desafio é pensar a formação inicial dos professores, pois os cursos de Licenciatura têm investido pouco em currículos diferenciados, com a integração de tecnologia digital. Esses cursos, em sua maioria, ainda são focados em um currículo centrado no professor, em aulas com materiais analógicos, para escolas em que o uso do celular é proibido e cuja condição é apoiada por muitos formadores desses professores em formação. Daí surge o desafio da formação continuada de formadores e de professores do Ensino Superior que, em muitos casos, são profissionais de diferentes áreas que atuam como professores, cuja formação para docência é precária.

Enfim, são muitos os desafios para pensarmos em currículos escolares integrados à cultura digital, em processos de integração de tecnologias digitais aos currículos. Mas, o importante é continuarmos realizando ações, buscando parcerias (com professores, gestores, escolas), investigando e compartilhando resultados de práticas inovadoras.

1Pesquisa de pós-doutorado realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com bolsa do Programa Nacional de Pós Doutorado (PNPD-CAPES).

2A pesquisa desenvolvida nesta escola foi financiada pela Fundação de Apoio ao Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado do Mato Grosso do Sul (FUNDECT).

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Recebido: 29 de Julho de 2020; Aceito: 13 de Setembro de 2020

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